DISCURSO SOBRE A EQUIDADE QUE DEVE REGULAR OS JULGAMENTOS E A EXECUÇÃO DAS LEIS

CHARLES-LOUIS DE SECONDAT, BARÃO DE LA BREDE E DE M ONTESQUIEU

TRADUÇÃO: IGOR MORAES SANTOS 1

O texto a seguir é um discurso pronunciado por Charles-Louis de Secondat, barão de La Brède e de Montesquieu, em 11 de novembro de 1725, por ocasião do retorno dos trabalhos do parlamento de Bordeaux.

Na condição de presidente do tribunal, Montesquieu começa criticando os juízes injustos e elogiando a retidão dos bons cidadãos. Lança observações sobre a administração da justiça, incluindo considerações sobre causas morais, sociais e jurídicas dos problemas enfrentados pelos atores do processo. Ao final, dirige-se aos advogados, dando-lhes conselhos em tom paternal, com vistas a um aprimoramento do comportamento ético-profissional.

Nesse discurso de ocasião, marcado por um estilo menos sofisticado do aquele pelo qual ficou marcado, o filósofo francês parece acreditar que, não obstante os graves vícios da prática forense, sobretudo da parte de procuradores e magistrados, é possível um melhor funcionamento do sistema judiciário, em benefício não apenas dos agentes que nela atuam, mas também em prol dos particulares que a ela recorrem.

Texto original: MONTESQUIEU. Discours prononcé par M. Le Président de Montesquieu, a la rentrée du Parlement de Bordeaux, le jour de la Saint Martin 1725. Geneve: Le Jay, 1772; MONTESQUIEU. Scritti postumi (1757-2006). A cura di Domenico Felice. Firenzi; Milano: 2017.

1 Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre e Graduado em Direito pela UFMG. Especialista em Direito Público pela PUC-Minas. Advogado. E-mail: santosigormoraes@gmail.com.


Revista do CAAP N. 1-2 | V. XXVII | pp. 1 – 9 | 202 2


DISCURSO SOBRE A EQUIDADE QUE DEVE REGULAR OS JULGAMENTOS E A EXECUÇÃO DAS LEIS

DISCURSO PRONUNCIADO PELO SR. PRESIDENTE DE MONTESQUIEU NO RETORNO DO PARLAMENTO DE BORDEAUX, NO DIA DE SÃO MARTINHO, EM 1725

Que aquele entre nós que tornou as leis escravas da iniquidade de seus julgamentos pereça imediatamente! Que ele encontre em todo lugar a presença de um Deus vingador e os poderes celestes irritados! Que umfogo saia de debaixo da terra e devore a sua casa! Que a sua descendência seja para sempre humilhada! Que ele procure seu pão e nunca o encontre! Que ele seja um exemplo assustador da justiça do céu, como o foi da injustiça da terra!

É mais ou menos assim, Senhores, que falava um grande imperador, e suas palavras tão tristes e tão terríveis são para vós repletas de consolação. Vós todos podeis dizer nesse momento ao povo reunido, com a confiança de um juiz de Israel: se eu cometi qualquer injustiça, se eu oprimi qualquer um de vós, se eu recebi presentes de qualquer um dentre vós, que eleve a voz, que fale contra nós sob os olhos do Senhor, loquimini de me coram domino et contemnam illud hodie2 .

Eu não falarei então nada dessas grandes corrupções que, em todos os tempos, têm sido o presságio da mudança ou da queda dos Estados; dessas injustiças de propósito formado; dessas maldades sistemáticas; dessas vidas todas marcadas de crimes, nas quais dias de iniquidade são sempre seguidos de dias de iniquidades; dessas magistraturas exercidas em meio a censuras, choros, lágrimas e temores de todos os concidadãos: contra tais juízes, contra homens tão funestos, seria necessário um trovão; a vergonha e as reprovações não fazem nada.

Assim, supondo em um magistrado sua virtude essencial, que é a justiça – qualidade sem a qual ele é apenas um monstro na sociedade, e com a qual ele pode ser um péssimo cidadão –, falarei apenas dos atributos que podem fazer com que esta justiça abunde mais ou menos; é necessário que ela seja esclarecida; é necessário que ela seja pronta; que ela não seja demasiadamente austera, e, enfim, que ela seja universal.

Na origem de nossa monarquia, nossos pais, pobres, mais pastores que trabalhadores, soldados mais que cidadãos, tinham poucos interesses a regrar. Algumas leis sobre a partilha do butim, sobre o pasto ou o roubo dos animais, regulavam toda a república. Todo mundo era bom para ser magistrado em um povo que em seus costumes seguia a simplicidade da natureza e para o qual a ignorância e sua grosseria forneciam os meios tanto fáceis quanto injustos para resolver as diferenças, como a sorte, as provações pela água e pelo fogo, os duelos.

2 Citação não literal de um trecho da tradução latina da Bíblia (Vulgata) cujo teor integral é seguinte: “Eis-me aqui; testificai contra mim perante o Senhor, e perante o seu ungido, a quem o boi tomei, a quem o jumento tomei, e a quem defraudei, a quem tenho oprimido, e de cuja mão tenho recebido suborno e com ele encobri os meus olhos, e vo-lo restituirei.” (1 Samuel 12:3). [N.T.]


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Mas depois que abandonamos nossos costumes selvagens; depois que, vencedores dos gauleses, tomamos o governo; que o código militar cedeu ao código civil; depois sobretudo que as leis dos feudos não eram mais as únicas leis, e a nobreza, o único corpo do estado, e que por essa última mudança o comércio e a agricultura foram encorajadas; que as riquezas dos particulares e sua avareza foram aumentadas, que as tivemos de desembaraçar dos grandes interesses, e dos interesses quase sempre escondidos; que a boa-fé foi relegada a alguns negócios de pouca importância, enquanto que o artifício e a fraude foram retiradas dos contratos; nossos códigos foram aumentados; foi necessário unir as leis estrangeiras às nacionais; o respeito pela religião adicionou-lhes ainda as canônicas; e as magistraturas se tornaram apanágio apenas dos cidadãos mais esclarecidos.

Os juízes se viram em meio a armadilhas e de surpresas, e a verdade deixou no seu espírito as mesmas suspeitas que o erro.

A obscuridade dos fundamentos fez nascer a forma3; os trapaceiros, que esperavam poder ocultar a sua malícia, fizeram desta uma espécie de arte; profissões inteiras foram estabelecidas, umas para obscurecer, outras para prolongar os negócios; e o juiz teve menos dificuldade de se defender da má-fé do litigante, que do artifício daqueles a quem confiava seus interesses.

Por isso não era mais suficiente que o magistrado examinasse a pureza das suas intenções, já não lhe bastava mais dizer a Deus Proba me Deus et scito cor meum4. Era-lhe necessário examinar seu espírito, seus conhecimentos e seus talentos.

Era necessário que ele realizasse seus estudos, que carregasse por toda sua vida o peso de uma aplicação incansável, e que ele visse se sua aplicação poderia dar ao seu espírito a medida dos conhecimentos e o grau de luzes que sua condição exigia.

Lê-se nos relatos de certos viajantes que existem minas onde trabalham homens que nunca viram a luz do dia. Eles são uma imagem muito natural daquelas pessoas cujo espírito, pesado sob os órgãos, não é capaz de receber nenhum grau de clarividência.

Uma tal incapacidade exige de um homem justo que ele se retire da magistratura. Uma menor incapacidade exige de um homem justo que ele a supere com suores e vigílias.

É necessário ainda que a justiça seja rápida. Frequentemente a injustiça não está no julgamento, ela está nas demoras. Frequentemente o processo causa mais danos que uma decisão contrária.

3 No sentido de excesso de forma, ou seja, formalismo. [N.T.]

4 Citação não literal de um trecho da tradução latina da Bíblia (Vulgata) cujo teor integral é seguinte: “Perscrutai-me, Senhor, para conhecer meu coração; provai-me e conhecei meus pensamentos.” (Salmos 139:23). [N.T.]


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Na constituição atual, ser litigante é um status. Porta-se esse título até a sua última idade, ele vai para a posteridade e passa de sobrinho a sobrinho até o fim de uma infeliz família.

A esse título tão triste, a pobreza parece sempre ligada. A justiça mais exata nunca salva mais do que uma parte dos infortúnios: e tal é o estado das coisas que as formalidades introduzidas para conservar a ordem pública são hoje o flagelo dos particulares5 .

A atividade do tribunal tornou-se uma fonte de fortuna como o comércio e a agricultura. A opressão econômica6 encontrou nisso o seu alimento, e disputou com a chicana a ruína do desafortunado litigante.

Nos velhos tempos, as pessoas de bem conduziam aos nossos tribunais os homens injustos. Hoje são os homens injustos que a eles trazem as pessoas de bem: o depositário ousou negar o depósito, pois esperava que aquele de boa-fé, amedrontado, deixasse de o demandar em juízo; e o sequestrador deu a conhecer ao oprimido não ser prudente continuar a perguntar-lhe a razão de suas violências.

Vimos, ó século desafortunado!, os homens iníquos ameaçar de levar à justiça aqueles a quem subtraem seus bens, e levar, em razão de suas vexações, à dureza do tempo e à ruína inevitável aqueles que queriam fazê-los cessar.

Mas quando o estado daqueles que litigam não era ainda ruinoso, bastaria que fosse incerto para nos empenharmos em fazê-lo terminar. Sua condição é sempre infeliz, pois lhe falta alguma segurança, seja aos seus bens, à sua fortuna ou à sua vida.

Essa mesma consideração deve inspirar a um magistrado uma grande afabilidade, pois ele sempre lida com pessoas desafortunadas: é necessário que o povo o encontre sempre presente em suas mais ínfimas inquietações, semelhantes a esses marcos de pedra que os viajantes encontram nas grandes estradas, sobre os quais repousam seus fardos.

No entanto, vimos juízes que recusam às partes toda consideração para conservar, dizem, a sua neutralidade, caindo em uma rudez que os fazem mais certamente sair dela.

Mas quem é que nunca pôde dizer, à exceção dos estoicos, que essa afeição generalizada pelo gênero humano, que é a virtude do homem considerado em si mesmo, seja uma virtude estranha ao caráter do juiz? Se é o poder que deve endurecer os corações, vedes como a autoridade

5 Montesquieu argumenta, no mesmo sentido, em L’esprit des lois XXIX, 1. [N.T.]

6 Maltôte: elevação de um imposto extraordinário que se aplicava, no direito medieval francês, aos bens de consumo corrente, como o vinho e a cerveja, para financiar despesas extraordinárias, como guerras e construções de fortificações. Preferimos traduzir, assim como na versão italiana, por “opressão econômica”, para salientar o ônus patrimonial gerado ao cidadão. [N.T.]


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paterna endurece os corações dos pais e regulais a vossa magistratura sobre a primeira de todas as magistraturas.

Mas independentemente da humanidade, a benevolência e a afabilidade, em um povo polido, tornam-se uma parte da justiça, e um juiz que com elas falte com seus clientes, começa desde então a não mais dar a cada um o que lhe pertence.

Assim, em nossos costumes, deve um juiz se conduzir em relação às partes de maneira que pareça a elas mais reservado do que grave, e que lhes faça ver a probidade dos Catões, sem mostrar- lhes rudeza e austeridade.

Confesso que há ocasiões nas quais não existe uma alma reta que não se sinta indignada: o uso que introduziu as solicitações parece ter sido feito para testar a paciência dos juízes que têm coragem e probidade. Tal é a corrupção do coração dos homens que parece que a conduta geral é sempre a supor no coração dos outros.

Ó vós que, para nos seduzir, empregais tudo o que podeis imaginar de mais infalível; que para nos melhor vencer procurais todas as nossas fraquezas; que praticais a bajulação, as baixezas, o charme de nossos amigos, o crédito dos poderosos, o ascendente de uma esposa querida, às vezes mesmo um império que credes mais forte, porque o credes criminoso; vós que, escolhendo todas as nossas paixões, fazeis atacar nosso coração no lugar menos defendido: podeis sempre falhar em todos os vossos projetos e obter apenas confusão em vossos empreendimentos.

Nós não teremos a reprovação que Deus dá aos pecadores nos livros santos: vós me fizeste servir às vossas iniquidades7; nós resistiremos às vossas solicitações mais audazes e vos faremos sentir a corrupção do vosso coração e a retidão do nosso.

É necessário que a justiça seja universal. Um juiz não deve ser como o antigo Catão, que foi o mais justo dos romanos em seu tribunal, mas não em sua família. A justiça deve ser em nós uma conduta geral. Sejamos justos em todos os lugares, justos em todos os aspectos, em relação a todas as pessoas, em todas as ocasiões.

Aqueles que são justos apenas nos casos nos quais a sua profissão o exige, que pretendem ser equitativos nos assuntos dos outros, quando não são incorruptíveis naqueles assuntos que tocam a si próprios, que não praticam a equidade nos menores acontecimentos de sua vida, correm o risco de perder logo aquela mesma justiça que prestam no tribunal.

Juízes dessa espécie assemelham-se àquelas monstruosas divindades inventadas pela fábula, que colocavam alguma ordem no universo, mas que, carregadas de crimes e de imperfeições,

7 Isaías 43:24: “Mas me atormentastes com teus pecados, cansaste-me com tuas iniquidades.” [N.T.]


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perturbavam elas próprias as suas leis e faziam a natureza retornar a todos os desregramentos que tinham banido.

Que o papel do homem privado não faça nada de mal àquele do homem público: pois em que tamanha perturbação de espírito um juiz lança as partes quando elas veem nele as mesmas paixões que ele deve corrigir e consideram sua conduta repreensível como aquela que deu origem às suas queixas.

Se ele amasse a justiça, diriam elas, a recusaria às pessoas que são unidas a ele por laços tão doces, tão fortes, tão sagrados, a quem deve ter tantos motivos de estima, de amor ou de reconhecimento, e que talvez tenham colocado toda a sua felicidade em suas mãos.

Os julgamentos que realizamos no tribunal raramente podem decidir sobre a nossa probidade: é nos negócios que nos interessam particularmente que o nosso coração se desenvolve e se faz conhecer. É com base nisso que o povo nos julga, é com base nisso que ele nos teme ou que o espera de nós.

Se nossa conduta é condenada, se ela é objeto de suspeita, devemos nos submeter a uma espécie de recusa pública e o direito de julgar que exercemos é incluído, por aqueles obrigados a submeter-se a ele, no rol de suas calamidades.

É tempo, senhores, de falar-lhes sobre esse jovem príncipe, herdeiro da justiça de seus ancestrais, bem como de sua coroa8 .

A história não conhece nenhum príncipe que, na idade madura e na força de seu governo, teve dias tão preciosos para a Europa como aqueles da infância desse monarca: o céu ligou, no curso de sua vida inocente, tão grandes destinos que ele parecia ser o pupilo e o rei de todas as nações. Os homens dos climas mais remotos viam os dias dele como os seus próprios dias; nas invejas dos interesses diversos, todos os povos viviam em um temor comum; nós, fiéis súditos, nós, franceses, a quem se faz o elogio de amar unicamente o nosso rei, dificilmente temos nesse ponto vantagem sobre as nações aliadas, sobre as nações rivais, sobre as nações inimigas.

Um tal presente do céu, tão grande pelo que se passou, tão grande no tempo presente, é para nós ainda uma ilustre promessa para o futuro. Nascido para a felicidade do gênero humano, não faria feliz a todos além dos seus súditos, e faria como o sol, que dá a vida a tudo o que está longe dele e que queima tudo o que dele se aproxima?

Nós acabamos de ver uma grande princesa sair do luto pelo qual ela estava cercada9. Ela apareceu e os diversos povos, nesses tipos de acontecimentos atentos unicamente aos seus

8 Refere-se a Luís XV, Rei da França. [N.T.]

9 Refere-se a Maria Carolina Felícia Leszczyńska, que se casou com Luís XV em 1725. [N.T.]


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interesses, viram apenas as virtudes e os préstimos que o céu espalhou sobre ela: o jovem monarca inclinou-se sobre seu coração; a virtude é a nossa garantia para o futuro desse tenro amor que os encantos e as graças fizeram nascer.

Sejais, grande rei, o mais feliz dos reis. Nós, que vos amamos, bendizemos ao céu por ter começado a felicidade da monarquia para os membros da família real. Não importa o quão grande seja a felicidade que gozais, não tereis nada como essa que vossos povos mil vezes desejaram a vós. Imploramos todos os dias ao céu, ele em tudo nos atendeu: mas a ele imploramos ainda! Possa a vossa juventude ser citada a todos os reis que vos sucederem; possais, em uma idade mais madura, nela não encontrar nada a desaprovar, e nos grandes compromissos nos quais entrais, sempre sintais aquilo que deve ao universo o primeiro dos mortais.

Possais sempre cultivar, na paz, as virtudes que não são menos régias do que as virtudes militares; e não esqueçais nunca que o céu, fazendo-vos nascer, já fez toda a vossa grandeza, e que, como o imenso Oceano, não vos resta nada mais a adquirir.

Que o príncipe em quem tenhais depositado a vossa máxima confiança só encontre a vossa glória na vossa justiça10. Esse príncipe, inflexível como as próprias leis, que ordena para sempre aquilo que estabeleceu uma única vez; esse príncipe que ama as regras e não conhece as exceções; que segue sempre a si mesmo, e que vê tanto o fim quanto o começo dos projetos; que sabe conter os pedidos dos cortesãos nos limites justos, distinguir os seus serviços das suas insistências e os faz compreender que eles não são mais para vós que vossos outros súditos; que ele possa ficar muito tempo próximo ao vosso trono e compartilhar convosco as dores da monarquia.

Advogados, a Corte conhece a vossa integridade e tem o prazer de poder reconhecê-la. As queixas contra a vossa honra ainda não chegaram a ela. Sabeis, porém, que não é suficiente que vosso ofício seja desinteressado para ser puro; tendes zelo pelas partes e o louvaremos, mas esse zelo se torna criminoso quando vos fazeis esquecer o que deveis aos vossos adversários.

Sei bem que as leis de uma justa defesa vos obrigais frequentemente a revelar coisas que a vergonha tinha enterrado, mas é um mal que só toleramos quando é absolutamente necessário. Aprendeis de nós esta máxima e lembrais dela sempre:

Não digais nunca a verdade

às custas de vossa virtude.

10 Refere-se a Luís IV Henrique de Bourbon, Príncipe de Condé, que foi primeiro-ministro do Rei Luís XV entre 1723 e 1726. [N.T.]


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Que triste talento esse de saber despedaçar os homens! As argúcias de certos espíritos são talvez os maiores espinhos de nosso ofício. Bem longe disso que faz o povo rir possa atrair nossos aplausos, choramos sempre pelos desafortunados que vêm desonrados.

Que! a vergonha seguirá a todos aqueles que se aproximam desse sagrado Tribunal! Infelizmente, tememos que as graças da Justiça não são suficientemente puras? Oque se pode fazer de pior para as partes? Fazê-las lamentar por seu próprio sucesso e lhes entregar, para me servir dos termos da Escritura, os frutos da Justiça, amargos como o absinto11 .

E, de boa-fé, o que quereis que respondamos quando se vem nos dizer: nós vimos diante de vós e nos cobriram lá com confusão e ignomínia; vós vistes nossas feridas e não quisestes colocar-lhes óleo; vós quisestes reparar os ultrajes que nos fizeram longe de vós, fizemo-los sob os vossos olhos mais reais e nada dissestes; vós que, no Tribunal onde estivestes, nos olhais como os deuses da terra, ficastes mudos como as estátuas de madeira e de pedra. Vós dizeis que nos conserva os nossos bens: e nossa honra nos é mil vezes mais cara do que nossos bens; vós dizeis que colocais em segurança nossas vidas: e nossa honra vale para nós mais do que nossa vida. Se não tendes a força para deter os empreendimentos de um orador inflamado, indique-nos ao menos algum tribunal mais justo que o vosso: como saberemos se não separais o bárbaro prazer que se acabou de dar em nosso prejuízo, se não gozastes do nosso desespero, e se isso que nós censuramos em vós como uma fraqueza, não deveríamos censurá-lo mais como um crime? Advogados, nunca teríamos a força para suportar tão cruéis censuras e nunca seria dito que vós estaríeis mais prontos a faltar assim com os primeiros deveres pelos quais nós devemos vos repreender.

Procuradores, deveis tremer todos os dias de vossa vida sobre o vosso ofício. O que digo é que deveis fazer tremer até a nós mesmos: podeis a todo momento fechar-nos os olhos para a verdade e abri-los para nós em vislumbres e aparências; podeis amarrar-nos as mãos, iludir as disposições mais justas ou delas abusar; apresentar sem cessar às vossas partes a justiça e fazê-las beijar apenas a sua sombra; fazê-las esperar o fim do processo e o adiar sempre; fazê-las percorrer um labirinto de erros, pois mais perigosos quanto mais habilidosos seríeis; faríeis dirigir a nós uma parte do ódio; isso que haveria de triste em vossa profissão difundiríeis sobre a nossa, e nós logo nos tornaríamos os maiores criminosos depois dos primeiros culpados.

Mas o que enobreceis a vossa profissão pela virtude, que a todos orna? Ficaríamos encantados de vos ver trabalhar para se tornarem mais justos que nós somos! Com que prazer nós

11 Alude a Amós 6:12: “Porventura correm os cavalos por entre os rochedos, ou podem os bois lavrar uma rocha, para que vós troqueis o direito em veneno, e o fruto da justiça em absinto?” [N.T.]


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vos perdoaríamos por essa emulação, e como nossas dignidades nos pareceriam vis diante de uma virtude que nos pareceria tão cara.

Quando muitos de vós mereceram a estima da Corte, regozijamo-nos com os votos que vos demos. Parecia-nos que íamos caminhar por trilhas mais seguras. Imaginávamos ter adquirido nós mesmos um novo grau de justiça. Não teremos mais – dizemos – que nos defender de seus artifícios. Eles vão concorrer conosco nos trabalhos do dia, e talvez veremos o tempo em que o povo será libertado de todo fardo. Procuradores, vossos deveres tocam de tão perto os nossos que nós, que somos designados para vos censurar, vos imploramos a observá-los. Não vos falamos enquanto juízes. Esquecemos que somos vossos magistrados. Rogamos-vos para que nos deixeis a nossa probidade; para que não nos prive do respeito das pessoas, e para que não nos impeça de sermos para eles seus pais.