DA POSSIBILIDADE DE UMA DECISÃO PELO SOCIALISMO NA CONSTITUIÇÃO DE WEIMA R Implicações e pressupostos da tese de Otto Kirchheimer

ON THE POSSIBILITY OF DECISION FOR SOCIALISM IN WEIM AR CONSTITUTION

Implications and assumptions of Otto Kirchheimer’s thesis

THIAGO DIAS DE MATOS DINIZ 1

Resumo: Kirchheimer, na linha de pensamento aberta por Carl Schmitt, defende a tese de que a ausência de uma decisão pelo socialismo, na Constituição de Weimar, teria implicado um espaço indefinido e, então, preenchido pelos partidos (burgueses). Por trás dessa tese está o pressuposto não problematizado de que a aludida decisão seria não apenas desejável, mas possível. Neste artigo, é realizada uma reconstrução da base transcendental dessa possibilidade, no pl ano hermenêutico, a partir da qual se investiga m perspectivas críticas acerca da ideia de compromisso no Estado social. Assim, é explorado o modo pelo qual é articulada aquela possibilidade, e o modo, dela supostamente derivado, por meio do qual aquela decisão soberana, na esfera política - constitucional, repercutiria na atividade hermenêutica do intérprete judicial. O objeto de estudo compreende, portanto, as implicações do plano constitucional positivo sobre a concretização judicial dos direitos fundamentais sociais, e o problema do pressuposto, em Schmitt e Kirchheimer, d a possibilidade de uma decisão como aquela aludida no plano político .

Abstract: Kirchheimer, within a t radition opened by Carl Schmitt, advocates the thesis according with the absence of a decision for socialism, in Weimar Constitution, would have implicated an undefined space, which would have been therefore occupied by bourgeoise partisans. Behind that thesis lies the unthematized assumption that referred decision would not only be desirable but also possible. This article proceeds with a reconstruction of the transcendental ground of that possibility, on the hermeneutical horizon, from which critical perspectives about (Social) Welfare State idea of commitment are addressed. It further explores the constitution of that possibility and the way by which, apparently deriving from it, the sovereign decision, on political and constitutional sphere, would impact the hermeneutical activity of Courts. The object of this article comprehends, furthermore, the implications of the positive constitutional field on the courts’ concretization of fundamental social rights and the problem of the assumption, by Schmitt and Kirchheimer , of the possibility of a decision like the one referred on the political ground.

1 Doutorando em Direito pela UFMG. Mestre e Graduado em Direito pela UFMG. Graduado em Filosofia pela Universidade do Sul de Santa Catarina. Graduado em Ciência da Computação pela FUMEC.


Revista do CAAP N. 1-2 | V. XXVII | pp. 1 – 11 | 202 2

Palavras-chave: direitos fundamenta is sociais; Constituição compromissária; Otto

Keywords: fundamental social rights; committed Constitution; Otto Kirchheimer;

Kirchheimer; Carl Schmitt; hermenêutica Carl Schmitt; phenomenological

fenomenológica. hermeneutics.

INTRODUÇÃO

No período de gestação da Constituição de Weimar, a oposição de classes, notadamente entre o movimento operário e a burguesia, foi mitigada em uma série de acordos entre uniões de trabalhadores, empresários, entre outros agentes políticos, que acabaram induzindo a uma compreensão dessa constituição sob a forma de um compromisso político, no sentido técnico de contrato2 .

Segundo Kirchheimer, à representação dos trabalhadores foram garantidos novos direitos apenas em um sentido formal, através de um acordo por meio do qual os sindicatos reivindicavam a igualdade e legitimidade de suas pretensões como fator determinante na vida econômica3 – em que pese a burguesia, de fato, manter-se no controle das esferas do governo e da burocracia4. Aquele acordo, de todo modo, apenas poderia ser efetivo sob um “sistema político em que ao capital e trabalho fossem garantidos direitos iguais, o que não seria possível em um estado socialista”5. Assim, para Kirchheimer, o futuro da Constituição de Weimar encontrava-se, de partida, esvaziado.

Para delimitar o sentido de compromisso, referido ao sistema de direitos fundamentais da Constituição de Weimar, Kirchheimer recusa a ideia de que teria havido concessões pelas partes envolvidas6. Nesse sentido, os direitos fundamentais de Weimar não seriam essencialmente compromissos, mas a manifestação de um conjunto de valores variados e contraditórios7, sobre o qual nenhuma unidade política ou capacidade decisória poderiam ser alcançáveis8. Compromisso será compreendido, no plano constitucional, como a ausência da decisão fundamental a que alude Schmitt, tematizada a seguir .

2 NEUMANN, Franz. A mudança de função da lei no direito da sociedade burguesa. Revista Brasileira de Estudos Políticos, v. 109, 2014, p. 54- 57.

3 KIRCHHEIMER, Otto. Weimar – And What Then?”. In: Politics, Law and Social Change: Selected Essays of Otto Kirchheimer. New York: Columbia University Press, 1969, p. 37.

4 Ibid., p. 73.

5 Ibid., p. 37 .

6 Ibid., p. 53.

7 Ibid., p. 54.

8 Ibid., p. 60.


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Kirchheimer aponta, em suma, o erro básico e irreparável da Constituição de Weimar:

ela não tomou uma decisão; ela foi vítima da falsa concepção segundo a qual os princípios da democracia, por si, constituem os princípios de uma ordem social ou ideal específica; ela esqueceu-se de que a democracia não pode mais do que articular as condições já existentes. [...] Por causa da confusão entre a forma da democracia e seu conteúdo, ninguém assumiu a tarefa de dotar essa constituição de um programa político. Desde 1919, a burguesia alemã assumiu com sorte e destreza essa tarefa de preencher a forma tão pura com conteúdo particularmente burguês.

Para Kirchheimer, a democracia teria sido viável apenas sob a condição de uma escolha inequívoca pelo princípio substantivo da organização social, nomeadamente, o socialismo9 .

1. IMPLICAÇÕES DA (IN)DECISÃO CONSTITUCIONAL PARA A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS

Para a tese (ou ficção jurídica) do decisionismo, o direito depende, como condição de possibilidade de sua efetivação como direito, do âmbito não normativo, “o âmbito fático de uma decisão que, não lhe estando vinculada, pode estabelecer a ordem ou a ‘situação normal’ em que este mesmo direito poderá vigorar”10. O Estado, assim, efetivaria o direito por meio “da imposição fática de uma ordem jurídica incontestável”11 .

Na segunda versão de O Conceito do Político, de 1932, Schmitt considera que, “se não houver a possibilidade do conflito político propriamente dito, se não houver uma instância capaz de hipostasiar o político, assumindo o monopólio da decisão sobre o amigo e o inimigo”12, então a unidade política do povo torna-se problemática, e a esfera pública tende a “dissolver-se em uma guerra civil”13. O político é, então, entendido como a instância que estabelece a unidade política de um povo e constitui a própria esfera pública.

Para Schmitt, é “só a partir da possibilidade de uma decisão política, só a partir de uma entidade pública capaz de representar a unidade política, monopolizar o político e

9 Ibid., p. 73.

10 SÁ, Alexandre Franco de. Poder, Direito e Ordem: ensaios sobre Carl Schmitt. Rio de Janeiro: Via Verita, 2012, p. 79.

11 SÁ, 2012, p. 82.

12 Ibid., p. 161.

13 Ibid., p. 162.


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estabelecer o direito”14 que pode emergir a esfera pública ordenada. Na falta dessa decisão, não haveria essa esfera, mas antagonismos políticos sem uma forma política propriamente dita. Segundo Sá, Schmitt, em 1928, em sua Doutrina da Constituição, pode falar de

povo “de acordo com a representação democrática da Constituição de Weimar, como se este fosse uma entidade política dotada de vontade, constituindo uma esfera pública anterior e subjacente à sua representação e às decisões políticas”15. Ao mesmo tempo, afirma que não há povo, nem esfera pública, sem a aludida representação exterior que possa decidir politicamente16. Nota-se, assim, um esforço inicial em compatibilizar sua tese decisionista com o contexto político vigente, seja com o regime democrático de Weimar, ou sob influência posterior do nacional socialismo, e a relação entre decisão e uma comunidade de povo se manteria aparentemente oscilante, conforme o foco da origem ora em um, ora em outro, sem que isso significasse uma adesão de Schmitt, em última instância, “à representação do povo como esfera pública subjacente ao político”17 ou como uma “‘comunidade de povo’, caracterizada por uma homogeneidade imanente de caráter étnico, racial ou cultural”18 .

Em 1930, pensar o povo alemão em termos de unidade ou substância política homogênea em torno de uma vontade geral pressuposta na Constituição parecia inviável. Os partidos políticos anticonstitucionais, majoritários, levavam a cabo uma interpretação normativista da Constituição, compreendida como um “conjunto de normas formais desvinculadas de qualquer realidade substancial”19 .

Um alargamento da teoria constitucional schmittiana, ou uma recondução do decisionismo ao seu sentido originário, para além da mera indeterminação normativa da decisão, passa, então, a destacar o seu vínculo “à representação de uma ordem concreta, mostrando que o mero decisionismo”20, assim compreendido o caráter desvinculado da decisão, “não é discernível do positivismo e não se distingue [...] do normativismo que se lhe contrapõe”21 .

O próximo ponto a ser explorado diz respeito à relação entre aquela suposta (in)decisão no plano constitucional e a aplicação dos direitos fundamentais sociais. Esse tema

14 Ibid., p. 166.

15 Ibid., p. 168.

16 Ibid., loc. Cit .

17 Ibid., p. 171.

18 SÁ, 2012, p. 171.

19 Ibid., p. 172.

20 Ibid., p. 262.

21 Ibid., loc. Cit .


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está implicado, por exemplo, nas análises conduzidas por Neumann22 e Herrera23, a seguir sintetizadas.

2. A EVOLUÇÃO INTERPRETATIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS A PARTIR DO SENTIDO HISTÓRICO DA DECISÃO

Neumann observa que, apesar de uma intepretação inicialmente muito restritiva do significado dos direitos fundamentais expressos na Constituição de Weimar, quanto ao seu alcance normativo, na medida em que a burguesia se fortalecia e afastava a iminência do movimento revolucionário, aqueles direitos começaram a adquirir uma aplicabilidade crescente, uma vez que alimentavamo poder de revisão judicial pela burocracia estatal burguesa dos atos executivos e legislativos, e fortalecia, assim, a sua interpretação correlata, política, daqueles direitos, sobretudo individuais e liberais. Porém, como ressalta Neumann, esses direitos não mais são concebíveis como anteriores ao Estado – nesse sentido, são garantidos, como todos os direitos fundamentais, nos termos da Constituição24. Daí a crítica à Schmitt, para quem as resoluções políticas do povo alemão, incorporadas nos direitos fundamentais constitucionais, não poderiam ser alteráveis, sob pena de a Constituição, assim interpret ada, abolir a si mesma25. Isso significa, pela concepção de Schmitt, que a ordem política tem (ou deveria ter) uma solução em uma decisão histórica por meio da Constituição, e qualquer alteração sobre essa solução seria obtida apenas por via revolucionária; em outros termos, não seria possível uma evolução jurídica daquela Constituição em direção, por exemplo, ao socialismo, por meio da interpretação das suas disposições26 .

Uma conclusão nesse sentido parece problemática, tanto que Neumann exemplifica o caráter irremediavelmente histórico-sociológico da interpretação do art. 109 da Constituição de Weimar, que prevê a igualdade dos cidadãos perante a lei, seja essa igualdade interpretada em sentido formal ou material; seja ela direcionada apenas ao judiciário, a respeito da aplicação das leis, ou também ao legislativo e à Administração Pública27. Se interpretada no primeiro

22 NEUMANN, Franz. The Social Significance of the Basic Laws in Weimar Constitution. In: Economy and Society, v. 10, n. 3, 1981.

23 HERRERA, Carlos Miguel. Estado, Constituición y derechos sociales. In: Revista Derecho Del Estado, n. 15, 2003. Disponível em: <http://revistas.uexternado.edu.co/index.php/derest/issue/view/85>.

24 NEUMANN, 1981, p. 29- 30.

25 Ibid., p. 30.

26 Ibid., loc. Cit .

27 Ibid., p. 30- 34.


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sentido, formal, argumenta Neumann, então o significado de sua positivação seria nulo28. Ao perguntar-se, ao cabo, pelo significado do direito fundamental à igualdade, previsto na Constituição de Weimar, Neumman conclui pela impossibilidade de sua qualificação liberal 29

– contrariamente a supor-se este um aspecto não decidido pela Constituição. Com esse gesto, Neumann devolve à classe operária aquela pretensão que, pela perigosa ideia de uma Constituição compromissária, poder-se-ia acreditar abafada. Assim, arremata Neumman, caberia à teoria socialista consolidar, interpretativa e sistematicamente, os preceitos sociais substanciais compreendidos pelos direitos fundamentais positivados na Constituição – ao mesmo tempo em que se deveria negar totalmente ao judiciário todo e qualquer poder de revisão ou controle de constitucionalidade daqueles preceitos30 .

3. O STATUS NORMATIVO DOS DIREITOS SOCIAIS

A implicação da tese assumida por Kirchheimer, segundo a qual a ausência de uma decisão pelo socialismo, na Constituição de Weimar, impediria a efetivação dos direitos sociais, na esteira, portanto, do pensamento de Schmitt, é, em certo sentido, semelhante àquelas implicações das teses que diferenciam o status normativo dos direitos individuais e sociais, uma vez que resultam, em geral, na negação da juridicidade aos últimos – ou, pelo menos, negam que ambos a tenham em mesmo grau de exigibilidade .

Herrera acusa o caráter histórico e contingente dessa distinção31, segundo a qual os direitos sociais não seriam direitos fundamentais no mesmo sentido que os direitos “ dos homens”, e conclui pelo caráter político de todos esses direitos32 .

Conforme a tese positivista, os direitos fundamentais decorreriam do próprio ordenamento jurídico, e não do reconhecimento de atributos inerentes à subjetividade. Se os direitos subjetivos são criados pelo direito objetivo, então, com maior razão, os direitos sociais também o são, e, nesse sentido, tem-se estabelecida uma concepção programática dos direitos fundamentais ou uma recusa da aplicabilidade, ou mesmo do caráter jurídico, àquilo que não estivesse expresso na lei33. Para a perspectiva socialdemocrata os direitos fundamentais teriam

28 Ibid., p. 34.

29 Ibid., p. 37.

30 Ibid., p. 42- 43.

31 HERRERA, 2003, p. 76.

32 Ibid., p. 77.

33 HERRERA, 2003, p. 84.


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um fundamento político-cultural, e não decorreriam de uma subjetividade abstrata ou do direito objetivo simplesmente. Nesse sentido, Neumann os concebe como realização jurídica da liberdade social34 .

Carl Schmitt, por sua vez, reconhece força jurídica aos direitos sociais, mas, no plano dos fundamentos, aponta que pressuporiam uma nova organização estatal, restando, portanto, no plano técnico, limitados – até porque conflitariam com os direitos negativos de liberdade individual, próprios do Estado burguês que supostamente teve seu espaço assegurado na Constituição35 .

Assim, tanto a concepção de uma Constituição decididamente social, quanto o embate teórico sobre o valor normativo dos direitos sociais, tornam necessário um esforço de sistematização desses direitos, como apontado por Neumman36 .

4. PRESSUPOSTOS DA (IN)DECIDIBILIDADE CONSTITUCIONAL

Por trás da concepção do caráter prestacional dos direitos sociais está a premissa, normalmente não problematizada, do Estado de Bem-estar Social como modelo de integração , harmonização ou compromisso das classes sociais, expressos na categoria geracional da solidariedade. A vinculação dos direitos sociais a essa modalidade específica de Estado, além das implicações no plano jurídico, vistas acima, desloca os próprios fundamentos dos direitos sociais37. Assim, opera-se uma separação de fundo entre política social e direitos sociais , ofuscando-se o fundamento jurídico-constitucional desses últimos.

Ademais, uma interpretação “compromissária” da constituição pressupõe uma harmoniza entre os interesses coletivos e privados, que supostamente “resulta de si mesma do curso imperturbado das práticas privadas”38. Politicamente, argumenta Marcuse, as forças progressivas são inseridas em “uma forma que obstrui seu movimento original, e torna seu efeito libertador ilusório”39. Essa mudança de função, complementa, “é simultaneamente expressa na tentativa de fundá-las sobre a teoria”40. E, pela nova economia do agir, teoricamente

34 Conforme apontamentos feitos em aula na Disciplina Seminários Metodológicos, ministrada pelo Prof. Dr. Marcelo Cattoni, no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG.

35 HERRERA, 2003, p. 84.

36 NEUMANN, 1981, p. 42.

37 HERRERA, 2003, p. 88.

38 MARCUSE, Herbert. The Struggle against Liberalism in the totalitarian view of the State. In: MARCUSE, Herbert. Negations. Essays in Critical Theory. London MayFlyBooks, 2009, p. 11- 12.

39 MARCUSE, 2009, p. 23.

40 Ibid., loc. Cit.


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concebido, torna-se secundário, em última instância, decidir a favor de algo41 – racionalmente conhecido. Seria, porém, justamente com o espírito da contrarrevolução social- democrática, como observa Sloterdijk, que, ao equiparar responsabilidade com alegria pela decisão, esta tornaria desinibido o responsável e o impeliria na direção brutal42 .

Marcuse reconduz a ideia de compromisso coletivo ao plano da filosofia existencial e seus reflexos histórico-políticos. Uma vez desviado o olhar da situação histórica, a filosofia teria se contentado em mostrar ,

para uma nação, sua ‘ligação com o destino’, a ‘herança’ que cada indivíduo deve suportar, a comunidade da ‘geração’, enquanto outras dimensões da facticidade foram tratadas sob categorias como ‘eles’ (das Man [a gente]), ou falatório (das Gerede), e relegadas, dessa forma, à existência inautêntica. A filosofia não prosseguiu perguntando pela natureza dessa herança, pelo modo de ser das pessoas, e pelos poderes e forças reais que são história. 43

Oque está implícito em seu discurso é que, basicamente, enquanto a filosofia ateve - se à analítica existencial, atrelada à ontologia fundamental, como pavimentada por Heidegger, as concreções ônticas do ser, sobretudo a nível factual e histórico, e inclusive a respeito da ação e decisão política, foram negligenciadas – o que teria comprometido, inclusive, a própria compreensão da historicidade. Apenas com a reconquista desse campo de problemas seria possível uma reconstrução, por exemplo, da natureza propriamente dita da decisão política sobre a qual trabalha Schmitt.

Schmitt pode afirmar, por exemplo, que a

unidade política é sempre, enquanto estiver em geral presente, a unidade paradigmática, total e soberana. Ela é ‘total’ porque, primeiro, cada ocasião pode ser potencialmente política e, por isso, pode ser encontrada pela decisão política; e, segundo, porque o homem é concebido inteira e existencialmente na participação política. A política é o destino. 44

Ao mesmo tempo, o desprendimento do logos por trás da decisão comprometeria sua historicidade genuína, uma vez que esta “pressupõe uma relação cognitiva da existência com as forças da história e, dela derivadas, as críticas teóricas e práticas a essas mesmas forças”45. Segundo Marcuse, na antropologia existencial, aquela relação é limitada à aceitação de um “‘mandato’ emitido para a existência pelo povo”46. Nesse sentido, seria tido por evidente

41 BÄUMLER apud MARCUSE, 2009, p. 23.

42 SLOTERDIJK, Peter. Crítica da Razão Cínica. Trad. Marco Casanova et al. São Paulo: Estação Liberdade, 2012, p. 571.

43 MARCUSE, 2009, p. 22.

44 SÁ, 2012, p. 170- 171.

45 Ibid., p. 24.

46 Ibid., loc. Cit.


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que “é o povo – e não qualquer grupo de interesse particular, que endereça o mandato e em nome do qual é exercido”47 .

Sloterdijk reconstrói o sentido de “comunidade popular” a partir do mal- estar moderno com os modos de conceber-se o sujeito:

O sujeito particular aparece agora de maneira inabarcável com o olhar como o apreendido, inserido, uniformizado, disponível – [...] o sujeito como o submisso. [...] As pessoas o chamarão depois de “comunidade popular”; nela, os membros da nação são impelidos a se reunir em uma

unidade de luta aparentemente homogênea. 48

Ainda, como alternativa histórica a essa comunidade, viram-se aquelas partes do movimento dos trabalhadores que “se rebelaram contra o megassujeito ‘classe dos trabalhadores’ e começaram a refletir sobre o seu interesse vital efetivo”49. Aí se encontram ecos da lembrança de Lukács, em Habermas, que acusa “uma deformação objetivadora da subjetividade em geral, uma reificação da consciência”50, que atingiria tanto a cultura burguesa quanto “a autocompreensão economicista e reformista do movimento dos trabalhadores”51 . Tangenciam-se, assim, os pressupostos, no plano transcendental, das implicações inicialmente referidas sob a discussão acerca do Estado Social. Para Habermas, a “reprodução simbólica do mundo da vida não pode ser trasladada para os fundamentos da integração via sistema sem a ocorrência de efeitos colaterais patológicos”52, e, complementa, caso se esteja diante de um “efeito colateral inevitável de um arranjo bem-sucedido do Estado social, teria de haver [...] uma adaptação a esferas de ação organizadas formalmente”53 – nas formas do direito. Habermas retoma, então, a concepção de Kirchheimer segundo a qual o conflito de classes passava a ser institucionalizado em termos de direito do trabalho e do salário54, e, ademais, engessavam-se juridicamente “as controvérsias sociais e de lutas políticas” .

Identificando uma expressão do Estado social nos direitos de participação da Constituição de Weimar, Habermas traça um paralelo entre o processo de juridificação que levara, no Estado burguês, a uma “reconciliação entre a dinâmica interna do exercício burocrático do poder e um mundo da vida”55, e o mesmo efeito conciliatório, sob o Estado

47 Ibid., loc. Cit.

48 SLOTERDIJK, 2012, p. 574.

49 Ibid., loc. Cit.

50 HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo. V. II. Sobre a crítica da razão funcionalista. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012, p. 599.

51 Ibid., loc. Cit.

52 HABERMAS, 2012, p. 641.

53 Ibid., loc. Cit.

54 Ibid., p. 642.

55 Ibid., p. 649.


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social, “entre a dinâmica inerente ao processo de acumulação econômica e as estruturas peculiares de um mundo da vida igualmente racionalizado”56 .

Assim, o desenvolvimento do Estado de direito democrático e social é interpretado como “constitucionalização de uma relação de poder social ancoradas em estruturas de classe”57. Nesse sentido, direitos como a limitação da jornada de trabalho, a liberdade sindical e de associação, entre outros, representariam “juridificações destinadas a equilibrar o poder no interior de uma esfera de ação já constituída juridicamente” .

Os efeitos desse processo, por sua vez, decorrem da própria estrutura dessa juridificação, como limite da política social58, de modo que “a estrutura do direito burguês implica a necessidade de formular claramente as garantias oferecidas pelo Estado social em termos de pretensões a direitos individuais relativos a matérias gerais”59 – por exemplo, no caso do direito do seguro social.

Emapertada síntese, a suposta ausência de uma decisão na Constituição de Weimar, ou a ideia de compromisso sob a estrutura de um direito burguês, estão relacionadas ao deslocamento dos fundamentos dos direitos sociais, e, ao mesmo tempo, sua aceitação pressupõe, em última instância, uma indesejável redução do constitucionalismo ao direito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A interpretação segundo a qual a Constituição de Weimar representaria um compromisso entre os interesses da classe burguesa e operária esconde, no fundo e ao cabo, uma entrega da Constituição à estrutura do Estado burguês. Daí a necessidade de uma teoria socialista daqueles direitos fundamentais positivados e das estruturas jurídicas correlatas, expressos na primeira e segunda parte da Constituição, como meio de devolver aos direitos sociais sua natureza normativa e jurídica própria.

O acompanhamento da tese schmittiana permite concluir que apenas um modo de pensar juridicamente a ordem concreta, como determinante teleológico da decisão soberana, daria conta da compreensão propriamente dita da decisão, da sua possibilidade – e, nesse sentido, superando o positivismo como articulação do normativismo e decisionismo puro.

56 Ibid., loc. Cit.

57 HABERMAS, 2012, p. 649.

58 HABERMAS, 2012, p. 650.

59 Ibid., p. 651.


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Mostra-se compreensível, ainda, a aversão de Kirchheimer ao fato de uma Constituição supostamente compromissária, dados os pressupostos desse compromisso. O que poderia ter sido atacado não tanto por meio de uma crítica a uma suposta indecisão política fundamental em Weimar, mas, antes, por meio de uma crítica à ideia mesma de compromisso imputado à Constituição, tendo como ponto de partida justamente aqueles pressupostos, e, como chegada, a abertura da Constituição, o “interesse vital efetivo” da classe operária, que permitiria resgatar, interpretativa e sistematicamente, a historicidade daquela decisão.

REFERÊNCIAS

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