A natureza como sujeito de direito: análise dos casos de Mariana e Brumadinho a partir de estudos juscomparativos socioambientais
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Cad. Ciênc. Agrá., v. 11, p. 01–08, 2019. e-ISSN: 2447-6218 / ISSN: 1984-6738
pocêntricos por um humano. No entanto,
mesmo na presença desse estranhamento,
ao tratar de razões para proteger a Natureza
pelo seu valor intrínseco é possível englobar
interesses humanos no balanço final entre
custos e benefícios da personalização dos
entes naturais. Ou seja, essa estranha dificul-
dade não excluiria as vantagens de conferir
direitos à Natureza. Por exemplo, a fragmen-
tação dos interesses humanos relacionados a
um determinado ecossistema é tamanha que
nem sempre todos os afetados por um dano
ambiental podem fazer valer seus direitos.
Logo, conceder direitos à Natureza estende,
indiretamente, os benefícios a ela assegurados
aos seres humanos que dependem dela para
viver. É o exemplo de um pescador que mora
na foz de um rio poluído em sua nascente.
Sem saber o local em que se despeja resíduos
no rio, este homem que sobrevivia dos peixes
ali coletados passará fome. Caso fosse o rio
sujeito de direitos (como no caso Vilacamba
ficou evidenciado), faria valer em toda ex-
tensão da corrente de água suas garantias
legais. Dessa sorte, mesmo na perspectiva
antropocêntrica, conceder personalidade aos
elementos da Natureza pelo seu valor intrín-
seco é vantajoso para homem. E não se esque-
ça que o tutor da Natureza é também o tutor
das gerações do futuro. Desta maneira, com a
mesma facilidade com que se reconhece nos
ordenamentos jurídicos sujeitos de direito
diversos do ser humano, como por exemplo
as pessoas jurídicas, ‘desde una perspectiva
normativa, no existiria incoveniente alguno
para declarar la naturaleza como sujeto de
derechos’ (Gussoli, 2014).
Apesar disso, essa transposição teórica inter-
pretativa-comparativa já foi tentada uma vez no Brasil,
mais especificamente no caso de Mariana. Como aludido
outrora, a associação Pachamama (2018), representando
o Rio Doce, ajuizou uma ação pleiteando o reconheci-
mento dos direitos do rio à vida e à saúde, bem como
a feitura de um plano de prevenção de desastres para
proteger toda a população residente perto de sua bacia.
No entanto, a ação foi extinta sem resolução de mérito
ao fundamento de falta de legitimidade ativa ad causam.
Prevaleceu no Judiciário uma leitura positivista antro-
pocêntrica dos textos legais, sem qualquer tentativa de
uma interpretação mais abrangente.
Em que pese inicialmente a ação não ter sido
bem sucedida no Judiciário, iniciou relevante debate
sobre o tema, trazendo luz às novas possibilidades de se
trabalhar e enxergar o direito ambiental e o ecossistema,
na tentativa de superar paradigmas até então arraigados
1
.
1/
Apenas a título ilustrativo, a parte dispositiva da sentença que julgou a ação
protocolada pela Bacia do Rio Doce assim dispôs “Com estas considerações,
verico ausência de pressuposto processual de existência, uma vez que o
ordenamento jurídico não confere à requerente ‘Bacia Hidrográca do Rio
Doce’ personalidade jurídica. 3.1. Por tais razões, indero a petição inicial
e julgo extinto o processo, sem resolução de mérito, nos termos do art. 485,
I e IV, do CPC.”
A abertura interpretativa permitiria uma maior
responsabilização das empresas causadoras do dano
porque o campo ativo de atuação, de legitimação, seria
ampliado, traduzindo assim uma nova e mais adequada
leitura constitucional, de acordo com os condicionantes
contemporâneos.
Deve-se ter em mente também que, uma vez
que não se faz possível a delimitação prévia de todos os
instrumentos políticos, jurídicos, econômicos e cientí-
ficos suficientes para resolver os problemas ecológicos
ambientais (Canotilho, 2008), a abertura interpretativa
por meio da interiorização de teorias advindas do direito
ambiental comparado permite o acompanhamento evo-
lutivo da sociedade.
A utilização do método do direito comparado
nesse processo é uma das ferramentas disponíveis para
o aprimoramento da discussão. A tentativa de estabele-
cimento de um diálogo entre legislações internacionais,
principalmente em se tratando de direito ambiental, tende
a oxigenar ideias, posicionamentos e teorias, contribuin-
do para o amadurecimento e crescimento do sistema
democrático, dependente desse fluxo e contrafluxo de
arranjos de direitos.
Conclusão
Buscou-se chamar a atenção para os problemas
ambientais que se está enfrentando na atualidade, o que
foi feito a partir do relato de dois desastres ocorridos no
Brasil, mais especificamente no Estado de Minas Gerais,
que são frutos da relação de propriedade que o ser huma-
no possui com a natureza. A partir disso, apontou como
uma possível solução para a questão uma mudança na
legislação ambiental pátria, a fim de proporcionar uma
maior preservação do meio ambiente, bem como garantir
a qualidade de vida das atuais e futuras gerações.
A discussão quanto ao reconhecimento da na-
tureza como sujeito de direitos, por meio de estudos
juscomparativos, se mostra relevante na medida em que
os problemas ambientais são transfronteiriços e afetam
todo o mundo. E, dada a patente inefetividade da proteção
à natureza em território nacional, é cabível a realização
de reflexões para que novos paradigmas eclodam, assim
como tem ocorrido em outros ordenamentos jurídicos,
especialmente na América Latina.
Está evidente que a forma de relação de explora-
ção da natureza e a legislação brasileira não são capazes
de evitar ou mesmo minimizar desastres ambientais, de
modo que a mudança do paradigma antropocêntrico
para o biocêntrico pode ser uma solução, ou mesmo uma
tentativa, de salvar o que resta do planeta, apesar das
diversas objeções quanto a outorga de direitos à natureza.
A postura adotada em outros países com rela-
ção à legislação ambiental, com fundamento no biocen-
trismo, que se desponta como contraponto ao sistema