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Texto analisado:

Paulo Freire: tempos infantis para a infância



Resumo:

O texto pensa as contribuições de Paulo Freire sobre a infância. Cientes de que a infância não foi um eixo central das suas preocupações, mostraremos uma contribuição singular do mestre pernambucano justamente num tópico “menor”. Para isso estudamos a leitura que o próprio Paulo Freire oferece da sua infância em Cartas a Cristina, texto autobiográfico em que dialoga publicamente consigo mesmo. Destacaremos a imagem da infância ali presente e complementaremos esse estudo com algumas referências a outras obras (Sobre a importância do ato de ler; Sobre educação: diálogos; Educação Por uma pedagogia da pergunta; À sombra de uma mangueira; Pedagogia da Esperança, Pedagogia da Indignação) onde o educador pernambucano apresenta uma concepção de infância/ meninice que desborda a mais tradicional ideia da infância como etapa cronológica da vida para instaurar uma ideia da infância / meninice como força da vida inclusive, ou sobretudo, no caso de uma revolução.

Palavras chave: Paulo Freire; infância; meninice; revolução; tempo





Paulo Freire: childlike times for childhood


Abstract:

The present text aims to consider the contributions of Paulo Freire on childhood. Aware that childhood was not a central axis of his concerns, we show a singular contribution of the Educator from Pernambuco precisely on one of his "minor" topics. To do this we study the reading that Paulo Freire himself offers from his childhood in Letters to Cristina, an autobiographical text in which he dialogues with himself. We will emphasize the image of childhood present in this text and complement this study with some references to other works of Freire (On the importance of the Act of Reading; Education: some dialogues; Learning to question: a pedagogy of liberation, Pedagogy of the heart, Pedagogy of Hope, Pedagogy of Indignation) where he presents a conception of childhood which overflows the more traditional idea of childhood as a chronological stage of life in order to establish an idea of childhood / meninice as a force of life, specially in the case of a revolution.

Keywords: Paulo Freire; childhood; meninice; revolution; time










Paulo Freire: um tempo para a infância






“Jamais me senti inclinado, mesmo quando me era ainda impossível compreender a origem de nossas dificuldades, a pensar que a vida era assim mesma, que o melhor a fazer diante dos obstáculos seria simplesmente aceitá-los como eram. Pelo contrário, em tenra idade, já pensava que o mundo teria de ser mudado. Que havia algo errado no mundo que não podia nem devia continuar” (P. Freire, 1994, p. 41).


"
Até março daquele não vivêramos no Recife, numa casa mediana, a mesma em que nasci, rodeada de árvores, algumas das quais eram para mim como se fossem gente, tal a minha intimidade com elas"
(P. Freire, 1994, p. 57).



Paulo Freire é uma figura extraordinária para a educação brasileira, latino-americana e mundial. Suas contribuições não se limitam a uma obra escrita, muito menos a um método, sequer a um paradigma teórico, mas dizem também respeito a uma prática e, de um modo mais geral, a uma vida dedicada à educação, uma vida que, ao mesmo tempo, se faz escola na medida em que ela é uma escola de vida, ou seja, uma maneira de habitar o espaço educativo que o levou de viagem pelo mundo inteiro, em particular em países de América Latina, nos Estados Unidos, na Europa e na África de língua portuguesa, educando, sempre educando (ensinando e aprendendo).
Internacionalmente, não há dúvidas sobre o afirmado no parágrafo anterior: ele é um educador valorizado nos cinco continentes: um sem número de reconhecimentos pelas suas contribuições à educação a nível mundial. Uma pesquisa recente no Google Scholar mostra que A pedagogia do oprimido é a terceira obra mais citada no campo das ciências sociais, no mundo inteiro. Nas bibliografias de livros publicados ou de trabalhos acadêmicos no campo da filosofia da educação ou, ainda, nos programas relacionados com essa disciplina em instituições de ensino superior localizadas em países de todos os continentes, será difícil encontrar o nome de outro latino-americano, muito mais ainda com a frequência com que se encontra o do pernambucano. E muito embora as referências bibliográficas se concentram quase exclusivamente na Pedagogia do Oprimido, dificilmente, conjeturamos, essa obra teria sido tão vastamente lida e estudada, não fosse o peculiar movimento da vida do autor que a acompanhou depois de sua publicação. Aliás, não é apenas no campo específico da filosofia da educação que sua figura e esse livro aparecem, mas também em outras disciplinas muito diversas como antropologia, trabalho social, estudos culturais, letras, jornalismo, etc.
Essa vida envolve um peregrinar pelo terceiro mundo (depois do Golpe de 64 e uma rápida passada pela Bolívia, passou vários anos no Chile e, desde o Conselho Mundial de Igrejas fez campanhas de alfabetização em Nicarágua, Guiné-Bissau, São Tome e Príncipe, Cabo Verde e Tanzânia. Recebeu dezenas de doutorados honoris causa e muitos prêmios, dentre eles o da Paz da UNESCO em 1987. Seus principais trabalhos estão traduzidos em muitas línguas. Sua relevância para o mundo da educação é destacada uma e outra vez em trabalhos de importantes acadêmicos. Por exemplo: “Paulo Freire é o intelectual orgânico exemplar de nosso tempo” (WEST, 1993, p. xiii); “O nome de Paulo Freire tem recebido proporções quase icônicas nos Estados Unidos, América Latina e, inclusive, em muitas partes de Europa” (ARONOWITZ, 1993, p. 8); “o catalizador, senão o principal “animateur” da inovação e a mudança pedagógica na segunda metade do século (TORRES, 1990, p. 12). A lista poderia preencher muitas e muitas páginas. Fora do Brasil, no campo acadêmico, a consideração a respeito de sua vida e obra é contundente, categórica.
Ofereço um exemplo, pequeno, pessoal, mas bastante expressivo para ilustrar esta presença. Em 2013 fui convidado a participar de algumas atividades acadêmicas pelo Japão, nas Universidades de Osaka (em Osaka) e Sophia (em Tóquio). Quando cheguei do Brasil ao aeroporto de Osaka, me esperavam três estudantes da Universidade de Osaka; uma delas, tinha uma placa com meu nome, outra, uma outra placa com a expressão “FPC” (que em inglês expressa philosophy for children, isto é, filosofia para crianças) e a terceira vestia uma camiseta (muito bonita, por sinal) com a expressão “filosofia como liberação” e um desenho-caricatura muito expressivo e cuidadoso do rosto de Paulo Freire. Eu não iria fazer nada relativo a Paulo Freire nessa visita nem tinha feito nada significativo sobre o pernambucano em termos acadêmicos, mas bastava que eu viesse do Brasil, do campo da filosofia e da educação para, como depois soube, fazer uma camisa especial com o rosto de Paulo Freire para me receber.
O lugar simbólico tão significativo de Paulo Freire no exterior não é apenas produto de um trabalho acadêmico mas de um compromisso político e militante, constante em toda sua vida, a favor dos oprimidos. No Brasil, esse lugar simbólico tão significativo, bem como o fato de ter feito de sua própria vida uma causa a favor de suas convicções e ideias, não resulta indiferente a ninguém e se torna gerador dos mais profundos amores e desamores, paixões alegres e tristes, animosidades e rancores... tudo numa dose só e muitas vezes misturado e confundido. E, sobretudo, exagerado.
No contexto atual da política no Brasil, a situação fica mais pronunciada e extrapolada. O golpe de estado contra a presidenta Dilma Rousseff, ilegítimo mas legal, de agosto de 2016 tenta aplicar uma política educacional às avessas dos últimos governos do PT, o que situa Paulo Freire como um dos seus principais opositores, tendo sido colocado, mais ou menos explicitamente, como a raiz de quase todos os problemas da educação brasileira, mesmo que a realidade educacional brasileira efetiva tenha muito pouco a ver com os ensinamentos do pernambucano e ele próprio certamente coincidiria com muitas das apreciações críticas ao sistema.
Declarado Patrono da educação brasileira em abril de 2012, pela Lei 12612, sua figura tornou-se o eixo de uma disputa política que é também símbolo de um embate por dois projetos antagônicos do Brasil. Se, por um lado, grande parte dos educadores brasileiros, em especial os que trabalham com os setores mais excluídos, consideram essa medida um simples ato de justiça, setores conservadores contrários ao que ele representa, como a organização “Escola sem Partido”, tentaram através da sugestão legislativa (SUG 47/2017) de novembro de 2017 revogar aquela Lei e tirar a Paulo Freire o título de Patrono da Educação Brasileira. A sugestão foi recusada pela comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) da Câmara dos Deputados em 14 de dezembro de 2017 por considera-la “fruto da ignorância sobre o legado do educador”. Desse modo, a sugestão é arquivada, mas o embate promete continuar por bastante tempo.
O ponto principal da controvérsia é simples e diz respeito ao sentido político da educação. Sob a defesa do caráter apolítico dela e da necessária separação entre escola e política o que movimentos como “Escola sem Partido” defendem é um ensino escolar técnico e cientificista que consolide e legitime o estado de coisas e que esvazie a escola pública como espaço de deliberação das questões sociais, culturais, econômicas e políticas – mais especificamente, por exemplo, problemas de gênero, etnia e classe - que atravessam uma realidade social como a brasileira. Ao contrário, Paulo Freire inspira um projeto educacional em que justamente o papel da escola é se constituir em cenário de uma atividade criativamente problematizadora do estado de coisas em vistas da superação da ordem injusta e excludente que é a nossa.
Neste contexto, o presente texto se inscreve num projeto mais amplo para pensar as contribuições de Paulo Freire não apenas nas questões mais clássicas relacionadas à relação entre educação e política mas, neste caso, sua visão sobre a infância. Estamos cientes que a infância não foi um eixo central de suas preocupações. Ao contrário, embora suas preocupações sempre fossem sobre a educação em todos seus níveis, sua ênfase foi a educação e cultura popular e mais especificamente a de jovens e adultos. Mas mesmo que tenha dado mais atenção em suas investigações à educação de jovens e adultos, o faz de olho em qualquer prática educativa, a qualquer idade. Por exemplo, ao falar da sua visão da ética na prática educativa, afirma na Pedagogia da Autonomia:

“É por esta ética inseparável da prática educativa, não importa se trabalhamos com crianças, jovens ou com adultos, que devemos lutar. E a melhor maneira de por ela lutar é vivê-la em nossa prática” (FREIRE, 2017, p. 18).



Isto significa que, mais do que neste ou aquele nível de educação, Paulo Freire está interessado na prática educativa em seu conjunto e de como educadores e educadoras vivem essa prática. Sabedores disso, nos propomos mostrar a contribuição singular do mestre pernambucano justamente num tópico “menor” de suas preocupações.
Para isso estudaremos a leitura que o próprio Paulo Freire oferece da sua infância em Cartas a Cristina, texto autobiográfico em que, provocado pelo convite de sua sobrinha, lança-se a um diálogo público consigo mesmo. Destacaremos a imagem da infância presente nesse texto e complementaremos esse estudo com algumas referências a outras obras (A importância do ato de ler, Sobre educação: diálogos, Por uma pedagogia da pergunta; À sombra de uma mangueira; Pedagogia da Esperança, Pedagogia da Indignação) onde o educador pernambucano apresenta uma concepção de infância/ meninice que desborda a mais tradicional ideia da infância como etapa cronológica da vida para instaurar uma ideia da infância / meninice como força da vida inclusive, ou sobretudo, no caso de uma revolução.


O convite a revisitar a infância

"
Voltar-me sobre minha infância remota é um ato de curiosidade necessário"
P. Freire, 1994, p. 41.




Cartas a Cristina é o livro em que Paulo Freire mais fala de sua infância. Ele é escrito entre 1993 e 1994, portanto com mais de setenta anos de idade, na forma de cartas a sua sobrinha Cristina. A infância está, temporalmente, longe. A troca epistolar com Cristina começa quando Paulo Freire mora na Suíça na década de 70. Num determinado momento, a sobrinha faz um pedido especial ao tio:

“Gostaria”, dizia ela, “de que você fosse me escrevendo cartas falando algo de sua vida mesma, de sua infância e, aos poucos, dizendo das idas e vindas em que você foi se tornando o educador que está sendo” (FREIRE, 1994, p. 36)

Paulo Freire não se desentende do convite. Ao contrário, toma ele como um desafio para uma pesquisa autobiográfica, para uma busca e um encontro consigo mesmo. O que esse encontro promete não é apenas uma história pessoal, mas sobretudo o percurso histórico de alguém que ama e vive da educação. Em outras palavras, a busca pode oferecer significado e sentidos não apenas para Paulo Freire mas para que qualquer educador se relacione de uma forma singular com a sua infância. É a busca pela infância de um educador, na qual podem se encontrar inícios, não apenas cronológicos, de uma vida educadora.
A forma epistolar da escrita que tanto agrada ao pernambucano contribui para que a expressão seja uma espécie de diálogo público consigo mesmo, em particular com aqueles primeiros anos em Recife e, depois, em Jaboatão. Para Paulo Freire, voltar com a escrita da memória a sua infância acaba sendo quase um imperativo para se entender melhor, para estabelecer, através de uma arqueologia, continuidade histórica com seu presente de educador internacionalmente reconhecido com seu passado de criança com todas as marcas contrastantes de sua infância específica: a dureza da fome mas também a intimidade da relação com a natureza; a falta de condições para pagar uma escola secundária mas também a intensidade e voracidade do estudo e da leitura com o estímulo materno e paterno e quando as portas das escolas se abrem; enfim, os diversos medos e as muitas alegrias de viver de uma criança de sua classe, no seu contexto, no tempo histórico que lhe toca viver, no Pernambuco da crise dos anos 30. Assim, já quase deixando a vida, no presente dos seus últimos anos, Paulo Freire retorna ao seu mundo infantil tentando reviver, e tornar outra vez presente, aquele passado não demasiadamente remoto dos primeiros anos da vida (à sombra das mangueiras).

Uma leitura (infantilmente adulta) da infância

“Hoje, fincado nos meus setenta e dois anos e olhando para trás, para tão longe, percebo claramente como as questões ligadas à linguagem, a sua compreensão, estiveram sempre presentes em mim”
P. Freire, 1994, p. 90


A minha rebeldia contra toda espécie de discriminação, da mais explícita e gritante à mais sub-reptícia e hipócrita, não menos ofensiva e imoral, me acompanha desde minha infância.
P. Freire, 2014, p. 199


Certamente, a leitura é, como não poderia ser de outra maneira, mais adulta que infantil. Por um lado, porque é o Paulo Freire maduro, de ideias amadurecidas, de aventuras maiores, mesmo que nunca acabadas, quem escreve e busca, no Paulo Freire menino, muitos daqueles traços que, mesmo embrionários, já o configuram naquilo que vai se tornar. Por isso, a marca principal desse diálogo consigo mesmo é uma espécie de continuidade que Paulo Freire percebe entre sua infância e sua adultez. Contudo, como veremos, é uma leitura infantilmente adulta.
Paulo Freire se reconhece na sua infância: percebe nela antecipações do que depois irão se manifestar mais claramente em seu pensamento e sua vida, desde uma certa formação política incipiente pelo pai militar na sua crítica à divisão entre trabalho manual e intelectual e na sua análise da realidade política brasileira até seu gosto pelas letras, sua fascinação por tudo que tivesse a ver com a língua portuguesa. As bases de seu pensamento político começam nesses primeiros anos em que Paulo Freire percebe a sua mais firme convicção na necessidade de transformar o mundo: “Pelo contrário, em tenra idade, já pensava que o mundo teria de ser mudado. Que havia algo errado no mundo que não podia nem devia continuar” (FREIRE, 1994, p. 41).
Também com pouca idade sente muito próxima a repressão e a tortura ao tio João Monteiro pela Policia Civil de Pernambuco. Com o corpo em péssimo estado de tanto ser torturado, o tio morre de tuberculose em 1935, apenas no ano posterior à morte do pai quando Paulo Freire tem 13 anos. São duas figuras centrais que dão lições políticas importantes nesses primeiros anos: ambos, além da própria percepção da vida social em Jaboatão, são as fontes principais dessa leitura crítica inicial da realidade nordestina e brasileira. O pai, pelo testemunho da palavra e da condição econômica que é forçado a oferecer a sua família, como capitão do exército na ativa e depois tendo que passar a retiro por problemas de saúde; no caso do tio jornalista, talvez mais importante ainda, o testemunho do próprio corpo que sofre as atrocidades da ditadura: o preço mas também a coragem e o valor da resistência, da não claudicação e da luta irrenunciável pela liberdade, de palavra e de vida.
Embora a mudança de Recife a Jaboatão seja vista negativamente pelo Paulo Freire criança, o adulto percebe a positividade da ampliação de mundo para uma vida que saiu do conforto dos jardins da casa para se encontrar, nu e cru, com as marcas mais diretas do que Paulo Freire chama de “tradição autoritária brasileira” e a “memória escravocrata” do país (FREIRE, 1994, p. 102), bem como do exercício autoritário de poder não apenas pelas elites governantes mas pelo açougueiro, pelos professores e professoras, pelo vizinho, enfim, o autoritarismo como marca que habita os que fazem parte, mesmo em classes sociais antagônicas, de uma cultura dominante, aquela que explora e leva à miséria os campesinos.
Paulo Freire menino já percebe que, nessa cultura, o dominado internaliza e reproduz os valores do dominante de forma tal que a luta contra esse estado de coisas necessariamente exigirá uma transformação cultural e, mais especificamente, educativa. Na vida cotidiana da roça pernambucana o educador vê-se percebendo, desde menino, seu futuro, sua vocação, mas não só. Essa vivência direta da crua realidade econômica e política vai propiciando uma leitura da realidade brasileira na qual Paulo Freire encontra as razões de ser mais profundas de seu pensamento político-pedagógico.
Há, portanto, uma relação muito afirmativa com a infância perpassando essas cartas: Paulo Freire busca (e encontra!) no seu tempo de menino o Paulo Freire que ele é: a sua infância não é falta mas presença no seu presente. Seu tempo de menino se faz presente com intensidade. Seu pensamento educacional vibra afirmativamente com seus inícios na leitura da palavra que supõe uma leitura do mundo. Como veremos em outro texto, daqui a pouco, ele afirma: “a retomada da infância distante (...) me é absolutamente significativa”(FREIRE, 1989, p. 12). Como educador especialista na questão da leitura julga importante, necessário, passar pela sua própria infância para compreender as complexidades do ato de ler. E sua infância não o decepciona.

Uma vivência (também) adulta da infância

“A nossa geografia imediata era, sem dúvida, para nós, não só uma geografia demasiado concreta, se posso falar assim, mas tinha um sentido especial. Nela se interpenetravam dois mundos, que vivíamos intensamente. O mundo do brinquedo em que, meninos, jogávamos futebol, nadávamos em rio, empinávamos papagaio e o mundo em que, enquanto meninos, éramos, porém, homens antecipados, às voltas com nossa fome a fome dos nossos. […] No fundo, vivíamos, como já salientei, uma radical ambiguidade: éramos meninos antecipados em gente grande. A nossa meninice ficava espremida entre o brinquedo e o ‘trabalho’, entre a liberdade e a necessidade”
P. Freire, p. 49-50.



“Nascidos, assim, numa família de classe média que sofrera os impactos da crise econômica de 1929, éramos ‘meninos conectivos’. Participando do mundo dos que comiam, mesmo que comêssemos pouco, participávamos também do mundo dos que não comiam, mesmo que comêssemos mais do que eles – o mundo dos meninos e das meninas dos córregos, dos mocambos, dos morros”
P. Freire, 1994, p. 50.


Ao mesmo tempo, a autobiografia oferece uma criança Paulo Freire também adulta pela própria vivência de uma infância onde a fome e a preocupação com a fome própria e a dos semelhantes – amigos, mãe, pai, irmãos - o faz pular, sem escalas intermediárias, das brincadeiras ao trabalho, da diversão nos rios, nas hortas e suas árvores e nos morros, à busca, neles mesmos, do sustento mais básico que sente no corpo próprio e dos seres mais queridos. É muito bom brincar na natureza mas é também preciso encontrar, nela, o alimento que mitigue a fome. Na casa, não há dinheiro para alimentar à família. Os comerciantes negam crédito à mãe que sofre não apenas a dor de não poder alimentar seus filhos mas a crueldade e a humilhação do maltrato ao pedir a solidariedade no açougue. A vida do menino se adultiza rapidamente: precisa dar um jeito para ajudar a família e a ele próprio não se entregarem à brutalidade da fome. Até é levado a entrar no mundo adulto das culpas, da moral e dos “bons hábitos” quando a necessidade de pegar o fruto ou a galinha do vizinho o leva a contradizer valores da formação cristã que recebe e que domina no lugar. Porém, Paulo Freire se esforça por mostrar que nenhuma dessas duas dimensões apaga nem impede a outra; que sua infância é, ao mesmo tempo e com igual intensidade, uma infância extremamente alegre, de uma alegria simultaneamente infantil e adulta.

Mesmo focada desde a perspectiva presente do educador, a narrativa de Paulo Freire está cheia de imagens e sensações infantis, como diz a própria Cristina na sua curta resposta:

“Fico feliz hoje em sentir e perceber, depois de tantas cartas enviadas e recebidas, de tantas saudades e curiosidades, às vezes até infantis, tanta sede de conhecer seu universo, as suas ‘idas e vindas’, o quanto foi importante para minha formação enquanto profissional, mulher e cidadã, a sua participação, o seu trabalho, as suas questões sempre tão bem levantadas e colocadas e sua bela insistência em lutar pelos seus sonhos” (FREIRE, 1994, p. 298, itálico nosso).

Saudades e curiosidades infantis:
sensações de alegria e de dor, muitos medos, por exemplo, com a mudança de Recife, que é vivida como um exílio que o tira da casa de nascença, do mundo seguro, de uma escolaridade nova e estimulante com a professora Áurea Bahia; medos novos com as histórias das almas que apareciam de noite na velha-nova casa de Jaboatão e seu afeto pelo grande relógio de parede da sala que com seu som lhe permite diminuir o medo do silêncio noturno; tristeza e um medo crescente o dia em que a família tem que vender o relógio por razões financeiras; o pânico, a dor, a saudade antecipada e o vazio quase infinito provocado pela morte do seu pai; a sua relação bastante pessoal com tudo que tem a ver com a natureza: árvores, plantas, animais, rios, morros com os que nunca perde uma relação de intimidade, mesmo quando eles começam a ser vistos cada vez mais como fonte de sobrevivência.
O relato é cheio de imagens e símbolos, muitos que são percebidos como tais pelo Paulo Freire maduro do relato, como o piano da tia Lourdes e a gravata do pai, símbolos de pertença a uma classe, média, que mesmo quando os recursos da família são escassíssimos e a fome aperta não podem ser vendidos por que vendê-los seria como se sair da própria classe.
Há uma chamativa e quase única referência negativa à infância através de um sermão do Padre Antônio Vieira em 1638 quem, baseado na etimologia da palavra infância – do latim infans, sem fala – associa o Brasil a uma criança e diz que quitaram do Brasil a fala, e esse seu silêncio é maior tragédia do Brasil. É o Padre Vieira falando ao imperador do Brasil no século xvii, e Paulo Freire se inspira nessas palavras para fazer uma crítica ao Brasil de todos os tempos, afirmando sobre ele que: “não fala e quando fala não é ouvido: é reprimido” (FREIRE, 1994, p. 84).
Porém, de um modo geral, a visão da infância é bastante afirmativa nas dez cartas em que Paulo Freire escreve sobre sua infância. Inclusive, na décima carta, quando relata suas peregrinações, já jovem, pelas livrarias de Recife com outros jovens, e seus exercícios de “curiosidade menina” (FREIRE, 1994, p. 94) para se colocar, ritualisticamente, ao redor do caixote com livros que está a ponto de ser aberto. A descrição de alguns acontecimentos é extremamente bonita, delicada e cuidadosa, como quando narra o momento em que é alfabetizado pela mãe e pelo pai no próprio jardim da casa em Recife, à sombra das mangueiras. Pauzinhos das ramas das árvores, fazendo as vezes do giz, desenham as palavras e as frases sobre a terra fazendo-se quadro. Paulo Freire não é alfabetizado com a cartilha mas com palavras do seu mundo e sai de casa para a escola já alfabetizado (FREIRE, 1994, p. 61). Seu início na leitura das palavras é prazeroso e brincalhão numa leitura de um mundo amigo e hospitaleiro, de grande intimidade com as árvores e a natureza, de um mundo familiar amoroso, afável e dialógico.
Esse mesmo episódio sobre seu início nas palavras bem como a importância das árvores e do quintal da casa na sua infância é referida em outros textos. Por exemplo, um trecho também autobiográfico de À sombra de uma mangueira (FREIRE 1995) numa seção intitulada “Meu primeiro mundo”. O quintal aparece aqui como “minha imediata objetividade”, o “primeiro não eu geográfico”. Ele marca tão profundamente Paulo Freire que renasce na memória de maneira tão inesperada quanto forte, por exemplo, na Suíça, em pleno “terceiro” exílio. Ao ler uma carta chegada de Recife em Genebra, se revê a si mesmo como o menino que desenha palavras e frases no chão sombreado pelas mangueiras. (FREIRE, 1995, p. 25) Nesse texto, o quintal da casa na Estrada do Encanamento, 724, no bairro de Casa Amarela em Recife (FREIRE, 1982, p. 14) representa o mais próprio da identidade do educador, suas raízes, literalmente o “chão da escola (informal)” em que ele se alfabetiza e se afirma como referência para se fazer educador mundano. Esse chão está atravessado inicialmente pelo trato amoroso da mãe e do pai e o ingresso na escola particular de Eunice Vasconcellos é percebido por Paulo Freire como uma espécie de prolongação e aprofundamento do trabalho feito em casa. Essa leitura do mundo e das palavras vai ser ampliado ainda mais, com a mudança para Jaboatão, que comporta uma mudança ao atraso, à pobreza, à miséria, à fome, ao tradicionalismo, à consciência mágica, às estruturas de espoliação e ao autoritarismo de um tempo, uma cultura e uma realidade política pernambucanas, nordestinas e brasileiras que marcam a fogo os sonhos de liberdade, democracia e justiça no pensamento e na vida de Paulo Freire.
A experiência da própria alfabetização infantil é também retomada num texto que recolhe uma intervenção de Paulo Freire na abertura do Congresso Brasileiro de Leitura, em Campinas, em novembro de 1981 (FREIRE, 1989). Nele, reafirma a importância de recuperar sua relação com a leitura na infância. Torna bem concreto esse relato dando os nomes das suas primeiras palavras lidas e escritas, vindas de seu universo infantil: dos pássaros – o do sanhaçu, o do olha-pro-caminho-quem-vem, o do bem-te-vi, o do sabiá -, dos animas – gatos de família; Joli, o velho cachorro do pai -, dos acidentes geográficas e climáticos, reais ou imaginados – lagos, ilhas, riachos, vento, nuvens, e da transformação das cores das mangas que ensinavam o significado do verbo amolegar.
Neste relato, há duas notas importantes na recuperação da sua infância. Por um lado, sua insistência no fato que a “leitura” do seu mundo foi feita infantilmente, ou seja, que ele não foi “um menino antecipado em homem, um racionalista de calças curtas” (FREIRE, 1989, p. 16) e que seu pai e sua mãe alfabetizadores cuidaram que sua “curiosidade de menino” não fosse distorcida por estar entrando no mundo das letras: a decifração da palavra acompanhava “naturalmente” a leitura do próprio mundo. Até os materiais e o cenário ajudavam para isso: não havia ruptura entre o mundo da vida e o mundo da alfabetização, em que a sala de aula era a sombra das mangueiras, o chão era o quadro negro e o giz eram os gravetos das árvores.
A segunda nota diz respeito o linguajar infantil com que Paulo Freire se refere a sua infância. Estamos num Congresso de leitura: evento de educadores, adultos. Paulo Freire povoa seu relato sobre sua infância de expressões infantis (“gargalhando zombeteiramente”, “peraltices das almas”, “passarinhos manhecedores”). Outras, como já vista “curiosidade menina” povoam suas recuperações da infância e mostram uma “saudade mansa” da infância e, ao mesmo tempo, uma espécie de reconhecimento de que, mesmo entre educadores (provavelmente interessados na educação de jovens e adultos), há certas coisas que só se podem expressar através de palavras infantis. Como veremos, não são justamente as coisas mais des-importantes.
A necessidade de partir da infância para pensar o presente aparece também num livro dialógico com Sérgio Guimarães. “Partir da infância” é o titulo da seção em que Paulo Freire responde afirmativamente ao convite para começar pela infância, mas não pela história da infância, e sim pela “infância enquanto escolaridade” (FREIRE; GUIMARÃES, 1982). Podemos ler a escolaridade como um estado de infância para além da cronologia: são de fato os escolares não cronologicamente infantis os infantes pelos que mais Paulo Freire se interessa em alfabetizar: infantes em estado escolar e não na cronologia.
Paulo Freire enfatiza como, de alguma forma, a maneira em que ele foi alfabetizado, com palavras do seu mundo infantil está presente em suas ideias sobre a alfabetização, como ele foi tão profundamente marcado pela forma em que foi alfabetizado. Nesse texto, a lembrança é a mais nítida, precisa, com mais detalhes: a mãe, Edeltrudes (Trudinha) sentada do lado numa cadeira de vime; o pai, Joaquim, se balançava na rede, no meio da sombra de duas mangueiras, espaço livre e despretensioso, informal, Paulo Freire entra no mundo das letras, quase que sem percebê-lo, como uma atividade mais de um menino povoando? seu universo infantil: dando palavras para os seres do seu mundo.

A infância mais afirmativa de Paulo Freire: a revolução

A menina continua viva, engajada na construção de uma pedagogia da pergunta.
P. Freire; A. Faundez, 1985, p. 158


Contudo, uma das visões mais afirmativas da infância na obra de Paulo Freire aparece não em referência a sua infância e está em outro texto, na última parte do seu livro falado com Antonio Faundez, Por una pedagogia da pergunta. Assim termina o pernambucano esse livro-diálogo com o pensador chileno:

Em minha primeira visita a Manágua, em novembro de 79, falando a um grupo grande de educadores no Ministério da Educação, dizia a eles como a revolução nicaragüense me parecia ser uma revolução menina. Menina, não porque recém-“chegada”, mas pelas provas que estava dando de sua curiosidade, de sua inquietação, de seu gosto de perguntar, por não temer sonhar, por querer crescer, criar, transformar.
Disse também naquela tarde quente que era necessário, imprescindível que o povo nicaragüense, lutando pelo amadurecimento de sua revolução, não permitisse porém que ela envelhecesse, matando em si a menina que estava sendo.

Voltei lá recentemente. A menina continua viva, engajada na construção de uma pedagogia da pergunta
. (FREIRE; FAUNDEZ, 1985, p. 158)

A imagem da infância, ou da meninice, não poderia ser mais afirmativa e potente. Ela é um modo do elogio, uma forma de falar bonito, uma espécie de louvor a uma revolução que não apaga sua curiosidade, sua inquietação, seu gosto de perguntar, seu querer sonhar, seu desejar crescer, criar, transformar. É isso que constitui a infância: um desejo, um gosto, uma sensibilidade para as forças da vida, como a curiosidade, o sonho, a transformação.
A meninice da revolução nicaraguense não tem a ver com seu tempo cronológico de estar no mundo. Ela é sim uma menina de curta idade mas ela não é uma menina pela sua curta idade, por ter nascido faz pouco tempo. Não. Ela não é uma menina pelo que carece, pelo que ela tem de pequeno, de pouco tempo vivido, ou pelo que ela será, pela sua projeção num tempo futuro. A revolução (nicaraguense) é menina pelo que ela é, pelo seu modo de habitar o tempo presente, pelo que ela mostra de força afirmativa, pela sua potência, na sua forma curiosa, inquieta, sonhadora, criadora, transformadora de ser revolução. Ela é uma menina pela maneira em que ela afirma uma vida revolucionária, pelo seu jeito de mostrar uma revolução ao mundo, de se fazer não apenas uma revolução mas um modo de existência revolucionária.
Estamos no final dos anos 70 que é também o final do que Paulo Freire considera seu terceiro exílio. Ele está retornando ao Brasil, mas continua viajando pelo mundo. Encontra-se em Nicarágua perante uma revolução que é também uma criança cronológica, tem apenas poucos meses de idade e, como tal, antevê diversas possibilidades para seu crescimento no tempo.
São muitas as figuras possíveis para crescer e, dentre elas, Paulo Freire destaca duas formas de se relacionar com a infância que podem se distinguir ao amadurecer: a) a primeira, que entende o amadurecimento como um envelhecimento e, por tanto, como um apagar a infância para superá-la ou convertê-la em outra coisa; essa é a possiblidade que povoa uma maneira de se entender a infância como algo que deve ser transformado em outra coisa que a supere; essa possibilidade pensa também a educação como o caminho mais apropriado para essa saída, uma espécie de formação da infância; b) uma segunda, aqui implicitamente defendida por Paulo Freire, que entende a infância como algo que o amadurecimento faria bem em preservar, alimentar e cuidar como algo que outorga vida à vida e que, por tanto, nunca deve se abandonar; desta forma de entender à infância desprende-se uma concepção da educação como atenção, cuidado e escuta da meninice, porque se a infância for superada ou apagada, a vida seria menos vida. Assim, a educação precisa deixar de se preocupar em formar a meninice em outra coisa que ela não é, para se ocupar em cultivá-la e atendê-la para que ela continue sempre viva, em todas as idades.
Essa infância-meninice da revolução nicaraguense é a potência criativa e curiosa da vida em todas as idades. Ela é uma menina engajada, comprometida, fecunda: o que ela se joga em construir é uma pedagogia da pergunta, aquela que aprende e ensina a perguntar... perguntando e perguntando-se, ela se pergunta “o que é perguntar?”, qual é o seu sentido, por quê e para quê fazê-lo. É uma pedagogia que se coloca a si mesma, permanentemente, em estado de pergunta, que vive intensamente a pergunta e o perguntar. (FREIRE; FAUNDEZ, 1985, p. 48)
Como vemos, Paulo Freire, que não se dedicou particularmente à educação das crianças mas de um povo sem idade, propõe uma visão muito afirmativa da infância, como meninice: uma visão propriamente infantil, tanto que ela é o maior elogio de uma revolução, nada menos que de uma revolução, aquilo que é a coisa mais séria do mundo, a mais importante e adulta de todas entre as coisas dos adultos e por isso mesmo não precisa deixar de ser, ao mesmo tempo, a mais alegre, brincalhona e perguntadora de todas as coisas. Nada parece mais necessário que revolucionar o estado de coisas e os modos de vida dominantes em América Latina e o que Paulo Freire está sugerindo é que uma revolução infantil é a mais educadora das revoluções.
Paulo Freire sabe muito bem da necessidade de revolucionar a vida em América Latina e junto a essa necessidade também afirma que uma revolução sem infância é uma revolução que perde sua capacidade de criar, de se perguntar, se inquietar... ou seja, a infância é uma condição de uma revolução que se orgulhe de estar sendo tal. Não é o lugar aqui de julgar o julgamento que Paulo Freire está fazendo da educação nicaraguense, muito menos à própria revolução nicaraguense nem sequer de avaliar seu sucesso ou insucesso históricos... não é isso o que está afirmando Paulo Freire; não é a infância que garante o sucesso de uma revolução; até talvez seja o contrário, tão hostil que parece ser o mundo que vivemos com uma infância assim concebida: quanto mais infantil, menina, quanto mais uma revolução afirma uma pedagogia da pergunta, mais exposta está às hostilidades do sistema. A infância nada tem a ver com uma tática do sucesso. O que Paulo Freire está afirmando é que uma revolução “mais propriamente tal” ou uma revolução que está sendo e quer ser verdadeiramente uma revolução, a mais revolucionária das revoluções não pode esquecer nem apagar sua infância: a revolução mais revolucionária é a mais menina das revoluções. E, sendo menina, educa na meninice, na alegria, na curiosidade, na pergunta, que não têm idade.
Em outras palavras do pernambucano, poderíamos dizer que a infância adquire o estatuto ontológico principal que Paulo Freire confere a uma existência: sua vocação irrenunciável por ser mais, por afirmar o futuro como possível e não como determinado, seu permanente estar sendo em vez de ser de uma vez e para sempre.

Palavras infantis para quem nunca deixa de estar sendo menino (a)

Foi assim que, numa tarde chuvosa no Recife, céu escuro, cor de chumbo, fui a Jaboatão, à procura de minha infância.
P. Freire, 2014, p. 43


Esse estar sendo menina que Paulo Freire atribui à revolução sandinista em Nicarágua queremos atribui-lo à vida de Paulo Freire. Ao reler algumas das suas afirmações sobre a infância, sobre sua infância cronológica ou sobre a meninice de uma revolução; ao perceber a forma de sua escrita, questionadora e amorosa ao mesmo tempo, percebemos a meninice de Paulo Freire como algo que ele próprio parece alimentar e não querer nunca abandonar.
Até nas últimas das suas intervenções públicas – entrevistas, encontros, cerimônias -, percebemos nele esse seu jeito menino de estar sendo e andar pelo mundo, de se questionar infantilmente a si mesmo, aos outros e ao próprio mundo até o final de sua vida. Para dizer essas notas infantis com suas palavras: a infância perene de Paulo Freire se expressa na sua curiosidade, sua inquietação, seu gosto de perguntar, por não temer sonhar, por querer crescer, criar, transformar, na sua fala de menino, no uso originário das palavras que o seu primeiro mundo formou na sua meninice, até nas ocasiões mais solenes e importantes de um linguajar menino. Paulo Freire nasce e cresce menino, vivo, curioso, atento, engajado sempre na construção de uma pedagogia menina, infantil, uma pedagogia da pergunta.
Essa relação de Paulo Freire com a meninice mostra também que a infância não é questão de idade, de ter poucos anos, de quantidade de tempo. A infância é uma forma de se relacionar com o tempo, justamente, a qualquer idade. Numa de suas cartas pedagógicas que compõem o póstumo Pedagogia da indignação, por tanto, já muito afastado da infância cronológica, uns poucos meses antes de morrer, em janeiro de 1997, comenta, na primeira carta, o dinamismo da vida urbana, as transformações que ela exige, ainda para pessoas com mais de setenta anos, como ele próprio, e conclui: “É como se hoje fôssemos mais jovens do que ontem” (FREIRE, 2000, p. 31).
A frase é uma declaração de infância; uma definição precisa: a infância é, justamente, uma forma de experimentar o tempo em que ele se inverte: hoje somos mais jovens que ontem, eis a nossa meninice, sem idade, de cada idade. Podemos ser mais jovens, até meninas e meninos (se nós atrevemos a sermos muito jovens!) aos 70 anos. Há meninos de 70 anos mais jovens que adultos de 40, jovens de 20 ou crianças de 9 anos. A infância é viver o tempo juvenilmente, aberto aos mundos que uma pergunta abre, não importa os anos que se tenha. É uma forma, continua o pernambucano, de estar “à altura de nosso tempo” (ibidem), uma altura que não se mede em centímetros mas em disposição para correr riscos, abertura para o inusitado, disposição a ser de outra maneira e a “compreender adolescentes e jovens” (ibidem).
A infância é também uma forma de se relacionar com o futuro, como sempre aberto, como algo que não nos faz (FREIRE, 2000, p. 56) mas que nós lutamos para refazer e, nessa luta, nos refazemos também a nós mesmos. É uma forma de olhar para o futuro, de olhos abertos, como ele também se dispõe para nós. Por fim, a infância é, antes de mais nada, uma forma de habitar o presente, de estar inteiramente presentes no presente, como se o tempo fosse só presente e como se nós fôssemos apenas infância, como se o futuro fosse apenas uma outra forma do presente.
Justamente por que a infância é essa presença e essa relação com o presente, resulta importante que as crianças cresçam “no exercício desta capacidade de pensar, de indagar-se e de indagar, de duvidar, de experimentar hipóteses de ação, de programar e de não apenas seguir os programas a elas, mais do que propostos, impostos. As crianças precisam de ter assegurado o direito de aprender a decidir, o que se faz decidindo.” (FREIRE, 2000, p. 58-9).
Eis talvez uma das marcas principais de uma pedagogia da infância para Paulo Freire: dar a infância as condições para que ela possa viver infantilmente sua infância, o que significa que ela possa viver também infantilmente sua entrada no mundo das letras através de uma educação política infantil: que ela possa perguntar, duvidar, indagar e, principalmente, decidir, em diálogo com seu mundo infantil, em que classe de mundo ela quer ser a infância que está sendo.



Referências bibliográficas



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FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. 55
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_______. À sombra desta mangueira. São Paulo: Olho D’Água, 1995.
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A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados; Cortez, 1986.

FREIRE, Paulo; FAUNDEZ, Antonio. Por uma pedagogia da pergunta. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

FREIRE, Paulo; GUIMARÃES, Sérgio. Sobre educação
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TORRES, Carlos Alberto.
Twenty years after Pedagogy of the Oppressed: Paulo Freire in conversation with Carlos Alberto Torres. Aurora 13 (3) 1990, p. 12-14.

WEST, Cornel. Preface. In: LEONARD, Peter; McLaren, Peter (eds.). Paulo Freire: A critical encounter. New York: Routledge, 1993, viii-xiv.







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