compositor e público. Tal acontece, naturalmente, porque os recursos musicais foram forjando e forjados,
ao longo de dcadas, por uma srie de características que passaram a ser entendidas por toda uma
comunidade. Ingrid Monson (1996) ao discutir os processos de interacção no jazz, advoga que os músicos,
no decurso da performance, fazem referências a um passado de gravações e performances marcantes,
através da utilização musical de citações, e da execução de apontamentos que poderão envolver ironia e
outros significados, e que constituem uma forma de demonstração da tradição e da capacidade para
reconfigurar essa tradição através da música. Este conhecimento comum ou tradição, é também referido
por Csikszentmihalyi (1999), autor que desenvolveu modelo de sistemas da criatividade, e no qual
representa a criação como algo que resulta da imersão de um agente no seio de um sistema cultural e social
que permite e restringe a prática criativa (Csikszentmihalyi 1999, 315). Também Sawyer e DeZutter (2009)
defendem que a criatividade surge a partir de um sistema que inclui o indivíduo criativo, um campo artístico
e um conjunto de conhecimentos e obras anteriores (Sawyer e DeZutter 2009, 81).
Podemos referir então que a tradio no se manifesta sob a forma de uma “msica pura” e isolada que
possui significado apenas em si mesma. Pelo contrrio, transporta consigo toda uma bagagem histórica,
musical e cultural que sustenta inevitavelmente a ideia da existência de um hibridismo que decorre ao longo
do tempo da interacção entre diversas correntes estéticas, práticas e outras influncias musicais e culturais.
Existe uma considerável e inevitável riqueza e diversidade na tradio, principalmente no que diz respeito a
significados musicais partilhados por uma determinada comunidade. A partir do momento em que se toma
consciência deste facto, o processo de compor deixa de ser, primordialmente, a manipulação de ferramentas
musicais (tais como progresses harmónicas, escalas e ritmos), passando a privilegiar o manuseamento de
símbolos e significados musicais e a exploração da forma como estes se projectam naqueles que os recebem,
ao mesmo tempo que as ferramentas musicais antes listadas ficam ao servio deste objectivo.
Esta discusso torna-se fundamental, uma vez que a composio a partir de recursos idiomáticos do violo
nada mais do que uma anlise criativa sobre a “potica” do instrumento que vai, inevitavelmente, ao
encontro de uma tradio com a qual este se relaciona. Se tomarmos como exemplo duas escolas
tradicionais de violo - o violo brasileiro e o violo flamenco -, percebemos como o mesmo instrumento
pode apresentar contrastes idiomticos significativos, resultantes das suas diferentes razes e
particularidades musicais. Os elementos que constituem o idioma do violão flamenco no são
necessariamente os mesmos que estruturam o universo do violo brasileiro ou clssico, uma vez que os
idiomatismos são produto de sistemas culturais e sociais que apresentam diferentes particularidades e
significados. Verifica-se, nesta anlise, que o idiomatismo aqui referido no se cinge apenas a ideias
mecnicas, tais como o uso de paralelismos de digitao de mo esquerda, ou o uso de cordas soltas.
Identifica-se tambm na relao entre o instrumento e o contexto cultural onde este se insere. Sendo assim,
no são raras as vezes em que o idiomatismo tcnico e potico so contemplados. Note-se, a ttulo de
exemplo, a interessante relao simbiótica que existe entre o violo e a cano brasileira, muito bem
fundamentada na pesquisa do compositor Chico Saraiva (2014). Conforme veremos mais adiante, o violo
brasileiro acabou por absorver particularidades da cano popular brasileira, traduzidas através da emulação
das nuances da voz cantada, ou at mesmo da potica e do lirismo das canes populares. O
desenvolvimento destes idiomatismos no advém necessariamente da mecnica do instrumento, mas da
forma como este se adaptou ao contexto musical e construiu as suas próprias nuances idiomáticas.
Vimos anteriormente que a noo de uma suposta “pureza cultural” na msica problemtica, e que as
constantes transformaes que nela ocorrem desenvolvem-se atravs do contacto entre diversos elementos