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DOI: 10.35699/2317-6377.2021.34826
eISSN 2317-6377
Gesto e miniaturização:
o álbum fonográfico como artefato de memória do musicar
Sabrina Dinola
https://orcid.org/0000-0002-9872-2268
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Memória Social
sadinola@gmail.com
Regina Abreu
https://orcid.org/0000-0002-3880-1749
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Memória Social
abreuregin@gmail.com
SCIENTIFIC ARTICLE
Submitted date: 25 jun 2021
Final approval date: 03 jul 2021
Resumo: Inspirado nas ideias de Gregory Bateson, o musicólogo Christopher Small propôs a noção de musicking para
expressar uma abordagem comunicacional e performativa da música como um fazer que vincula sons, signos, ações e
ideias. Aplicando essa noção (aqui traduzida por musicar), propomos considerar a gravação e reprodução/escuta de
discos (registros de sons socialmente produzidos) como gestos produtores e ritualizadores de vínculos, potencializados
por um formato específico de circulação de fonogramas o álbum. Considerando-o como gesto coletivo, que ressoa
musicalmente relações sociais e significados culturais de sua produção, sugerimos um paralelo entre a performance
fonográfica com aquela da fotografia como procedimento de miniaturização, tal como elaborado por Walter
Benjamin. Para observar os efeitos de memória dessa forma de musicar, acompanhamos alguns aspectos dos relatos
e atividades de um agente cuja formação e musicalidade se deu a partir do álbum o músico, produtor, colecionador
de discos e pesquisador Charles Gavin.
Palavras-Chave: Álbum fonográfico; Memória; 'Musicar'; Gesto; Miniaturização.
TITLE: GESTURE AND MINIATURIZATION: THE PHONOGRAPHIC ALBUM AS A MEMORY ARTIFACT IN MUSICKING
Abstract: Inspired by Gregory Bateson’s works, musicologist Christopher Small coined the term musicking to express
the central notion of his approach to the communicational and performative essence of music making. In this article,
such notion and approach are applied to the sociocultural production /circulation of musical recordings in the specific
format of phonographic albums. We consider these from their conception and production to their being played and
listened to as collective gestures which resonate and ritualize social relations and cultural meanings, we suggest a
parallel between the phonographic performance with that of photography as a miniaturization procedure, as
elaborated by Walter Benjamin. To observe the memory effects of this way of making music, we follow some aspects
of the reports and activities of an agent whose formation and musicality started with the album the musician,
producer, record collector and researcher Charles Gavin.
Keywords: Phonographic album; Memory; 'To music'; Gesture; Miniaturization.
Per Musi, no. 41, General Topics, e214119, 2021
2
Dinola, Sabrina; Abreu, Regina. 2021. “Gesto e miniaturização: o álbum fonográfico como artefato de memória do musicar
Per Musi no. 41, General Topics: 1-18. e214119. DOI 10.35699/2317-6377.2021.34826
Gesto e miniaturização:
o álbum fonográfico como artefato de memória do musicar
Sabrina Dinola, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, sadinola@gmail.com
Regina Abreu, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, abreuregin@gmail.com
1. Introdução
1
If I could tell you what it meant, there would be no point in dancing it.
(Isadora Duncan, citada por Gregory Bateson [1972])
Nos últimos 150 anos, aproximadamente, uma variedade de sociotécnicas de registro e reprodução
eletromecânicos (e mais recentemente, eletrônicos-digitais) de sons esteve associada ao desenvolvimento
dos meios de comunicação modernos, do qual participam também, entre tantas outras, as sociotécnicas de
registro e reprodução químico-mecânicos (recentemente, também, eletrônicos-digitais) de imagens visuais.
O aumento geométrico da circulação social desses registros (fonogramas, fotografias) e a capilarização deles
nos processos socioculturais permitem que falemos, especificamente em relação aos registros sonoros, de
um mundo (social) fonográfico. Por várias décadas, um dos suportes de circulação e reprodução dos
fonogramas foi o disco de vinil.
2
O desenvolvimento técnico do disco de vinil (qualidade, durabilidade, manuseabilidade, capacidade) e dos
equipamentos de gravação e reprodução se deu em estreita associação com seu emprego na difusão de sons
musicais. Essa difusão, por sua vez, se deu preponderantemente em dois meios: por rádio, e na forma de
bens (ditos culturais) de consumo.
1
Este artigo integra uma pesquisa de pós-doutorado que conta com o apoio e subsídios da Faperj (Fundação
Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro). Ele constitui um primeiro passo de
elaboração ou explicitação do “modelo teórico” da tese defendida no PPGMS-Unirio (Dinola 2020), seguindo
por nossa conta e risco as preciosas indicações da professora Susana Sardo (INET - Universidade de Aveiro),
a quem agradecemos enfaticamente (sendo nossa, por suposto, a responsabilidade por todos os eventuais
equívocos ou distorções de concepção ou realização).
2
Sem desconsiderar os amplos debates e agudas inflexões que se deram em torno de noções como a de
sociotécnica em contextos da antropologia da ciência e da técnica, da “antropologia simétrica” e outros,
neste artigo elegemos Walter Benjamin (1892-1940) como interlocutor central. A abordagem benjaminiana
tem como foco a historicidade da relação da arte com a técnica, e se deu num momento de aceleração
tecnológica (e não menos belicista) do capitalismo industrial; ao procurar as possibilidades revolucionárias
contidas nas ‘ondas de impactodas transformações técnicas e sociais, Benjamin dissolve a seu modo o
suposto grande divisor entre tecnologia e magia.
3
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Embora este seja um lugar comum, não é trivial considerar que o modo de fazer e de ouvir música se
transformou junto com essas sociotécnicas e seus desdobramentos socioculturais. No seu artigo “A era do
disco” (2014), Lorenzo Mammi nos fala sobre a importância desse suporte que, apesar de ter surgido apenas
no século XX, teria, nas palavras do autor, se “enraizado” tão profundamente “em nossa experiência
cotidiana” que acabou adquirindo, por um tempo (já fazendo referência às interferências da chegada da era
digital), um estatuto comparável ao de seu “colega milenar” o livro:
Talvez porque, ao corporificar o som, o disco complete a materialização do pensamento
que o livro iniciara tanto tempo, transferindo para um objeto as ressonâncias afetivas
que, no caso da página escrita, ainda exigiam a atuação de um falante. (Mammi 2014, s/n).
Na opinião de Lorenzo Mammi, não foi apenas o avanço técnico que teria feito do disco em vinil um “agente
de mudanças revolucionárias”. Fazendo referência a uma “geração” que se formaria a partir das experiências
com este suporte aqueles que cresceram na chamada “época de ouro dos LPs” (anos 1950/60/70) –, e sem
ignorar a associação com a sociedade de consumo, o disco teria, nesse período, segundo o autor,
“encarnado” formas especificas de sociabilidade.
Tendo esta ideia como norte, gostaríamos de apresentar de imediato uma experiência vivida por uma das
autoras deste texto, a partir da interlocução com um agente que pode ser denominado como membro da
geração descrita por Mammi, aquela cuja experiência musical foi atravessada, intrinsecamente constituída
pela relação com o disco-álbum: o músico, produtor cultural, colecionador de discos e pesquisador, Charles
Gavin.
Paulistano, 61 anos de idade, Gavin se define como um “baterista autodidata” que iniciou sua carreira
musical, antes dos vinte anos de idade, no final dos anos 1970, tocando com várias bandas de rock da cena
paulistana, entre as quais Ira! e RPM. Paralelamente, estudou administração de empresas na PUC-SP, até
que, em 1985, abandonou o curso para ingressar nos Titãs banda de rock brasileiro de grande renome e
aceitação, que marcou a cena musical dos anos 1980. Sua atuação nessa banda se estendeu por mais de 25
anos, até fevereiro de 2010
3
.
A atuação de Gavin na área da produção musical e cultural se iniciou em 1999, paralelamente carreira com
os Titãs, em um projeto por ele mesmo idealizado e conduzido, de remixagem de discos fora de catálogo. O
marco do projeto foi o relançamento, em CDs, pela gravadora Warner (a mesma dos Titãs) de dois álbuns
(LPs) da banda Secos & Molhados (1973 e 1974)
4
. Assim, sob o rótulo de “arqueólogo dos acervos”, que lhe
foi dado pela imprensa, na época, Gavin deu início ao seu conjunto de ações em torno dos fonogramas com
o objetivo de relançar discos-álbuns que estavam apenas nas mãos de grandes colecionadores. O ponto
central do projeto era, em meio aos processos de aceleração da digitalização de documentos analógicos e
3
Na condição de membro do grupo, Charles Gavin gravou dezesseis álbuns, cinco DVDs e participou de
importantes shows e festivais do circuito musical brasileiro: Hollywood Rock (edições de 1988, 1990 e 1994),
Rock in Rio (1991), abertura do show de David Bowie em São Paulo (1990) e abertura do show The Rolling
Stones, em Copacabana-RJ (2006).
4
Esse projeto de reedição fez parte da série Dois Momentos”, que incluiu outros 30 álbuns que haviam sido
originalmente lançados nos anos 1970/80. O nome da série se deve a que cada CD traz dois LPs originais (um
CD comporta quase 80 minutos e um LP, em média, 40 minutos).
4
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da “pirataria” tanto ligada à reprodução de cópias físicas de CDs (piratarias físicas), como ao
compartilhamento, pela internet, de arquivos digitais (fonogramas digitalizados e codificados piratarias
digitais) –, relançar aqueles trabalhos incorporando, como afirmava Gavin, “todos os elementos que
compunham o álbum”.
Em maio de 2018, como forma de abordar e estabelecer simetrizações entre os diferentes agentes que
integram pesquisas em acervos musicais, por sugestão nossa, Gavin foi convidado pelos Programas de Pós-
graduação em Memória Social e em Música, da Unirio, para compor, ao lado de dois professores
universitários, uma mesa de debate intitulada “Arquivos públicos e privados: gestões, políticas e
problemas”
5
.
Em sua longa apresentação, Gavin se fez acompanhar de um profuso material selecionado por ele e
compartilhado com todos os ouvintes no auditório/ sala de aula: de discos raros de 78rpm, retirados de sua
coleção particular (e praticamente impossíveis de ouvir, a não ser por quem tenha equipamento específico),
a almanaques da música brasileira produzidos no Japão (nos quais a única informação acessível para quem
não japonês sobre os discos catalogados são a ilustração/capa e o resumo da ficha técnica do disco-
álbum, em letras latinas).
O conteúdo da exposição, sua narrativa”, começou versando, num plano mais referencial, sobre a trajetória
profissional; com o correr da fala e o discorrer das experiências mencionadas, foram evidenciando-se os
“elos” entre os objetos selecionados e dispostos sobre a mesa e todos os seus projetos, detalhadamente
descritos na apresentação remixagem, remasterização e relançamento de mais de 500 discos fora de
catálogo; idealização e produção de dois livros sobre música brasileira; produção e direção de documentários
sobre trajetórias de músicos e gêneros musicais; e, ainda, direção, roteirização e apresentação de um
programa de tv semanal, “O Som do Vinil”. Este programa, com mais de 300 episódios gravados, transmitido
5
Ao lado de Gavin, dois professores convidados também compunham esta mesa: Clifford Korman (Instituto
Villa Lobos/PPGM Unirio) e Maya Suemi (Funarte/PPGM Unirio).
Figura 1- A mesa com o material selecionado por Charles Gavin para sua apresentação na Unirio
5
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há 13 anos pelo Canal Brasil, de certo modo ilustra e sintetiza a sua intensa relação com o disco-álbum.
6
Em um comentário feito naquela apresentação, Gavin definiu assim sua relação com o disco: “é minha paixão
pelo disco que me transforma em músico. Ela vem antes do instrumento” (no caso, a bateria). Para Gavin,
sua formação musical se deu essencialmente como continuada e cultivada escuta de discos. Ao relatar sobre
seus trânsitos e suas descobertas em grandes lojas de discos, Gavin afirmou: “os discos foram meus grandes
professores”. E concluiu, reforçando esse elo, dizendo que todo o restante – seu interesse por pesquisa, sua
atuação como produtor, etc. também teriam “partido” da relação de “paixão” com o “objeto” disco.
É a esse vínculo com o disco-álbum, estabelecido numa forma de “encantamento” e aprendizado com o
artefato, que Gavin atribui sua posterior atividade de colecionamento de discos. O que interessa enfatizar
aqui é que a centralidade atribuída ao disco (desde a formação como músico) se estenderá a todas as outras
atuações, principalmente a de produtor cultural e de pesquisador agências que têm seus inícios marcados,
principalmente, pelo contexto que envolverá o abalo trazido pela entrada das tecnologias digitalização no
setor fonográfico, no final da década de 1990 e início dos anos 2000.
Esses aspectos da apresentação de Gavin na Unirio condensam algumas considerações a serem tratadas ao
longo deste artigo: partindo da “paixão pelo discoe da posição e relação estabelecidas com os discos na
sua formação musical acionadas por C. Gavin para descrever todas as suas agências (de músico, produtor,
colecionar e pesquisador) , nos interrogamos sobre a possibilidade de o álbum ser entendido como um
conjunto de ações e de referências simbólicas (uma ritualidade, uma linguagem de gestos) que não se
limitam apenas às experiências sonoras.
Para isso, tomamos como ponto de partida a consideração de que os modos de fazer e ouvir sica
acompanham as transformações técnicas, e, em seguida, observaremos suas repercussões socioculturais.
Neste artigo, procuraremos, portanto, delinear um modelo mínimo para entender a natureza antropológica
dessas transformações (2ª parte), em articulação com a questão do seu teor sócio-histórico (3ª parte).
Com base na compreensão da música como processo que é parte de uma “ecologia da mente” implicada na
socialidade humana, Christopher Small (1998), inspirado nas ideias de Gregory Bateson, propôs a noção de
musicking aqui traduzida por musicar para expressar uma abordagem comunicacional e performativa do
vínculo entre sons, signos, ações e ideias. Musicar é concatenar “atos musicais” ou “gestos musicais” a outras
séries de processos e é também concatenar ‘musicalmente’ outros atos e gestos s performances sonoras;
um modo de produzir socialidade com e em torno de sons musicais.
Ampliando ou aplicando essa noção de “musicar”, lidamos com a possibilidade de considerar a gravação e
reprodução/escuta de discos (registros de sons socialmente produzidos) como gestos produtores e
ritualizadores de vínculos. Nesses termos, tentaremos analisar o álbum como um formato específico de
circulação de fonogramas, e entender como parte do seu “musicar” também a memória do tipo de
experiência musical que em torno dele (isto é, do álbum) se configurou. Observando-o não como obra
artística, mas como ‘gesto’, analisamos esse formato como um acontecimento performático que é também
um procedimento de “miniaturização” termo originalmente utilizado por Walter Benjamin em sua
6
O acompanhamento etnográfico das gravações dos episódios de duas temporadas de “O Som do Vinil” foi
uma das bases de DINOLA 2020.
6
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interpretação do surgimento e difusão da fotografia.
2. A ecologia da mente aplicada à etnomusicologia: a música pensada como
gesto
A natureza e o significado fundamentais da música não estão nos objetos, nem nas obras
musicais, mas na ação, no que as pessoas fazem. É apenas entendendo o que as pessoas
fazem quando participam de um ato musical que podemos esperar entender sua natureza
e a função que ela desempenha na vida humana. (Christopher Small 1998).
No livro Musicking: the meanings of performing and listening (1998), o musicólogo
7
, compositor e
educador neozelandês Christopher Small propõe uma compreensão não substantivista da música, isto é,
como ação/processo, e não como obra ou composição de sons, arbitrariamente isolável de outras ações e
processos anteriores, simultâneas ou posteriores às performances sonoras. Para expressar sinteticamente
essa perspectiva, ele propõe o verbo to music (muito precariamente traduzível por musicar):
Musicar é participar, não importa em qual função, de uma performance musical, seja
executando, ouvindo, ensaiando ou praticando, fornecendo material para apresentação (o
que é chamado de composição) ou dançando
8
(Small 1998, 09 é das autoras a tradução
de todos os trechos citados neste artigo).
Assim, com o objetivo de reorganizar nosso olhar para a “atividade de fazer música”, Small recorre ao termo
“musicking”, um neologismo criado por ele com o intuito de enfatizar um dado fundamental, que segundo
ele não é suficientemente levado em consideração nas abordagens usuais: um fazer social contínuo da
música. Na proposta de Small, não se trata de entender musicar como ‘compor ou executar música’, e sim
como um ‘fazer musical’; no sentido de que a música é imanente ao fazer, ao conjunto das atividades
diversas que se concatenam antes, durante e depois das performances sonoras que pontuam a vida social.
Assim, Small também se afasta da ideia de música como obra, ou arte de produzir obras que são objetos
ideais.
Seguindo seu objetivo de desfazer a ideia de que o significado musical reside apenas em objetos musicais,
nas cadeias de sons, Small propõe questionar e problematizar alguns dos seus “corolários” a partir de uma
‘etnografia’ dos concertos sinfônicos, definidos pelo autor como instâncias de um importante evento musical
da cultura ocidental ou ocidentalizada no mundo urbano moderno. A partir de uma “descrição densa”
9
de
uma sala de concerto “fictícia” (que, como afirma o autor, pode estar em qualquer lugar do mundo, Nova
York, Tóquio, etc.), Small descreve as relações sociais e os significados que se dão no musicking característico
7
Neste artigo, nossa abordagem implica a leitura deste livro de C. Small como um trabalho etnomusicológico
singular.
8
Com relação a essa passagem de Small, cabe anotar que ela permite uma formulação sintética da intenção
deste artigo: incluir a atividade de fonografar como parte do repertório de gestos, ações, performances
implicadas no musicar.
9
Small (1998, 17) explicitamente remete ao sentido de descrição densa tal como esta foi definida e praticada
pelo antropólogo Clifford Geertz, em A interpretação das culturas [1973].
7
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da sala de concertos. Com base nessa descrição, o autor mostra que, histórica e culturalmente, a ação de
participar de eventos musicais foi sendo apreendida e reservada a alguns poucos. Na cultura ocidental, na
opinião de Small, isto teve seu início na separação público-artistas.
Small amplia e desloca a discussão sobre a natureza da música e sua presença na vida humana, trazendo o
foco para o ato musical (Small 1998, 08) e a musicalidade incorporada dos comportamentos sociais. Como
afirma o autor, participar de um ato musical é tão importante para a condição antropológica quanto
participar de um ato de fala. A ênfase sendo no ato e não no código ou na mensagem, entende-se que a
performance se configure como elemento central e valorizado na análise do autor. Em vez de
substantividade, processualidade sociocorporeomental, em ações interativas, significativas, criativas e
durativas em outras palavras, é o circuito inteiro de atividades que tem ‘musicalidade’, e não apenas a
série de sons e sua execução.
Para formular suas ideias sobre os significados da performance musical, Small toma como base a teoria da
mente do antropólogo Gregory Bateson (que, assim como Small, também graduou-se em zoologia), tirando
a primazia do contexto social como realidade sui generis, e compreendendo-o como indissociável de uma
ecologia da comunicação humana, entendida, por sua vez, em continuidade com a condição animal e a partir
da noção fundamental de que ser é conhecer o ambiente
10
.
Small afirma que desde os anos 1970/80 os trabalhos de neurologistas e neurobiólogos começam a descartar
a divisão cartesiana entre corpo e mente, apoiando-se na ideia de que a mente é, de alguma forma, parte
do funcionamento de todas as criaturas vivas, sendo, portanto, um processo vital, indissociável da substância
do organismo (Small 1998, 52). Segundo Small, Gregory Bateson define a mente (...) como a capacidade de
produzir (give) informação e responder a ela, e sustenta que é uma característica da matéria onde e quando
quer que se organize naqueles padrões que chamamos de vida. O mundo dos seres vivos, diz ele, está
permeado pelos processos da mente; onde houver vida há mente (Small 1998, 53).
Assim, por um processo ativo de engajamento, o organismo ou melhor, o corpo vivo forma seu ambiente
do mesmo modo como é formado por ele ou, se se quiser, se constitui permanentemente por um padrão
de padrões de sustentação homeostática de fluxos de energia e matéria.
11
A vida, como auto-organização
da matéria e auto-regulação durativa desses estados organizados, implica mentalidade, isto é,
processamento de diferenças (no ambiente externo ou interno) como sinais significativos (produtores de
diferenças). O ambiente, assim, é um meio ativo pelo qual vidas-comportamentos se co-respondem, e estes
portanto formam uma rede maior e mais complexa. A esta rede vasta, segundo Small, Bateson denomina
como “padrão que conecta”, por unir (seja mais intimamente, ou mais remotamente), através da interação
10
Bateson: “na história natural do ser [...] vivo, ontologia e epistemologia não podem ser separadas” (1972,
314). Cf. também Maturana e Varela: "o fato de o conhecer ser a ação daquele que conhece está enraizado
no modo mesmo de seu ser vivo, em sua organização. Sustentamos que as bases biológicas do conhecer não
podem ser entendidas somente pelo exame do sistema nervoso. Parece-nos necessário entender como
esses processos estão enraizados no ser vivo como um todo". (1995, 76).
11
Proposta por Humberto Maturana e Francisco Varela, a noção de autopoiese usada pelos autores para
definir seres vivos como sistemas que produzem continuamente a si mesmos é um conceito cujo
desenvolvimento tem reconhecidas ligações e afinidades com os insights batesonianos. (Ver, por exemplo,
Maturana e Varela 1995, 88-92, 225-226, 230-231).
8
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com o outro, todas as criaturas vivas. A ponto de não ser exato dizer que a mente se relaciona com o
ambiente, e sim que é imanente às relações ecológicas dos seres vivos.
A importância dessa abordagem para a questão musical está em poder entender o comportamento em sua
dimensão social e antropológica, assimilando-o a uma ecologia dos atos e ideias, à comunicação não verbal
e à autorregulação do corpo (sempre em-relação). A comunicação se pela capacidade de identificar
aquele “padrão que conecta”. Uma capacidade aprendida e praticada, implicada na autoorganização. Não
está suposta uma comunicação não-física, nem nada de sobrenatural ou metafísico, nos meios de
comunicação que unem o mundo vivo: “estamos falando sobre receptores sensoriais, órgãos do sentido
físico, e o processamento das informações que eles recebem pelo aparato de processamento da criatura”
(Small 1998, 56). Assim, seja qual for o mecanismo que conecte os vários estímulos sensoriais a uma
experiência unificada, a formação de uma “imagem” ou “experiência sensorial” é um processo ativo e
criativo”, e não apenas uma recepção passiva de estímulos que estão sendo apresentados (op.cit., 54).
Deste modo, como lembra Small, a dualidade cartesiana (mente versus corpo) não se sustenta, e as trocas
de informações são, portanto, sentidas, vividas, experimentadas. Do mesmo modo, a maneira como as
informações são processadas não deixa de ser afetada pelas “disposições herdadas e pela experiência
anterior do conhecido” (Small 1998, 54). “O conhecimento é, portanto, um produto do conhecedor como da
coisa conhecida (...)” (op.cit., 55).
A ênfase do autor recai sobre a ideia de “continuidade” e “processo”, e o “gesto” tem a capacidade especial
de comunicar, de pôr em comunicação estes complexos de relações. Diferentemente da linguagem verbal
(descontínua), o gesto se apresenta como parte de uma linguagem contínua, como aquilo que, constituído
de padrões de relacionamentos, transmite adiante e transforma esses padrões.
Musicar, portanto, nos conecta por gestos, não por palavras.
A linguagem do musicar é a linguagem dos gestos, que une todo o mundo vivo e, ao
contrário das linguagens verbais, não possui um vocabulário definido nem unidades de
significado. Por ser baseada em gestos, pode lidar com muitas preocupações, mesmo as
aparentemente contraditórias, todas ao mesmo tempo, enquanto as palavras podem lidar
com questões apenas uma de cada vez. As palavras são literais e proposicionais, sendo que
o musicar é ação metafórica e alusiva, e (as palavras) insistem em um único significado, e
musicar tem muitos significados, todos ao mesmo tempo. (Small 1998, 184-185).
Deste modo, em paralelo com a linguagem verbal, as artes não verbais teriam uma capacidade especial para
comunicar complexos de relações. Em diálogo com Bateson, Small afirma que as palavras lidam com uma
ideia de cada vez, trata-se, portanto, de um processo lento e limitado para representar relações complexas
(Small 1998, 58). E quanto mais complexo o ser vivo, mais complexos e variados são os gestos de
relacionamentos e possibilidades de respostas, pois a comunicação biológica se dá e se manifesta em gestos
a ponto de as espécies desenvolverem linguagens gestuais. Portanto, a linguagem gestual é algo que os
humanos desenvolvem e adquirem pela própria comunicação biológica
12
. Assim, os gestos humanos sempre
12
Cabe observar que a “comunicação biológica”, nesse paradigma, não tem a ver com uma ‘determinação
bioquímica’ (genética), indo mesmo em direção contrária: os organismos são ‘entidades comunicacionais’,
ou seja, a comunicação (relação, conhecimento, aprendizado), é aspecto constitutivo de todo ser vivo, e faz
9
Dinola, Sabrina; Abreu, Regina. 2021. “Gesto e miniaturização: o álbum fonográfico como artefato de memória do musicar
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estão presentes (ainda que seja por ausência, como ‘zero’ ou ‘falta’) nos processos verbais.
Small afirma ainda que junto com os gestos, inseparavelmente, estão também os movimentos, o
experienciado, o vivido, onde tudo produz e resulta de relação. Nas interações estabelecidas por meio do
discurso não verbal, segundo o autor uma forma de comportamento organizado na qual os seres
humanos “usam a linguagem do gesto para afirmar, explorar e celebrar suas ideias de como as relações do
cosmos (ou parte dele) operam e de como os humanos deveriam se relacionar: o ritual. Por meio de seus
gestos, aqueles que participam do ato ritual articulam relações entre si que modelam as relações de seu
mundo como eles os imaginam e como pensam (ou sentem) que deveriam ser” (Small, 1998, 95).
É relevante que o autor sublinhe que “as relações e os rituais que as celebram” tenham um amplíssimo
espectro de escalas e afetos, intensidades:
[...] Coroações, jogos olímpicos, missa católica romana, concertos sinfônicos, almoços
executivos, eleições, funerais, tatuar-se, grandes banquetes, jantares familiares e refeições
íntimas à deux, prostração em direção a Meca, o ‘trote’ e intimidação de recrutas em
corpos armados de elite e escolas exclusivas, e milhares de outros rituais grandes e
pequenos são padrões de gestos por meio dos quais as pessoas articulam seus conceitos
de como as relações de seu mundo estão estruturadas e, portanto, de como os humanos
devem se relacionar uns com os outros. Tais ideias mantidas em comum sobre como as
pessoas devem se relacionar umas com as outras, é claro, definem uma comunidade, então
os rituais são usados tanto como um ato de afirmação da comunidade ("Isto é quem
somos"), como um ato de exploração (‘vestir’ [try on] identidades para ver quem pensamos
que somos) e como um ato de celebração (para nos regozijarmos no conhecimento de uma
identidade não somente possuída senão também compartilhada com outros). (Small 1998,
95).
Mais adiante, Small diz ser o ritual “a mãe de todas as artes The Mother of All the Arts”, esse é o título
de uma das seções do livro (SMALL, 1998, 94) , primeiro por envolver as atividades que conhecemos como
artes a dança, o teatro, a música, a poesia, a contação de histórias e as artes plásticas mas,
principalmente, por ser o ritual a grande arte performática unitária da qual todas as artes atuais se derivam.
Mas as artes separadas tendem constantemente para sua unidade anterior. Qualquer
performance "artística", se for examinada com atenção, mostrará que envolve mais do que
a arte com a qual está ostensivamente ocupada (Small 1998, 109).
Para o autor, a comparação entre as artes e o ritual é fundamental para escapar da separação que foi
estabelecida pelo Ocidente. Small enfatiza que as artes tendem à sua antiga união, reforçando, ao final, que
uma performance é uma obra de arte em si”, enquanto a obra ou composição musical, por exemplo, tem
seu significado residente apenas “nas relações que são criadas quando a obra é interpretada” (op.cit., 138).
A performance, portanto, é aquilo que promove o encontro de todos os meios artísticos disponíveis, e que
são orquestrados numa espécie de ‘obra de arte total’, cujos elementos não são mera decoração, mas parte
parte de sua “história natural”. Não se trata de preponderância da natureza sobre a cultura (ou vice-versa),
mas da inseparabilidade de ambas.
10
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essencial deste encontro humano.
Portanto, se ‘musicar’ não é apenas participar de um discurso sobre as relações de nosso
mundo, mas realmente vivenciar essas relações, não devemos achar surpreendente que
isso desperte em nós uma resposta emocional poderosa. O estado emocional que é
despertado não é, entretanto, a razão da performance, mas o sinal de que ela está fazendo
seu trabalho, de que está de fato, no tempo de sua duração, trazendo à existência relações
entre os sons e entre os participantes, relações que estes sentem como boas ou ideais
(Small 1998, 137).
Ou seja, para Small, a evidência do sucesso de uma performance musical tem uma relação direta com as
emoções estimuladas por essa execução/atuação. Aqui, mais uma vez, o autor recorre a um conceito de
Bateson para compreender as emoções experimentadas na atividade musical:
Ele [Bateson] sugere que as emoções, os estados mentais aos quais damos nomes como
medo, amor, raiva, tristeza, felicidade, respeito e desprezo, não são estados mentais
autônomos, mas sim maneiras pelas quais nossas computações sobre relacionamentos
‘computações’ é a palavra que ele usa, sugerindo precisão e clareza, em vez de vagueza e
confusão mental geralmente associada às emoções ressoam na consciência (Small 1998,
136).
Assim, as emoções produzidas pela performance musical e experienciadas nela, as relações estabelecidas
entre os participantes e os sons, sinalizam que a performance esproduzindo relacionamentos. E uma
performance ‘boa’ produz alegria ou tristeza pelo complexo de estados emocionais que, de fato, são
produzidos na performance. Numa apresentação, experimentamos em nossos próprios corpos e sentidos os
relacionamentos que “consideramos corretos”, conforme a nossa ideia do “padrão que nos conecta”. Para
o autor, “sentimos que é assim que o padrão do mundo realmente é, e é aqui que realmente pertencemos
a ele” (op.cit., 137).
3. Para além de uma 'obra de arte': o álbum do ponto de vista do musicar
Agora podíamos gravar com relativa facilidade uma pluralidade de versões de uma única
recitação. (Jack Goody 2012 [1977]).
Quem ouve um disco enquanto cozinha não faz uma escolha menos mediada de quem
compra o ingresso para um concerto. (Lorenzo Mammi 2014).
Disco é muito mais do que long play objeto de vinil onde se armazenam 45 minutos de
áudio, divididos em dois lados. É muito mais também do que compact disc prático
objeto de plástico que rendeu muito dinheiro à indústria fonográfica nos anos 90. Para
minha geração disco é o retrato instantâneo da obra de alguém em determinado período
de sua existência. Representa sua visão de mundo naquele momento e, exatamente por
isso, interfere no curso de nossas vidas. (Charles Gavin 2008).
11
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A proposta desta parte é considerar o álbum como um formato capaz de criar um espaço-tempo singular,
isto é, uma experiência que, assim como a performance musical, não se resume a um sistema unidirecional
de comunicação, mas “encanta” ou “emociona” e “promove gestos” (Small 1998) por despertar e produzir
a sociabilidade inerente ao musicar. Observamos aqui o álbum não como ‘objeto’, ‘produtoou ‘obra’, mas
como um meio multidimensional que se aproxima da qualidade de um “ato musical”.
3.1 Registrando complexidades: o disco como “miniaturização”
Como afirma Felipe Barros, “se as práticas musicais são dinâmicas e sujeitas a transformações, o ato de as
registrar em fonogramas deve ser entendido como um recorte temporal e efêmero (Barros 2018, 636).
Deste modo, podemos afirmar que um dos principais efeitos da intensificação dos processos de gravação é
a problematização da estabilidade e continuidade das formas sonoras e musicais no decorrer do tempo,
entre gerações e entre grupos” (cf. Pereira 2016, 217). Pois trata-se, basicamente, de formas de recepção e
transmissão musical, formas estas que sofreram grandes mudanças a partir dos processos de gravação e
(posteriormente) edição dos fonogramas.
As técnicas de gravação dos sons, ao longo do tempo, foram interferindo diretamente na própria produção
musical (isto é, a das performances sonoras culturalmente associadas a “música”), transformando, assim,
tanto os hábitos musicais quanto as relações entre os diferentes atores envolvidos. Segundo Mark Katz
(2004), em seu exame detalhado da tecnologia de gravação sonora, a habilidade de manipular os sons que
está presente nas técnicas eletromecânicas de registro-reprodução, mas que se desenvolve
principalmente por meio das novas tecnologias digitais pode ser compreendida como uma maneira de
“transcender as limitações humanas” (Katz 2004, 41)
13
.
Conforme Antoine Hennion (1981), o estúdio com seus equipamentos é menos uma maquinaria de registro
sonoro do que um conjunto que opera como um “instrumento em que o som é produzido, e não
reproduzido” (op.cit., 155). Destaca-se, acima de tudo, a mudança da significação do ambiente do estúdio
na conformação musical (ibidem). Nesse sentido, é possível acionar a abordagem de Small e pensar a
gravação como um “gesto” (também associável a outros musicares), e o estúdio como local onde ocorre um
‘musicar, registrando’.
Sem desconsiderarmos a importância do processo de captação dos sons, é importante também ressaltar o
valor dos registros quanto  sua “circulação”. Como afirma Steven Feld (2015), seria agora possível conhecer
o mundo não pelo som, mas pela “gravação do som”. Tal seria, portanto, o potencial conferido
circulação dos registros sonoros/musicais: tudo aquilo que envolve a sua recepção, mais precisamente, as
apropriações ocorridas pelas escutas de diferentes registros sonoros.
Ainda no que se refere ao ‘valor de circulação’ dos registros sonoros, cabe observar que se, de início, a
tendência foi atribuir certa ‘autenticidade’ apenas s gravações etnográficas, as experiências produzidas
pelas escutas dos registros fonográficos foram suficientemente intensas, comunicativas (no sentido de
Small) e conectadas atividade fonográfica (entendida como ‘gesto musicante’), para que também as
13
Do ponto de vista deste trabalho, é menos importante a imagem do “transcender limitações humanas” do
que a percepção de que essas habilidades e sociotécnicas estão disponíveis para formas de musicar.
12
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gravações comerciais adquirissem algum valor de autenticidade.
14
Trata-se de entender que as tecnologias
de registro e reprodução de sons não estão nunca desvinculadas de atos ou gestos comunicacionais, para os
quais a técnica não é instrumental, utilitária, e sim expressiva.
Em meados dos anos 1920, quando os discos de goma-laca de 78 rpm se tornaram padrão para a música
gravada de comercialização, surgiram os chamados “álbuns de discos”, similares a álbuns de fotos, onde os
proprietários dos discos podiam guardá-los e protegê-los, pois eram frágeis e quebradiços. Rapidamente, na
década de 1930, as companhias de discos começaram a lançar coleções de 78 rpm de uminterprete (cada
disco equivalendo ao que conhecemos hoje como uma “faixa”) ou de um tipo de música. Elas eram vendidas
como álbuns (com capas lisas) e estes, nos anos 1940 e, ainda mais fortemente, nos anos 1950 (junto com a
chegada do LP), começam a ganhar capas personalizadas e os outros elementos ilustrações, fotos, textos,
letras das canções, informações sobre as composições, etc.
A partir desse período, o álbum vai deixando de ser uma simples embalagem de proteção e começa a
representar um ‘processo’. Ao suporte da mensagem musical (reprodução de registro sonoro/disco), são
somados, justapostos, associados, elementos como mensagens visuais (não só ilustrações/fotos para
representar ou retratar ou complementar o trabalho/produto, as músicas do LP, mas também ‘imagens-
documentos’, ou iconografias variadas que os encartes estampavam: desde imagens das sessões de
gravação até ilustrações artísticas livremente associadas) e mensagens escritas (informações, textos
explicativos, letras das canções, referências que ajudam o ouvinte a compreender cada música ou aquele
conjunto de faixas) elementos capazes de ampliar a imaginação do ouvinte (produzindo experiências que
envolvem diferentes sentidos) em tudo aquilo que remete a uma performance musical. Nesse processo, a
capa se torna um componente ao mesmo tempo acessório ao disco e intrínseco ao seu musicar; uma parte
que acondiciona e que também simboliza (e indexa, comenta, conecta) um todo que pode então ser
entendido como um ‘retrato do musicar’ – unindo som, palavra, imagem e movimento.
De modo geral, em meio a estas mudanças ocorridas no panorama da produção musical, principalmente na
virada dos anos 1940-50, nota-se uma passagem importante: da unidade e singularidade do registro
fonográfico, ou de um conjunto deles, para uma ‘totalidade’ representada pelo álbum um formato de
circulação dos fonogramas (ver Moraes & Saliba 2010; Mammi 2014) que se consagra e se fixa através das
mudanças trazidas e dos padrões cunhados pela indústria fonográfica (ver Dias 2012).
3.2 O álbum como “gesto musical”: uma celebração do coletivo
Para Lorenzo Mammi, o ápice da “era do disco” se deu com a gravação de Sgt. Pepper’s, dos Beatles (1967),
marcando o fim das apresentações da banda em público, tornando-a uma “banda de estúdio”. Não por
14
Enquanto ‘gesto musicante’, as gravações também se apresentam no seu (duplo) potencial de ‘prender’ e
ao mesmo tempo ‘libertar’ as vozes do passado. É neste sentido que o escritor Julio Cortázar (1914-1984),
sob efeito da audição de cantores e cantoras líricos de uma geração cuja musicalidade já não vigora, fala do
disco como uma “fabulosa detenção do tempo” (apesar de muitos instantes fugirem”). Como afirma o
escritor, “as vozes, perecedoras por únicas, por irrepetíveis, pararam para sempre numa memória que de
alguma maneira e contra toda a razão se sabe a salvo da morte” (Cortázar 2014, 188).
13
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acaso, ocorre a valorização de um “quinto integrante” do quarteto, George Martin, arranjador e diretor de
estúdio. A esse respeito, cabe explicitar que Sgt Pepper’s é considerado um marco, tanto pelas cnicas
inovadoras de gravação, quanto pelos elementos trazidos para a composição do álbum. A partir dele, o
estúdio de gravação deixa de ser visto como um lugar de mero registro fonográfico. Neste caso, a tecnologia
do estúdio de gravação passa a ser incorporada como um instrumento. As interferências, as criações e os
efeitos de estúdio se fizeram presentes em tão alto grau, que limitavam (e até impediam) a reprodução de
suas faixas no palco.
Com o desenvolvimento e a sofisticação de saberes técnicos específicos que tanto caracterizaram o LP
trazendo novos processos de registro high fidelity que exigiram e consolidaram a presença e a valorização
do trabalho de produtores, arranjadores, engenheiros de som, etc. (cf. Hennion 1981) esse tipo de registro
sonoro passou a agregar também outros, diferentes elementos, capazes de expressar todo este novo
processo de criação musical (enfatizando, inclusive, esta criação em estúdio). Junto com isso, o formato-
álbum na medida em que começa a ser pensado como uma composição de diferentes saberes e fazeres,
de várias competências técnico-artísticas não se limitou a uma simples ‘embalagem’. O fato de o álbum se
apresentar como um padrão de circulação de fonogramas não excluiu seu potencial de também ser uma
‘imagem’, uma experiência (ou significador-propiciador de experiências, na direção do ritual, do fazer
musical.
Atrelada às características físicas e técnicas do suporte disco-LP, o novo formato o álbum surge criando
novas “especificidades musicais e estéticas”. Como afirma Marcia Dias, o disco-LP promoveu uma mudança
profunda nesse panorama, pois possibilitou, entre outros efeitos, “que os artistas desenvolvessem discos
autorais” (Dias 2008, 03). Este novo formato, portanto, teria atuado diretamente na criação da ideia de “obra
do autor”.
Ou seja, em relação à dinâmica dos discos, é preciso considerar que sua produção e sua circulação como
parte da “indústria cultural” estiveram estreitamente associadas  confirmação ou construção da figura do
artista musical (idem). Desenha-se aqui uma continuidade e um paralelo possível com o que Small afirmou
sobre o papel das salas de concerto de música clássica, como locais-contextos para um ritual de prestígio
social sob a forma da ‘celebração ritualizada’ de uma ‘grande música’ ou “música absoluta” para “pura
contemplação” (Small 1998, 153), realizada na forma de audição ‘descorporalizada’ de obras
representativas, para as quais a performance dos músicos é um veículo ou instrumento.
O disco, como suporte dos fonogramas, permite re-produzir, ‘fielmente’ (com “fidelidade” cada vez mais
alta) os sons das performances sonoras originais, e pode funcionar como ‘mediador’ capaz de fazer de cada
aposento um recinto de audição e de cada performance um objeto análogo de ritualização contemplativa,
de culto à arte ou à obra, de separação público-artista. E as observações de Dias mostram, a nosso ver, que
o formato-álbum esteve disponível na ‘democratização mercantil’ dessa lógica.
No entanto, e indo além, é preciso levar em conta o modo como o álbum passa também a configurar um
novo meio multidimensional de comunicação, capaz de criar experiências multissensoriais que o aproximam
14
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da qualidade de um “ato musical” ou “gesto musical” complexo.
15
Se, do ponto de vista da indústria, o álbum é um padrão, do ponto de vista do musicar, é um gesto (coletivo).
Ou seja, um ato que tem forma, uma forma-em-ato. Neste ponto, acreditamos que a perspectiva intuída e
elaborada por Walter Benjamin pode ajudar a entender essa articulação. Trata-se de adaptar e, em alguma
incerta medida, desfigurar a abordagem estético-política da fotografia a este universo da fonografia, que
os álbuns ao mesmo tempo difundem e retratam.
No ensaio Pequena histria da fotografia, Benjamin (2012 [1931]) reforça a ideia de que era preciso
considerar a “arte como fotografia”, em vez de ver a “fotografia como arte” (o que, seria um ponto de vista
reacionário). Daí ser preciso, para o autor, não considerar as mudanças trazidas pelo aperfeiçoamento das
técnicas de reprodução como “fenômeno da decadência do gosto artístico” ou “fracasso dos artistas”.
Segundo ele, era preciso reconhecer que a concepção das “grandes obras” havia se modificado junto com
este aperfeiçoamento das técnicas; afinal, “o decisivo na fotografia continua sendo a relação entre o
fotógrafo e sua técnica” (op.cit.,106). Para o autor, modificou-se principalmente “a concepção das grandes
obras”:
[...] -las agora como criações individuais; elas se transformaram em criações coletivas
tão poderosas que, para assimilá-las, fica-se subordinado à condição de diminuí-las. Em
última instância, os métodos de reprodução mecânica constituem uma técnica de
miniaturização e ajudam o homem a assegurar sobre as obras um grau de domínio sem o
qual elas não mais poderiam ser utilizadas. (Benjamin 2012 [1931], 111) [grifo nosso].
A fotografia teria, portanto, conduzido a uma nova forma de divulgação de obras de arte que, de modo geral,
atuou modificando radicalmente a relação com a arte, apresentando consequências consideráveis para a
nova organização do campo cultural em geral: ao mesmo tempo que a ‘imagem reproduzida’ é uma
mercadoria entre outras, também perfaz simultaneamente o campo da arte para o circuito de produtos. (cf.
Stiegler 2015)
16
15
Dizendo-o de outro modo: o disco (especialmente o LP) como suporte (de registros) esteve disponível para
diversos ‘regimes de artisticidade’ da música por exemplo, permitindo encenar individual ou
domesticamente o ritual da sala de concerto, ou apoiar experiências afins das multissensorialidades e
movimentações celebratórias dos shows de rock, ou informar o intimismo camerístico de certos gêneros
menos marcados pela divisão público-artista, etc. ; em todas elas, o formato-álbum tem agência, isto é, dá
‘suporte’ ao ‘engajamento ritual’ da escuta. E o aspecto de ser consumido como mercadoria faz parte
intrínseca dessa agentividade.
16
Ao abordar a transição da pintura para a fotografia, Benjamin enxerga nela um processo social (que
reafirma a correspondência/ influência entre estas artes) onde a fotografia se aproximaria de algo que
antecede as técnicas vinculadas à industrialização. A técnica, portanto, não inaugura uma nova arte; ela se
difunde na forma de miríades de usos e experimentações que vão coalescendo em práticas, atividades etc;
a atividade de ‘retratar, fotografando’ (também praticada com daguerreótipos, que eram outra
sociotécnica), e também, mais ‘arte da fotografia’ aos poucos ganham autonomia como campo específico
e segundo um processo que não é nem natural nem determinado apenas pelas condições tecnológicas.
Apesar de tais correspondências serem invertidas na era de reprodutibilidade técnica as técnicas de
reprodução é que passariam a influenciar as artes, que então tendem a se fazer “antitécnicas”, colocando
em pauta uma espécie de decadentismo da “arte pela arte” –, Benjamin não deixa de saudar esta ‘inversão’
15
Dinola, Sabrina; Abreu, Regina. 2021. “Gesto e miniaturização: o álbum fonográfico como artefato de memória do musicar
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Acreditamos que uma perspectiva semelhante pode ser adotada em relação ao disco-álbum na qualidade
de formato de circulação dos fonogramas, de gesto musicante numa cultura industrial: ele é um
acontecimento performático (um artefato gráfico-sonoro, fruto da relação do ‘fonografante’ com sua
técnica) que é também um procedimento de “miniaturização” não das obras de arte, mas da arte-ritual
que é o musicar, segundo Small. A partir destas novas especificidades técnicas e estéticas, o disco “diminui”
as performances (mas não as simplifica), possibilitando experienciá-las em espaços e tempos deslocados.
Por meio desse artefato compacto e transportável, a festa, as sociabilidades estabelecidas ou exercitadas no
“musicar” também passam a serem ouvidas, sentidas e experienciadas em situações e ocasiões de escala
física e social muito mais reduzida.
Ou seja, falamos de uma ou algumas gerações que passaram a ter acesso a uma diversidade de expressões
musicais e a formar discotecas relativamente portáteis, sem se tratar de uma ‘banalização’ desta
experiência, na medida em que possibilitava escolha ativa. Pode-se dizer que uma “cultura em torno do
disco” foi se organizando, em meados dos anos 1950, e se consolidando (principalmente no Brasil) nos anos
1970, período que constituiu a chamada “era de ouro dos LPs” (Mammi 2014). Assim, se o processo de
“miniaturização” traduz uma “perda” no que se refere s experiências produzidas pela performance
presencial, a relação estabelecida entre estes agentes (humano e não humano) se expressa também com
um processo criativo
17
.
Isso nos leva de volta às experiências de Charles Gavin, narradas no início deste trabalho. Suas atuações
como músico, produtor, colecionador de discos, pesquisador, etc. podem ser consideradas como
explorações de competências e sociabilidades desenvolvidas em convívio com os discos e sua mestria. Não
na escuta de numerosos e diversos discos, mas também alguma (diferenciada) intimidade com os vários
processos, saberes e práticas envolvidos na sua produção (musical, técnica e comercial). Em volta do toca-
discos, desenrola-se, organiza-se e imagina-se toda uma série de relações que envolvem atos de compor,
executar, escutar, celebrar, pesquisar, ensaiar, repetir, combinar, recompor, partilhar.
Portanto, nessa “cultura em torno do disco”, o álbum é um modelo reduzido da (experiência da)
performance musical como um processo imanente, incorporado. Sendo ele mesmo um meio interativo
18
, é
capaz de criar emoções próprias, que não são as da pura fruição’ das ‘obras de arte’ musicais. Ao relatar sua
“paixão pelo disco” e o modo como este foi seu grande professor”, Gavin toca no importante tema da
dimensão das emoções como parte de relações de aprendizado e atuação, das impressões na consciência
das relações entre o ouvinte e as várias dimensões do musicar. Já foi mencionado (na parte 2) que Small, ao
falar sobre o modo como as performances musicais despertam emoções, sugere, em concordância com
Bateson, que estas não são estados mentais ou sentimentos autônomos, e sim maneiras pelas quais nossas
“computações” sobre os relacionamentos ressoam na consciência; isto é, através do estado emocional
despertado um relacionamento é representado. Assim, a função ou agência do disco-álbum como professor
como uma “politização da estética” (a tendência de vanguarda da revolução libertária). Ou seja, para o autor,
tratava-se agora de apropriar-se das potencialidades da indústria cultural para então usá-las numa direção
criativa, contrária e divergente à da “estetização da política” (a tendência de vanguarda fascista).
17
Sobre os impactos das ‘transições tecnoculturais’, ver Coutinho (2020).
18
No sentido de que o objeto é manipulado diretamente e que isso possibilita escolhas de escuta (em
graus bastante diferentes da interação com rádio e televisão, na mesma época).
16
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expressaria uma experiência ou um vínculo emocional que, como afirma Small (id, 132), quanto mais
intensos forem, mais poderoso será o aprendizado.
Junto com o procedimento de “miniaturização” das performances, engendrado pelo disco, os elementos que
compõem o álbum também são capazes de favorecer algo semelhante quilo que Benjamin sinalizou ao falar
da operação de “legendar” a fotografia: uma “literarização de todas as relações da vida” (Benjamin 2012
[1931]). Para Benjamin, a legenda não deve ser descritiva e instrumental ou complementar à imagem, mas
um modo de ‘descolonizá-la’ da reiteração dos valores e percepções realistas, e de fazer surgirem conexões
imprevistas. Mas um aspecto importante a ressaltar é que, no caso do álbum, o que ele traz junto com os
fonogramas não é a legenda textual, e sim um conjunto de ‘sinais’ que são eles mesmos retratos e vínculos
com outras performances e gestos.
Operada pelo álbum, a “legendagem” ou “literarização” (cf. Benjamin 2012 [1931]) se volta na direção da
própria sociabilidade: o álbum propicia pela combinação de elementos visuais e textuais e,
potencialmente, tácteis e corporais outros (de dançar até ‘operar os aparelhos’ para virar o lado, mudar a
agulha de posição, etc) que a escuta ‘individual’ (ou em número restrito de pessoas) também tenha
qualidades do musicar coletivo. Ou seja, embora circule em contextos mais individualizados e de consumo,
esta ‘mensagem’, composta de elementos heterogêneos, propõe ao ouvinte ‘participar’ de um “ato de
música” (Small 1998), de uma experiência que não traz consigo apenas significados individuais, mas
coletivos.
Por fim, é possível ainda afirmar que apesar de o disco-álbum promover duas desvinculações a do som em
relação  performance (humana) presencial, e a do ouvinte com a ‘ritualidade’ dessa performance; e isso de
modo um tanto semelhante ao que Small observou em relação às mudanças trazidas pela institucionalização
do concerto , o desatar desses elos o diminui nem degrada a complexidade ou intensidade
comunicacional e social da música. Falar em fonografia como sociotécnica musicante mesmo com
tecnologias industriais cada vez mais desenvolvidas implica considerar que mudanças técnicas nos modos
de registrar, produzir e veicular sons se deram associadas a transformações nos modos de significá-los e
ritualizá-los, e não é nessa dimensão que “perdas”. Ou seja, com o advento dos discos, e mais fortemente
o do LP a partir dos anos 1950 (trazendo os elementos que configuram o álbum) o potencial de sociabilidade
continuou presente no ‘musicar’.
4. Considerações Finais
Com base no seu conceito de musicking, Christopher Small afirma que a música não é um objeto em si,
autônomo e isolado da vida social; Small dirige sua atenção a um conjunto de ações que dão suporte e
contexto às relações que envolvem as pessoas. Ao enfatizar a presença do musicar na condição humana, o
autor atenta para seu potencial na vida social: o musicar participa da formação (inclusive expressão e
celebração) de sócio-habilidades.
Partindo dessa argumentação de Small, buscamos neste trabalho observar de que modo o disco-álbum
considerado para além de um suporte para registro sonoro operou na transformação das experiências de
significado e valor da música, isto é, dos ‘musicares’. Indo um passo além, afirmamos que as práticas de
interação suscitadas pela circulação dos discos (numa relação direta com a indústria fonográfica) dentro de
17
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um formato, isto é, de uma forma do gesto musical o álbum fonográfico atuaram na formação de ‘afetos
sonoros’ e de um ethos de interação social que estão na base de um musicar específico.
Procuramos, assim, enfocar como o álbum diferente de um registro temporal e efêmero ou de uma
‘representação’ de performance musical –, quando entendido a partir de sua ‘totalidade’, ou de todos os
elementos que sua ‘composição’ colocou em jogo, passou a musicar a vida. Para isso, acompanhamos
algumas questões relativas ao álbum, não como obra artística, mas em suas configurações de formato, que
traz consigo os vestígios de vários planos e fases da produção e, ao mesmo tempo, faz interagirem os
múltiplos elementos e trabalhos envolvidos na sua produção.
De modo geral, é possível afirmar que esse formato revela uma sociabilidade acústica (e imagética) atrelada
à modalidade de uma música urbana onde, para além da performance propriamente dita, falar de música
na vida cotidiana se tornou um tema que engloba formas de música gravada.
Walter Benjamin, ao falar das “injunções implícitas na autenticidade da fotografia” (2012 [1931], 114)
valorizava-a como gesto, mas não gesto documentante, e sim testemunhal: ter estado diante de algo
compromete aquele ou aquela que o registrou. E compromete como solicitação que atravessa gerações
quem se defronta com o registro, que não é representação e sim a memória, a presença daquele gesto.
Falamos, portanto, de experiências que a reprodutibilidade técnica não apaga, antes intensifica.
A partir dessas abordagens, procuramos, neste trabalho, valorizar ainda uma outra dimensão dos discos-
álbuns: como artefatos de memória musical. Em vez de objetos musicais, ou unidades de uma discoteca,
eles se apresentam como propiciadores e ritualizadores de experiências complexas (no sentido de que
envolvem todas as dimensões sensório-afetivo-intelecto-motoras) que também estão em jogo nas relações
gregárias e nas relações do organismo com o ambiente, e se fazem acompanhar de relatos e de transmissão
dos efeitos que a escuta produziu, na pessoa individualizada e, mais profundamente, nos membros de uma
geração.
5. Referências
Barros, Felipe. 2018. Arquivos e objetos sonoros etnográficos: a coleção fonográfica de Luiz Heitor Corrêa
de Azevedo. Sociologia & Antropologia. 8(2). doi: 10.1590/2238-38752017v8211.
Bateson, Gregory. 1972. Steps to an ecology of mind. New York: Ballantine Books.
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