REVITIMIZAÇÃO E O PSEUDO-CONTRADITÓRIO NOS PROCESSOS CRIMINAIS: UMA INTERPRETAÇÃO FRENTE À LEI 14.245 /2021

Gabriel de Oliveira Pires 1

RESUMO: O foco deste trabalho é analisar o conteúdo do direito ao contraditório frente à Lei 14.245/2021, a qual trouxe mudanças ao Código Penal, Processual Penal e à Lei dos Juizados Especiais. A questão que se coloca é se o contraditório permite a vitimização secundária – ou revitimização – da vítima de crime. A hipótese defendida parte da ótica de que, como direito humano, o contraditório não compactua com tal ato, embora seja utilizado de maneira corrompida para perpetuar preconceitos presentes em nossa sociedade. O rumo tomado no trabalho fora: caracterização do contraditório como direito humano (ponto 1), sua utilização como máscara para perpetuar preconceitos (ponto 2) e a tentativa de solução da Lei 14.245/2021 (ponto 3). A metodologia utilizada fora a pesquisa bibliográfica, consistente em livros e artigos científicos sobre o tema, bem como jurisprudencial, com entendimentos da C orte Interamericana de Direitos Humanos sobre o direito ao contraditório. Os resultados da pesquisa mostram que o contraditório de fato não é compatível com a vitimização secundária, não podendo ser maquinado para perpetuar preconceitos, tampouco subtraído diante de certos perfis de vítimas, sob risco de ferir direitos do réu.

Palavras-chave: Revitimização. Contraditório. Lei 14.245/2021. Direitos Humanos. Processo Penal.

1 Graduando na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Estagiário na 18ª Promotoria de Justiça de Direitos Humanos, Igualdade Racial, Apoio Comunitário e Controle da Atividade Policial | gabriel2001pires@hotmail.com | ORCID: https://orcid.org/0009-0005-9137- 3658

Revista do Centro Acadêmico Afonso Pena, Belo Horizonte, Vol. 28, N. 1, jan-jun 2023

ISSN (impresso): 1415-0344 | ISSN (online): 2238- 3840 Editor responsável: Raphael Geraldo Estanislau Vaz Ribeiro Data de submissão: 20/9/2023 | Data de aceite: 12/11 /2023

REVITIMIZAÇÃO E O PSEUDO-CONTRADITÓRIO NOS PROCESSOS CRIMINAIS: UMA INTERPRETAÇÃO FRENTE À LEI 14.245/2021 (GABRIEL DE OLIVEIRA PIRES)

REVICTIMIZATION AND THE PSEUDO-CONTRADICTORY IN THE CRIMINAL PROCESSES: AN INTERPRETATION IN LIGHT OF THE LAW 14.245/2021

ABSTRACT: The focus of this study is to analyse the content of the right to be heard in the face of Law 14.245/2021, which brought changes to the Penal Code, Criminal Procedure, and Special Courts Law. The question posed is if the right to be heard allow for seconda ry victimization - or re-victimization - of crime victims. The hypothesis argued is based on the perspective that, as a human right, the right to be heard does not condone such an act, even though it is used in a corrupted manner to perpetuate prejudices present in our society. The path taken in the study was as follows: characterization of the right to be heard as a human right (point 1), its use as a mask to perpetuate prejudices (point 2), and the attempt to address the issues raised by Law 14.245/2021 (point 3). The methodology used was bibliographic research, including books and scientific articles on the subject, as well as jurisprudential research, involving opinions of the Inter-American Court of Human Rights regarding the right to be heard. The research results show that the right to be heard is indeed not compatible with secondary victimization, cannot be manipulated to perpetuate prejudices, and should not be denied based on certain victim profiles, as doing so would risk violating the rights of th e accused.

Keywords: Revictimization. Contradictory. Law 14.245/2021. Human Rights. Criminal Procedure.

INTRODUÇÃO

O papel central do processo penal é conferir legitimidade ao exercício do poder- dever de punir do Estado e, para tanto, a observância do devido processo legal torna-se imperativa, com a ampla defesa e o contraditório, assim como outras garantias. Dentre os indivíduos envolvidos no processo crime, a figura do ofendido e a submissão de suas declarações ao contraditório possuem aspectos particularmente interessantes. Por um lado, assim como a confissão não é elemento suficiente para condenação por si mesma, a palavra do ofendido, a princípio2, também não o é e, por não ter o compromisso legal de dizer a verdade, adiciona- se

2 Diz-se “a princípio” tendo em vista a posição jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal em reconhecer valor probatório distinto e suficiente para condenação em certos casos em que a palavra da vítima se configure como a única prova possível de ser produzida, em crimes caracterizados pela clandestinidade. Para mais detalhes sobre essa temática, que não será abordada neste trabalho, conferir: VIEIRA, Vitoria Rodrigues. A palavra da vítima como elemento suficiente de convicção para condenação dos acusados de crime de estupro. 2022. 46 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) — Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2022. Disponível em: https://repositorio.ufu.br/handle/123456789/34760. Acesso em: 28 de nov. de 2022.

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mais um motivo para sua submissão ao contraditório. Em segundo lugar, pela utilização da estratégia defensiva de descredibilizar a palavra da vítima através da desmoralização de sua imagem enquanto pessoa, tecendo artifícios enlaçados em preconceitos presentes em nossa cultura (sexismo, etarismo, racismo, etc.), os quais não guardam quaisquer relações com o caso debatido no processo. Assim, sob o pretexto de se estar exercendo o contraditório, opera-se uma revitimização do ofendido.

Neste trabalho, o que se busca investigar é se essa revitimização teria algum amparo no contraditório, como alguns operadores do direito querem levar a crer por meio de suas práticas. Defende-se, sob a lente dos Direitos Humanos, que o contraditório apenas comporta aquilo que detenha relação com a apuração do caso, não abrangendo em sua órbita a violação de outros direitos humanos de forma a reforçar preconceitos e submeter o ofendido – ou até mesmo outros indivíduos envolvidos no processo – a uma situação de violência. Tal proceder vai de encontro com o próprio objetivo do contraditório de auxiliar na legitimação do exercício do jus puniendi estatal através do processo, desvirtuando-o de seu conteúdo enquanto um a garantia dos direitos humanos do acusado.

A metodologia usada no trabalho foi a pesquisa bibliográfica, com a consulta de livros e artigos sobre processo penal, voltando-se ao tema objeto deste estudo e adotando-se o método dedutivo e a ótica dos Direitos Humanos como base de análise. No primeiro tópico, classificar - se-á o direito ao contraditório como um direito humano do acusado no processo penal para, no segundo tópico, apontar-se a sua abrangência e a sua utilização como máscara – um pseudo - contraditório – sob a qual se escondem preconceitos que levam à revitimização do ofen dido. Isto é, será exposto como o contraditório é instrumentalizado para perpetuação de preconceitos presentes em nossa sociedade. Por oportuno, serão tecidas breves observações sobre o aspecto comum a qualquer utilização do contraditório nesse sentido, qual seja, a deslegitimação ou negação da qualidade de vítima a determinados indivíduos, partindo-se, a título de exemplo, dos influxos do racismo estrutural e do patriarcalismo nesse quesito.

Por fim, analisar-se-á criticamente a tentativa legislativa de solucionar a questão da revitimização por meio da Lei 14.245/2021, que trouxe uma limitação indevida ao contraditório, condicionada tão somente ao subjetivismo do ofendido e propiciando a aplicação de preconceitos não mais sobre a vítima, mas sobre o réu integrante de grupo social marginalizado. Em tal ocasião, argumentar-se-á que a nova lei deve ser interpretada e aplicada, por lógica sistêmica, segundo aquilo que o contraditório, enquanto direito humano, já compreende em seu bojo, a fim de se evitar consequências desastrosas que operem numa

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“demonização” do acusado em substituição à revitimização do ofendido – apenas trocando- se, desse modo, um veneno pelo outro.

1. O CONTRADITÓRIO COMO DIREITO HUMANO

OEstado, como detentor do poder-dever de punir aqueles indivíduos que praticam atos tipificados como crimes, para que encontre legitimação dentro da ordem constitucional democrática deve observar as disposições legais e os procedimentos formais de sua aplicação, os quais o permitem justificar as sanções impostas ao sujeito condenado.

Em meio a esses procedimentos, encontra-se o direito fundamental ao contraditório, expressamente prevista no artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal. Ocontraditório assume natureza excepcionalmente imperativa no processo penal, em razão da importância dos bens jurídicos em jogo, afinal, a condenação do acusado não pode ter como base incertezas e deve ser, na medida do possível, resultante de uma decisão segura (BADARÓ, 2019, p. 57). Dessa maneira, ele deve ser pleno e efetivo, no sentido de que as partes têm o direito de ser em informadas sobre os fatos e alegações realizadas pela parte contrária e terem a possibilidade de responderem a isso, com a necessária consideração pelo juiz dos argumentos e provas trazidas no momento de formar a sua decisão.

A importância do contraditório como requisito de validade do processo está intimamente ligada à garantia do devido processo legal e da inviolabilidade da defesa em juízo, de modo que é indispensável em um processo justo e democrático, sendo ele uma proteção do ser humano frente ao Estado (RANEA, ROBERTO, 2011, p.13) – especialmente pelo fato de não haver uma “paridade de armas” real entre o indivíduo e toda a máquina estatal. Em vista de sua grande importância como requisito de validade do processo, a sua não observância e consequente prejuízo ao acusado enseja a nulidade absoluta (PACELLI, 2018, p. 47)3. Tal relevância para a defesa da liberdade do acusado e proteção contra o uso do poder punitivo de forma arbitrária pelo Estado coloca o contraditório como garantidor dos direitos humanos do réu :

(...) o seu fundamento axiológico poderá, antes, ser encontrado no postulado de um processo justo e equitativo, consagrado como direito humano, tanto na Declaração

3 Nesse sentido, cita-se inclusive as súmulas 523, 701 e 707 do Supremo Tribunal Federal. Interessante mencionar que a nulidade do processo por prejuízo à defesa, pelo desrespeito ao contraditório, somente poderá ser reconhecida se tal prejuízo for comprovado, conforme entendimento da citada súmula 523: “No processo penal, a falta da defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu. ”

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Universal dos Direitos Humanos (art. 10º), como na Convenção Europeia dos Direitos Humanos (art. 6º, §1). (GODINHO, 2017, p. 106)

Esse entendimento pode ser confirmado, ainda, pela Convenção Americana de Direitos Humanos, em seus artigos 7.3, 7.4 e 8.14, os quais exprimem o direito de ser informado e de ser ouvido por um juiz ou tribunal competente como aspectos necessários para um processo penal justo, cujas garantias do acusado sejam protegidas e observadas. A Corte Interamericana de Direitos Humanos também já se manifestara sobre a relevância do contraditório como garantia jurisdicional indispensável para que se assegure o devido processo e a defesa do acusado. A primeira menção expressa ao contraditório ocorrera na Opinião Consultiva OC - 17/02, de 28 de agosto de 2002, sobre a condição jurídica e direitos humanos da criança, dispondo que:

Em todo processo devem concorrer determinados elementos para que exista o mai or equilíbrio entre as partes, para a devida defensa de seus interesses e direitos. Isso implica, entre outras coisas, que impere o princípio do contraditório (...) (tradução nossa). (CORTE IDH, 2002, OC-17/02, §132) 5

Esse entendimento foi, ainda, ratificado pela Corte em diversos casos posteriores, como o Caso Álvarez Ramos Vs. Venezuela (CORTE IDH, 2019a, §154), o Caso Rodríguez Revolorio y otros Vs. Guatemala (CORTE IDH, 2019b, § 104) e o Caso Girón y otros Vs. Guatemala (CORTE IDH, 2019c, § 96) – tendo a Corte, nestas ocasiões, apontado as garantias judiciais reconhecidas no artigo 8 da Convenção Americana de Direitos Humanos como um sistema que condiciona o exercício do jus puniendi do Estado e que busca assegurar ao acusado a sua não submissão a decisões arbitrárias. Assim sendo, o direito ao contraditório, como direito humano, é inalienável e imprescritível e qualquer ato estatal que se configure por processo de julgamento que o desrespeite carece de validade, devendo, destarte, ser declarado nulo (SANTOS, GOMES JÚNIOR, CHUEIRI, 2021, p. 3-5) .

4 7.3. Ninguém pode ser submetido a detenção ou encarceramento arbitrários.

7.4. Toda pessoa detida ou retida deve ser informada das razões da sua detenção e notificada, sem demora, da acusação ou acusações formuladas contra ela. (...)

8.1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.

5 No original, em espanhol: “En todo proceso deben concurrir determinados elementos para que exista el mayor equilibrio entre las partes, para la debida defensa de sus intereses y derechos. Esto implica, entre otras cosas, que rija el principio de contradictorio (...)” .

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Diante disso, é evidente a inafastabilidade do contraditório na defesa pelos direitos humanos do acusado da prática de crime, em especial o direito à liberdade. É preciso destacar, contudo, a utilização viciada do contraditório como elemento retórico para justificar atos que não são abrangidos por este, corrompendo sua essência enquanto garantidor de direitos humanos e fator fundamental na legitimação do exercício do poder-dever punitivo estatal.

2. A REVITIMIZAÇÃO MASCARADA POR UMPSEUDO- CONTRADITÓRIO

Não havendo dúvidas quanto ao caráter do contraditório como protetor dos direit os humanos do acusado, passa-se à análise de seu uso errôneo para justificar atitudes não coligadas a ele no que tange o questionamento das declarações prestadas pela vítima de crime.

Por ter sido atingido diretamente pelo delito, não se exige do ofendido a imparcialidade, como ocorre com a testemunha, de modo que não é possível que aquele cometa o crime de falso testemunho (art. 342, CP), mas é admitida a hipótese de incidência do crime de denunciação caluniosa (art. 339, CP) (DEZEM, 2019, p. 667-668; BARROS, 2019, p.385) . Com isso em vista, pela constatação do complexo relacional entre vítima e acusado e a ausência de exigibilidade do compromisso em dizer a verdade, as declarações do ofendido sempre devem ser submetidas ao contraditório, como qualquer meio de prova, ainda mais por ser inaceitável que somente as palavras deste – com todas as distorções geradas por possíveis traumas derivados do crime e a incerteza intrínseca à memória humana – sejam capazes de justificar firmemente uma condenação (PACELLI, op. cit., p. 445; DEZEM, op. cit., p. 667; BARROS, op. cit., p. 386; e BADARÓ, op. cit., p. 483-484)6 .

Diante disso, entretanto, sob o pretexto de se estar exercendo o contraditório em toda a sua amplitude pela defesa do acusado, realizam-se perguntas e acusações ao ofendido que não possuem conexão com o caso em apuração. Isso pode ser identificado, por exemplo, em casos de crimes sexuais em que as vítimas sejam prostitutas ou se vistam e se comportem de maneira considerada como “provocativa”, atribuindo-se a culpa pela prática do crime às próprias vítimas pela sua caracterização como figuras imorais, opostas aos “bons costumes”. Ora, o contraditório, como garantidor dos direitos humanos do acusado e um dos fatores legitimadore s do poder-dever punitivo estatal, não comporta em seu conteúdo a violação da dignidade da vítima por meio de elementos de sua vida privada ou aspectos de sua personalidade, sem que isso seja objetivamente vinculado ao caso debatido.

6 Importante ressaltar a exceção dada ao valor probatório da palavra da vítima nos crimes caracterizados pela clandestinidade, como já mencionado anteriormente.

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É relevante apontar que acusar a vítima de estar mentindo ou de não deter confiabilidade, por exemplo, por já ter prestado falsas declarações em outros processos, é algo abrangido pelo contraditório. Aquilo que se critica é o uso de um argumento retórico, fundamentado num “pseudo-contraditório”, que visa mascarar o malabarismo de preconceitos existentes em nossa cultura – como o sexismo, etarismo, racismo, entre outros – para descredibilizar a vítima de crime, atacando discricionariamente sua imagem, vida privada, intimidade e honra, deflagrando um processo de revitimização do ofendido dentro das instituições da Justiça, as quais devem sempre buscar defender a dignidade humana de todos os sujeitos envolvidos no processo7 .

Essa estratégia não apenas está fora daquilo aceito pelo contraditório, como o corrompe em sua essência, pois manuseia algo que se figura como garantia de direitos humanos para violar outros direitos humanos. Nesse compasso, tal lógica perversa não encontra base jurídica aceitável pela lente dos Direitos Humanos: note-se a posição da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito brasileiro no art. 1º, inciso III, da Constituição Federal; a proteção à dignidade e à honra contra ingerências arbitrárias ou abusivas firmada no art. 11 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos8; assim como disposições no Código de Processo Penal, a exemplo do §6º do art. 201, o qual trata sobre o dever do juiz de preservar a intimidade, vida privada, honra e imagem do ofendido. Evidencia-se, portanto, ser tal estratégia um pseudo-contraditório usado como máscara para encobrir violências e preconceitos, manipulados para revitimizar o ofendido e atacá-lo pessoalmente, sem correlação com a busca pela chamada “verdade processual” na aferição do fato ilícito praticado, ou não , pelo réu.

Deve-se mencionar que esse processo de revitimização já vem sendo tratado na área da Criminologia sob o rótulo de vitimização secundária, ou sobrevitimização, abrangendo nele todos os casos em que a vítima recebe sofrimento adicional causado pela dinâmica do sistema de justiça criminal, desde o registro do crime até a sua apuração (recebimento da denúncia, inquérito policial e o desenrolar processual penal) (GIMENES, PENTEADO JÚNIOR, 2022, p. 118). Dessa maneira, a revitimização não se mostra como problema inédito, mas sim como

7 No que diz respeito ao ofendido, vale citar o art. 201, §6º, do Código de Processo Penal: “O juiz tomará as providências necessárias à preservação da intimidade, vida privada, honra e imagem do ofendido, podendo, inclusive, determinar o segredo de justiça em relação aos dados, depoimentos e outras informações constantes dos autos a seu respeito para evitar sua exposição aos meios de comunicação” (grifo nosso).

8 1. Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade.

2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação.

3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas.

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algo ao qual o sistema jurídico parece ter se habituado, ignora e busca justificar através do direito ao contraditório. Porém, essa violência gerada pelas instâncias de poder, como restou evidente, não encontra base jurídica em um processo penal regido pelo contraditório, em respeito à lógica dos direitos humanos que impede a sua utilização como arma argumentativa para legitimar violações aos próprios direitos humanos.

2.1 BREVES OBSERVAÇÕES SOBRE A VITIMIZAÇÃO SECUNDÁRIA DE NEGROS E MULHERES

As hipóteses de vitimização secundária, indistintamente, sempre terão um elemento em comum, qual seja: a negação da qualidade de vítima, que acaba como culpada de ter se envolvido na situação fragilizada em que se encontra ao ser alvo de prática criminosa.

Tal característica comum a todos os casos de revitimização encontra amparo nos estudos de Nils Christie sobre a “vítima ideal”, cujos requisitos são a fragilidade; status social responsável/aceitável; estar em local onde não pode ser culpabilizada por sua vitimização; seu ofensor deve ser mais forte; e a vítima não deve conhecer o ofensor (CHRISTIE apud QUINTANILHA, 2023, p. 621). Por esses parâmetros, torna-se evidente o porquê pessoas negras encontram dificuldades em serem tidas como vítimas de um delito, afinal, o corpo negro, devido a raízes históricas, ainda é associado ao trabalho braçal, à vadiagem e aos locais de marginalização e pobreza (QUINTANILHA, ibidem, p. 622) :

A dificuldade de o corpo negro ser considerado vítima no sistema de justiça criminal, encontra subsídio na colonização, responsável por operar um modelo de dessensibilização com a dor negra no Brasil, e sobretudo, com a cidadania de corpos demarcados ainda como territórios coloniais e, por conseguinte, dados a barbárie e a ocupação pela seara da violência e do racismo. (QUINANILHA, ibidem¸ p. 62 5)

Desse modo, o corpo negro não é considerado frágil, está numa posição social de reprovação e em locais em que condutas criminosas são aceitas como a normalidade. Tem- se assim que o racismo estrutural se infiltra sorrateiramente nas instituições da Justiça e impõe a culpa pelo crime sofrido pelo negro na própria vítima, construindo narrativas que visam desacreditar qualquer indivíduo sobre a possibilidade de o corpo negro estar sujeito a ser vítima como outros indivíduos da sociedade.

Tal fenômeno de negação da qualidade de vítima também pode ser observado de forma clara no que toca ao corpo feminino, em especial no caso de crimes sexuais, nos quais as estratégias defensivas, não raras vezes, voltam-se à vida pregressa, sexual e íntima da mulher,

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além do fato de que, em muitos casos, a vítima conhece seu agressor (GRUBBA, VIEIRA DA COSTA, 2023, p. 60). Como expõe Grubba e Vieira:

Uma das formas de culpabilizar a vítima, diz Gruber (2017, p. 212-213), ocorre pela análise do seu comportamento pretérito, como a “falta de castidade” e por ter ela “pedido” pelo estupro, vestindo-se ou agindo de uma maneira ou de outra, independentemente de ela ter consentido ou não com o ato sexual. (GRUBBA, VIEIRA DA COSTA, 2023, p. 60)

Nesse contexto, a maneira de se vestir, como se comporta ou se comunica transforma - se em munição para descredibilizar a posição de vítima da mulher através de pretenso exercício do contraditório, impondo-lhe uma posição social e moralmente reprovável (DA FROTA, 2020, p. 319)9 .

Como se não bastasse, se o crime ocorreu em ambiente doméstico ou no contexto da relação conjugal, há a possibilidade de a violência ser normatizada (CASOLA, F. et al, 2021, p. 98) e imputada sua causa à mulher, por não atender a determinados padrões dentro de um sistema sexista e patriarcal. Em outras palavras, é levada a termo uma verdadeira inversão de papéis entre vítima e criminoso (GRUBBA; VIEIRA DA COSTA, op. cit., p. 57-59), pois sobre àquela é posto um véu de culpabilidade, como se tivesse cumprido uma função de coadjuvante em seu próprio sofrimento (GRUBBA; VIEIRA DA COSTA, ibidem, p. 60) .

Portanto, apenas quando a mulher se encaixa no estereótipo de “boa esposa”, “casada”, “do lar”, “mãe de família”, há alguma espaço para discussão da conduta delitiva praticada pelo criminoso. Lado outro, porém, quando a mulher não se adequa aos papéis socias esperados pelo patriarcalismo, o foco da discussão processual vira-se para si, suscitando o questionamento se suas alegações são dignas de crédito em confronto com as de um agressor do sexo masculino (DA FROTA, op. cit., p. 319-321) .

Se se analisa a posição ocupada pela mulher negra nesse cenário, ficará evidente a união entre todos os aspectos desfavoráveis mencionados, fazendo com que o risco de vitimização secundária se torne ainda maior e facilite a manipulação corruptiva do contraditório contra sua dignidade. Por estar na intersecção entre esferas discriminatórias – racismo e sexismo –, a mulher negra não apenas deve atender aos estereótipos da “mulher de família” para ser

9 No mesmo sentido, em análise do caso Mariana Ferrer, que levou à confecção da Lei 14.245/2021, Alessandra Mendes e Magda Schlee observam, através da construção do discurso jurídico, a incompatibilidade entre a figura de uma mulher que faz uso de bebida alcoólica e se impõe em suas relações interpessoais com a posição de vítima de estupro - COSTA MENDES, A. C.; SCHLEE, M. B. “Estupro Culposo”: A Representação de Mariana Ferrer À Luz dos Pressupostos do Sistema de Transitividade. EntreLetras, [S. l.], v. 13, n. 1, p. 208–228, 2022, p.226 .

DOI: 10.20873/uft2179-3948.2022v13n1p208-228. Disponível em:

https://sistemas.uft.edu.br/periodicos/index.php/entreletras/article/view/15002.

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considerada merecedora da qualidade de vítima, pois a bagagem negativa que a cor de sua pele carrega pelos vínculos à nossa história escravocrata origina barreiras extras para que possa ocupar o “pódio” de vítima frágil, mais fraca que seu agressor e socialmente aceitável.

Pelas informações postas, é possível inferir que tais dificuldade de reconhecimento da posição de vítima a certos sujeitos parte da objetificação de sua figura dentro do processo. Isso porque o Estado captura o conflito para lhe dar uma solução, em tese, justa e proporcional, relegando a vítima à sua simples função de prestar seu depoimento juramentado, que possui valor de prova para formar a convicção do juiz sobre o caso concreto.

Em que pesem as mudanças que buscam trazer a vítima como sujeito importante na relação que nasce com a prática do crime, ela permanece numa posição passiva, a qual ora é obrigada a ocupar, ora lhe é negada – como explicado acima. Dessa forma, a vítima termina por se constituir em mero objeto hábil a produzir uma prova dentro do processo penal, o que justificaria, nesta lógica, a sua submissão à instrumentalização do contraditório para descredibilizar suas declarações, ofendendo sua dignidade enquanto ser humano com fim em si mesmo.

3. PROTEÇÃO À DIGNIDADE DA VÍTIMA E A LEI 14.245/2021: UMA (NÃO) SOLUÇÃO PROBLEMÁTICA

Com o objetivo de explicitar a ausência de vínculo entre o contraditório e a revitimização do ofendido, criou-se a Lei 14.245/2021, que trouxe alterações ao Código Penal, ao Código de Processo Penal e à Lei dos Juizados Especiais. A motivação dessa nova lei gira em torno da proteção das vítimas e testemunhas de crimes pelo estabelecimento de determinadas vedações no âmbito do processo, quais sejam: não manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos; e a não util ização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas.

Constate-se que, apesar de virtuosa finalidade, as inéditas normas inseridas no ordenamento pela Lei 14.245/2021 apresentam claro problema que não pode ser ignorado. É certo que a vedação à manifestação sobre aspectos que são alheios aos fatos objeto de apuração nos autos do processo encaixa-se com o ponto defendido ao longo deste estudo, de modo que seu conteúdo já se encontrava presente no direito ao contraditório. Quanto a segunda vedação, a qual criminaliza a utilização de linguagem, informação ou material que ofendam a dignidade da vítima, note-se que ela desemboca na abertura de uma margem interpretativa que delega ao

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subjetivismo do ofendido a definição do que seja uma linguagem, informação ou material ofensivo.

Essa delegação ao subjetivismo da vítima impõe limites indevidos ao contraditório para muito além daquilo que sua lógica, enquanto direito humano inafastável, permite, acarretando em prejuízo óbvio para a defesa do acusado, pois reveste as declarações do ofendido com uma armadura contra a sua submissão ao contraditório, visto que os parâmetros do que seja ofensivo à sua dignidade não são delimitados pelo texto da Lei 14.245/2021 e restam vulneráveis a flexibilizações arbitrárias e violadoras dos direitos humanos do réu no processo. Além disso, tal possibilidade de flexibilização e expansão exacerbada dos direitos do ofendido ao ponto de reduzir os do acusado conduziria a somente uma troca de posições dentro do processo, porque ao invés daquele sofrer a revitimização, segundo a “solução” proposta pela nova lei, o réu é que poderá ser taxado como inimigo a ser combatido, afinal as declarações da vítima gozariam de proteção tamanha que seria o equivalente a terem sua veracidade presumida. Um direito humano, como o direito ao contraditório, não pode ser limitado senão por

outro direito humano que se oponha a ele em confronto direto. Em outras palavras, é apenas a partir do choque de direito fundamentais que se pode estabelecer barreiras a estes, de modo que a dignidade do ofendido se confronta com a dignidade do acusado e demais sujeitos envolvidos no processo. O contraditório é um direito do réu além do direito à dignidade, orquestrando- se como um garantidor deste no âmbito do processo, razão que explica o fato das vedações impostas pela nova lei não terem o condão de traçar bloqueios a ele.

Por óbvio, como fora dito anteriormente, isso não significa que o contraditório possa ser utilizado para violar a honra, privacidade e integridade da vítima, de modo que aborde temas não coligados objetivamente ao caso em apuração. Aquilo que se pretende deixar evidente é a logicidade inerente a qualquer direito humano, isto é, o fato de que não se pode inflar um direito (como a honra da vítima) de maneira arbitrária e desmedida ao ponto de gerar novas violações a direitos humanos – com a diferença de que, desta vez, estar-se-ia esvaziando os direitos do acusado.

Nesse compasso, assim como o contraditório não deve ser utilizado como ferramenta para fomentar preconceitos presentes em nossa sociedade, é evidente o fato de que não se pode blindar a vítima ao ponto de se permitir a infiltração desses mesmos preconceitos em desfavor do réu. Em outros termos, o racismo estrutural e o patriarcalismo também exercerão influência no julgamento de réus que sejam negros e/ou mulheres, por exemplo, pois quando tais indivíduos ocupam essa posição – aqui, não mais como vítimas –, estariam, conforme exposto no item anterior deste trabalho, em seu espaço de ocupação “comum” ou “normal”. Diante de

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tal constatação, não se deve permitir nem a instrumentalização corrupta do contraditório, tampouco aniquilá-lo completamente face determinados perfis de vítimas.

Deve-se destacar que, como em todas as hipóteses de conflito entre direitos fundamentais, os limites e a prevalência de um sobre o outro é definida com base em análise do caso concreto. Tal análise é realizada, comumente, a partir da aplicação dos princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, vez que não há hierarquia entre direitos fundamentais. Contudo, pela leitura da lei, a princípio, verifica-se potencial violação do contraditório e prejuízo ao acusado, motivo que impele a criação de interpretação da norma de acordo com os demais princípios e direitos fundamentais.

Com isso em mente, face a necessidade de se interpretar as novas disposições conforme o ordenamento, por uma lógica constitucional e pelos direitos humanos – com a inafastabilidade e irrenunciabilidade do contraditório que daí decorrem –, propõe-se que sej am entendidas de acordo com o conteúdo do direito ao contraditório exposto ao longo deste trabalho, o qual já comporta dentro de si a sua abrangência e a definição daquilo com que compactua e daquilo que rejeita.

Essa demonstra-se ser a saída possível para que a Lei 14.245/2021 possa ser tida como constitucional e permanecer no ordenamento. Caso contrário, sua aplicação revelará manifesta inconstitucionalidade por violar direitos humanos sob a fundamentação espúria de se estar defendendo os próprios direitos humanos, em uma ótica perversa que corrói estes de seu conteúdo e objetivo, atuando de forma bastante similar ao uso do pseudo-contraditório como máscara para legitimar atos de violência: verificar-se-ia que aquilo que pretendera combater vícios na utilização do contraditório, demonstrar-se-ia também viciado na mesma medida .

CONCLUSÃO

O direito ao contraditório é direito humano do acusado no âmbito do processo penal, logo sendo inalienável e imprescritível, cuja inobservância gera a carência de validade do exercício do poder-dever de punir do Estado e a consequente nulidade absoluta do processo. Entretanto, conforme ficou evidente, confirmando-se a tese defendida neste trabalho, a aplicação do contraditório não comporta a associação da figura do ofendido à uma imagem moral e socialmente promíscua ou inadequada, para fins de descredibilização de suas declarações, de forma a não se relacionar objetivamente com o caso em discussão.

A construção retórica de um argumento embasado nessa operação revela a máscara de um pseudo-contraditório sob a qual se ocultam violências e preconceitos, instrumentalizados num procedimento de revitimização do ofendido, atacando sua intimidade, vida privada, honra

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e dignidade para muito além do espaço dialético do contraditório dentro do processo penal. A lógica do contraditório como garantidor dos direitos humanos do acusado e legitimador do jus puniendi estatal não deve ser corrompida pela sua mecanização na violação de outros direitos humanos.

Em tal lógica, como brevemente comentado, o contraditório não pode ser instrumento para negar a um sujeito a qualidade de vítima, principalmente quando essa artim anha argumentativa visa descredibilizar o ofendido com base em preconceitos, como o racismo, estruturalmente inserido no sistema de Justiça devido às raízes escravocratas de nosso país, e o sexismo, marcado pela desigualdade de gênero e normatização de condutas de violência. Dito isso, não se pode permitir a inversão de papéis entre vítima e criminoso, culpabilizando o ofendido como participante ativo na somatória de atos que desencadearam em uma experiência traumática e danosa, que é o crime.

Nesse compasso, a introdução da Lei 14.245/2021 visou, ao que aparenta, tornar a não conciliação do contraditório com tais discursos explícita. Porém, não obstante a nobreza de seu objetivo na proteção da vítima de crime e também de testemunhas, ela resulta em uma aber tura demasiadamente ampla que permite a adoção da inferência do subjetivismo desses sujeitos sobre se houve a utilização de linguagem, informação ou material que ofendam a sua dignidade. Deve-se destacar, inclusive, que os mesmos preconceitos que nutrem a manipulação corrompida do contraditório no âmbito da chamada vitimização secundária também operam em desfavor de réus integrantes de grupos sociais marginalizados, como negros e mulheres.

Com isso se buscar esclarecer que o contraditório já contém em seu propósito aquilo que ele compreende e permite dentro do processo, de modo que as mudanças trazidas pela nova lei não possuem a capacidade de estabelecer outros limites a um direito humano cuja harmonia com os demais direitos fundamentais encontra-se estabilizada. Assim sendo, não se deve utilizar o contraditório para perpetuar violências e discriminações, bem como não se pode descartá-lo diante de determinados perfis de vítimas .

Isto posto, propõe-se que as novas normas sejam interpretadas, pelo respeito ao equilíbrio entre os direitos humanos e sua irrenunciabilidade e pela lógica da inafastabilidade do contraditório, segundo o conteúdo deste enquanto direito humano do acusado, sob o risco de apenas se realizar uma troca de posições de violência e preconceito dentro do processo , revelando-se inconstitucional e de natureza tão viciada quanto o uso do “pseudo- contraditório”, ao qual tais normas pretenderam se opor. Não se deve, através da justificativa de proteção do ofendido, abrir margem para a deflagração de uma real "demonização" do réu, rotulando- o como alguém a ser combatido, pela blindagem das declarações da vítima contra o contraditório,

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meio legitimador do poder-dever punitivo estatal e protetor dos direitos humanos do acusado, reais bens em jogo no processo penal.

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