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Cuidado e gerencialismo: para onde vai o trabalho das professoras

Resumo:
O artigo apresenta parte dos resultados de uma pesquisa sobre as atuais configurações de gênero no trabalho docente no ensino fundamental 1, que foi historicamente associado a uma feminilidade e a práticas de cuidado. Contudo, as formas de gestão empresarial, difundidas na administração pública brasileira desde o final da década de 1990, têm colocado em questão esse modelo, ao exigirem dos educadores e educadoras posturas baseadas não apenas na lógica de mercado, mas também em valores que se considera como relativos a um tipo de masculinidade, como individualismo, competitividade, foco na ascensão na carreira e em recompensas monetárias. Para investigar se esses movimentos levaram ao apagamento dos traços históricos de feminilidade associados ao trabalho das professoras do fundamental 1, foi feito um estudo qualitativo na rede pública estadual de SP, que indicou a permanência de referências a uma feminilidade, porém ressignificadas e contraditoriamente integradas às novas políticas gerencialistas.

Palavras-chave:
trabalho docente – gênero – ensino fundamental 1 – gerencialismo – cuidado

Care and new managerialism:
where does the teaching work go?

Abstract:
This article presents the results of a research on the current gender configurations in primary teaching work, which has been historically associated with care practices and femininity. However, new managerialism, widespread in Brazilian public administration since the end of the 1990s, have challenged this teaching model by requiring educators to act based not only on market logic, but also on values considered as related to masculinity, as individualism, competitiveness, focus on career advancement and monetary rewards. In order to understand whether these movements led to the erasure of historical traits of femininity associated with primary teaching, a qualitative study was conduct in state public schools of São Paulo, which indicated that references to a femininity are still strong, but they are retranslated and contradictorily integrated with new managerial policies.

Key words:
teaching – gender – primary school – new managerialism - care



Este artigo apresenta parte dos resultados de uma pesquisa sobre as atuais configurações de gênero no trabalho docente no ensino fundamental 1. O trabalho das professoras deste nível de ensino foi historicamente associado ao cuidado e a uma feminilidade, mas as formas de gestão empresarial, difundidas na administração pública brasileira desde o final da década de 1990, colocaram em questão esse modelo.

Também chamadas de gerencialismo, essas políticas incluem a medição do desempenho dos alunos em avaliações padronizadas e o estabelecimento de metas a serem atingidas, com ou sem pagamento de prêmios. Do ponto de vista da organização e controle do trabalho, estão associadas aos modelos que se firmaram no capitalismo contemporâneo com a reestruturação produtiva das últimas décadas do século XX, marcados pela flexibilização, o incremento da precarização e da intensificação do trabalho, a ênfase em resultados, a ampliação do individualismo e da competitividade entre os trabalhadores, assim como a utilização de técnicas de envolvimento e participação dos trabalhadores nos planos das empresas (ANTUNES, 2008; ALVES, 2011). Além disso, também caracteriza este período do capitalismo contemporâneo a expansão das relações mercantis para esferas da vida até então menos tocadas por esses processos, como o cuidado e as relações afetivas, que passam a fazer parte do mercado ou ao menos a obedecer a sua lógica e valores (MORINI, 2008; EVANGELISTA; VALETIN, 2013). A introdução da gestão empresarial nas salas de aula de escolas públicas pode ser entendida como parte dessa expansão.

O gerencialismo exige dos educadores e educadoras posturas voltadas à eficiência e à prestação de contas aos “consumidores”, reforçando uma subjetividade que envolve ações individualizadas, competitivas, planejadas, voltadas para a ascensão na carreira e a recompensa monetária. Estes princípios se fundamentam não apenas na lógica de mercado, mas também em valores que se considera como relativos à masculinidade – ou a uma forma de masculinidade (MAHONY, HEXTALL, MENTER, 2004; CHAN, 2011; GARCIA; ANADON, 2009). Para alguns autores, esta orientação marcadamente masculina tenderia a marginalizar a feminilidade até então predominante na docência para crianças (BLACKMORE, SACHS, 2007; CHAN, 2004), trazendo novos desafios tanto para homens quanto para mulheres na construção de sua prática docente.

Em sentido analiticamente inverso, estudos sobre a expansão ao conjunto dos trabalhadores de aspectos tradicionalmente associados ao trabalho das mulheres falam em feminização do trabalho na contemporaneidade (MORINI, 2008; SENNETT, 1999; ABÍLIO, 2014), significando a expansão tanto de características típicas do trabalho doméstico quanto daquelas associadas a ocupações remuneradas majoritariamente femininas. A presença crescente do trabalho não pago, com o apagamento das diferenças entre tempo de trabalho e tempo livre e também entre local de trabalho e local de moradia, que criam a plena disponibilidade do trabalhador, misturam trabalho e lazer e geram a invisibilidade do trabalho, são características do trabalho doméstico, historicamente exercido pelas mulheres, que hoje são centrais no trabalho em geral. Além disso, precarização, polivalência, informalidade, baixa remuneração e rotatividade, características das ocupações remuneradas de maioria feminina, também passam a ser elementos constitutivos do trabalho de todos, independentemente de serem homens ou mulheres. Assim, esse processo de feminização significa o estabelecimento de “uma nova antiga relação”, nas palavras de Ludmila Abílio (2014, p. 86), na medida em que as formas mais precárias e degradadas do trabalho se atualizam e constituem, hoje, nós das cadeias de produção internacionalizadas da economia global.

No caso das professoras do fundamental 1, num país em que a precariedade e a informalidade são constitutivas do mercado de trabalho para homens e mulheres, parte das características antigas marcam a própria origem da ocupação de ensinar em escolas públicas, nas primeiras décadas do século XX: polivalência, trabalho não pago e invisível, mistura entre tempo de trabalho e tempo livre. Outra parte está presente em seu exercício desde os anos 1970: precariedade, baixa remuneração, rotatividade. Resta investigar de que forma essas características se transformam e se atualizam com a introdução da lógica mercantil na escola pública, implicando a ampliação e informatização dos instrumentos de controle, a autointensificação e a pressão por resultados. Terão esses movimentos levado ao apagamento dos traços de feminilidade que marcaram a professora dedicada, que cuida de seus alunos e adora ensinar?

Para tanto foi feito um estudo qualitativo, que é mais propício à captação de significados e processos (SARMENTO, 2011) com uso de observações e entrevistas semiestruturadas (ZAGO, 2011). Foi selecionada a rede pública estadual de SP, por sua representatividade nacional e pela presença de uma política de gestão do trabalho docente baseada na avaliação padronizada da aprendizagem, com o estabelecimento de metas e o pagamento anual de bônus. Foram entrevistadas nove professoras, dois professores e uma coordenadora pedagógica, que atuavam nos anos iniciais do ensino fundamental em nove escolas localizadas em diferentes zonas da capital paulista ou em municípios da região metropolitana. As aulas de oito delas foram observadas em uma ou duas seções.

A rede estadual de educação básica de São Paulo abrange cinco mil e 300 escolas, nas quais estudam 4,3 milhões de alunos e trabalham 148.738 professores, dos quais 29.662 (19,94%) regem classes dos anos iniciais do ensino fundamental, segundo o Censo Escolar (MEC/INEP, 2018). Governado desde 1995 pelo mesmo partido (PSDB), o estado de São Paulo tem assistido a certa continuidade nas políticas educacionais, pautadas por propostas de reduzir custos e melhorar a eficiência por meio de informatização e reforma administrativa com base nos princípios do mercado. Essas políticas podem ser compreendidas a partir de dois eixos complementares: de um lado, a implantação de uma sistemática de avaliação do desempenho dos alunos por meio de testes padronizados (SARESP) e a criação em 2007 de um índice estadual (IDESP); e de outro lado, a premiação dos educadores/as seja a partir dos resultados destes testes e do cumprimento de metas (bonificação por resultado), seja a partir de avaliação dos professores/as para progressão na carreira (prova de mérito) (CASSETARI, 2010; ZATTI, 2017). Além das provas do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB), promovido pelo Ministério da Educação (MEC) e do Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp), os alunos das escolas estaduais de São Paulo localizadas na capital passaram a fazer parte, em 2017, de um programa baseado no Método de Melhoria de Resultados (MMR), com avaliações bimestrais chamadas de Avaliação de Aprendizagem em Processo (AAP).

No ensino fundamental 1, os testes estaduais são feitos a partir dos programas Ler e Escrever e EMAI (Ensino de Matemática nos Anos Iniciais), que consistem em currículos de português e matemática, respectivamente; cursos e atividades de formação continuada de professores/as e de gestores; materiais detalhados para orientar as aulas; e materiais para os alunos. Os programas são permanentemente acompanhados por técnicos da secretaria e os cadernos do professor trazem indicações minuciosas de como cada atividade deve ser desenvolvida. (LIMA, 2014; RIGOLON, 2013)

Um modelo feminino de trabalho


Diversos analistas e mesmo os apoiadores destas medidas de gestão empresarial na rede estadual de São Paulo consideram que elas foram implantadas num modelo “top down”, isto é, como imposição de cima para baixo (JUNQUEIRA, s.d.; CASSETARI, 2010; ZATTI, 2017). Assim, nos anos iniciais do ensino fundamental, elas foram impostas a professoras que historicamente partilhavam um modelo de trabalho baseado em características tidas como femininas.

São mulheres a maioria das professoras neste nível de ensino desde o início do século XX, quando se constituiu a rede de escolas primárias públicas brasileiras, cujo desdobramento histórico são os atuais anos iniciais do ensino fundamental. Em São Paulo, as professoras já representavam “70% do total de funcionários encarregados do ensino” em 1921, de acordo com Lourenço Filho (REIS, 1991, p. 72). Luís Pereira, com base em dados do MEC e do IBGE, indica que entre os integrantes do “magistério primário nas escolas do sistema estadual paulista”, a proporção de mulheres era de 93,3% em 1961 (PEREIRA, 1969, p. 31). E em 2017 elas eram 91,8%, segundo o Censo Escolar (MEC/INEP, 2018).

Mas não se trata apenas de uma presença numérica. Características da feminilidade vêm sendo persistentemente associadas ao trabalho de ensinar para crianças. Por exemplo, 92,5% das professoras primárias que responderam aos questionários de Luís Pereira em 1959, afirmaram que a profissão era mais adequada às mulheres, e justificaram: “À mulher é mais fácil transformar a escola num segundo lar. Há inúmeros alunos que sentem essa falta em classe de professor”; “na minha opinião, a mulher está por natureza e instinto mais ligada à criança” (PEREIRA, 1969, p. 49).

Em 1996, estudando professoras do fundamental 1 da rede estadual de São Paulo, um de nós encontrou um ideal de professora pautado pelas práticas de cuidado, entendido como atenção integral e individualizada a todos os aspetos do desenvolvimento das crianças e não apenas à dimensão cognitiva. Nas palavras de uma jovem professora de 21 anos: “Então, eu acho que o professor, ele não tem que só passar conteúdos, porque às vezes você conversando com um aluno, você conversando com o pai ou a mãe, você dá um jeito” (AUTOR). Esse componente do trabalho das professoras, que resultava em envolvimento emocional com as crianças e trabalho extraclasse, mas também em prazer e realização, não tinha um nome, não era explicitado nem discutido abertamente. As únicas referências possíveis para abarcar o cuidado, o vocabulário disponível, eram a feminilidade e a maternidade, com as quais suas práticas pedagógicas eram correlacionadas de maneira intensa. Na verdade, ensino escolar para crianças e maternidade estavam referidos a uma mesma matriz cultural, também ela historicamente construída.

Dez anos depois, Alda Judith Alves-Mazzotti (2007) pesquisou docentes de escolas públicas do ensino fundamental no Rio de Janeiro e identificou o termo “dedicação” como núcleo central da representação sobre ser professor entre aqueles vinculados aos anos iniciais. Embora a autora não faça essa relação, podemos afirmar que este termo está articulado a uma ideia de feminilidade, assim como as demais associações feitas pelas professoras ali estudadas, que incluíam vocação, missão e doação.

As entrevistas realizadas em 2017 trazem indicações de que essa tradição de relacionar o magistério no fundamental 1 a características socialmente atribuídas à feminilidade não se repete idêntica na contemporaneidade, mas está muito presente e é ressignificada no contexto das novas formas de gestão do trabalho docente.

Professora que cuida: “A galinha e seus pintinhos”


A entrevista concedida pela professora Ester constituiu um marco na construção dessa reflexão. Branca, com 46 anos de idade, Ester somava 28 anos de experiência, sempre na mesma escola. Ela se formou no curso de Magistério em 1989, com 18 anos já dava aulas e em 2000 fez curso de Pedagogia à distância, em convênio firmado pela Secretaria de Estado da Educação com a USP. Casada com um comerciante, com uma única filha de 20 anos de idade, Ester declarou que seus ganhos como professora serviam principalmente para pagar a faculdade da filha e “alguma coisa do cartão de crédito”.

Na realidade, desde que eu me casei, nunca precisei sustentar a casa, com todas as despesas e tudo. A gente sabe que se for pra você sustentar a casa com o salário que a gente tá ganhando agora é impossível, né? Então, seria, assim, um complemento. (Ester)

Sua narrativa é muito semelhante a outras coletadas junto a professoras em estudos realizados há décadas (PEREIRA, 1969; LOURO, 1987; BRUSCHINI; AMADO, 1988), falando da vocação de ser professora, da dedicação às crianças e da realização ao ver seus avanços. Ela declarou ter escolhido ser professora porque na sua época esse era “um sonho de toda menina” e descreveu sua relação com os alunos como “de mãezona mesmo. Eu sempre falo para eles, que parece os pintinhos, e eu enfio eles debaixo da asa (risos).” Ester já havia sido convidada para atuar como coordenadora pedagógica e como técnica na diretoria de ensino, mas recusou “porque dando aula, você vê o aluno progredindo, você vê a realização no final do ano; e isso eu não troco mesmo, não abro mão.”

À medida que a entrevista avançava, ficavam cada vez mais nítidas as marcas de uma feminilidade e o recurso à maternidade para descrever sua prática:

[O bom professor] em primeiro lugar, ele tem de amar, em primeiro lugar, amar os alunos. [...] Desde os primeiros anos, eu sempre trabalhei com muito coração, né, naquilo que eu faço. Depois que eu tive a minha filha, ficou mais presente ainda, porque eu via os alunos como se fossem meus filhos, e sempre pensei assim: eu quero dar o máximo do que eu puder pra eles, porque era como se fosse a minha filha que estava sentada ali naquela carteira. (Ester)

Em alguns aspectos suas falas remetem aos depoimentos colhidos por Pereira (1969), em que se lê que as mulheres “teriam mais jeito” com as crianças do então chamado curso primário, porque “para um professor homem fica mais difícil, esse acolhimento aos pequenos” (p. 59). Ester colocava a dedicação aos alunos e à profissão como fonte das atitudes profissionais que valorizava, tais como preparar as aulas e ter objetivos bem definidos, revelando que não opunha a referência à maternidade ao profissionalismo e que reconhecia a importância de uma formação pedagógica específica:

Tem que saber:
por que você escolheu a profissão? Que a gente sabe que não é pelo dinheiro; então, você escolheu porque você tem uma perspectiva, porque você quer fazer alguma diferença. [...] Escolheu para fazer um bico, ou por uma necessidade, ou foi porque você tinha o ideal a ser cumprido, a ser realizado? O segundo passo é você saber aonde você quer chegar com os alunos. Você preparar as suas aulas para atingir os objetivos que você quer; porque ninguém chega a lugar nenhum se não souber aonde quer ir, né? (Ester)

A professora também declarou que levava sempre trabalho para casa, “pelo menos uma hora e meia por dia pra preparar a aula” e que gastava recursos próprios para oferecer atividades aos alunos: “Às vezes, chego a xerocar lição de casa, imprimir as coisas em casa, do meu bolso.” (Ester)

Sem necessidade financeira do bônus – mesmo o salário não era essencial –, trabalhando por amor, com aquilo de que gostava, Ester tinha tudo para ficar alheia aos testes padronizados e ao cumprimento das metas, se o motivo fosse estritamente financeiro. Contudo, ela mostrou ser uma das entrevistadas mais bem informadas sobre a política de bonificação e seus cálculos, as metas de sua escola e do estado, etc.

Para 2016 já saiu o resultado, a nossa escola tinha que alcançar 7.7. [...] Ele quer chegar na meta 6, em 2030 [média estadual] e nós já estávamos em 7.6. Mas nós éramos duas classes de 5º ano, não era uma só; então, nós tivemos algum problema. Mas mesmo assim, nós alcançamos 6.1! 6.1 ainda está acima de muita escola, só que nós não atingimos a meta. Então, tem escola, por exemplo, que atingiu a meta de 3.5, que estava muito abaixo, que vai receber o bônus e nós que estamos com 6.1, não vamos receber nada. (Ester)

A professora também se disse favorável à avaliação externa e às mudanças provocadas pelo sistema de metas:

Porque você tem que alcançar a meta e aí, queira ou não, tem mais cobrança, né? E aí, queira ou não, a pessoa, mesmo sendo aquela menos incomodada vai ter que se incomodar para fazer alguma coisa. Então, eu vejo positivo, sabe, eu vejo positivo essa avaliação. (Ester)

Ao falar de seu trabalho, ela jogou luz sobre a presença da gestão por resultados em sua prática na sala de aula. Como as classes em que Ester lecionava em geral iam bem nos testes, a diretora a pressionava para assumir turmas de 5º ano, que fazem a prova do SARESP (Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo). Mas ela não gostava (“é muita pressão”) e naquele ano estava contente por ter voltado para o quarto ano, não por poder dirigir seu trabalho para outros objetivos além do teste, mas porque assim teria “dois anos para prepara-los para o SARESP”.

Ao mesmo tempo, Ester estava satisfeita com o grau de autonomia que tinha e gostava do currículo e dos materiais dos programas da secretaria de educação (Ler e Escrever e EMAI – Ensino de Matemática nos Anos Iniciais).

A gente tem o currículo que a gente tem que seguir, que é um parâmetro do Estado inteiro, mas isso eu acho até bom, viável, porque [...] quando a gente recebe um aluno do próprio Estado, que vem com esse currículo, o que ele está aprendendo na escola dele, ele vai dar continuidade aqui. Agora, como eu vou desenvolver esse currículo, de que maneira eu vou apresentar para o meu aluno... A gente tem escolas, que eu já ouvi falar, que os diretores engessam o professor, ele tem que trabalhar daquele jeito e acabou. Aqui não, aqui você precisa alcançar os objetivos, mas a maneira como você vai trabalhar com os seus alunos, é de escolha do professor. (Ester)

Essa ideia de autonomia é muito distante, por exemplo, daquela observada no final dos anos 1990 entre professoras do fundamental 1, que definiam com bastante liberdade os objetivos, os conteúdos, a metodologia, os ritmos de trabalho e as formas de avaliação da aprendizagem. Para aquelas professoras, ao modelo de mestra vocacionada e afetiva, correspondia um grau elevado de autonomia e de controle sobre o próprio trabalho. (AUTOR)

Dessa forma, Ester personifica uma trabalhadora ideal do ponto de vista dos gestores empresariais da educação: ao mesmo tempo adepta dos testes e das metas, satisfeita com um ensino em que executa o que foi definido externamente, ela mantém traços decisivos da antiga professora primária, socialmente identificados à feminilidade, que a levam a ser dedicada, trabalhar em casa sem remuneração, gastar recursos próprios para suprir o que o Estado não fornece e justificar suas atitudes como preocupação com as crianças.

Outros olhares:
“eu não sou mãe de aluno, não sou tia de aluno, não sou madrinha de aluno”

Mas seria esse perfil uma exceção? A fala de Ester continha dois extremos: de um lado recorria explicitamente à referência à maternidade para descrever seu trabalho; e, de outro, mostrava-se favorável ao currículo padronizado, às avaliações de larga escala e às metas. Ao contrário dela, parte das entrevistadas formulou críticas a essa padronização e às formas de controle correspondentes, em diferentes graus, embora todas trabalhassem dentro desses parâmetros.

De outro lado, a fala explicitamente maternal também não foi o padrão entre as entrevistadas e estava presente apenas nos argumentos de Zuleica, que tinha 46 anos como Ester, mas, diferentemente, era de origem numa família de baixa renda e, no momento da entrevista, era a única responsável pelo sustento da família.

O nosso colega lá do 6º ano, ele não vai ter o mesmo tempo que o professor PEB I tem, que, às vezes, a gente se pega até mãezona [...] Eu acho que o desafio tá mais mesmo na vida afetiva da criança, que interfere no cognitivo, querendo ou não. Mas o nosso papel é aí, é o desafio, é buscar caminhos para tentar ajuda-los. [...] O quê que uma mãezona é? Então, ela tem que ser rígida no momento certo, mas a maior parte da vida ela tem que ter um olhar muito mais carinhoso, mesmo em cima da birra do filho. O professor não é diferente não, porque você vê o aluno encostando na sua carteira, ele chama você de pai, de mãe, de vó. [...] Se ele te vê com essa imagem, é porque ele busca em você algo mais do que você estar ensinando ele a ler e a escrever. Então, tem que ter esse olhar mesmo de mãe. (Zuleica)

Como no caso de Ester, essa postura não afastava Zuleica da adesão ao trabalho em função de metas e aos testes padronizados, que ela achava de grande ajuda.

Antes, nós tínhamos de pegar recortes do SARESP para trabalhar com as habilidades, para ver as competências dos alunos, para prepara-los para o SARESP. Agora, essa AAP, que é a Avaliação da Aprendizagem Processual, ela veio nos auxiliar, porque ela já vai fazendo um levantamento, trabalha tudo o que é cobrado lá do SARESP [...] É muito bom para nortear o trabalho do professor, ver todos os avanços. Que isso a gente só descobria lá no SARESP, no final, no início do ano seguinte, que era quando vinha o retorno. [...] Então, eu acho que foi muito bom. (Zuleica)

No outro extremo do espectro de falas, temos argumentos contra o modelo maternal, explícitos no caso de Cintia, 38 anos, branca, divorciada, sem filhos (“por opção”):

Quem tem que acolher é a mãe, quem tem que cuidar é a mãe, você é professora, você ensina as letras, você ensina conhecimento pra eles. Você oferece, você pega a informação e transforma em conhecimento pra prepará-los para a vida, pro mercado de trabalho. Carinho, afeição, você tem com eles, porque é ser humano, mas isso quem deve dar é a família, professor não é substituto. [...] Porque eu levo assim, minha vida particular da porta pra fora. Eu sou professora da porta pra dentro, das 7 às 11:30 eu sou professora, essa é minha profissão, estudei para isso. Eu trabalhei numa escola, de um francês, uma vez ele foi bem sucinto comigo, falou assim: “pra quê que você estudou?”, “pra ser professora”, “então seja, é isso que você é.”. Então assim, eu não sou mãe de aluno, não sou tia de aluno, não sou madrinha de aluno. (Cintia)

Na mesma direção fala Renata, de 26 anos, negra, casada, na época grávida do primeiro filho. Embora não tenha criticado explicitamente o modelo referido à maternidade, Renata valorizava o tipo de atuação da diretora de sua escola por permitir que as professoras se concentrassem na transmissão de conteúdo, diferentemente da professora que entende o cuidado como parte de seu trabalho, com atenção a todos os aspectos do desenvolvimento de seus alunos:

Lá [na escola] o professor é visto como autoridade mesmo, você é um professor. Quando tem problema de indisciplina mesmo, a gente nem sabe o que acontece, você manda para a Direção, eles resolvem. O pai jamais chega no professor, eles nunca deixam, você só é tirado da sala de aula lá se realmente for necessário. Então, assim, o pai não tem esse contato direto, que nem, às vezes, em muitas escolas têm, o pai já vai chegando no professor. Não, o professor é o pedagógico, a gente está ali para trabalhar, cuidar do aprendizado pedagógico; indisciplina, essas coisas, tudo é a gestão, a direção, que cuida. (Renata, ênfases na fala)

Entre um extremo e o outro se localizam num contínuo as demais entrevistadas (e entrevistados) cujas falas incluíam em diferentes graus os elementos do modelo de docência baseado no cuidado, isto é, na atenção individualizada ao desenvolvimento integral da criança, embora não lancem mão de referências à maternidade. Celina, por exemplo, a professora mais jovem que entrevistamos (23 anos), assim se expressou:

Eu procuro dar a atenção que eles precisam, dar o carinho, porque, às vezes, eles sentem muita falta disso. [...] tem alguns que a gente percebe que são bem carentes de atenção, de carinho. E às vezes essa é única atenção que eles têm, aqui com a gente. [...] Quando estamos fazendo alguma atividade que eles têm mais dificuldade, eu pego a cadeira, eu sento junto com ele, vou explicando, vou conversando. Aí, às vezes, a gente entra em questões particulares do aluno, também, que ele acaba contando, se abrindo. (Celina, ênfase nossa)

A frase grifada traz praticamente os mesmos termos da professora citada por Pereira (1969), mencionando que os alunos sentem falta de carinho e atenção. De forma semelhante, Marlucy falou do afeto pelo avesso, culpando-se por não o oferecer às crianças como julgava adequado. Mesmo não conhecendo Celina, Marlucy utilizou argumentos muito próximos aos dela, revelando o quanto eles fazem parte de uma cultura escolar em pleno vigor:

Não é que eu me relaciono mal com essas crianças, mas eu tenho dificuldade de dar afeto; então, eu fico mais, assim, na parte da aprendizagem; o afeto mesmo eu crio um bloqueio, sabe? [...] E acho que tem que ter uma coisa que eu não tenho, que é imparcialidade, conseguir ser afetuoso com qualquer aluno independente do comportamento do aluno. Porque, de verdade, essas coisas que a gente vê na Internet: Ai, que, às vezes, o seu aluno, o único lugar que ele tem para ser ouvido, para ter a atenção, é a escola. É verdade. Quem está lá sabe: tem criança que a impressão que dá, é que realmente não tem, não tem isso em casa. E não conseguir dar para alguns alunos, aí me chateia. Eu acho que o professor ideal teria que ter essa inteligência emocional para conseguir suprir essa parte do afeto também. (Marlucy, grifos nossos)

Assim, não estavam presentes na maioria das falas referências explícitas à maternidade, mas havia elementos culturalmente associados à feminilidade, que foram abordados de forma coerente com as grandes mudanças nos padrões de relações de gênero ocorridas na sociedade brasileira desde a pesquisa de Pereira (1969). Comparados aos depoimentos mais antigos, se destacam nas entrevistas atuais elementos ligados aos conhecimentos pedagógicos específicos, que podemos relacionar a um discurso de profissionalização da docência, corrente no campo educacional brasileiro pelo menos desde os anos 1980 (SCHERER; DAL`IGNA, 2017). Porém, se as professoras que entrevistamos não falavam em instinto maternal e dons naturais, se muitas não faziam apelos explícitos à “segunda mãe”, elas mencionavam a necessidade de dar afeto e atenção, a “inteligência emocional”, o desenvolvimento dos alunos para além dos aspectos cognitivos. E mesmo Renata e Cintia, que se posicionaram contra a associação entre professora e mãe, revelaram nas práticas observadas atenção a aspectos extra cognitivos dos alunos, os quais elas conheciam detalhadamente, além de trocas de afeto sistemáticas com eles e gastos próprios com materiais pedagógicos e até mesmo com lembrancinhas para as crianças. Ouçamos o que disse Renata:

Sempre tem as coisas que a gente tira do bolso para fazer na aula. Fora os agrados, que a gente acaba querendo fazer para eles [alunos]. Se você quiser fazer, você tem que dar. Que nem Páscoa, você quer dar alguma coisinha, você tira do seu bolso; Dia das Crianças, você quer dar alguma coisinha, você acaba tirando do bolso. (Renata)

Assim, para além da menção explícita à maternidade, outros elementos do modelo de professora dedicada estavam presentes de forma constante nas falas e nas práticas descritas e observadas nesta pesquisa. A dimensão gratificante do trabalho foi encontrada entre todas as entrevistadas - e também os entrevistados. E sempre levava a uma valorização das formas de compensação não monetária. As professoras (e os professores) disseram que adoravam dar aula, que era um trabalho em que viam resultados, em que podiam fazer a diferença e olhar para o futuro, um trabalho encantador, em que eram felizes.

Vejamos outros aspectos da chamada feminização do trabalho.

Misturas:
“Sempre tem as coisas que a gente tira do bolso”

O fato de que a professora leva trabalho para casa é quase um pressuposto, reconhecido no senso comum e incorporado na definição da jornada de trabalho, a partir de reivindicações da categoria. Atualmente no estado de São Paulo, a jornada semanal de 30 horas inclui 10 aulas de 50 minutos (cerca de 8 horas) de trabalho pedagógico a serem cumpridas em qualquer local, além de três aulas a serem cumpridas na escola.

Todas as nossas entrevistadas reconheceram trabalhar em casa, embora o tempo declarado varie de três a oito horas por semana. Além de preparar aulas e corrigir exercícios e provas, também eram parte indispensável do trabalho das professoras procurar materiais, novidades e informações, pesquisar conteúdos e fazer cursos, atividades exercidas nos seus horários de lazer, nos fins de semana e nas férias.

É preciso destacar que, para além da tradição, as novas obrigações introduzidas pela gestão empresarial nas escolas aumentaram esse tempo de trabalho em casa e diversificaram as tarefas, seja pelo aumento das exigências burocráticas, com um grande número de planejamentos, planilhas e relatórios a preencher e entregar; seja pela obrigatoriedade de fazer cursos, como o que é exigido de quem foi aprovado no concurso público.

Esse curso inicial eu estou fazendo, é um ano de curso. São 360 horas, fora do nosso horário de trabalho. É on line. [E nesse tempo, você não tem remuneração?] Não, não tem nada. É obrigatório, eles falam. (Renata)

O programa EMAI também pressupõe a participação considerada voluntária das professoras em reuniões semanais de formação nas escolas, que são chamadas de grupo colaborativo e não estão incluídas nas horas (aulas) de trabalho pedagógico pagas pelo estado.

O material, ele exige muito estudo. O EMAI trabalha com um grupo colaborativo, onde a gente, os professores que querem participar desse grupo colaborativo, a gente vai mais cedo para a escola, senta junto e estuda. [...] O livro do professor, ele não tem resposta, ele tem um monte de orientações; se você pega o livro do aluno e aplica, simplesmente, não dá certo. Então, você tem que estudar (Cecilia).

Na prática, os tempos de lazer e de trabalho das professoras historicamente vêm sendo superpostos e misturados e as novas formas de gestão se valem da tradição feminina da categoria para avançar em direção à disponibilidade total das trabalhadoras. O caso da professora Zuleica é emblemático, não apenas no que diz respeito à disponibilidade do tempo, mas também quanto à polivalência e à precariedade. Ela descreveu a si mesma como “multiuso”, referindo-se a sua tripla jornada de trabalho escolar, pois chegava diariamente à escola onde foi feita a entrevista às 7 horas da manhã e ficava até 11:45 “na disposição”, isto é, a postos para substituir alguma professora que faltasse. Às 12:30h entrava em sala de aula em outra escola, na qual tinha uma classe, e à noite voltava à primeira escola, para substituir professores do ensino fundamental 2.

Eu venho na tentativa, porque é mais fácil, né? Nem sempre dá para ligar para saber; então, eu prefiro vir. Trago algumas atividades, e se tiver alguém que falte, estou eu pronta, porque eu gosto de preparar a aula também, qualquer série que eu entro, eu acho que a gente tá aqui para dar o nosso melhor. Por mais bagagem que tenhamos, ainda estamos aprendendo. Porém, por exemplo, se faltou professor de Inglês, é lógico que eu não vou dar Inglês, porque eu não tenho domínio da aula, mas eu procuro dar algo que se aproxime e que possa... modéstia à parte falando, sempre fui elogiada por minhas aulas. (Zuleica)

Se nenhum colega faltasse, “é um dia dispensado”: Zuleica ficava à disposição e não recebia nada. Trata-se de precariedade, polivalência e disponibilidade total que não foram criadas pela gestão empresarial da rede escolar, mas são inteiramente funcionais a ela e sobrevivem fortalecidas ao lado da modernidade propalada e do aparato técnico mobilizado.

Além do tempo de trabalho, a disponibilidade implicava no uso de equipamentos próprios e em gastos materiais para as professoras, gastos que não são contabilizados, mas são indispensáveis para o funcionamento de programas oficiais como o Ler e Escrever e o EMAI. Estes aportes estão na prática pressupostos nos planos de gestão que, também nesse caso, se valem de uma tradição preexistente.

Já trouxe E.V.A., cartolina, papel cartão, tintas.
Às vezes, tem na escola, mas quando não tem, eu acabo trazendo, do meu dinheiro. (Celina)

O próprio EMAI, ele fala:
Você tem que dar lição de casa. Eu dou lição de casa para os meus alunos. Quem faz? Sou eu. Quem imprime? Sou eu, eu compro a folha, eu compro tinta. (Cecilia)

Outras vezes, as professoras, usando seu tempo livre e suas relações pessoais, arrumavam maneiras de conseguir materiais que eram indispensáveis ao desenvolvimento das propostas contidas nos programas curriculares da rede, mas não eram fornecidos:

A gente tem um projeto do jornal no livro [do programa Ler e Escrever]. Só que o governo não manda o jornal para os alunos, a gente que tem que ir atrás do jornal. E jornal é caro, a gente sabe. E tem que ter jornais completos. [...] Olha, eu vou arrecadando aí, eu falo para a minha mãe: “Mãe, tem jornal, guarda”. A minha irmã, que trabalha em imobiliária, o patrão dela lê muito jornal; então, ela traz bastante; e aí eu vou guardando, vou juntando, e daí eu faço o projeto com eles. (Renata)

Eu peguei um 1º ano em 2015, e tinha [no caderno do EMAI] jogos com tampinha, aí eu ficava o final de semana inteiro recolhendo tampinha. Eu não tenho um saco, eu tenho uma caixa enorme de tampinhas. A gente sempre acaba pensando: Ai, vou dar um jeito. (Manoela)

Mesmo a informatização, um dos eixos da eficiência pretendida pela secretaria de educação, depende do trabalho em casa e dos recursos pessoais das professoras, apesar dos sistemas e recursos considerados de última geração:

Esse fim de semana, eu tenho que lançar nota, o que eles chamam de STED, Sistema Escolar Digital, eu tenho que lançar as notas. [...] E na escola é muito difícil fazer isso, é muito pouco computador, muito professor. (Marlucy)

Novas antigas condições de trabalho: “dobrar período”, “juntar classes”


Quanto às condições de ensino, são gerais entre as entrevistadas as queixas pela falta de recursos como computador, sala de informática, retroprojetor, sala de vídeo, biblioteca, jogos e materiais didáticos; além do grande número de alunos em cada turma e das dificuldades em efetivamente incluir os alunos com necessidades especiais. Se essa precariedade das condições de trabalho não é novidade, cabe destacar o quanto ainda são presentes os argumentos em favor de aceita-las para o bem das crianças, como nos fala a professora Zuleica:

O ano passado, por exemplo, a professora que ia dar aula na sala, ela tinha muito problema de saúde e estava em processo de aposentadoria, e os alunos ficavam muito tempo sem aula; e eu fiquei com as duas turmas, que eram quase 50 alunos, ou ultrapassava, né?. Tem fotos aí. Os colegas [...] queriam me matar, porque eles passavam e viam a sala lotada: “Você não pode fazer isso, porque eles que tem que mandar alguém”. Mas esquece que aquela criança que estava ali, vários vinham de ônibus, e os pais não tinham como deixar em casa, já contavam, o irmão estava no 6º Ano, ou no 7º, ou no 8º, e ele tinha que ficar aqui, coitadinho, até às 11h, 11h30, que era o período dele. E eu na minha sala, com os meus alunos. Então, eu olhei assim, e falei: Não, se eu pegar um, porque não pegar todos? (Zuleica)

Pressionadas para garantir as metas com classes lotadas, em escolas mal equipadas, sem material e sem assistentes, as professoras davam jeitinhos e avançavam sobre seus recursos e seu tempo livre, desdobrando-se no atendimento aos alunos, o que reproduz e atualiza o modelo de professora dedicada e altruísta no âmbito de uma gestão que fala em eficiência, resultados e profissionalismo, e que responsabiliza as professoras pelo desempenho dos alunos sem qualquer consideração sobre suas condições de trabalho. De sua parte, as professoras ressignificavam o trabalho flexível e a precarização numa gramática baseada em dedicação e cuidado.

Outra característica do trabalho flexível presente há décadas na categoria docente são os vínculos de trabalho precários. Há indicações de que trabalhar durante anos sem ser efetiva no cargo já era parte da carreira das professoras primárias de escolas estaduais de São Paulo desde os anos 1930 (MOURA, 2013). Dados oferecidos por Pereira (1969) apontam que 13,4% dos regentes de classe em atividade nesse segmento de ensino não eram efetivos em 1960, proporção que cresceu muito no estado de São Paulo (como no conjunto do país) durante a ditadura militar, quando a política de expansão de matrículas no ensino básico deu-se às custas do arrocho salarial e da flexibilização das formas de contratação de professores, gerando um contingente muito maior de contratados sem concurso, em caráter excepcional e em caráter temporário (PIOVEZAN; DAL RI, 2016; MOURA, 2013). Já em 2017, 25,5% do total de professoras estaduais de ensino fundamental 1 eram contratadas em caráter temporário, segundo o censo escolar de 2017 (MEC/INEP, 2018).

Entre as professoras que entrevistamos, Zuleica e Claudia trabalhavam na rede estadual há 28 e 27 anos, respectivamente, sem nunca terem se efetivado, e tendo passado por diversas formas de contrato temporário antes de adquirir estabilidade. A grande maioria das entrevistadas que assumiram cargos por meio de concurso público trabalhou anteriormente com contratos precários, durante períodos que variaram de 3 a 10 anos; e somente Manuela e Cecilia já começaram como efetivas, após aprovação em concurso.

Outra dimensão antiga da precarização é que os baixos salários empurram as professoras a procurar uma segunda fonte de renda. Entre as professoras primárias das escolas estaduais paulistas pesquisadas por Luís Pereira, 26% tinham outra ocupação remunerada, a grande maioria delas como professoras particulares (PEREIRA, 1969). Hoje, uma das formas mais comuns de ampliação da renda é “dobrar” ou “acumular”, isto é, trabalhar em duas redes públicas de ensino, em turnos diferentes, deslocando-se diariamente de uma escola para outra. Esse duplo vínculo com o serviço público foi permitido para professores em nível nacional a partir de 1998, mas já estava regulamentado em São Paulo desde o ano anterior e dá origem a jornadas de trabalho de até 60 horas semanais. (PIOVEZAN; DAL RI, 2016)

Entre as 12 entrevistadas, somente três não tinham outro trabalho remunerado. Cecilia dava aulas em uma faculdade particular à noite; Isac e Zuleica (cuja situação foi detalhada acima) além de suas classes, trabalhavam como eventuais na própria rede estadual, substituindo faltas de colegas em diferentes escolas, uma fonte de renda instável, já que a remuneração é por aula dada. E finalmente Rafaela, Manuela, Valter, Marlucy, Claudia e Celina tinham outros cargos em escolas de redes municipais da capital ou de algum município da região metropolitana. Isso significava que essas professoras se responsabilizavam simultaneamente por 60 alunos ou mais, dependendo do tamanho das turmas.

Apesar dessa sobrecarga, muitas professoras declararam evitar ao máximo as faltas, como explicou Ester:

Se eu faltar, o quê que os 26 alunos pequenos vão ficar fazendo na praça? É muita responsabilidade da escola. Então, a gente procura não faltar, é só falta programada mesmo; ou, se está doente, já tira uma licença, e aí já tem um eventual para cobrir todas as aulas. (Ester)

Com jornadas de trabalho tão extensas, ficam reduzidos os tempos das professoras dedicados ao estudo, à formação e ao trabalho coletivo, o que aumenta sua dependência dos materiais apostilados e da ação das coordenadoras, tornando cada vez mais benvindas as soluções definidas externamente, aquilo que “te dão pronto, você só tem que aplicar na sala de aula”, nas palavras da professora Renata.

Cabe ainda destacar a histórica baixa adesão das professoras do fundamental 1 às lutas sindicais e às greves da categoria, em geral utilizando como argumento sua preocupação com as crianças.

Geralmente, eu não entro em greve, porque eu sempre penso no lado dos meus alunos, os pequenos [...]; eu não entro pensando nos alunos, porque se a gente fosse ver tudo que está errado, teria que entrar, não é? (Ester)

Parece bastante útil para a gestão empresarial da escola essa tradição de trabalhar em condições precárias, com contratos temporários, não faltar e não participar dos movimentos coletivos, que, no caso das professoras do ciclo um, está associada a um modelo de feminilidade.

A escolha da profissão: “eu amo isso aqui”


Com apenas uma exceção, as narrativas da escolha da profissão seguem dois roteiros básicos: a escolha vocacionada que podemos chamar de clássica, em que a entrevistada declara que desde criança sonhou ser professora; e a descoberta da “paixão por ensinar” ao longo do curso de pedagogia ou no início da carreira, depois de uma escolha motivada por conveniências.

No primeiro caso, se encontram Amanda, Renata, Celina, Ester, Zuleica e Manuela, professoras com idades e origens socioeconômicas muito diversificadas.

Amanda, coordenadora pedagógica de 51 anos, assim descreveu sua escolha:

Ah, desde menininha, brincando de boneca e já dando bronca e ensinando as bonecas. A minha tia era da área, trabalhava com Educação Especial, inclusiva. E ela me envolveu bastante nesse assunto; eu acho que foi mais por causa dela mesmo. (Amanda)

A narrativa se parece com a de Renata, de 26 anos:

Eu sempre gostava de ensinar, sabe?, quando eu era pequena. Então, eu não sei também se por ver a minha mãe [professora], eu achava muito bonito. [...] Eu acho que é que nem a minha mãe fala, é vocação. (Renata)

Já as histórias contadas por Valter, Isac, Claudia, Marlucy e Cecilia falam de escolhas motivadas por necessidades circunstanciais e uma descoberta posterior do amor à profissão. Valter (50 anos) foi bancário e dava aulas de história em escolas estaduais, com contratos temporários, ainda como estudante do curso de economia. Ao tentar outro curso, não podia se “dar o luxo de escolher uma carreira concorrida”, então escolheu Pedagogia e disse que acabou “acertando inconscientemente”. Isac (35 anos) também teve outras ocupações antes de dar aulas:

eu era cozinheiro, com 18 anos, não consegui entrar na Faculdade de Matemática, que eu queria [...] Aí eu entrei no mercado... uma rede de supermercado americano. Eu tinha que trabalhar [...] Nesses anos eu vinha prestando ENEM, tinha cinco opções de escolher, e eu escolhia sempre quatro Matemática, e uma da área de Educação. Em 2008 eu prestei, tive uma boa nota. Eu queria Matemática, a última opção eu coloquei como Pedagogia. E ganhei a bolsa, 100%, de Pedagogia. Matemática não deu para mim fazer. [...] Mas quando eu fiz Pedagogia, eu tive, assim, uma transformação. Porque o Ciclo I [...] é um trabalho muito puxado, mas para quem gosta de trabalhar, se torna muito agradável; e eu me encantei pelo Ciclo I. [...] Porque é um trabalho que, para quem gosta, é um trabalho encantador. (Isac)

Outras circunstâncias levaram Claudia (51 anos) a cursar magistério:

Eu não queria ser professora, eu queria ser aeromoça. Mas nós somos em oito irmãos e a minha mãe não tinha condições de pagar um curso de inglês para mim, ou uma outra coisa. E também, o Magistério era o único que era durante o dia, não tinha mais nada. E o meu pai não deixava eu estudar à noite, porque como eu morava em sítio, era longe do centro da cidade, não tinha luz, não tinha ônibus, não tinha nada, o meu pai não deixou. E eu queria fazer faculdade, o meu sonho era fazer faculdade. Então, eu peguei e pensei: eu vou fazer o Magistério, porque é um meio de eu passar pelo Ensino Médio, para mim fazer a faculdade. [...] Aí eu comecei a dar aula de eventual, durante o tempo que eu estudava; e quando eu me formei, eu não fui procurar, não me inscrevi em lugar nenhum, em Diretoria nenhuma, nem na própria escola; mas como a diretora já me conhecia, e sobrou uma sala lá de 1º Ano, ela foi em casa: “Ai, Claudia, tem uma sala assim”. Eu falei: “Eu vou pegar”. E aí, no mesmo ano, eu casei. E o meu marido falou: “Ou você dá aula ou fica em casa, empresa você não vai trabalhar”. Tinha isso também. Eu falei: “Ai, eu não acredito”. E eu já tinha feito... eu me inscrevi, na época, na Fundação Bradesco, eu tinha passado, tudo, mas na época não pegavam mulheres casadas. [...] Ai, fiquei bem triste, porque eu queria ir para lá; porque eu falei: “Bom, já que eu não vou ser aeromoça, eu vou ser bancária, eu não vou dar aula em hipótese alguma”. Mas aí, né?, aconteceu. Aí eu casei, já estava dando aula, continuei dando aula. [...] Mas daí eu comecei a trabalhar e fui gostando. E hoje eu falo para você, graças... eu glorifico ao Senhor, eu amo isso aqui, eu amo isso aqui. (Claudia)

A exceção a esses dois roteiros foi representada por Cintia (38 anos), única a relatar uma escolha influenciada pela escola em que estudou e o método pedagógico lá empregado:

Eu estudei, eu fui alfabetizada na escola Montessori e é uma escola muito diferente do padrão, ele sai dessa coisa do século XVIII e XIX que a estrutura ainda, a estrutura brasileira escolar é ainda assim. Então quando você entra numa escola Montessori, eu pelo menos ainda tenho essa impressão, o ar é diferente, o ambiente é diferente, o acolhimento é diferente, é um ambiente mais tranquilo, as crianças são mais tranquilas, tem uma filosofia de vida mesmo, então você se sente útil para si mesmo e para os outros. (Cintia)

Resumindo, encontramos principalmente escolhas profissionais muito próximas à tradição da mulher vocacionada, largamente descrita na literatura sobre as professoras (LOURO, 1987; BRUSCHINI; AMADO, 1988) ou então um encontro posterior com o encantamento e a gratificação do trabalho, características também associadas a uma feminilidade, porque baseadas em sentimentos e na recompensa não financeira.

Exigências emocionais:
“É muita culpa mesmo que a gente sente”

Para a maioria das entrevistadas, este tipo de relação com a carreira se desdobrava em práticas plenas de dedicação às crianças, um trabalho marcado por preocupações, culpa e solidão, e por muitas ações que vão além do estritamente obrigatório ou do tempo de trabalho remunerado, como já detalhado nos itens anteriores. Manoela nos falou de seus esforços para atender às necessidades individuais de seus alunos:

O ano passado eu tinha um aluno que tinha muita dificuldade na coordenação motora dele, ele não cortava com a tesoura. Mas ele saiu no final do ano cortando, porque eu vi na Internet, aos meus sábados, uma atividade que é um disco assim [gesto], que cortei, coloquei as letrinhas. [...] eu até forneci esse material para a professora desse ano, para ele continuar com essa habilidade, para desenvolver o movimento de pinça. Então, eu fiz isso, levei geleca para ele, levei a massinha para ele trabalhar. (Manoela)

Respondendo sobre seu ideal de docência, Amanda enfatizou a importância da empatia, dos sentimentos envolvidos no trabalho de ensinar:

Então, eu acho que o professor ideal é o professor que consegue enxergar isso, é o professor que aceita o desafio, e que consegue perceber que aquela atitude estranha que o aluno tem, aquela indisciplina, aquela rejeição, aquele medo que o aluno está mostrando, ele só está gritando “socorro”, está pedindo socorro para você. Então, esse é o professor ideal, aquele professor que consegue enxergar isso. (Amanda)

E Marlucy falou explicitamente de suas frustrações e da necessidade de apoio psicológico em face das exigências emocionais da docência, vividas de forma solitária:

Agora mesmo, eu estou com uma sala de alfabetização e tenho um aluno que não alfabetiza, não anda para frente. Eu sento ele do meu lado, faço mil coisas, e eu saio frustrada, eu não consigo mesmo ajudar. E aí a minha terapeuta fala: “Ele é um de 25. E os outros 24?” Não é? “Tem dez alfabéticos, tem outros que já estão ali quase, no alfabético, e você não vê o quanto você fez por essas crianças, você só se preocupa com essa daqui?” Então, é muita coisa, sabe?, que você tem que... e sozinha; geralmente, sozinha. (Marlucy)

Não é comum, em especial no âmbito da sociologia da educação, que se tenha atenção para o grau de exigência emocional envolvido no trabalho pedagógico. O estudo de Raewyn Connell (1985) junto a professores do ensino médio australiano é uma exceção, destacando que o ensino pode ser considerado um trabalho leve do ponto de vista físico, mas, em termos de pressão emocional, é um dos mais exigentes. A autora descreve a sala de aula como um ambiente absorvente e mesmo sufocante, pela quantidade de fluxos emocionais e relacionamentos ali envolvidos. Para ela, não se trata de uma escolha do professor ou professora entre envolver-se ou não, mas de uma dimensão inescapável do trabalho pedagógico: “essas relações são seu trabalho e administrá-las constitui grande parte de seu processo de trabalho” (CONNEL, 1985, p. 117, grifo da autora).

Esse elemento central do trabalho das professoras é historicamente desconsiderado, permanecendo invisível, como parte das competências a serem individualmente desenvolvidas por cada docente (AUTOR). E muitas vezes, no cotidiano escolar, essa capacidade emocional é atribuída a uma feminilidade, associada à maternidade e percebida como uma característica inerente às mulheres, como fizeram parte das entrevistadas nesta pesquisa. Nos estudos acadêmicos, o trabalho emocional em geral só aparece quando associado à fadiga e ao adoecimento, como nos estudos sobre burnout (CODO, 1999).

Como atestam as muitas falas já citadas mencionando o envolvimento emocional das professoras e suas consequências tanto de desgaste quanto de gratificação, essas dimensões emocionais não desapareceram nas escolas estaduais paulistas, nem com a expansão a partir dos anos 1980, de discursos baseados em uma ideia de profissionalismo (DAL’IGNA; SCHERER, 2017), nem com a posterior implantação de uma gestão baseada em metas, avaliação padronizada e recompensas financeiras. Na verdade, essas dimensões se tornaram ainda mais invisíveis, sem nome, uma vez que não podem ser quantificadas e medidas e que o discurso do profissionalismo dificulta o recurso às metáforas maternais. Tudo indica que a gestão empresarial da escola tornou o trabalho das professoras de lidar com essas emoções ainda mais solitário, pois à invisibilidade soma-se o incentivo ao individualismo e à competição. No caso do magistério, essa pode ser uma das dimensões do que a socióloga francesa Danièle Linhart denomina como “precarização subjetiva”, no âmbito das novas formas de controle do trabalho, um sentimento de não ter ajuda nos problemas de trabalho, nem da parte dos superiores hierárquicos, nem dos esgarçados coletivos de trabalho, um sentimento de isolamento e abandono (LINHART, 2009, p. 79).

Mais ainda, essas dimensões emocionais parecem servir plenamente ao controle do trabalho docente, seja por garantir envolvimento, dedicação e trabalho extra, seja por abrir caminho para a manipulação da culpa – ambas formas eficientes de garantir o autocontrole das trabalhadoras (HARGREAVES, 1994). Garcia e Anadon (2009) apontaram que essas formas de controle do trabalho docente buscam “gerenciar as professoras de dentro para fora” (p. 79) ao tomarem como seu objeto a subjetividade das educadoras e as emoções no ensino. Trata-se do estímulo a uma “moral de autorresponsabilização e culpa por parte das professoras, que, aliada à deterioração dos salários e das condições de trabalho, vem contribuindo para a intensificação e autointensificação do trabalho docente e para a geração de frustrações e desencantos” (2009, p. 65).

O ponto que desejo afirmar é, portanto, que na rede estadual de São Paulo as formas empresariais de controle e gestão do trabalho das professoras se combinaram com características previamente existentes que são associadas a um modelo feminino de trabalho docente. Estes modelos aparecem superpostos e misturados, por vezes de forma linear, noutras contraditória.

Esse amálgama se tornou palpável, materializado, em um caderno que a professora Zuleica mostrou às pesquisadoras, logo após a entrevista, dizendo que o havia preparado para o ano letivo que se iniciava (anotações de campo, 14/02/2017). Nas primeiras páginas havia textos sobre a vida da professora, sobre os valores que ela achava importantes, duas fotos dela, o desenho de uma borboleta - que Zuleica disse ter feito porque acreditava que tudo poderia se transformar ao longo da vida -, e uma colagem do salmo 91, da Bíblia. Até esse ponto, o caderno lembrava um diário, forma culturalmente correlacionada a tradições femininas de escrita. Mas depois dessa parte, Zuleica colou a lista com os alunos da turma e na sequência acrescentou uma lista escrita à mão das habilidades que seriam cobradas nas avaliações externas e que deveriam pautar o planejamento das aulas. É como se, viradas as páginas “femininas” do caderno, adentrássemos o modelo de trabalhadora da gestão empresarial, eficiente e focada em resultados mensuráveis.

A mesma combinação de sentimento com gestão racionalizada, de interiorização com pressão externa apareceu na fala de Marlucy:

É muita culpa mesmo que a gente sente. E a minha terapeuta me falando para não... não ficar trazendo isso, não ficar pegando coisa para mim que não é minha [...] Mas a pressão vem toda em cima da gente, a gente sabe. O Estado fez um convênio com uma consultoria, eu não sei se vocês já ouviram falar do MMR? É um projeto para melhoria de resultados da rede estadual. E aí essa consultoria pediu para a escola instituir uma Comissão, para discutir e chegar na causa-raiz dos problemas, dos resultados da escola. [...] Aí você pode imaginar qual que foi a conclusão, né? Professor não tem capacitação, professor não faz atividades diferenciadas; sempre caía no professor, sempre. Então, assim, é muita pressão em cima da gente, por mais que a gente trabalhe isso lá dentro [coloca a mão no peito], é difícil. (Marlucy)

Garcia e Anadon (2009) destacaram esta mesma dinâmica na rede municipal de educação que estudaram, com a retórica oficial utilizando estrategicamente as práticas de cuidado e os sentimentos de culpa das professoras para responsabilizá-las pelos resultados e garantir a intensificação do trabalho.

Na contramão:
“o cuidado de ir lá e saber quem é esse aluno”

Contraditoriamente, esse mesmo compromisso, esse mesmo envolvimento com cada criança, que abrem as portas para a precarização e a intensificação e que historicamente serviram à superexploração das professoras, são fontes de crítica e insatisfação com o sistema padronizado e controlado de gestão. Ao enfatizar sua responsabilidade com as crianças e não com números, ao lembrar a dimensão individual do ensino, ao retomar a ideia de uma educação que não se restringe à transmissão de conteúdos, parte das professoras articulam críticas à gestão em vigor nas escolas:

Se você atinge a meta, você ganha bônus, a escola recebe o bônus; se não atinge a meta, não recebe. E tem o fluxo também, se tem algum problema de evasão, não recebe o bônus. Então, é um desespero no Estado, para ir atrás dos alunos que estão faltando. E não é preocupação com o aluno, é por causa do bônus. (Marlucy, grifo nosso)

Às vezes, chegam alguns projetos prontos, da Diretoria de Ensino, que eles falam: “Esse projeto é para ajudar os alunos não alfabéticos.” Mas, às vezes, é uma coisa que não faz muito sentido para o meu aluno. E aí depois vem a outra cobrança, que é a cobrança de colocar em prática aquilo que eles mandaram pronto. [...] Porque aquela criança, para a Diretoria de Ensino, ela é só um número, ela é só uma corzinha lá que está dizendo que ela não é alfabética ainda. A Diretoria de Ensino não tem o cuidado de ir lá e saber quem é esse aluno, que dificuldade que ele tem, quem é a família desse aluno; então, esse cuidado não tem. (Cecília, grifo nosso)

Mesmo quando não formulam críticas explícitas, professoras diariamente contestavam, em suas práticas, o foco em resultados quantificáveis, ao valorizar as relações afetivas com os alunos e envolver-se com seu desenvolvimento integral, como em tantas situações citadas acima. Enfim, se historicamente a feminilidade atribuída às professoras foi associada com o não profissionalismo, e se ela tem efetivamente tensões e contradições, tais como ser um canal de superexploração, essa feminilidade envolve também a aversão à padronização do ensino, à racionalidade concorrencial, à simplificação decorrente da medição, à despersonalização das relações.

Linhart (2009) adverte sobre a dificuldade de apreender no estudo sociológico as formas de resistência no trabalho, em especial se se procura ir além dos movimentos coletivos como greves e paralisações e das ações individuais mais evidentes como o absenteísmo e a sabotagem. A autora sugere que as análises se debrucem sobre a distância “entre o trabalho prescrito e o trabalho real” (2009, p. 71), que pode ser interpretada como um espaço de enfrentamento e disputa. Em particular no âmbito das novas formas de regulação do trabalho, as resistências seriam mais individuais e ainda mais invisíveis, com o gerencialismo avançando sobre os conhecimentos práticos e as subjetividades dos trabalhadores e restringindo esse espaço de resistência.

No caso das professoras dos anos iniciais na rede estadual de São Paulo, a gestão empresarial tem conseguido padronizar e controlar com eficácia a parte do seu trabalho que envolve a transmissão de conhecimentos. O trabalho prescrito a elas está focado em conteúdos e habilidades cognitivos específicos que serão cobrados nos testes padronizados. Mas muitas insistem - à custa de seu tempo livre, seu sono e até de seu equilíbrio emocional - em cuidar de seus alunos, em atendê-los em vários outros aspectos e em percebê-los como únicos, com ritmos e necessidades que não seguem padrões. Insistem em perceber a qualidade de seu trabalho com dimensões não quantificáveis. Por outro lado, a carreira prescrita a elas é baseada em metas, resultados mensuráveis e premiação, mas elas insistem em colocar a recompensa financeira em segundo plano, em gostar do seu trabalho e ver no ensino uma forma de modificar a realidade que as cerca. Cabe lembrar que esse conjunto de caraterísticas faz parte de um ideal pedagógico gestado e reproduzido no âmbito escolar – seja nos cursos de formação, seja na cultura escolar – mesmo quando ele é referido a partir da maternidade e da domesticidade.

O pensamento feminista vem destacando que um dos movimentos de expansão do capital na contemporaneidade é a mercantilização de áreas tidas como femininas e até então pouco tocadas por suas regras e sua lógica, como o cuidado (MORINI, 2008). As práticas de atenção integral e individualizada das professoras podem ser compreendidas neste contexto como resistência à lógica de mercado e reafirmação de valores tidos como femininos que têm marcado a docência para crianças durante décadas. Muitas vezes são valores contraditórios, atravessados por conservadorismos de gênero e de classe, mas ainda assim são parte de uma recusa, frequentemente individual, difusa e nem sempre evidente como resistência para a própria professora. Enfim, no atual contexto das escolas estaduais de São Paulo, cuidar é marcar uma distância entre o trabalho docente prescrito e o trabalho real. É uma prática de autonomia, uma forma das professoras não deixarem os mecanismos de gestão empresarial controlarem inteiramente sua subjetividade, na medida em que trabalham por amor, encontram realização em sua atividade, têm esperança. Uma forma de garantir que o ar da escola ainda seja respirável, para elas e para as crianças.

Professoras da rede municipal de Guarulhos (SP), ouvidas por Penna (2017), também consideravam que seu trabalho era fruto de um ideal e lhes dava chance de “intervir na sociedade positivamente de alguma forma” (PENNA, 2017, p. 63). Elas comentaram explicitamente sobre o espaço de que dispunham para organizar seu trabalho e declararam gostar da liberdade que ainda tinham em sala de aula. “Você é livre para falar, você é um pensador”, diz uma delas (PENNA, 2017, p. 64). A autora interpreta que esse espaço de liberdade se refere a ir além do ensino de conteúdos e trabalhar a formação moral dos alunos – o que nós interpretamos como uma prática de cuidado.

Enfim, na autonomia da antiga professora vocacionada, que fechava a porta da sala de aula e tomava suas decisões, havia também uma afirmação da dimensão intelectual, ativa e relacional do trabalho docente. Quando as professoras de hoje reafirmam essa tradição, não estarão a nos dizer de uma “saudade” desse poder, de uma preservação desse interstício de liberdade e trabalho significativo?

Em 1999, a pesquisa realizada por um de nós concluía afirmando a necessidade de tornar explícita a prática do cuidado nas escolas como parte intrínseca do trabalho docente. E que pudesse haver uma reflexão crítica coletiva a esse respeito, para que as relações de cuidado fossem deslocadas de sua referência à maternidade e não fossem fonte de opressão ou desqualificação para quem cuida. Mas já se previa também que essa utopia se tornava cada dia mais distante, em razão da “presente ênfase das políticas educacionais na técnica, na eficiência e competitividade, a serem alcançadas com economia de recursos” (AUTOR). A avalanche de políticas empresariais de gestão do trabalho que se seguiu nas escolas estaduais de São Paulo só confirmou esse prognóstico, deslegitimando ainda mais as práticas de cuidado das professoras. Nesse quadro, a reafirmação da dedicação, do trabalho idealista e da atenção integral aos alunos ganha um sentido de resistência que certamente não tinha para as professoras ouvidas por Luís Pereira (1969). E podemos perguntar se as professoras hoje estariam valorizando ainda mais as práticas de cuidado por elas representarem um campo de autonomia.

Nesse contexto, parece razoável supor que fazem parte de um avanço do gerencialismo sobre essa área de sombra as propostas cada vez mais frequentes de definir competências emocionais a serem desenvolvidas num currículo padrão, mensuradas e avaliadas de maneira centralizada nos sistemas públicos de ensino. Presentes nos setores de recursos humanos de empresas desde meados dos anos 1990, os treinamentos sobre inteligência emocional, assim como testes e avaliações de competências socioemocionais, já foram incorporados ao currículo escolar em vários países e vêm sendo propostos e testados em diferentes sistemas públicos de ensino no Brasil, ou incluídos com diferentes nomenclaturas em documentos como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), sempre sob os auspícios de organizações e institutos ligados a empresas. No estado de São Paulo, ideias semelhantes foram difundidas pelo secretário da Educação do primeiro governo de Geraldo Alckmin (2003-2006), Gabriel Chalita, no formato de uma “pedagogia do amor”, mas sem se materializar numa política sistemática, com quantificação e avaliações padronizadas (NOVAES, 2009). Há, assim, indicações fortes de que a disputa em torno dos currículos baseados em competências socioemocionais (ou, de forma menos direta, na chamada formação integral), que transformam o manejo das emoções em habilidades mensuráveis, será decisiva para manter ou não esse território de alguma liberdade hoje exercida como prática de cuidado pelas professoras.

Enfim, saber como serão as novas formas de articulação coletiva e de resistência nas escolas públicas está no terreno do imponderável, com tantas mudanças no trabalho docente e nas formas de controle, que avançam sobre a subjetividade das professoras, individualizam ainda mais as práticas e responsabilidades e empurram o cuidado, o idealismo e o prazer de ensinar para o campo do inominável, já que não são (ainda) quantificáveis. Mas ousamos dizer que a resistência e a ação coletivas ganharão muito se não deixarem esse território livre para a gestão das práticas de cuidado ou formação integral dos alunos por meio dos currículos de competências socioemocionais; e para os mecanismos de controle da subjetividade das professoras, como os usos da culpa e da solidão. Enfim, talvez novas formas de resistência coletiva possam levar em conta o amor o ensino e as práticas de cuidado já existentes e apoiar-se criticamente nessa tradição feminina reinventada.

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