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DOI: 10.35699/2317-6377.2021.33529
eISSN 2317-6377
Do ‘ser só’ ao ‘só ser’:
uma análise da canção Preciso aprender a ser de Gilberto
Gil e seus (con)textos
Vinícius Rangel Souto
https://orcid.org/0000-0003-3466-6321
Universidade Estadual de Campinas, Programa de Pós-graduação em Música
viniciusrsouto@gmail.com
Almir Côrtes Barreto
https://orcid.org/0000-0002-8760-5939
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Instituto Villa-Lobos
almircortes@gmail.com
SCIENTIFIC ARTICLE
Submitted date: 30 may 2021
Final approval date: 23 aug 2021
Resumo: O presente trabalho realiza uma análise da canção Preciso aprender a ser (1973), de Gilberto Gil,
explicitando o paralelo estabelecido pelo mesmo entre sua composição e a canção Preciso aprender a ser (1965),
dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle. Por meio da análise da letra, da harmonia e de referências advindas dos
estudos da intertextualidade, procura-se esclarecer como Gil operou sobre essas estruturas com o intuito de realizar
a substituição semântica do ‘ser só’ para o ‘só ser’ em diferentes camadas da canção. Investiga-se, também, a canção
Preciso aprender a ser situada no simbólico show de Gilberto Gil na USP em 1973, a fim de contextualizar seus
discursos a partir da realidade sócio-política inerente à apresentação.
Palavras-chave: Gilberto Gil; Intertextualidade; Análise de canção.
TITLE: FROM ‘BEING ALONE TO ‘JUST BEING’: AN ANALYSIS OF THE SONG PRECISO APRENDER A SER BY
GILBERTO GIL AND ITS (CON)TEXTS
Abstract: This paper undertakes an analysis of the song Preciso aprender a ser (1973) by Gilberto Gil, evincing the
links established by him between his composition and the song Preciso aprender a ser (1965), by Marcos and Paulo
Sérgio Valle. Through the analysis of the lyrics, the harmony and concepts from intertextuality studies, we seek to
understand how Gil operated on these structures, aiming to replace the 'being alone' (ser ) for 'just being' ( ser)
in different levels of the song. Preciso aprender a ser is also construed in the context of the symbolic show Gilberto
Gil presented at USP in 1973, in order to contextualize the song from the socio-political reality inherent in the
presentation.
Keywords: Gilberto Gil; Intertextuality; Song analysis.
Per Musi, no. 41, General Topics, e214122, 2021
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Souto, Vinícius Rangel; Barreto, Almir Côrtes. 2021. “Do ‘ser só’ ao ‘só ser’: uma análise da canção Preciso aprender a só ser de Gilberto Gil e seus (con)textos
Per Musi no. 41, General Topics: 1-21. e214122. DOI 10.35699/2317-6377.2021.33529
Do ‘ser só’ ao ‘só ser’:
uma análise da canção Preciso aprender a ser de Gilberto Gil
e seus (con)textos.
Vinícius Rangel Souto, Universidade Estadual de Campinas, viniciusrsouto@gmail.com
Almir Côrtes Barreto, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, almircortes@gmail.com
1. Introdução
Preciso aprender a ser é uma composição dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle, estreada em 1964. A
canção teve boa aceitação no meio musical, recebendo diversas gravações nos anos seguintes à sua
estreia. Nomes como Flora Purim, Elis Regina, Sylvia Telles e Alaíde Costa interpretaram a canção, que
também foi gravada por conjuntos instrumentais como Meirelles e os Copa 5, Rio65Trio e Roberto
Menescal1. Pouco tempo depois, no álbum do próprio Marcos Valle voltado ao mercado internacional
Samba’68, a canção recebeu também uma letra em Inglês, sendo intitulada como If you went away versão
que seria posteriormente gravada por Sarah Vaughan na década de 1970.
Por sua vez, a canção Preciso aprender a ser, de Gilberto Gil, data de 1973. O fonograma foi disponibilizado
comercialmente apenas no ano seguinte, em um compacto simples junto a Maracatu Atômico (composição
de Nelson Jacobina e Jorge Mautner), pela Philips. A canção foi gravada para o álbum Cidade do Salvador,
projeto que fora renunciado à época, sendo lançado integralmente apenas em 19982. Apesar dos nove anos
que separam Preciso aprender a ser de Preciso aprender a ser, Gil, ao propor no título da sua
composição uma alusão direta à canção a que se refere, estabelece com ela um diálogo que é compreendido
prontamente pelo seu público. Esse fato pode ser verificável a partir de uma versão3 de Preciso aprender a
ser registrada ao vivo em 1973 posteriormente lançada no álbum Umeboshi. Nessa gravação, Gil, antes
de começar a cantar, conta que havia composto a música para Maria Bethânia apenas duas semanas,
1 Discografia consultada:
Flora é m.p.m - Flora Purim (RCA/BMG, 1964)
Samba eu canto assim - Elis Regina (CBD-Philips, 1965)
It might as well be spring - Sylvia Telles (Elenco, 1966)
Alaíde Costa - Alaíde Costa (Som Maior, 1965)
O novo som - Meirelles e os Copa 5 (Philips, 1965)
Rio65Trio - Rio65Trio (Philips/Universal Music, 1965)
Surfboard - Conjunto de Roberto Menescal (Elenco, 1966).
2
A informação pode ser verificada em: https://discografia.discosdobrasil.com.br/discos/cidade-do-salvador
e https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq05039923.htm. Acesso em 14 set. 2021.
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A gravação está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JTPEdonqv9E. Acesso em 28 jul. 2021.
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apresentando o nome da então inédita canção. A resposta praticamente instantânea da plateia se por
meio de risadas, reação espontânea de quem captou o jogo de palavras ali proposto.
Ainda em 1973, Gil interpreta Preciso aprender a ser no encerramento do show realizado na Escola
Politécnica da Universidade de São Paulo
4
, também lançado em formato integral posteriormente sob o nome
de Ao Vivo na USP. A apresentação fora convocada após o sequestro, seguido de tortura e morte do aluno
de Geologia da USP, Alexandre Vannucchi Leme, nas dependências do Destacamento de Operações de
Informação Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) do II Exército de São Paulo, comandado à
época por Carlos Alberto Brilhante Ustra, como aponta Diniz (2018, 161). Além de intercalar canções de seu
repertório e de outros artistas, Gil abriu espaço durante a apresentação para diálogos com a plateia,
propondo temas diversos desde comunicação de massa e censura até macrobiótica, filosofias orientais e
culturas afro-brasileiras (Diniz 2018, 168). Após quase três horas de show e de extensa discussão sobre esses
assuntos com o blico, Gil encerra a noite com Preciso aprender a ser. A escolha dessa canção em
particular para concluir a apresentação simbólica, pois demonstra em termos práticos a atualização do
discurso que se pretende com esse artigo ilustrar.
Partindo-se, portanto, da premissa de que os textos poéticos e musicais de Preciso aprender a ser e Preciso
aprender a ser dialogam entre si, busca-se compreender como essa relação se estabelece entre as
canções. Com esse fim, mobilizam-se os conceitos de citação, alusão e estilização, advindos primariamente
dos estudos da intertextualidade e adaptados para aplicação em textos musicais por Manfrinato, Quaranta
e Dudeque (2013). Soma-se a esse referencial, quando se faz oportuno, uma análise harmônica funcional
amparada em ideias apresentadas por Freitas (2010), em sua tese. Recorre-se também a uma interpretação
dos conteúdos das letras, tendo em vista a conjuntura política e os respectivos contextos sociais que
localizam cada canção em seu tempo. A primeira, inserida em um momento pré-golpe militar de 1964 no
país, e, a segunda, permeada pelos valores da contracultura na década de 1970. Para além do jogo de
palavras, a inversão sintático-semântica do ser para o ser implica uma mudança significativa de
visão de mundo.
2. Do ‘ser sozinho’ para o ‘somente ser’
Preciso aprender a ser pode ser considerada um samba-canção gênero de samba com andamento mais
lento e enfoque na melodia, que se popularizou no Brasil a partir da década de 1930 (Tinhorão 1991, 151).
Contudo, por ter sido composta em 1964, após o surgimento e a consolidação da bossa nova no mercado
musical brasileiro, é possível verificar na canção dos irmãos Valle algumas estilizações características trazidas
pela estética bossa-novista, tais como a interpretação vocal mais contida e a harmonia baseada em tétrades,
com exploração de dissonâncias (Naves 2000, 36). Como exemplo, nota-se nos primeiros compassos de
Preciso aprender a ser representados na Figura 1 uma harmonia construída a partir de acordes com
ao menos quatro sons e o repouso reiterativo da melodia na nota de (ex)tensão décima primeira (T11) dos
acordes menores destacados:
4
Este artigo uma das produçes derivadas do projeto de pesquisa: “Gilberto Gil ao vivo na USP, 1973: voz
e violão em contexto” –– projeto cadastrado no Portal da Pesquisa da UNIRIO e coordenado pelo Prof. Dr.
Almir Crtes. Agradecemos a contribuição do pesquisador Gabriel Gonzaga, com seus apontamentos
precisos sobre os contextos históricos em análise no presente artigo.
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Souto, Vinícius Rangel; Barreto, Almir Côrtes. 2021. “Do ‘ser só’ ao ‘só ser’: uma análise da canção Preciso aprender a só ser de Gilberto Gil e seus (con)textos
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Figura 1: Notas de tensão nos acordes menores em Preciso aprender a ser , adaptado de Chediak (1994, 112)
A temática da letra, por sua vez, remete ao romantismo exacerbado de um amor desafortunado, conteúdo
bastante recorrente nos sambas-canção anteriores à bossa nova (de Matos 2015, 128). A letra referente à
melodia da Figura 1 diz: Ah, se eu te pudesse fazer entender / sem teu amor eu não posso viver / que sem
nós dois, o que resta sou eu.
Para além das questões poéticas e estéticas destacadas, é pertinente contextualizar a canção em seu tempo.
Preciso aprender a ser foi lançada em 1964, ano marcado pelo golpe militar que instauraria até 1985 um
regime ditatorial no Brasil. Nessa conjuntura, a dicotomia alienação versus engajamento político demandava
um posicionamento por partes do artistas, como relata o próprio Marcos Valle em entrevista5 para a revista
ARTE!Brasileiros:
Quando lancei o Samba Demais, em 1963, vivíamos os últimos dias de Brasil
democrático. Ainda havia aquele espírito de um Brasil moderno, herdado do Juscelino, e a
expectativa de transformações ainda maiores com o Jango. Tudo acontecia de bonito no
cinema, no teatro, na música, e eu, tipicamente bossa nova, falava de coisas boas, do
amor, da natureza, aquele espírito contemplativo, que chegamos a 1964 e tudo isso
mudou completamente. […] Quando chegou a ditadura começou a haver uma obrigação
de posicionamento, porque o momento exigia isso. Nossa liberdade estava cerceada e a
gente tinha, de alguma maneira, que combater aquilo tudo. No início, isso se tornou um
grande problema para mim, pois havia essa espécie de obrigação, e quem não assumisse
uma posição era tachado de alienado. (Pinheiro, 2017)
Preciso aprender a ser pode, então, ser situada nesse entre-lugar gerado pela frustração da promessa de
um Brasil moderno instaurado a partir do golpe militar, em 1964. Em outro trecho da entrevista cedida a
Marcelo Pinheiro, Marcos Valle demonstra as contradições características inerentes a esse entre-lugar acima
exposto. Discorrendo a respeito da canção A resposta: Se alguém disser / Que teu samba / o tem mais
valor / Porque ele é feito / Somente de paz e de amor / Não ligue não / Que essa gente / Não sabe o que diz
[…]”, do álbum O compositor e o cantor Marcos Valle onde também foi lançada Preciso aprender a ser
Marcos Valle diz:
[…] como o disco toma um certo tempo para ser concluído, acabei compondo coisas,
como Gente, que diz: Gente na vida que não deve dar / Porque nunca na vida sofreu por
5 Disponível em: https://artebrasileiros.com.br/cultura/marcos-valle-aberto-para-balanco/. Acesso em 28
jul. 2021.
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não ter. Ambas estão no mesmo disco, e é engrado, porque parece uma contradição.
(Pinheiro, 2017)
Os impasses a respeito das contradições e da necessidade de engajamento apontados na fala de Marcos
Valle também o desenvolvidos por Napolitano (2010), em sua tese de doutorado6. A respeito da produção
artística e intelectual no pós-golpe de 1964, Napolitano ressalta: “a questão da consciência política envolvia
diretamente as tarefas culturais e, neste sentido, podemos ter uma ideia da responsabilidade que recaiu
sobre os artistas e intelectuais (Napolitano 2010, 39). A fim de introduzir o outro eixo da análise
comparativa proposta neste artigo, adiantamo-nos para 1973.
Nove anos separam Preciso aprender a ser de Preciso aprender a ser. Gilberto Gil compõe essa última
em 1973, de volta do exílio em Londres imposto pelo regime militar. Como mencionado anteriormente, a
canção de Gil estabelece um diálogo direto com a quase homônima canção dos irmãos Valle, no entanto, é
enunciada a partir de um outro contexto sócio-histórico. Apesar de elaborada sob a repressão da ditadura
militar que assolava o país, a canção de Gil é também marcada pelos valores libertários trazidos pela
contracultura.
De acordo com Luiz Carlos Maciel, o movimento da contracultura, tal qual experienciado aqui no Brasil entre
as décadas de 1960 e 1970, pode ser caracterizado principalmente pela ressignificação dos valores sociais
vigentes em busca de maior liberdade. O que se queria era uma vida saudável, uma vida feliz. E para ter
uma vida saudável e feliz era preciso ser livre. Essa era a proposta fundamental: ser livre, a liberdade” (Maciel
2007, 66). Enquanto modo de agir, a contracultura poderia ser sintetizada pelo drop-out, cair fora em
tradução livre do próprio autor. Você cai fora do mundo organizado tal qual ele se apresenta para criar
um outro mundo. Um mundo diferente, com valores diferentes” (Maciel 2007, 71). Dentre os novos valores
propostos a partir dos discursos da contracultura destacavam-se a liberdade de expressão das escolhas
comportamentais individuais e a investigação dos preceitos e práticas das filosofias orientais. Esse último é
central em Preciso aprender a ser. Para elucidar esse ponto, vale aqui antecipar brevemente a análise da
letra que será investigada com mais detalhes na próxima seção do trabalho.
De uma maneira geral, Gil apresenta em Preciso aprender a ser uma situação recorrente de dúvida
perante as múltiplas possibilidades da existência: O que cantar, como andar, onde ir / O que dizer, o que
calar, a quem querer”. Essas reflexões a respeito de como agir repensando desde o básico caminhar até
o complexo ‘querer’ podem ser identificadas como um comportamento característico de quem busca
reorientar valores, proposta difundida pelo movimento da contracultura, amparada, por sua vez, no
pensamento da liberdade plena e responsável em Sartre7. A respeito da influência das ideias do filósofo
francês na contracultura, Maciel afirma: A liberdade interna em Sartre é absoluta. Você é inteiramente
responsável por tudo o que você faz porque você é inteiramente livre” (Maciel 2007, 67).
Contrapondo-se a essa pluralidade de incertezas cantadas na letra, dois momentos na canção onde
Gilberto Gil conclui seus versos com afirmações objetivas: “É do coração dizer não quando a mente / Tenta
nos levar pra casa do sofrer” e Reagir / E ouvir / O coração responder / Eu preciso aprender a ser”. Em
6
Esta obra foi publicada, originalmente, pela Editora Annablume, com apoio da FAPESP, em 2001.
7 O pensamento existencialista de Sartre é uma referência direta para Gilberto Gil, como o próprio artista
afirma em entrevista ao programa de televisão Roda Viva em 1987: Sartre para mim é assim, um paradigma
de referência literária, filosófico-literária […]”. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=LLOybLvuaPo [a partir de 1440’’]. Acesso em 23 jul. 2021.
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Souto, Vinícius Rangel; Barreto, Almir Côrtes. 2021. “Do ‘ser só’ ao ‘só ser’: uma análise da canção Preciso aprender a só ser de Gilberto Gil e seus (con)textos
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ambas as passagens, o coração símbolo do sensível, da intuição, do espontâneo é a solução para as
questões provocadas pela mente símbolo da racionalidade, da lógica, da cultura ocidental. Esse modo de
ser e estar no mundo, que reconhece os pensamentos em sua abundância e fugacidade como algo a ser
moderado e balanceado, está identificado com o que, de maneira geral, as filosofias das culturas orientais
propagam. Evocando Luiz Carlos Maciel, uma vez mais, percebe-se a estreita afinidade do pensamento do
mesmo com a letra de Gilberto Gil na canção aqui analisada. Ao concluir o texto intitulado O Tao da
contracultura que por meio da ambiguidade gerada pela paronomásia Tao/tal faz referência ao Taoísmo
(filosofia tradicional da cultura chinesa) Maciel escreve:
Como se sabe, como nos ensina a verdadeira religião, o demônio é o nosso próprio
pensamento, o adversário é o nosso próprio pensamento. É o nosso pensamento que nos
induz ao mal. Se você controlar o pensamento através da ioga, meditação, um pouquinho
de macrobiótica ajuda, talvez um alucinogenozinho de vez em quando… Isso tudo uma
força, mas a decisão final pela conquista da própria espontaneidade, fica por conta da força
da sua vontade. (Maciel 2007, 75)
A partir da breve contextualização introdutória das canções aqui em análise, dentro dos limites aos quais
esse artigo objetiva, segue-se para a investigação de como Gilberto Gil estabeleceu em Preciso aprender a
ser um diálogo direto com Preciso aprender a ser , dos irmãos Valle. Recorrendo-se à análise
comparativa das letras, dos encadeamentos harmônicos das canções e de recursos intertextuais, pretende-
se evidenciar a atualização do discurso e, consequentemente, os valores nele fixados, do ser sozinho’ para
o somente ser, proposto por Gilberto Gil.
2.1. As letras
Um primeiro ponto em comum ao se analisar as letras revela que ambas retratam uma situação de
sofrimento e angústia. Na canção dos irmãos Valle, esse sofrimento es relacionado a um sentimento
amoroso esmorecido, a falta do ser amado (“sem teu amor eu não posso viver”, “amor quando é demais ao
findar leva a paz”, “sem nós dois, o que resta sou eu”, etc.). em Preciso aprender a ser, a angústia é de
caráter existencial, do indivíduo diante das tantas possibilidades e responsabilidades a respeito de como
colocar-se no mundo (sabe, gente / é tanta coisa pra gente saber, sabe, gente / é tanta coisa que eu fico
sem jeito).
A solidão também perpassa enquanto tema a letra das duas canções, apesar de ser compreendida de
maneira distinta em cada uma delas. Enquanto Preciso aprender a ser opera recorrendo a uma solidão
relacionada à ausência do par, à carência, Preciso aprender a ser propõe a solidão como local de
recolhimento, de liberdade, como explica Gilberto Gil em entrevista a Bené Fonteles, discorrendo sobre a
composição em questão: “resgate do prazer dessa solidão, como um grande refúgio, igual a um grande
casulo onde vo é você” (Fonteles 1999, 161). Sintetizando, poder-se-ia dizer que a primeira canção
compreende a solidão como ‘solidão-abandono’ o ser enquanto a segunda, por sua vez,
reconfigura o sentimento em ‘solidão-abrigo’ o ser.
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Preciso aprender a ser discursa a partir do campo das incertezas e se dirige a um grupo de pessoas (“Sabe,
gente”). As questões de caráter existencial trazidas por Gil são de certa forma universais, compartilhadas
socialmente, levando o compositor a pensar com o coletivo por meio da letra (“O problema é da gente”).
Por outro lado, em Preciso aprender a ser o sujeito se apresenta por meio de um discurso autocentrado
e pleno de certezas, demonstrado ora por afirmações enfáticas (“E eu preciso aprender a ser só”), ora pela
necessidade de fazer seu interlocutor entender algo que para ele parece claro (“se eu te pudesse fazer
entender / que sem teu amor eu não posso viver”, “Por Deus, entenda que assim eu não vivo”).
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Por fim, as conclusões para onde as letras das duas canções se encaminham são opostas. Enquanto Preciso
aprender a ser finaliza com um clichê de romance trágico, característico de uma ‘solidão-abandono’ (Eu
morro pensando no nosso amor”), Preciso aprender a ser arremata seu desfecho com uma exaltação da
vida em suas possibilidades, a ‘solidão-abrigo’: “O coração responder: eu preciso aprender a ser”.
2.2. Intertextualidade
Para os fins dessa pesquisa, entende-se por intertextualidade a definição dada por José Luiz Fiorin (1994,
30): “A intertextualidade é o processo e incorporação de um texto em outro, seja para reproduzir o sentido
incorporado, seja para transformá-lo”. A intertextualidade, como sua própria etimologia demonstra, opera
entre textos, que são entendidos aqui como a materialidade linguística de discursos. Essa seção se propõe,
portanto, a identificar relações materiais diretas utilizadas por Gilberto Gil no diálogo que o compositor
constrói com Preciso aprender a ser , dos irmãos Valle. Com esse objetivo, utilizam-se as categorias
intertextuais para se trabalhar com textos musicais propostas por Manfrinato, Quaranta e Dudeque (2013,
235) a partir dos estudos de Fiorin, a saber: a citação, a alusão e a estilização.
A citação firma-se por mostrar a relação discursiva explicitamente e todo o discurso citado
é, basicamente, um elemento dentro de outro existente. Por sua vez, a alusão não se faz
como uma citação explícita, mas sim, como uma construção que reproduz a ideia central
de algo discursado e que, como o próprio termo deixa transparecer, alude a um discurso
conhecido do público em geral. Por fim, a estilização é uma forma de reproduzir os
elementos de um discurso existente, como uma reprodução estilística do conteúdo
formal ou textual, com o intuito de reestilizá-lo. (Zani 2003, 123 apud Manfrinato,
Quaranta, Dudeque 2013, 235)
As três categorias intertextuais propostas para se analisar a canção como texto podem ser encontradas ao
longo de Preciso aprender a ser em relação a Preciso aprender a ser . Começando pela estilização,
demonstrou-se anteriormente nesse trabalho que a composição dos irmãos Valle pode ser identificada como
um samba-canção que se apropria de elementos estéticos associados à bossa nova. Gilberto Gil, utilizando
Preciso aprender a ser como mote para sua composição, compõe também um samba-canção,
caracterizado não apenas pela levada característica do violão composta pelas figuras rítmicas formadas
por semicolcheia/colcheia/semicolcheia, em compasso dois por quatro como também pela temática da
letra, que manifesta uma situação de solidão, no caso uma ‘solidão-abrigo’ ressignificando uma ‘solidão-
abandono’, como visto. Vale ressaltar, ainda no campo da estilização, que Gil além de compor um samba-
canção, o faz na mesma tonalidade (Lá maior) da música com a qual dialoga.
No âmbito das alusões, a primeira, e provavelmente a mais explícita, está exposta no título de Preciso
aprender a ser. Por meio da inversão dos dois últimos vocábulos de Preciso aprender a ser , Gilberto Gil
deixa claro, desde o princípio, a relação direta com a mesma. outros momentos em que Gil faz alusão à
canção dos irmãos Valle, tanto na letra quanto no violão. Na letra, destaca-se a presença da relação causa
(solidão) e efeito (choro) apropriada por Gil com outra semântica, como descrito de Preciso aprender
a ser só:
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“Eu assim tão só…” “Vê, meus olhos choram a falta dos seus…” (Marcos Valle)
“Sou eu sozinho e esse no peito / desfeito em lágrimas…” (Gilberto Gil)
Figura 2: Esquema comparativo entre trechos das letras
Em termos técnico-musicais, por sua vez, pode-se identificar o cromatismo feito ao violão utilizado de
maneira recorrente como anacruse por Gil em Preciso aprender a ser, aludindo ao cromatismo melódico
característico do tema da canção referência:
Figura 3: Movimento cromático no trecho inicial da melodia de Preciso aprender a ser , adaptado de Chediak (1994, 112)
Figura 4: Movimento cromático na anacruse realizada por Gil ao violão em Preciso aprender a ser8
A citação, por sua vez, aparece como um elemento bastante característico em Preciso aprender a ser,
sendo realizada simultaneamente na letra, na melodia e na harmonia. Reservando sua ocorrência para o
final da canção, Gil deixa explícita a interlocução estabelecida com Preciso aprender a ser citando o
próprio título do samba-canção com o qual dialoga, se utilizando, para isso, da mesma melodia e harmonia9
da canção referência:
Figura 5: Apresentação do título da canção na letra de Preciso aprender a ser só, adaptado de Chediak (1994, 112)
8 A Figura 4 é um trecho da transcrição de Preciso aprender a ser como registrada em 1973 no show de
Gilberto Gil na USP. Essa e todas as imagens subsequentes da partitura de Preciso aprender a ser referem-
se à mesma transcrição, que está disponível de maneira integral como anexo ao final do texto.
9
Em relação à harmonia, cabe uma observação. O acorde D#m7(9) em Preciso aprender a ser é executado
ao violão em uma disposição de notas muito usual no instrumento, na qual a justa do acorde é omitida
(da nota mais grave à mais aguda: Ré#, Fá#, Dó# e Mi#). Por conta dessa omissão da 5ª do acorde na canção
de Marcos Valle, pode-se caracterizar a harmonia de Preciso aprender a ser, na qual é empregado o acorde
de ré sustenido meio diminuto, como uma citação.
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Figura 6: Exemplo de citações em Preciso aprender a só ser (compassos 29-31)
2.3. Harmonia
Como demonstrado anteriormente, ambas as canções aqui em análise empregam harmonias baseadas em
tétrades com exploração de dissonâncias em pontos de repouso da melodia práticas apropriadas a partir
de procedimentos recorrentes na bossa nova. No entanto, o percurso harmônico em Preciso aprender a
ser é mais intrincado, se visto em relação a Preciso aprender a ser . Para essa análise harmônica entendida
como percurso, foi utilizado o conceito metafórico de “lugares de chegada”, definido como segue por Freitas
(2010):
A metáfora lugares de chegada procura representar a noção bastante genérica de que as
escolhas e combinações dos acordes, regiões e tonalidades se fazem por meio de dois
comportamentos (ou funções, ou vontades de construção) complementares e
essencialmente distintos. Alguns acordes, regiões ou tonalidades cumprem o papel de
"meta" (o ponto de mira que se procura atingir; o objetivo a ser alcançado; a razão de ser;
o princípio e o fim, etc.) e outros são "meios" (aquelas harmonias que possibilitam a
preparação e o alcance da meta; os passos que nos tiram de um estado de repouso e nos
dirigem a um determinado fim, etc.). (Freitas 2010, 01)
Como mencionado, o centro tonal em Preciso aprender a ser está em Lá maior, assim como na canção
referência. No entanto, as cadências utilizadas por Gilberto Gil ao longo da maior parte da música não são
conclusivas, e, quando o são, ou não vem de um acorde dominante diatônico ou apontam para outra região
tonal, emaranhando assim o percurso harmônico e os lugares de chegada. O movimento cadencial
conclusivo (dominante - tônica) para a tonalidade de Lá maior ocorre em apenas dois momentos da canção,
justo nos pontos onde Gilberto Gil chega a conclusões na letra, a partir da terceira estrofe:
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Souto, Vinícius Rangel; Barreto, Almir Côrtes. 2021. “Do ‘ser só’ ao ‘só ser’: uma análise da canção Preciso aprender a só ser de Gilberto Gil e seus (con)textos
Per Musi no. 41, General Topics: 1-21. e214122. DOI 10.35699/2317-6377.2021.33529
1) “É do coração dizer não / quando a mente tenta nos levar / pra casa do sofrer”:
Figura 7: Cadência IIm-V-I para a tonalidade de maior em Preciso aprender a ser (compassos 24-26)
2) E, ao final: “o coração responder / eu preciso aprender a ser”:
Figura 8: Dominantes estendidos em Preciso aprender a só ser (compassos 33 a 35)
Uma observação apontada que vale ser reiterada, por ser significativa ao unir as análises intertextuais e
da letra com os paradigmas da contracultura apresentados, é o fato de ser o coração a fonte das respostas,
nos momentos conclusivos do percurso da harmonia: É do coração dizer não quando a mente / tenta nos
levar pra casa do sofrer e Reagir / e ouvir / o coração responder”.
Dentro da perspectiva de percurso harmônico e lugares de chegada, ressalta-se a estabilização momentânea
da canção de Gilberto Gil na região de maior (submediante de maior), curiosamente alcançada e
afirmada junto ao texto onde ir?:
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Souto, Vinícius Rangel; Barreto, Almir Côrtes. 2021. “Do ‘ser só’ ao ‘só ser’: uma análise da canção Preciso aprender a só ser de Gilberto Gil e seus (con)textos
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Figura 9: Região tonal de maior em Preciso aprender a ser (compassos 6 a 9)
Com exceção dos dois momentos conclusivos apontados, onde a harmonia reforça o sentido da letra
(Figuras 7 e 8), o que perdura na canção de Gil são as diversas possibilidades, a dúvida, a inconclusão.
Destacam-se três momentos de aumento gradativo de tensão no percurso harmônico, vindo ao encontro do
que sugere a letra inconclusiva antes da terceira estrofe, quando o desfecho e as resoluções começam a ser
encaminhados.
O primeiro aumento de tensão no percurso harmônico acontece logo nos primeiros compassos da música.
Gil inicia a melodia sobre o antirrelativo da tonalidade principal (acorde de Dó sustenido menor), alcançado,
por sua vez, subitamente a partir de uma cadência interrompida:
Figura 10: Cadência interrompida em Preciso aprender a só ser (compassos 1 a 4).
O segundo momento de aumento de tensão vem por intermédio da utilização de dominantes estendidos10:
10 Ainda na Figura 11, vale ressaltar o cromatismo executado na voz mais aguda dos acordes a partir do
compasso 11: Sol#, Sol, Fá#, e Mi. Essa passagem cromática é prática comum no acompanhamento
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Figura 11: Dominantes estendidos em Preciso aprender a só ser (compassos 10 e 11).
Por fim, o ápice da tensão gerado no percurso harmônico é obtido a partir de um paralelismo realizado sobre
a região de Fá maior, na qual a canção repousa momentaneamente por duas vezes:
Figura 12: Paralelismo sobre a região de maior em Preciso aprender a ser (compassos 16 e 17).
Valendo-se dos termos empregados por Freitas na citação acima referenciada, a razão de ser”, o objetivo
a ser alcançado da canção de Gilberto Gil, é efetuar a substituição do ser só” para o ser. Como buscou-
se demonstrar, Gil opera essa inversão em diversos planos discursivos da canção, em uma rede integrada de
sentidos. No plano da harmonia, isso se pela justaposição do percurso harmônico de tensão e resolução
em relação com os conteúdos da letra, que, intertextualmente, dialogam com a canção referência Preciso
aprender a ser só, propondo, enfim, a alteração semântica do ser sozinho para o ‘somente ser, da ‘solidão-
abandono para a ‘solidão-abrigo’.
A fim de contextualizar e exemplificar essa substituição semântica em termos práticos, retoma-se a canção
Preciso aprender a ser na conjuntura do show de Gilberto Gil na USP em 1973.
3. Considerações finais
Como apontado no início do texto, a apresentação de Gilberto Gil na USP em 1973 foi simbólica por diversos
fatores. Em um primeiro plano, como denúncia, convocada meses após a tortura e assassinato do aluno da
universidade por membros do Exército, amparados pelo AI-5. Também como resistência, realizada apenas
quinze dias após o show de Gilberto Gil e Chico Buarque no festival Phono 73, onde os artistas tiveram seus
microfones subitamente desligados enquanto cantavam a canção Cálice, censurada pelo governo ditatorial
harmônico da bossa nova e pode ser considerada como mais um exemplo da apropriação estética desse
estilo incorporado por Gil em sua composição.
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Souto, Vinícius Rangel; Barreto, Almir Côrtes. 2021. “Do ‘ser só’ ao ‘só ser’: uma análise da canção Preciso aprender a só ser de Gilberto Gil e seus (con)textos
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(Diniz 2018, 162). Diniz aponta que tanto o assassinato do aluno da USP quanto o episódio de censura
imposto a Gil e Chico eram motivações comuns suficientes para reunir ali no anfiteatro da USP públicos que
não se bicavam: os da música de protesto e os da sica rotulada de desbundada, o pessoal do tropicalismo.
Estava todo mundo apoiando [o show]” (Costa apud Diniz 2018, 167).
Devido a esses acontecimentos que circundavam a apresentação, era de se esperar que os ânimos dos
presentes estivessem exaltados. Gilberto Gil, ciente desses fatos, intercalou suas canções com momentos
de diálogo com o público, nos quais trouxe temas diversos, sem se esquivar de expor suas opiniões em
interações por vezes provocativas dos que o assistiam. Vale destacar um trecho de sua fala, quando indagado
a respeito de qual seria o posicionamento correto a se tomar pelos artistas diante do cerceamento imposto
pela ditadura:
[…] Eu acho que o comportamento de cada um, que foi o que você perguntou no fim... Não
acho que deva haver um padrão, um método, uma cartilha, uma regra para o
comportamento do compositor. Porque seria a mesma coisa: seria fazer também a
censura do lado de cá. Seria dizer: o comportamento desse tipo é que é válido contra
uma barreira qualquer”. Acho que não. Tem uma corrida de obstáculos? Um cara vem e
passa por cima, o outro vem e passa por baixo. (ibid., 164)
Desde o princípio do show, com a canção de abertura Oriente, Gil deixa claro esse discurso que abrange
possibilidades divergentes e as confronta positivamente, sem a necessidade maniqueísta de tomar um
partido único, tido como o correto. Em Oriente, Gil simula, por meio de um improviso, a discussão entre um
sujeito oriental e outro do ocidente, contrapondo em sua dupla representação os pontos de vista de cada
um11. Ao terminar a canção, Gil arremata: “É sempre importante a gente falar com o alterego, ?”, como
quem apazigua os contrários e compreende o contraditório como natural.
A postura de Gilberto Gil revela o comportamento de quem se propôs mais a incitar reflexões do que
inflamar piquetes. Como artista, Gil soube desviar educadamente de certas provocações da plateia, sem se
esquivar de abordar novos assuntos, pontos de vista e, principalmente, de rever seu posicionamento em
trabalhos anteriores:
[...] o caráter utilitário que as músicas têm, como instrumento de informação de certas
coisas em determinado momento, pode perecer. Elas podem ficar ineficazes de repente:
não representar mais aquilo que representavam como retrato, como fotografia de uma
época. Elas podem continuar poeticamente fortes, como símbolos [...]. Mas como coisa
utilitária, como instrumento político... essas coisas são perecíveis []. (ibid., 171)
Assim como Oriente foi uma escolha significativa para abrir a apresentação, Preciso aprender a ser
concluiu o show também de maneira simbólica. Como procurou-se demonstrar, Preciso aprender a ser
opera na ressignificação, em diversos níveis textuais, de valores estéticos e filosóficos, tomando para si
alguns símbolos de Preciso aprender a ser só e sobrepondo a eles um discurso amparado pela liberdade dos
valores da contracultura, de um Gilberto Gil defrontado com a experiência do exílio imposto pela ditadura
militar.
11 Para uma análise mais detalhada da canção Oriente no show em questão, ver Diniz (2015).
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Quem esperava que Gilberto Gil exaltasse os ânimos da audiência na USP, abalados pela morte de Alexandre
Vannucchi Leme, talvez tenha se decepcionado. Cantada como um acalanto, ao final de um show carregado
de discussões e reflexões, Preciso aprender a ser afirmou a necessidade de uma reestruturação pessoal,
íntima. A busca proposta era de conciliar os próprios contrários, o oriental e o ocidental de Oriente, o Chiclete
com banana música que se seguiu a Oriente na apresentação , o Objeto sim, objeto não, os públicos da
música de protesto e os tropicalistas, e, como procurou-se demonstrar nesse artigo, o ser com o
ser, a solidão como abrigo. É o contraditório como humano, a pluralidade de opções vista como potência,
os opostos como complementares, valores fundamentais de uma democracia subtraída naquele momento.
Nas palavras do próprio Gilberto Gil sobre sua canção, é como se ela [Preciso aprender a ser] colocasse
o interlocutor à vontade e fosse feita para humanizar os ambientes” (Fonteles 1999, 162).
4. Referências Bibliográficas
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Diniz, S. C. 2015. Denúncia política e contracultura: uma análise da canção Oriente
no contexto do show
de Gilberto Gil na Poli/USP (1973). Anais do XXVIII Simpósio Nacional da Anpuh, Florianópolis/SC.
Diniz, S. C. 2018. Denúncia política e contracultura: o “show proibido” de Gilberto Gil na Poli/USP
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Campinas, Instituto de Artes, 817 f.
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Primeira edição: 1974. Petrópolis: Vozes, 151.
5. Anexo
O anexo se refere à partitura da transcrição da performance de voz e violão interpretada por Gilberto Gil no
auditório da Escola Politécnica da USP em 26/05/1973.
A respeito da transcrição, cabem duas observações relevantes. Em primeiro lugar, ressalta-se que a mesma
foi realizada com a finalidade de embasar a análise desenvolvida ao longo desse artigo. Por conta disso, a
transcrição se limita, em relação ao detalhamento de sua escrita, a informar o necessário para a análise.
Com isso, algumas aproximações foram consideradas a fim de facilitar a leitura e a interpretação da partitura,
sobretudo no que concerne às subdivisões rítmicas da melodia executada pela voz de Gilberto Gil.
O segundo comentário a respeito da transcrição se refere ao ritornello utilizado para sinalizar a repetição da
canção, ao final de sua primeira exposição (compasso 35). Sabe-se que a reexposição, ao contrário do que
indica o ritornello, não é executada de forma literal. No entanto, as variações rítmico-melódicas não
interferem na estrutura da canção, e, portanto, não impactam a transcrição dentro dos limites a que nos
propusemos a investigar.
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