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DOI: 10.35699/2317-6377.2021.25389
eISSN 2317-6377
Ensino musical e autismo:
relato de uma experiência a partir de uma pesquisa de
doutorado em neurociências
Viviane Louro
https://orcid.org/0000-0002-4637-3203
Universidade Federal de Pernambuco, Departamento de Música
vivianeslouro@gmail.com
SCIENTIFIC ARTICLE
Submitted date: 12 may 2021
Final approval date: 20 jun 2021
Resumo: este artigo relata os resultados musicais e cognitivos alcançados com uma aluna autista de 11 anos, como
parte de uma pesquisa de Doutorado realizada no departamento de Neurologia/Neurociências da UNIFESP de 2013 à
2017. No total foram 40h de aulas, no decorrer de 4 meses (duas vezes semanais com 1he20 min de duração cada).
As atividades empregadas se basearam em propostas pedagógico-musicais lúdicas com enfoque nas propriedades do
som e no emprego do movimento. Os principais embasamentos teóricos foram Pacheco (2009), Mateiro e Ilari (2011),
Fonseca (2010) e Lent (2010). Os resultados apontaram para aquisição de conteúdos musicais baseados nas
propriedades do som, bem como, melhora significativa em algumas habilidades cognitivas e na percepção do
esquema/imagem corporal da aluna. Esse relato pode contribuir para formação de educadores musicais que tenham
em seus contextos pedagógicos alunos com autismo (ou outros diagnósticos) ou para profissionais da área de saúde.
Palavras-chave: Autismo; Educação musical; Neurociências; Psicomotricidade; Inclusão.
TITLE: MUSICAL EDUCATION AND AUTISM: REPORT OF AN EXPERIENCE FROM A PHD RESEARCH IN NEUROSCIENCE
Abstract: This article describes the musical and cognitive results achieved with a student on the Autism spectrum, as
part of a doctoral research (2013-2017) carried out in the Department of Neurology-Neurosciences at UNIFESP. The
student was eleven years old and had 40 hours total of classes, over a period of 4 months. The classes happened twice
a week, and were 80 minutes in length. Class activities included pedagogically based music games with a focus on
sound properties and physical movement. The main theoretical foundations were Pacheco (2009), Mateiro and Ilari
(2011), Fonseca (2010) and Lent (2010). The results pointed the knowledge retention of music content based on the
properties of sound, as well as significant improvement in cognitive skills and self-awareness related to the student’s
body image-scheme. This report can contribute both to the body of knowledge of music educators with students on
the Autism Spectrum, and health professionals.
Keywords: Autism; Musical education; Neuroscience; Psychomotricity; Inclusion.
Per Musi, no. 41, General Topics, e214109, 2021
2
Louro, Viviane. 2021. Ensino musical e Autismo: relato de uma experiência a partir de uma pesquisa de doutorado em neurociências
Per Musi no. 41, General Topics: 1-16. e214109. DOI 10.35699/2317-6377.2021.25389
Ensino musical e Autismo:
relato de uma experiência a partir de uma pesquisa de
doutorado em neurociências
Viviane Louro, Universidade Federal de Pernambuco, vivianeslouro@gmail.com
1. Introdução
Os sintomas apresentados por pessoas com autismo (atualmente nomeado pelo DSM-5 como Transtorno do
Espectro Autista - TEA)
1
(APA 2014), foi relatado pela primeira vez por Bleuler, em 1911, mas sendo associado
ao transtorno básico da esquizofrenia (Kortmann 2013). Somente em 1943 surgiu o termo autismo, quando
o psiquiatra Leo Kanner descreveu o quadro sintomático de 11 crianças que tinham como principal
característica dificuldade de interação social e comunicação. Desde então, o termo autismo passou a ser
utilizado pela comunidade médica, bem como, a ser considerado uma condição separada de outras
patologias. Apesar de muitas pesquisas, os fatores exatos que causam o autismo ainda hoje são
desconhecidos, sabendo-se somente que é de origem multifatorial (Kortmann 2013).
A música sempre teve uma enigmática relação com o autismo, pois não são incomuns a presença de
habilidades musicais surpreendentes nessas pessoas. Só para citar alguns exemplos, temos Derek Pavacini9,
Rex, Lewis-Clack10, e Nicole D' Angelo11 e Evgeny Kissin, todos pianistas famosos com TEA (Louro 2017). Até
hoje os cientistas não conseguiram explicar como e porque alguns autistas com tanta predisposição
musical, mas o fato é que, a música é uma ferramenta amplamente utilizada para o tratamento e
desenvolvimento global de pessoas com TEA, uma vez que "pode romper barreiras de todo tipo, abrir canais
de expressão e comunicação e induzir a modificações significativas na mente e corpo" (Gainza 1998, 62).
Sendo assim, este artigo tem por objetivo promover um recorte da pesquisa de doutorado com o título: A
união da educação musical com a psicomotricidade para o desenvolvimento global de pessoas com
Transtorno do Espectro Autista, realizada no departamento de Neurologia/Neurociências da Escola Paulista
de Medicina da Universidade Federal de São Paulo entre os anos de 2013-2017. O artigo relata os resultados
alcançados no que se refere ao aprendizado musical e desenvolvimento cognitivo de uma pré-adolescente
de 11 anos de idade, com diagnóstico de TEA que participou da pesquisa supracitada.
1
Neste artigo o termo autismo será empregado como sinônimo de Transtorno do Espectro Autista por ser
um termo mais curto e comumente usado pelo senso comum e pela comunidade pedagógica.
3
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2. Autismo, educação musical e neurociências
O Autismo é caracterizado por desordens comportamentais que incluem níveis diferentes de gravidade no
que se refere a comunicação, interação social e o uso de estereotipias
2
(APA 2014). Além desses sintomas
mais conhecidos, pode haver outros associados, tais como, dificuldade no desenvolvimento da Teoria da
Mente
3
, distúrbio do processamento auditivo central
4
, atraso de linguagem, problemas psicomotores
5
ou na
integração sensorial
6
, além de alterações cognitivas (Gattino 2015; Figueiredo 2014; Louro 2017). No Brasil,
a prevalência do TEA é aproximadamente 1% da população, ou seja, cerca de dois milhões de pessoas
(Tibiryçá 2014). O tratamento do TEA geralmente é individualizado e empregado por equipe multidisciplinar,
podendo mesclar abordagens terapêuticas, dietas e intervenções farmacológicas. Quanto antes começar o
tratamento, melhor o prognóstico (Lampreia 2008).
A música é uma das melhores ferramentas terapêuticas utilizadas com pessoas com TEA (Sá 2003; Gold,
Wigram e Elefant 2007; Padilha 2008), mas, a musicoterapia não pode ser confundida com a educação
musical. A música empregada terapeuticamente tem objetivos diferentes do ensino musical, mesmo para
pessoas com autismo ou com outras patologias (Louro 2016), como pontua o Quadro 1.
Quadro 1 Comparação sumarizada entre as áreas de musicoterapia e educação musical (Louro 2017, 33)
Educação musical
Musicoterapia
Campo de atuação
Artes e educação
Saúde
Objetivo
Aprendizagem, ampliação
cultural, performance artística
Reabilitação, profilaxia, qualidade
de vida
Relação profissional
Professor-aluno
Terapeuta-paciente
Duração
Não há previsão determinada para o
término do processo de aprendizado
Sessões com tempo determinado
para alta
Embasamento teórico
Educadores musicais, teóricos da
música e estética musical
Neurofisiologia, psicologia e
teóricos da musicoterapia
O desenvolvimento da educação musical (musicalização) como proposta pedagógica é fundamentada a
partir de estudos sobre a natureza cognitiva da criança. Todos esses educadores propõem o ensino da música
de forma lúdica e a partir do uso funcional do corpo, por compreenderem que a experimentação, a
2
Movimentos ou falas repetitivas.
3
Capacidade cognitiva de perceber e atribuir estados mentais à outra pessoa (Caixeta e Caixeta 2005).
4
Dificuldade neurológica de compreender, de forma adequada, os sons vindos do ambiente (Gattino 2015).
5
Atraso no desenvolvimento motor na primeira infância que pode influenciar outros problemas cognitivos
ou emocionais no decorrer dos anos (Fonseca 2010).
6
Capacidade neurológica de integrar os diversos tipos de estímulos (visuais, auditivos, táteis etc.) vindos do
ambiente (Caixeta e Caixeta 2005).
4
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criatividade, as vivências práticas, o movimento e os jogos, exercem grande influência no processo de
aprendizagem e no desenvolvimento das habilidades neurológicas
7
(Mateiro e Ilari 2011).
Dentro de um processo pedagógico musical, o trabalho com uma pessoa com TEA se dá no sentido de ajudá-
la a desenvolver a compreensão dos conteúdos musicais (assim como é para qualquer outra criança). Mas,
no caso de alunos com autismo - devido suas dificuldades (em expressão linguística, concentração, atenção,
coordenação motora, memória operacional, dentre outras) muitas vezes faz-se necessário o uso de
recursos diferenciados em apoio à metodologia musical, tais como: emprego de figuras para compreensão
de uma comanda verbal ou escrita; materiais concretos para aquisição de conceito simbólico de ritmos;
partituras adaptadas, além de mais tempo para a aquisição do conhecimento (Soares 2012; Louro 2014).
Independentemente se a música for utilizada com fins pedagógicos ou terapêuticos, o impacto que ela
provoca no cérebro é imenso, sendo uma das grandes promotoras de plasticidade cerebral (Lima 2000;
Sugahara 2008; Sloboda 2008).
8
Pelas pesquisas científicas na área de neurociências e música, tudo indica que há elementos genéticos, além
dos ambientais, relacionados à capacidade musical humana (Janzen 2007; Navia 2012, Levitin 2010).
Travassos (2001, 15) comenta que “a evidência das crianças prodígio musicalmente apoia a afirmação de
que existe um vínculo biológico a uma determinada inteligência”. Outro indicativo de questões biológicas
(genéticas/neurológicas) ligadas às habilidades musicais é justamente a predisposição musical que algumas
populações possuem, como muitas pessoas com Síndrome de Williams ou com autismo que, muitas vezes,
conseguem tocar um instrumento musical com destreza, possuem ouvido absoluto ou ótima afinação sem
nunca terem passado por um processo sistemático de aprendizado musical (Janzen e Ranvaud 2009; Bréscia
2011). A isso tudo, poderíamos chamar de inteligência musical ou musicalidade que Ilari (2003, 12) define
como:
Capacidade de percepção, identificação, classificação de sons diferentes, de nuances de
intensidades, direção, andamento, tons e melodias, ritmo, frequência, agrupamentos
sonoros, timbres e estilos, além de envolver as diversas formas envolvidas no “fazer
música”, tais como execução, canto, movimento e representações inventadas.
Pela neurociência, a música é um complexo conjunto de informações acústicas organizadas coerentemente
em um contexto temporal, e a musicalidade seria a habilidade que nosso sistema nervoso tem para organizar
essas informações em conceitos dos mais altos níveis, sendo essas elas: os elementos fundamentais do som
(intensidade, altura, contorno, duração, andamento, timbre, localização espacial e reverberação) (Janzen e
Ranvaud 2009; Levitin 2010). De acordo com Muszkat (2012, 67), o processamento musical se relaciona à
“percepção de alturas, timbres, ritmos, à decodificação métrica, melódico-harmônica, à gestualidade
implícita e modulação do sistema de prazer e recompensa que acompanham nossas reações psíquicas e
corporais à música”.
7
Nomes significativos da pedagogia musical são: Emile Jacques Dalcroze (1865-1950), Zoltán Kodály (1882-
1967), Carl Orff (18951982), Maurice Maternot (1898-1980), Edgar Willems (1890-1978), Heitor Villa Lobos
(1887-1959), Shinishi Suzuki (1900-1999), Hans Joachim Koellreutter (1915-2005), Edwin Gordon (1927-
ainda vivo), Jonh Payter (1931-2010), Murray Schafer (1933- ainda vivo) e Keith Swanwick (1937-ainda vivo)
(Mateiro e Ilari 2011).
8
Plasticidade Cerebral ou neuroplasticidade é a capacidade que o sistema nervoso tem de se adaptar e
reorganizar a partir de estímulos do meio (Lent 2010).
5
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Pesquisas apontam que autistas possuem certas particularidades no processamento musical no que tange
à percepção e processamento auditivo. Muitos indíviduos com TEA apresentam hipersensibilidade auditiva,
ouvido absoluto, capacidades diferenciadas em relação a compreensão de tonalidades musicais, além de
alterações na capacidade da memória musical e nas respostas emocionais diate do estímulo musical
(Mottron, Peretz e Menard 2000; Dias 2005; Gomes, Pedroso e Wagner 2008; Heaton 2008; Mottron,
Dawson e Soulières 2009; Bhatara et al. 2010; Lai, Pantazatos e Schneider 2012; Stanutz, Wapnick e Burack
2014; Gattino 2015). Isso provavelmente se pelo fato de que pessoas com TEA possuem alterações
neurológicas, sendo assim, um cérebro com diferenças anatomofisiológicas promoverá uma compreensão
musical diferenciada, comparado às pessoas neurotípicas
9
. São muitas as diferenças cerebrais no autismo,
mas de forma resumida, Figueiredo (2014) coloca que essas as alterações neurológicas podem envolver 3
aspectos: Neurofisiológicos - alterações eletrofisiológicas, ligadas, principalmente à epilepsia, comum em
muitos casos; Neuroanatômicas - diferenças estruturais do cérebro, tais como aumento do volume e
alterações no cerebelo
10
, proeminentes na fase pós-natal precoce e infância; Neuroquímicos - alterações no
funcionamento de diferentes tipos de neurotransmissores, dentre eles a serotonina
11
.
3. Metodologia
3.1. Sobre a pesquisa que fundamenta o relato de experiência
O relato aqui apresentado é um recorte de uma pesquisa de Doutorado realizada no departamento de
Neurologia/Neurociências da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), entre os anos de 2013 a 2017.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Plataforma Brasil com o número de protocolo 184.619. O
trabalho teve como objetivo verificar o impacto da aprendizagem musical no cérebro de crianças e
adolescentes com TEA a partir de medidores comportamentais validados cientificamente (testes
neurocognitivos, de linguagem e de música). Ou seja, o objetivo foi verificar se um processo de ensino
musical sistemático poderia causar algum tipo de impacto neurológico no que se refere ao QI e linguagem
de pessoas com autismo e também, se esses crianças e adolescentes conseguiriam aprender os conteúdos
musicais oferecidos nas aulas.
O estudo contou com participação voluntária de 22 indivíduos com TEA entre 5 e 16 anos que foram divididos
em dois grupos: um experimental (12 alunos) e um grupo controle (10 alunos). O grupo experimental foi
submetido a 40h de aulas (2 aulas por semana de 1h20 cada), no decorrer de 4 meses e fez os testes
comportamentais antes e depois de todo esse processo. O grupo controle somente realizou os testes e não
passou pelas aulas musicais. Os cuidadores de todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido e a liberação de uso de imagem para uso acadêmico, pois todas as aulas foram filmadas
e fotografadas. Os resultados da pesquisa apontaram diferenças significativas do grupo experimental frente
9
Termo utilizado para pessoas que não possuem deficiências.
10
Cerebelo é uma estrutura que fica localizada na parte posterior do cérebro e exerce como principais
funções: equilíbrio, coordenação motora e tônus, além de participar de alguns processos cognitivos (Lent
2010).
11
A serotonina é um neurotransmissor que atua no cérebro, regulando o humor, sono, apetite, ritmo
cardíaco, temperatura corporal, sensibilidade e funções cognitivas e, por isso, quando se encontra numa
baixa concentração, pode causar mau humor, dificuldade para dormir, ansiedade ou mesmo depressão (Lent
2010).
6
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ao controle nos testes de linguagem e aprendizagem musical, mas o significativas nos testes
neurocognitivos (Louro 2017).
12
No que se refere aos marcadores de medidas da pesquisa, duas semanas antes do início das aulas de música
e duas semanas após o término do protocolo musical (que durou 4 meses), os alunos voluntários foram
submetidos a uma bateria de testes para avaliação da cognição (WISC- III), linguagem (TLC) e aprendizado
musical (AASSM). Desta forma, foi possível comparar os resultados de antes e depois da intervenção
pedagógica musical, bem como, comparar os dados coletados do grupo que frequentou as aulas de música
com o grupo controle. Tendo em vista o número de amostras (o “N”) nos dois momentos do estudo, antes
e depois da aplicação do protocolo musical, utilizou-se um teste não paramétrico de Wilcoxon para a
comparação das diferentes medidas (teste de música; QI Estimado WISC III; teste de Linguagem) além de
questionário para avaliação da relação da música e qualidade de vida dos alunos).
Neste artigo vamos apresentar o relato da experiência de uma única aluna, pelo ponto de vista dos
resultados observáveis pela pesquisadora no decorrer do processo e não a partir dos dados estatísticos
apresentados na pesquisa original, pois o foco aqui é promover uma discussão sobre o processo e resultado
do caso apresentado e não, apresentar o resultado da pesquisa de doutorado como um todo. Por este
motivo não vamos aprofundar as informações sobre a coleta de dados (testes) nem sobre a metodologia da
pesquisa.
3.2. Motivação da pesquisa e do relato
13
A motivação para realização da pesquisa de doutorado veio devido a lacuna de trabalhos que utilizam a
educação musical como processo para a indução de plasticidade cerebral para pessoas com TEA e a
motivação para o relato neste artigo se deu pelo fato da aluna em questão ter se destacado sensivelmente
no que se refere a aprendizagem musical e melhora na abstração e noção de esquema corporal no decorrer
da pesquisa realizada.
3.3. Perfil da aluna deste relato de experiência
Para a pesquisa foram selecionados alunos com diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista grau
leve/moderado que estivessem dentro dos critérios de inclusão estipulados, sendo eles: 1. Ter o diagnóstico
de TEA confirmado por psiquiatra ou neurologista; 2. Ter entre 5 e 15 anos de idade; 3. Ser alfabetizado ou
estar em processo de alfabetização; 4. Não ter outras patologias associadas ao diagnóstico de autismo e
nunca ter passado por aulas de música na vida. Como já dito, foram selecionados 12 alunos para participar
das aulas da pesquisa, sendo que, este artigo apresentará os resultados referentes a uma aluna de 11 anos
que integrou o grupo experimental. Neste artigo, a aluna será nomeada de Aline (nome fictício por questões
éticas). As informações básicas sobre a aluna relatada estão no Quadro 2.
12
Para ter acesso à pesquisa completa acesse: www.musicaeinclusao.wordpress.com
13 Neste artigo será relatado os resultados da aluna de 11 anos. Para saber os resultados de toda a
pesquisa, baixar a tese na íntegra no endereço: www.musicaeinclusao.wordpress.com (Louro 2017).
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Quadro 2 Informações básicas sobre o perfil da aluna relatada (Louro 2017)
11 anos feminino
Destra
Região de vulnerabilidade social em São Paulo
Aluna matriculada na 8ª série, em escola pública, em
processo de alfabetização
Psicologia e apoio educacional para alfabetização em
instituição especializada (gratuita) em São Paulo
Dificuldade em manter foco atencional; falta de percepção
de seu corpo (Figura 1); grande dificuldade de memorizar
elementos simples; dificuldade em Teoria da Mente (não
percebia o contexto da aula, não previa as ações dos
colegas); pouca comunicação verbal (uso de palavras soltas,
mas sem contexto fraseológico); dificuldade de socialização.
Coordenação motora grossa lentificada; coordenação
motora fina muito debilitada. Não possuía uso de
estereotipias motoras ou verbais.
Segundo relato da mãe, gostava muito de música; fica
batucando em casa e tentando cantar as músicas dos
desenhos animados (antes da pesquisa nunca teve contato
com educação musical.
3.4. Metodologia das aulas
A metodologia empregada nas aulas foi baseada em Pacheco (2009), Mateiro e Ilari (2011) e Fonseca
(2010). O Quadro 3 expõe a relação do embasamento teórico com a metodologia das aulas.
14
No decorrer
das 40 horas totais de aulas (realizadas duas vezes semanais com 1 hora e 20 minutos cada) foram
empregadas 50 atividades musicais (Quadro 4), com foco principalmente no ensino das propriedades do
som. Essas atividades foram criadas pela pesquisadora a partir dos embasamentos teóricos expostos no
Quadro 3.
Alice participou das aulas com mais 2 crianças com TEA com idades próximas à dela. Em cada aula foram
realizadas de 4 a 8 das 50 atividades selecionadas para a pesquisa (Quadro 4). Essa diferença na quantidade
de atividades por aulas se deu devido ao grau de complexidade das atividades (umas mais fáceis e outras
mais difíceis) como também, devido a dinâmica interna do grupo (comportamento e grau de interesse dos
alunos). A fim de contribuir no processo de aprendizagem, as atividades se muniram de materiais específicos,
tais como:
Materiais esportivos (bolas, cordas, colchonetes, bastões);
Instrumentos musicais (xilofones, tambores e chocalhos diversos, claves, triângulos, pandeiros);
Materiais de papelarias (folha A4, cartolinas, tintas, pincéis, massinhas, lápis de cor, giz de cera,
canetinhas);
14
A pesquisa original contou com 4 turmas cada uma com 3 alunos com TEA (Louro 2017).
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Equipamentos eletrônicos (rádio, data show, computador);
Jogos pedagógicos musicais (quebra cabeças e jogos da memória de instrumentos musicais, jogos de
tabuleiros que incentivavam o cumprimento de tarefas musicais, bingo sonoro para associar sons a
figuras, jogos de madeiras para trabalhar proporções rítmicas musicais).
Quadro 3 Relação do embasamento teórico com as atividades realizadas nas aulas de música da aluna com TEA (Louro 2017)
Embasamento
teórico
Principais conceitos
do embasamento
teórico
Influência do
embasamento na
metodologia
realizada nas aulas
Atividades que compuseram a
metodologia das aulas
Pacheco
(2009)
Conteúdo musical e
ordem em que devem
ser oferecidos em
aulas de música para
crianças: Volume
(intensidade); Timbre;
Tempo; Duração;
Altura; Apreciação
musical.15
Conteúdo musical
escolhido para as
aulas.
*Atividades de percepção auditiva:
ouvir sons e relacionar com
desenhos, figuras, formas
geométricas, setas direcionais
juntamente com movimentos etc.;
*Atividades com movimentos:
andar, dançar ou cumprir circuitos
motores específicos com músicas;
danças circulares; percussão
corporal;
*Jogos coletivos que incentivavam
cumprimento de regras,
comunicação com o outro e
raciocínio lógico-abstrato tais como:
jogos de tabuleiros, jogos cênico-
musicais etc.
Atividades criativas: composições e
improvisações musicais individuais
e coletivas; desenhos e colagens
associados à música; construção de
instrumentos com sucatas.
Mateiro e Ilari
(2011)
Pedagogias musicais
mais utilizadas no
contexto da iniciação
musical.
Importância do
lúdico e do
movimento na
educação musical.
Fonseca (2008,
2010)
Fases do
neurodesenvolvimento
da criança; pilares da
psicomotricidade que
devem ser observados
e trabalhados em
processos de
aprendizagem em
geral.
Movimento como
forma de
aprendizado a partir
das fases
neurológicas
esperadas no
desenvolvimento da
criança com e sem
deficiência.
15
Volume (intensidade) - capacidade de reconhecer auditivamente e executar motoramente (pela voz ou
por um instrumento) sons em diversos volumes (forte, fortíssimo, piano, pianíssimo, mezzo forte, etc.);
Timbre - é o que distingue um som ou instrumento do outro. Tempo - Pulsação - a marcação do "tempo" na
música, o que define a métrica da música. Andamento - velocidade da música, que pode ser rápida,
moderada ou lenta; Duração - sons curtos e longos - "tamanho do som". Ritmo - agrupamento de durações
diversas em uma unidade de tempo (num pulso); Altura - frequência de determinado som, posicionamento
das notas na pauta musical. Se refere aos sons graves e agudos e toda gama de possibilidades sonoras entre
eles; Apreciação musical - nome e funcionamento dos instrumentos musicais da sala de aula, bem como,
conseguir diferenciar auditivamente estilos musicais diversos (Pacheco 2009; Louro 2017).
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Quadro 4 Lista resumida das atividades elaboradas para o protocolo musical (Louro 2017)
Breve descrição
Falar o nome com sons e movimentos associados
Passar a bola para o amigo associando-a a um som
Localizar a direção do som com olhos vendados
Executar percurso de corrida junto com a música
Andar do lado certo da sala conforme a música
Criar movimentos rítmicos com copos
Manter série de movimentos junto com a música
Construir jogos ou instrumentos musicais
Momento de experimentação musical livre
Montar com fichas a história ouvida na musica
Contar e representar a quantidade de pulsações ouvidas
Representar com pinos os sons e silêncios ouvidos
Dançar no tempo da música equilibrando bastões
Passar a bola para o amigo no oitavo tempo da música
Obedecer comanda junto com a música
Criar história e ambientação sonora para ela
Criar desenhos e histórias a partir de vídeo musical
Criar em conjunto uma máquina com o corpo
Achar o objeto guardado conforme a intensidade
Andar com o corpo duro ou mole junto com a intensidade
Apertar a massinha conforme a intensidade
Sequenciar os cubos de peso conforme a intensidade
Pintar os objetos conforme a intensidade
Sequenciar placas de EVA a partir da intensidade
Andar atrás do amigo a partir do timbre escolhido
Montar uma orquestra de timbres com jornais
Jogo de tabuleiro sobre os conceitos musicais
Organizar cartelas de figuras correspondentes ao som
Classificar timbres num tabuleiro
Parear caixas com sons iguais
Descobrir o bicho que tem nas caixas pelo som
Montar ambientação de timbres junto com massas
Descobrir a história a partir do timbre ouvido
Montar música a partir dos sons ouvidos
Fazer sons longos ou curtos junto com barbante
Fazer som junto com as partes do corpo
10
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Desenhar a duração do som ouvido
Dança com ritmo específico
Imitar o ritmo feito pelo professor
Entrar no bambolê correspondente ao ritmo ou som
Achar a representação visual referente ao ritmo
Montar e jogar boliche de ritmos ou timbres
Levantar e abaixar conforme a direção sonora
Montar mapa de altura do som dos animais
Apontar a seta correspondente à direção sonora
Classificar a altura dos instrumentos da sala
Tabular a foto dos instrumentos a partir da altura
Ditados de sons Graves e Agudos
Cumprir comandas motoras a partir de figuras
Percutir em si mesmo as partes do corpo apontadas no boneco
4. Resultados e Breve Discussão
Uma das características básicas do autismo é a dificuldade de romper a rotina por terem uma certa
inflexibilidade cognitiva e dificuldade na teoria da mente. Logo, compreender o contexto social ao seu redor
é um desafio. Sendo assim, quanto mais rotina se mantiver mais fácil se torna para pessoas com TEA “ler”
os acontecimentos (Caixeta e Caixeta 2005). Diante disso, as aulas foram elaboradas de forma a manter uma
organização padrão: nos 10 minutos iniciais da aula todos se sentavam em roda e conversavam sobre o que
iriam fazer na aula; nos 60 minutos consequentes, a pesquisadora promovia de 4 a 8 atividades lúdicas
musicais (combinações entre as 50 atividades relatadas no Quadro 4); nos 10 minutos finais todos voltavam
para a roda para conversarem sobre o que tinha acontecido em aula.
Cabe relembrar que a pesquisa teve por objetivo promover um protocolo de atividades voltadas para o
aprendizado musical (não para a musicoterapia) e tiveram como foco o ensino dos elementos musicais:
volume, timbre, duração, tempo, altura e apreciação musical
16
. Esses elementos são comumente ensinados
em processos de musicalização infantil para pessoas com e sem deficiências (Mateiro e Ilari 2011; Louro
2012).
Para quem tem autismo, as maiores dificuldades no processo de aquisição de conhecimento desses
elementos estão no fato deles serem conceitos subjetivos, o que exige cognitivamente da capacidade de
abstração, teoria da mente e de associação de elementos (Louro 2012, 2014; Soares 2012). Por isso, foi
necessário o uso de materiais concretos para ajudar na visualização e compreensão do conteúdo (bolas,
cordas, jogos, computadores, etc.).
O processo pedagógico musical contou com atividades lúdicas de fácil compreensão (mas com graus
distintos de dificuldades). Mesmo assim, nas primeiras aulas do processo, Aline apresentou grandes
dificuldades na execução dos exercícios. Mas, no decorrer da pesquisa, passou a interagir melhor com os
16
Explicação de tais itens no rodapé 14.
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alunos e com a pesquisadora e a compreender o que lhe era solicitado. Ao final da pesquisa (após as 40
horas de aula) já conseguia fazer atividades musicais como:
Associar alturas a desenhos de setas que as representavam:
o = som direcionado do grave para o agudo;
o = som direcionado do agudo para o grave;
o = som permanece na mesma altura;
Associar timbres de instrumentos musicais com figuras que os representavam;
Ler grafias simples criadas pelo grupo e as representar sonoramente, como por exemplo:
o Riscos na vertical = tocar um instrumento respeitando a pulsação e X representando silêncio
(pausa) - ( I I X I = tocar o tambor nas duas primeiras pulsações, fazer pausa na terceira e
tocar novamente na quarta pulsação);
Imitar uma sequência rítmica com percussão corporal ou tocando instrumentos;
Manusear corretamente os instrumentos da sala de aula (clave, tambor, triângulo, caxixi, ovinho,
xilofone e pandeiro);
Criar pequenas sequências rítmico-melódicas no xilofone;
Falar o nome de todos os instrumentos musicais que haviam na sala de aula.
Além da aquisição de conteúdos musicais, Aline desenvolveu algumas habilidades cognitivas no decorrer das
aulas de música, ou seja, tudo indica que a música contribuiu para a melhoria de aspectos do
neurodesenvolvimento da aluna. Aline, no início do processo pedagógico, apresentava muita dificuldade no
que se referia a percepção e uso funcional do seu corpo, não conseguia executar as atividades que exigiam
coordenação motora, tais como: andar no pulso, correr sem cair, rolar, dançar ou manusear instrumentos.
Com o uso constante de instrumentos musicais (com tamanhos, pesos e formas diferentes de segurar), bem
como, com as atividades de movimentos (percussão corporal, danças, percursos psicomotores associados à
música, coreografias, dentre outros) Aline foi gradativamente adquirindo habilidades antes não
apresentadas. Ao final da pesquisa ela já conseguia executar todas as atividades propostas (sendo algumas
com auxílio da pesquisadora e outras sozinha). Mas isso fora um grande avanço, uma vez que nas aulas
iniciais a aluna mal conseguia compreender as comandas verbais dadas pela pesquisadora.
No que se refere à cognição, no começo da pesquisa, a aluna apresentava lentidão no pensamento em geral
e muita dificuldade no raciocínio lógico-abstrato, em habilidades visuoespaciais, na memória operacional
(memória de trabalho)
17
e no emprego funcional da linguagem. Com as atividades musicais de percepção
auditiva, de criatividade e jogos pedagógicos, a aluna, após a 10ª aula, passou a compreender as comandas
das atividades, a raciocinar de forma mais ágil e a utilizar um vocabulário mais rico e amplo. Por exemplo,
no início do processo se ela quisesse beber água, ela dizia: “água”, após a 10ª aula já conseguia se expressar
dizendo: “quero água” e ao final das 40h: “quero tomar água”. A questão do emprego correto das palavras
foi trabalhada em todas as aulas, através de canções e exercícios vocais, uma vez que em pessoas com
autismo, geralmente a linguagem é comprometida e por isso, precisa ser estimulada sempre (Louro 2014,
2017).
17
Memória de trabalho é um dos tipos de memória que o ser humano possui e trata-se de uma função
exercida pelo lobo frontal e é responsável pela operacionalização de nosso pensamento (Lent 2010).
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Na primeira aula foi realizada uma atividade com base em psicomotricidade que visa mapear a noção do
esquema corporal a partir do complemento da metade de um desenho de figura humana (Figura 1). Aline
teve muita dificuldade em realizar o desenho, devido seu rebaixamento cognitivo e muita defasagem em
suas Funções Executivas
18
, bem como, seu comprometimento no que se refere a percepção e uso funcional
de seu corpo. A atividade do desenho foi refeita no último dia de aula para verificar se as aulas de música
haviam contribdo nas questões de construção de imagem corporal e aspectos cognitivos e o resultado foi
acima do esperado nesses quesitos (Figura 1)
19
.
Figura 1 Atividade para observação do nível de esquema corporal (Louro 2017)
20
No desenho da esquerda pode ser evidenciado que Aline não tinha definido a percepção e imagem mental
de seu corpo, pois ele fora representado como um bloco sem muito contorno. No desenho da direita já é
possível notar um corpo completo, inclusive com um traçado mais escuro que demonstra mais firmeza no
tônus, logo, mas maturidade neurológica (Fonseca 2007, 2008). Certamente, o desenho da direita ainda
está longe do ideal se formos comparar com pessoas neurotípicas, mas, comparado ao primeiro desenho
realizado por Aline 4 meses antes, a diferença é significativa. Isso aponta várias questões a serem
consideradas.
Primeiramente, o protocolo de música promoveu impacto positivo na construção do esquema e imagem
corporal de Aline. Isso demonstra que é possível, a partir de um trabalho pedagógico musical, contribuir no
desenvolvimento neurológico das pessoas com autismo, ou seja, não é só a musicoterapia que pode trazer
benefícios nesse sentido; segundo, pelas diferenças entre os desenhos (e observação da pesquisadora),
percebemos que a música atuou também na melhora de algumas habilidades cognitiva de Aline, pois para
18
As Funções Executivas são um conjunto de habilidades mentais responsáveis pelo processo de
engajamento na realização de atividades complexas, por exemplo: pensar, planejar, organizar, sequenciar,
iniciar e continuar uma tarefa. É no córtex pré-frontal (região da testa) que ocorre toda integração e
mediação entre as redes neurais das funções executivas (Ciasca et al., 2015).
19
Tanto o uso das informações para o relato quanto o uso dos materiais gráficos produzidos pelos alunos da
pesquisa em questão foram autorizados pelos pais a partir de assinatura de Termo de Consentimento Livre
e Esclarecido que ficou em posse da Universidade ao término do Doutorado.
20
É dada uma folha com o desenho de um dos lados do corpo e a pessoa precisa desenhar o outro lado.
Desenho da esquerda Atividade realizada por Aline no primeiro dia da aula de música da pesquisa; Desenho
da direita mesma atividade realizada no último dia de aula de música, após a aplicação de todo protocolo
da pesquisa supracitada (40h de aulas).
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realização desse desenho são necessárias muitas ações mentais e motoras, tais como: compreensão da
comanda; idealização mental de um corpo; noção de espaço; praxia fina (destreza para desenhar);
planejamento do movimento para fazer o desenho; capacidade de sequenciar, comparar e organizar a
informação mental para depois traduzi-la em um movimento que realizará o desenho; atenção e memória
operacional. Ou seja, todos são elementos cognitivos e podemos resumi-los num termo: Funções Executivas
(Ciasca 2015). Pelos desenhos, podemos perceber que no primeiro a criança não tinha manejo dessas
habilidades cognitivas, mas no segundo, já possuía certa apropriação delas.
O cérebro é provido de plasticidade e está em constante mudança, pois regula suas condutas a partir da
interação de atividades objetivas em relação ao exterior e isso gera novas relações e condutas (Lent 2010).
O professor é o mediador cujo papel é fundamental para promover essa plasticidade. Fonseca (1995, 50)
reitera essa constatação ao dizer: "para que o desenvolvimento do cérebro opere, não basta a simples
exposição a fontes de estímulo, é necessário a presença de um agente mediador. Aprender é sempre o
diálogo entre as questões internas e externas do ser. “A aprendizagem envolve uma integridade
neurobiológica e um contexto sociocultural facilitador, ou seja, um processo equilibrado e mutuamente
influenciado entre a hereditariedade e o meio ou entre o organismo e o seu envolvimento” (Fonseca 2007,
65).
Wallon reforça essa ideia, pois para ele é impossível dissociar a ação da representação, a tonicidade da
emoção, o gesto da palavra, o motor do psiquismo e para ele, tudo isso é inteligência (Fonseca 2008). A
aprendizagem envolve sempre uma interação entre sujeito e a tarefa. Ela é uma mudança de
comportamento provocada pela experiência, entre um momento inicial, em que a tarefa ainda o é
dominada, e um momento final, onde a tarefa passa a ser dominada e automatizada. Diante de todos esses
fatores, talvez seja possível afirmar que a aprendizagem é algo infinitamente mais complexa do que a união
ou somatória de redes sinápticas ou do funcionamento de certas regiões, bem como, é impossível mensurar
com precisão os fatores exatos que levam as pessoas a aprederem certos conteúdos. Certamente, muitos
elementos que contribuem para a aquisição de conhecimento e desenvolvimento de habilidades mentais e
não podemos atribuir todas as melhoras de Aline única e exclusivamente às aulas de música. Mas, como as
aulas foram arquitetadas a partir dos pilares da neurociência e considerando as necessidades da aluna
devido ao autismo, podemos colocar que as atividades musicais contribuíram sensivelmente no processo
de aquisição dos conteúdos musicais e no desenvolvimento das funções motoras e cognitivas desenvolvidas
pela aluna.
5. Considerações finais
O relato demonstra que é possível a aprendizagem musical por parte de pessoas com TEA, desde que a
metodologia seja empregada de forma que dialogue com as capacidades e necessidades do aluno. O
emprego de atividades lúdicas, bem como, o uso constante do movimento e de diversos materiais de apoio
integraram a metodologia aplicada nas aulas e contribuiu sensivelmente para o resultado positivo da
pesquisa. Por último, é importante ressaltar que aspectos cognitivos e psicomotores podem ser trabalhados
concomitantemente à aprendizagem musical e não somente a processos terapêuticos que utilizam a música
como ferramenta. Isso tudo nos leva a ressaltar a importância de professores de música terem uma
formação pedagógica adequada que contemple processos de ensino-aprendizagem diferenciados para que
possam trabalhar com a diversidade de forma eficiente.
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