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DOI: 10.35699/2317-6377.2021.35009
eISSN 2317-6377
Diálogos interculturais, hibridações e construções identitárias:
Estudo do CD Fogaréu do músico goiano Bororó
Magda de Miranda Clímaco
https://orcid.org/0000-0001-8690-3945
Universidade Federal de Goiás, Escola de Música e Artes Cênicas
magdaclimaco@ufg.br
Ana Guiomar Rego Souza
https://orcid.org/0000-0001-6936-3262
Universidade Federal de Goiás, Escola de Música e
Artes Cênicas
anaguiomar@ufg.br
Manassés Barros Aragão
https://orcid.org/0000-0001-5373-820X
Universidade Federal de Goiás, Escola de Música e
Artes Cênicas
jazzmana@hotmail.com
SCIENTIFIC ARTICLE
Submitted date: 01 jul 2021
Final approval date: 07 aug 2021
Resumo: Este artigo vincula-se a uma pesquisa que teve como objeto de estudo o contrabaixista e compositor goiano
Bororó, batizado Dimerval Felipe da Silva. Foi delimitado como universo da pesquisa o conjunto de músicas que
integram o CD Fogaréu, aqui percebido como espaço simbólico para se pensar a dinâmica dos diálogos interculturais
e as poéticas híbridas. Objetivou-se investigar, a partir do escopo teórico dos Estudos Culturais, os processos de
hibridação que permeiam a linguagem musical de Bororó enquanto resultante de experiências existenciais,
construções identitárias e opções estéticas. Um dos resultados alcançados é que o conceito de hibridação, como
operacionalizada por Bororó, compreende a mescla cultural enquanto processo de aproximação e negociação entre
elementos díspares, um espaço onde a transversalidade de poderes oblíquos se evidencia.
Palavras Chave: Músico goiano Bororó; CD Fogaréu; Diálogos interculturais; Hibridações; Identidades performáticas
TITLE: Intercultural dialogues, hybridizations and identity building: a study of the CD Fogaréu by the goiano
composer Bororó
Abstract: This article is linked to a research that had as object the double bass player and composer from Goiás Bororó,
baptized as Dimerval Felipe da Silva. It was delimited as a universe of research the set of songs that integrate the CD
Fogaréu, here perceived as a symbolic space to think the dynamics of intercultural dialogues and hybrid poetics. The
aim of this work was to investigate, from the theoretical scope of Cultural Studies, the processes of hybridization that
permeate the musical language of Bororó as a result of existential experiences, identity constructions and aesthetic
options. One of the results achieved is that the concept of hybridization, as operationalized by Bororó, comprises the
cultural mixture as a process of approximation and negotiation between disparate elements, a space where the
transversality of oblique powers is evident.
Keywords: Goiano musician Bororó; CD Fogaréu; Intercultural dialogues; Hybridizations; Performative identities.
Per Musi, no. 41, General Topics, e214114, 2021
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Clímaco, Magda Miranda; Souza, Ana Guimoar Rego; Aragão Manassés Barros. 2021.. Diálogos interculturais hibridações e construção identitária: estudo
do CD Fogaréu do músico goiano Bororó. Per Musi no. 41, General Topics: 1-20 e214114. DOI 10.35699/2317-6377.2021.35009
Diálogos interculturais, Hibridações e Construções Identiárias:
um Estudo do CD Fogaréu do Músico Goiano Bororó
Magda de Miranda Clímaco, Universidade Federal de Goiás, magdaclimaco@ufg.br
Ana Guiomar Rego Souza, Universidade Federal de Goiás, anaguiomar@ufg.br
Manassés Barros Aragão, Universidade Federal de Goiás, jazzmana@hotmail.com
1. Introdução
O compositor e contrabaixista Dimerval Felipe da Silva, conhecido no meio musical como Bororó, se define
como músico goiano. Mas, até onde é possível define-lo assim, frente à natureza acentuadamente híbrida
de sua produção? Quais são os trânsitos culturais privilegiados na música de Bororó? Como ela se configura?
A hipótese aqui colocada é que a goianidade a ser detectada na obra deste compositor se afasta das
concepções que reconhecem como representação de identidade tão somente tradições regionais tidas como
instâncias culturais “puras” ou “autênticas”. Boro interagiu com uma soma de culturas e tradições
distintas, efetivou um processo forjador de identidades de fronteiras, uma cultura compósita maturada
tanto na heterogeneidade de suas fontes, técnicas e campos de produção, quanto na interação e negociação
entre elementos culturais e poderes díspares. Esteve sempre implicado com um processo identitário
performático, que, no dizer de Hall (2014) consiste numa “celebração móvel”, formada e transformada
continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas
culturais que nos rodeiam. Processo identitário definido historicamente e não biologicamente (Hall 2014,
13). Nesta circunstância delineiam-se processos de hibridação cultural conforme definidos por BURKE (2006)
e Canclini (2011), dentre outros. Para o primeiro, as formas híbridas devem ser vistas como “o resultado de
encontros ltiplos e não como o resultado de um único encontro, quer encontros sucessivos adicionem
novos elementos à mistura quer reforcem os antigos elementos” (Burke 2006, 31). Para o segundo, essas
formas têm a ver com um processo em que diferentes poderes, em conflito e interação, se interagem numa
circunstância de “obliquidade”. Segundo este autor,
O incremento do processo de hibridação torna evidente que captamos muito pouco do
poder e só registramos os confrontos e as ações verticais. […] Mas não se trata
simplesmente de que, ao se superpor uma forma de dominação sobre as outras, elas se
potenciem. O que lhes dá eficácia é a obliquidade que estabelece na trama. Como discernir
onde acaba o poder étnico e onde começa o familiar ou as fronteiras entre o poder político
e o econômico? Às vezes é possível, mas o que mais conta é a astúcia com que os fios se
mesclam, com que se passam ordens secretas e são respondidas afirmativamente.
(Canclini 2011, 346-347)
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Clímaco, Magda Miranda; Souza, Ana Guimoar Rego; Aragão Manassés Barros. 2021.. Diálogos interculturais hibridações e construção identitária: estudo
do CD Fogaréu do músico goiano Bororó. Per Musi no. 41, General Topics: 1-20 e214114. DOI 10.35699/2317-6377.2021.35009
Reflexões que apontam para um processo complexo que se afasta radicalmente das concepções que
defendem a essencialidade e a pureza das culturas. Vargas (2007), remetendo-se aos poderes oblíquos e
referindo-se de forma mais direta à obra musical, afirma que
Numa obra de perfil híbrido, não somente um elemento em questão, mas um leque
efetivo de determinantes, referentes e configurações que funcionam de forma complexa…
o híbrido é um produto instável e uma mescla de elementos e tende a colocar em xeque
as determinações teóricas unidirecionais feitas sobre ele. (Vargas 2007, 20).
É nesse sentido que a obra de Bororó foi pensada neste trabalho. Tem a ver com esse enfoque dos processos
de hibridação que leva a outra concepção dos processos identitários, tornando mais complexa a abordagem
dos vetores que marcam a “goianidade” do compositor. Um contexto que pediu a investigação de sua
trajetória de vida e trajetória musical, a busca das relações que podem ser estabelecidas entre estas
trajetórias, a sua obra e o cenário sócio histórico e cultural com o qual interagem, para que pudessem ser
identificados os processos identitários que se dão através do representacional
1
. Antes destes
procedimentos, no entanto, se fez necessário refletir um pouco mais sobre processos de hibridação cultural.
2. Sobre o conceito de hibridação e denominações outras
Segundo Canclini (2011), na trajetória das discussões sobre cultura, duas vertentes se encontram em
oposição. De um lado, uma vertente que defende a existência de culturas puras, onde se situam tanto os
tradicionalistas quanto os modernizadores, os quais quiseram construir objetos puros:
Os primeiros imaginaram culturas nacionais e populares “autênticas”: procuraram
preservá-las da industrialização, da massificação urbana e das influências estrangeiras. Os
modernizadores conceberam uma arte pela arte, um saber pelo saber, sem fronteiras
territoriais, e confiaram à experimentação e à inovação autônoma suas fantasias de
progresso (Canclini 2011, 21)
De outro lado, está a vertente onde se situam aqueles que defendem a complexidade e a inevitabilidade da
multiplicidade das relações culturais, tornadas sobremaneira evidentes e acentuadas pela “compressão
tempo/espaço”. Compressão tempo/espaço ocasionada, ao longo das cinco últimas décadas que foram
chamadas pós-modernas por autores como Harvey (2012;2005) e Hall (2014), pela ampliação das
possibilidades de comunicação e transporte advindas do contato com as novas mídias e do investimento em
meios de transportes muito rápidos. Circunstância que facilitou e intensificou os encontros culturais,
1
Chartier (2002), ao se referir ao representacional, forjador de processos identitários, reflete sobre uma
modalidade de conhecimento cotidiano, partilhado, que tem como suporte o simbólico, e que se objetiva
nas práticas, obras e configurações intelectuais de um grupo ou de um indivíduo, evidenciando valorações,
classificações, categorizações, realizadas por esse grupo e indivíduo. Hall (2014) entende que os processos
identitários se dão através de representacional, e, Moscovici (1978), afirma que as representações se
consistem em importante instrumento de trabalho, o que o levou a abordar as três dimensões implicadas
com o representacional: o campo da representação (no qual se destacam as figura, imagens e os conceitos);
a atitude (julgamento de valor ou posição positiva, negativa ou neutra do sujeito sobre o objeto da
representação) e a informação ( a organização do conhecimento que um grupo ou indivíduo apresenta do
objeto).
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Clímaco, Magda Miranda; Souza, Ana Guimoar Rego; Aragão Manassés Barros. 2021.. Diálogos interculturais hibridações e construção identitária: estudo
do CD Fogaréu do músico goiano Bororó. Per Musi no. 41, General Topics: 1-20 e214114. DOI 10.35699/2317-6377.2021.35009
resultando processos de hibridação acentuados em todas as áreas do conhecimento humano, inclusive a
musical. Conforme Burke (2006),
[...] por mais que reajamos a ela (a globalização), não conseguimos nos livrar da tendência
global para a mistura e a hibridização (...). Este processo é particularmente óbvio no campo
musical no caso de formas e gêneros híbridos como o jazz, o reggae, a salsa ou o rock afro-
celta mais recentemente. Novas tecnologias, inclusive a ‘mesa de mixagem’, obviamente
facilitaram esse tipo de hibridização. (Burke 2006, 14-15)
Na verdade, a tendência das teorias da cultura hoje, mesmo daquelas tradicionalmente consideradas
fechadas às influências externas, é afirmar que os trânsitos e cruzamentos culturais se constituem em
processo subjacente à configuração cultural, inclusive no referente às inserções midiáticas, às acuradas
tecnologias e aos processos relacionados a projetos e à produção cultural, que, entrecruzados com os
sentidos e significados culturais, constituindo a articulação simbólica que constitui a trama cultural (Geertz,
1989), ajudam a delinear as possibilidades colocadas pela transversalidade dos poderes oblíquos.
Imersos também nestas reflexões, autores como Canclini (2011) e Burke (2006) defendem que o conceito
de hibridismo
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surge como alternativa analítica para se romper com os binarismos e as concepções
essencialistas e unívocas. Chamam atenção para o fato de que para nomear os processos de cruzamentos
culturais tem-se usado termos como hibridação, mestiçagem, sincretismo, 'crioulização', fusão, polifonia,
tradução, dentre outros. Referente à expressão utilizada para denominar estes processos, a preferência ora
recai sobre um ou outro termo, com os autores fundamentando sua preferência na etimologia das palavras,
na contaminação de sentido advindo do campo de produção que originou o conceito, na análise dos
produtos dos cruzamentos, nas visões de mundo que determinam pré-conceitos etc. Independentemente
de qual seja a opção por esta ou aquela expressão, no entanto, é consenso no âmbito dos Estudos Culturais
e dos Estudos Pós-coloniais, que tais termos referem-se à “mistura de elementos distintos que não perdem
sua especificidade” (Cattani 2007, 11), configurando-se sempre em equilíbrio flutuante de tensões, o que
mais uma vez remete à concepção de poderes oblíquos de Canclini (2011). Em outras palavras, não se trata
de mascarar ou camuflar desigualdades, legitimar discursos de poder e discriminação de qualquer ordem,
mas, de uma perspectiva teórica que nega a pureza e coerência intrínseca de procedimentos. Para Cattani
(2007), referindo-se de forma direta à produção artística,
[...] em oposição à pureza, a produção artística contemporânea aceita as contaminações
provocadas pelas coexistências de elementos diferentes e opostos entre si, como, por
exemplo, a coexistência de imagens e palavras, cujo sentido permanece no entremeio dos
dois universos, ressignificando-se, recontaminando-se mutuamente. (Cattani 2007, 22)
Em princípio, qualquer uma das metáforas apresentadas poderia ser usada para denominar processos de
cruzamento cultural. No Brasil, entretanto, a forte carga semântica trazida pelos termos mestiçagem e
crioulização, outrora utilizados para significar misturas específicas (raciais, sobretudo), limita o seu emprego,
além do que apresentam pouco poder explicativo para abarcar as formas mais contemporâneas de
cruzamentos culturais. Sincretismo também é um termo polêmico: além de designar mesclas entre religiões
e rituais, “pressupõe contaminação e inautenticidade, acreditando-se que uma suposta tradição pura
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Este conceito é utilizado por estudiosos da cultura como Néstor Canclini (2011), Peter Burke (2006), Homi
Bhabha (2003), Stuart Hall (2014), Martín Barbero (1996), dentre outros.
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Clímaco, Magda Miranda; Souza, Ana Guimoar Rego; Aragão Manassés Barros. 2021.. Diálogos interculturais hibridações e construção identitária: estudo
do CD Fogaréu do músico goiano Bororó. Per Musi no. 41, General Topics: 1-20 e214114. DOI 10.35699/2317-6377.2021.35009
recebera infiltrações de símbolos de outra tradição aparentemente incompatível” (Previtalli 2013, 23).
“tradução cultural” traz a ideia preconceituosa de que uma cultura poderia se apropriar inadequadamente
de práticas que não compreende. É o que adverte Burke, muito embora sua preferência pela expressão. O
autor observa que para os doadores, “qualquer adaptação ou tradução de sua cultura parece ser um erro,
enquanto os receptores podem igualmente perceber seus ajustes como correção dos enganos” (Burke 2006,
60). Frente a essa abundância de terminologias, cabe perguntar junto com Canclini (2011):
[...] é possível colocar sob um só termo fatos tão variados quanto os casamentos mestiços,
a combinação de ancestrais africanos, figuras indígenas e santos católicos na umbanda
brasileira, as collages publicitárias de monumentos históricos com bebidas e carros
esportivos? (Canclini 2011, XX)
Respondendo esta questão, o autor observa que é o processo em si, que mescla culturas sujeitas a
circunstâncias de conflito, interação e negociação em um mesmo contexto, subtendendo uma trama de
poderes oblíquos, um processo que geralmente é percebido por aqueles que adotam a expressão hibridação
cultural. Sem deixar de chamar atenção para as intensas práticas globalizadas na pós-modernidade, para as
circunstâncias relacionadas a um multiculturalismo que se converte em interculturalidade, afirma:
Nas condições de globalização atuais, encontro cada vez mais razões para empregar os
conceitos de [...] hibridação. Mas ao se intensificarem as interculturalidades migratórias,
econômica e midiática, -se, como explicam François Laplantine e Alexis Nouss, que não
somente “a fusão, a coesão, a osmose e, sim, a confrontação e o diálogo”. Neste tempo
[...] o pensamento e as práticas mestiças são recursos para reconhecer o diferente e
elaborar as tensões das diferenças. A hibridação como processo de intersecção e
transações, é o que torna possível que a multiculturalidade evite o que tem de segregação
e se converta em interculturalidade. As políticas de hibridação serviriam para trabalhar
democraticamente com as divergências, para que a história não se reduza a guerras entre
culturas, como imagina Samuel Huntington. Podemos escolher viver em estado de guerra
ou em estado de hibridação. [...] Por isso, convém insistir em que o objeto de estudo não
é a hibridez e, sim, os processos de hibridação. Assim é possível reconhecer o que contém
de desgarre e o que não chega a fundir-se. Uma teoria não ingênua da hibridação é
inseparável de uma consciência crítica de seus limites, do que não se deixa hibridar, ou
não quer ou não pode ser hibridado. (Canclini 2011, XXVI-XXVII). [Grifo nosso]
Acreditamos, pois, que a metáfora da hibridação, por sua maior neutralidade e suas implicações mais diretas
com o processo de mistura em si, inerente, sobretudo, ao tempo em que vigora “a compressão
tempo/espaço” característica da pós-modernidade, funciona melhor que as demais. Concordando com
Bernd (2004), que também menciona Canclini, pode ser afirmado que os termos híbrido e hibridação vêm
sendo utilizados, sobretudo pela crítica pós-moderna, preferentemente aos termos mestiçagem ou
sincretismo. Mestiçagem estaria principalmente associado à mistura de raças, no sentido, portanto, de
miscigenação, enquanto sincretismo à mistura de diferentes credos religiosos. Assim, hibridação seria a
expressão mais apropriada quando queremos marcar diversas mesclas interculturais (Bernd 2004, 100)
Foi levando em consideração estas reflexões, que a utilização do termo hibridação para a mistura de
mesclas culturais que se interagem num mesmo processo sem se fundirem, propiciando a observação de
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Clímaco, Magda Miranda; Souza, Ana Guimoar Rego; Aragão Manassés Barros. 2021.. Diálogos interculturais hibridações e construção identitária: estudo
do CD Fogaréu do músico goiano Bororó. Per Musi no. 41, General Topics: 1-20 e214114. DOI 10.35699/2317-6377.2021.35009
poderes oblíquos, que propusemos analisar o trabalho de Bororó. Temos em vista processos desenvolvidos
por este músico que levam a reflexões sobre vieses identitários goianos sempre em construção. Não se
trata da abordagem de processos identitários solidificados, puros, autênticos, mas da obra de um goiano
sujeito a vários e constantes encontros na sua trajetória de vida e na sua trajetória musical, propiciadores
de circunstâncias caracterizadas por conflitos, interações e negociações culturais. Concordamos com
Canclini (2011) quando afirma que vários estudos sobre cruzamentos culturais costumam se deter em
aspectos descritivos, pouco avançando com relação à sua “capacidade hermenêutica” (Canclini 2011, XXIV).
Nesse sentido, entendemos a necessidade de analisar não produtos híbridos, mas, sobretudo, os
processos que estão em sua base. No caso, entrecruzamos percursos, experiências e intenções do
compositor Bororó no cenário pós-moderno descrito por Harvey (2012) e Hall (2014) com aspetos
resultantes da sua produção cultural e poética incorporados no CD Fogaréu.
3. Bororó: percursos e experiências
Desde cedo Boroviveu experiências culturais diversas, seja em termos de sua trajetória vital, seja em
termos dos espaços de performance ou dos campos de produção musical onde atuou. Pertence àquela classe
de músicos definidos por Canclini (2011) como “artistas liminares “da ubiquidade”, cujos trabalhos
“conseguem representar a heterogeneidade multitemporal” (Canclini 2011, 367).
Nascido na cidade de Goiânia/Goiás em 16 de setembro de 1953, seu primeiro contato com a música veio
do convívio familiar. Sua mãe tocava acordeom e seu pai violão e, mesmo “na sua simplicidade” (conforme
palavras colhidas no seu relato), os pais o acostumaram a escutar um repertório variado. Este repertório
incluía compositores como Dilermando Reis, Garoto, Cascatinha e Inhana, Tonico e Tinoco, Ernesto
Nazareth e Heitor Villa Lobos, dentre muitos outros, numa circunstância que o levou a se acostumar com
um mundo musical sem fronteiras. Para Bororó, o contato com a obra desses e de tantos outros artistas
possibilitou, adulto, a percepção do significado de alguns processos relacionados à arte, a linguagens
próprias e a processos criativos, num universo maior de interações culturais. No seu dizer, acredita que
“desconsiderar as diferentes influências que a vida nos proporciona, plurais por natureza, empobrece ou
mesmo inviabiliza a criação.” Rememorando as influências recebidas da família e da sua trajetória como
criador sujeito a encontros culturais constantes, assim como a relevância de se ter consciência da
permanência de alguns elementos relativos a esses processos no momento da criação, observou:
Permaneceu também a sabedoria adquirida através de todas essas informações e a não
compreensão e desconsideração dos exemplos citados aqui significa não chegar a lugar
algum, pois como fazer arte sem essa consciência? Uma vez que você consegue chegar a
esse nível de compreensão, não há a possibilidade do não, pois quando você executa um
instrumento, quando você compõe, quando você faz um arranjo, isso tudo é criação
(Entrevista com Bororó 2008).
3
Foi observando seu pai nas Folias de Reis que Bororó “pegou” no violão para fazer seus primeiros acordes.
Posteriormente, fez amizade com os músicos de um conjunto de baile da cidade de Belo Horizonte. Assistiu
3
Silva, Dimerval Felipe. 2008. Entrevista concedida ao pesquisador Manassés de B. Aragão. agosto de 2008.
Goiânia. Foi concedida outra entrevista ao pesquisador em julho de 2017 no mesmo local. A referência a
cada uma destas duas entrevistas, daqui em diante, será feita através da data: Bororó (2008); Bororó (2017).
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Clímaco, Magda Miranda; Souza, Ana Guimoar Rego; Aragão Manassés Barros. 2021.. Diálogos interculturais hibridações e construção identitária: estudo
do CD Fogaréu do músico goiano Bororó. Per Musi no. 41, General Topics: 1-20 e214114. DOI 10.35699/2317-6377.2021.35009
por um ano aos ensaios do grupo e, nas pausas desses ensaios, aproveitou para treinar bateria. Certo dia
substituiu o baterista em um show e, após essa primeira apresentação, continuou tocando com o grupo
por mais seis anos, ou seja, de seus doze anos aos dezoito. Com esse conjunto viajou pelo interior de Minas
Gerais e, orientado pelo pai, em cada localidade visitada, procurava os músicos mais velhos para adquirir
conhecimento sobre a cultura local. Atuando na banda conheceu sicos como Eli, baterista do 14 Bis,
Flávio Venturini e Beto Guedes, que na ocasião tocavam em conjuntos de baile e que, mais tarde, viriam a
integrar o famoso Clube da Esquina
4
.
Da bateria passou para o contrabaixo, tornando-se um dos grandes nomes do contrabaixo elétrico no Brasil.
Formou trios, quartetos e quintetos para tocar e apresentar em teatros, visando suas próprias composições.
O primeiro cenário foi o teatro Marília, situado no parque municipal no centro de Belo Horizonte, que lhe
propiciou a percepção da importância do papel do artista, sua responsabilidade no referente às questões
social, cultural e ambiental, que acreditava interferir nos processos e performance do mesmo. No seu
relato, observou:
Quando pisei pela primeira vez no palco de um teatro (Teatro Marília em BH) pude
perceber a importância do artista dentro da cultura brasileira. Porque você passa a adquirir
consciência da importância do seu papel enquanto artista, sendo este responsável por fazer
referência à questão social, cultural e ambiental (Entrevista com Bororó 2008)
Em 1970 Bororó voltou para Goiânia, sua cidade natal, continuando a tocar em Bandas de Baile. Sua estreia
foi no grupo Tropical Som 7. Nesta banda conheceu o contrabaixista de codinome Quati (Waldir Moreira
Antão), que o impressionou por sua maneira peculiar de improvisar e o inspirou a encarar o desafio de
aprimorar mais o desempenho no contrabaixo. Com esse instrumento integrou a Banda Aquário 7, e, ainda
nos anos de 1970, atuou em várias boates da cidade, tocou contrabaixo no Circo gico Tiani, participou
igualmente dos festivais de música realizados em Goiânia. Considera a realização destes festivais um
momento especial para a música goianiense, vez que oportunizou o encontro dos goianos com músicos de
várias tendências e propostas.
Por outro lado, interagindo com outra dimensão cultural na companhia de Braz Wilson Pompeu de Pina,
Sérgio Leão e Maestro Oscarlino, participou da fundação da Orquestra Sinfônica de Goiânia. Sua caminhada
no universo da música de concerto não foi fácil, já que integrar uma orquestra exigia o domínio da leitura de
partituras, e ele não tinha este domínio. Com a ajuda de Sérgio Leão (o spalla da orquestra) aprendeu a ler
música. Na Orquestra Sinfônica de Goiânia, sob a regência de Braz de Pina, executou Beethoven, Guerra
Peixe, Mozart, Tonico do Padre
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, dentre outros compositores. Muito desse conhecimento, convívio,
experiência e interação, foi incorporado por ele nos seus processos de criação musical. O relato de Bororó
revela esta sua experiência com outra dimensão cultural, evidenciando também a sua interação com
processos de criação e a natureza porosa das fronteiras entre a música de concerto e a música popular, as
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O Clube da Esquina se consistiu em um movimento musical nascido na década de 1960 em Minas Gerais.
Seus principais membros foram Tavinho Moura, Wagner Tiso, Milton Nascimento, Lô Borges, Beto Guedes,
Flávio Venturini, Toninho Horta, Márcio Borges, Fernando Brant e os integrantes do 14 Bis, dentre outros.
5
Antônio da Costa Nascimento o Tonico do Padre compositor goiano que atuou na cidade de Pirenópolis,
antiga Meia Ponte, no final do século XIX. Compositor de música sacra, regente de banda, compôs também
para esta fomação instrumental.
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Clímaco, Magda Miranda; Souza, Ana Guimoar Rego; Aragão Manassés Barros. 2021.. Diálogos interculturais hibridações e construção identitária: estudo
do CD Fogaréu do músico goiano Bororó. Per Musi no. 41, General Topics: 1-20 e214114. DOI 10.35699/2317-6377.2021.35009
circunstâncias de “negociação” que efetivou ao entrecruzar alguns elementos destas duas dimensões
culturais:
Toquei na OSG (Orquestra Sinfônica de Goiás) por um período de cinco anos. Esse tempo
foi o suficiente para compreender o que é contraponto, composição, fuga e como executar
um instrumento com clareza, com limpeza, sem sujar o som, aprendendo como apurar a
técnica. A experiência do popular e do erudito que tive, ora ouvindo Pixinguinha, Tom
Jobim etc., e vários dos nossos grandes mestres eruditos - os quais durante um tempo eu
apenas ouvia e depois tive a oportunidade de executá-los -, veio enriquecer o meu
aprendizado, juntando o popular e o erudito. Não tenha dúvida que não para executar
uma música ou compor uma música, fica menos dificultoso. Essa ampliação do
conhecimento oferece certa facilidade para trilhar os caminhos da criação e da execução
no que se refere ao instrumentista. A bem da verdade, a inspiração surge a qualquer
momento; melhor dizendo, a todo o momento. Mas, para se fazer um trabalho de
qualidade, é preciso ter transpiração, muito trabalho... É ralação mesmo (Entrevista com
Bororó 2008).
Bororó se transferiu para o Rio de Janeiro em 1980, ali residindo por trinta anos. Novamente trabalhou como
contrabaixista junto a nomes reconhecidos da música popular brasileira, valendo destacar que o seu
primeiro trabalho de peso nesta cidade foi com o poeta Carlos Drummond de Andrade e com o maestro
Radamés Gnattali. Além desses dois nomes emblemáticos, atuou também com figuras da música popular
brasileira como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Ivan Lins, Sivuca, Gal Costa, Simone, Dory
Caimmy, Chico Buarque, Sérgio Ricardo, Ney Lopes, Walter Alfaiate, Martinho da Vila, Zeca Pagodinho,
Alcione, Leny Andrade, Fundo de Quintal, Zeca Baleiro, João Donato, João Bosco, Flávio Venturini, Martinho
da Vila, dentre outros.
As viagens pelo exterior, por sua vez, o levaram a conhecer diferentes culturas, tradições e inovações,
reforçando suas convicções acerca do potencial criativo e da responsabilidade social implicados com a
atuação do artista. Nessas viagens se apresentou em importantes eventos tais como o Festival de Monterrey
nos Estados Unidos, o Festival Montreux na Suíça, o North Sea Jazz Festival em Haia (hoje realizado em
Rotterdam), o Festival de Varadero em Cuba (onde chegou a tocar com Pablo Milanez e Sílvio Rodrigues), o
Festival do Avante (o partido comunista em Portugal) onde teve a oportunidade de interagir com 300 mil
pessoas. Apresentou-se também com Beth Carvalho na Argentina, com a participação de Mercedes Sosa.
Bororó destaca, no entanto, como um marco importante na sua atuação como músico, a temporada que
esteve viajando pela África subsaariana realizando um trabalho voltado para o desenvolvimento social
através da música. Esta viagem foi realizada em companhia do compositor e cineasta Sergio Ricardo e do
antropólogo, sociólogo e educador Darcy Ribeiro. Além do reencontro com aspectos de sua identidade afro-
brasileira, da compreensão do valor da música como vetor significativo para o desenvolvimento social, as
experiências ali vividas lhe proporcionaram a compreensão e o domínio da rítmica africana, o que acabou
por definir alguns vetores de sua identidade musical e do trabalho social e musical desenvolvido junto aos
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Clímaco, Magda Miranda; Souza, Ana Guimoar Rego; Aragão Manassés Barros. 2021.. Diálogos interculturais hibridações e construção identitária: estudo
do CD Fogaréu do músico goiano Bororó. Per Musi no. 41, General Topics: 1-20 e214114. DOI 10.35699/2317-6377.2021.35009
quilombolas do norte de Goiás - os Kalungas
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- da região de Cavalcante, Teresina e Monte Alegre. Esta
circunstância levou á produção do CD Brasil Nação Kalunga.
Consciente das mesclas culturais que coloca em ação em um mesmo processo, Bororó entende a hibridação
cultural como um processo de “desconstruir para construir”. Isso é o novo para o músico. Nas suas palavras,
hibridar “não é uma simples questão de moda, juntar por juntar, na pós-modernidade ‘todos’ parecem
querer fundir coisas” (Entrevista com Boro2008). Foi respeitando a pluralidade de práticas, objetos e
pessoas, que o músico considera ter alcançado uma estética e plasticidade diferenciadas, a consciência da
diferença via a construção do eu frente ao outro. A consciência de que seu trabalho fazia interagir expressões
musicais diversas que, juntas, colocavam em circuito diferentes poderes, sentidos, significados e
questionamentos, além do entrecruzamento com circuitos políticos, econômicos e midiáticos. E, neste
processo, entende que é preciso desconstruir para construir. Isso é o novo para Bororó e é daí que vem a
sua compreensão do que significa hibridação. Acredita que o fechamento para as diferentes dimensões da
cultura empobrece a arte. O seu depoimento aponta para essas reflexões, pois segundo este músico,
é preciso que o artista enxergue por vários ângulos as questões culturais para que possa se
posicionar melhor, afinal de contas somos formadores de opinião. Sergio Ricardo tem uma
frase que não esqueço: “não se brinca com o poder do povo, porque o poder do povo é
bem maior.” Como podem perceber em primeiro lugar é o ser humano, é o cidadão comum
sabendo se posicionar, depois, vem a música e o músico. E como propor algo sem
consciência? (Entrevista com Bororó 2017).
O contato com esta trajetória de vida e com a trajetória musical do compositor, que aponta para algumas
bases de sua produção acentuadamente híbrida, assim como revela a consciência do papel social e cultural
do artista e as possibilidades colocadas por processos de hibridação cultural em que poderes oblíquos se
delineiam, é que levou, neste trabalho, à análise do CD Fogaréu
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.
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As comunidades quilombolas, em número de 62, contemplam uma população de cerca de 4 mil habitantes
que se espalham pelos 262 mil hectares do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga: Vão de Alma, Vão
Contenda, Riachão, Ribeirão, Engenho, Vão do Moleque, Sucuri, Corriola, Ema, Taboca, Areia, Maiadinha e
Capela, dentre outros. São nomes atribuídos a algumas comunidades, que fazem alusão aos animais, rios,
natureza, frutos do Cerrado e eventos históricos e/ou religiosos. Isso desvela territorialidades
consubstanciadas na vivência e relação intrínseca dos Kalunga com seu ambiente. Cf. Disponível em:
<https://confins.revues.org/11392> Acessado em: 14 jan 2018
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Ao se efetivar a análise das músicas que integram este CD, em termos metodológicos, Ferrara (1984) foi
lembrado, quando, enfocando diretamente a análise musical, propõe a abordagem de alguns elementos do
método fenomenológico na efetivação das análises sintática (análise da organização sonora em si),
semântica (identificação de significantes na estrutura musical) e ontológica (relação desses significantes com
significados percebidos no estudo do cenário sociocultural e na biografia do compositor). Análises que
acontecem de forma intrincada, sem obedecer a uma ordem sequencial, depois de se iniciar e estar sempre
alternando com uma audição aberta, ou seja, com uma audição repetida e insistente das músicas analisadas
pelo pesquisador, nesse momento despido de sua erudição e da percepção dos dados já colhidos. Erudição
e percepção dos dados já colhidos no estudo do cenário sociocultural e da biografia de Bororó, necessários
na efetivação das modalidades de análise citadas, e que contribuirão para a percepção da evidência de
representações sociais, forjadoras de processos identitários.
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Clímaco, Magda Miranda; Souza, Ana Guimoar Rego; Aragão Manassés Barros. 2021.. Diálogos interculturais hibridações e construção identitária: estudo
do CD Fogaréu do músico goiano Bororó. Per Musi no. 41, General Topics: 1-20 e214114. DOI 10.35699/2317-6377.2021.35009
4. CD FOGARÉU: narrativas que se cruzam
O CD Fogaréu foi produzido no ano de 2003, nos estúdios GBS MUSIC STUDIO/RJ. CIA DOS TÉCNICOS/RJ
(Cordas), E.G. ESTÚDIO/RJ (Mixagem). Treze músicas que o integram são as seguintes: Janelas de Goiás
(Dimerval Felipe da Silva - Bororó: letra e música), Quantos terém tu tem(Dimerval Felipe da Silva - Bororó:
música/Carlos Ribeiro: letra), Tochas da (Dimerval Felipe da Silva - Bororó: música/Carlos Ribeiro: letra),
Vai lá vem cá (Dimerval Felipe da Silva - Bororó: música e Carlos Ribeiro: letra), Ladainha (Dimerval Felipe da
Silva -Bororó: música/Carlos Ribeiro: letra), Na orelha do pandeiro (Dimerval Felipe da Silva - Bororó: música
/ Lúcia Helena e Aldir Blanc: letra), Vão das almas Nação Kalunga (Dimerval Felipe da Silva - Bororó). São
músicas instrumentais com aportes vocais: Fogaréu (Dimerval Felipe da Silva - Bororó/Sérgio Leão), Caminho
das Pedras (Dimerval Felipe da Silva - Bororó), São Luiz dos Montes Belos (Dimerval Felipe da Silva -
Bororó/Luiz Augusto), Elo (Dimerval Felipe da Silva -Bororó/Lílian), De Del Rei a Vila Boa (Dimerval Felipe da
Silva -Bororó/Yuri Popoff), Serra Dourada (Dimerval Felipe da Silva - Bororó), Vão das almas Nação Kalunga
(Dimerval Felipe da Silva Bororó). Para o compositor, este CD consiste em
[...] um trabalho que dialoga com variadas manifestações culturais goianas, buscando
também elementos de outros estados e todas aquelas manifestações culturais que
podemos traduzir como correntes socioculturais as quais nos deram origem, tais como as
provindas dos troncos Banto e Ioruba, tronco latino, neolatino e celta-ibérico e a tradição
moçárabe (...). Como resultado, pudemos atingir uma identidade própria trabalhando com
diversos elementos para obtenção de uma estética e plasticidade diferenciadas (Entrevista
com Bororó 2008)
Figura 1: Capa do CD Fogaréu, que traz a foto de Bororó. Foto de KIM-IR-SEN (2003)
Bororó considera que o CD Fogaréu, cuja capa é evidenciada pela Figura 1, remete à sua condição de goiano,
na relação com alguns dos processos de hibridação que realizou. Processos esses que falam também da
condição sociocultural de sua ancestralidade africana/europeia e das peculiaridades que foram resultantes
desse processo em terras goianas. O CD faz referência à procissão do Fogaréu, uma tradição goiana e
manifestação popular que dramatiza a perseguição à Jesus Cristo, e que se efetiva através de um cortejo
realizado na cidade de Goiás (antiga Vila Boa de Goiás) na Quarta-feira Santa. Bororó escolheu esta tradição
como uma espécie de metáfora do conhecimento, do autoconhecimento, englobante de eventos, tradições,
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Clímaco, Magda Miranda; Souza, Ana Guimoar Rego; Aragão Manassés Barros. 2021.. Diálogos interculturais hibridações e construção identitária: estudo
do CD Fogaréu do músico goiano Bororó. Per Musi no. 41, General Topics: 1-20 e214114. DOI 10.35699/2317-6377.2021.35009
personagens, que se entrecruzam na constituição de memórias afetivas e coletivas, de trajetórias que
definem pertencimentos, estranhamentos, esquecimentos, que provocam questionamentos e preocupações
sociais. No seu dizer, essa metáfora tem a ver com a
[...] chama da alma, chama do coração, chama efervescente da mente, busca incessante
para respostas às questões humanas, sociais e culturais, que desafiam a vida nesse século
conturbado. Busca do ser na sua essência, na sua profundidade, chama acesa buscando
caminhos para elucidar os fatos através do meu trabalho... a chama da minha alma
clamando por algo que pudesse traduzir, através da música e dos poemas de Carlos Ribeiro,
uma imagem do nosso país, da nossa cultura (Entrevista com Bororó 2017).
Por outro lado, apesar da Procissão do Fogaréu se oferecer ao mundo como o “retrato festivo” de Goiás mais
veiculado pela mídia televisiva, como expressão de ancestralidade, na verdade se constitui como “tradição
inventada”, nos termos de Hobsbawn (2002), e, como tal, se fez produto híbrido. Um produto híbrido onde
se mesclam diferentes temporalidades, imagens, sentidos, significados, sonoridades, gêneros e formas
performáticas (Figura 2), embaralhando os diferentes atores envolvidos (agentes de turismo, políticos,
empresários, dentre muitos outros) em uma polifonia áspera e pungente.
Figura 2: Montagem de fotografias da “Procissão do Fogaréu” realizada no ano 2007. Fotos e montagem realizadas pela pesquisadora Ana
Guiomar Rego Souza (2007).
O “mote” sonoro da Procissão do Fogaréu
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(Conferir QR Code) é evidenciado em apenas três das músicas
constantes: Janelas de Goiás (faixa1), Fogaréu (faixa3) e Tochas da (faixa5). As demais faixas fazem alusão
à Festa do Divino Pai Eterno de Trindade, às Romarias de Carros de Bois, às Festas do Divino, as Cavalhadas,
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QR Code 1. Paisagem Sonora da Procissão do Fogaréu. Gravação e edição de Ana Guiomar Rêgo Souza e
Paulo Guicheney Nunes
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Clímaco, Magda Miranda; Souza, Ana Guimoar Rego; Aragão Manassés Barros. 2021.. Diálogos interculturais hibridações e construção identitária: estudo
do CD Fogaréu do músico goiano Bororó. Per Musi no. 41, General Topics: 1-20 e214114. DOI 10.35699/2317-6377.2021.35009
às Folias de Reis e do Divino, no mesmo contexto plural de intenções e significações já mencionado. Aludem
também a personagens emblemáticos da cultura goiana, como os catireiros e violeiros, e a outros menos
visíveis, como o povo Kalunga, com o qual Bororó conviveu mais de perto, responsável por importantes
reflexões do compositor sobre o poder retórico e social de suas manifestações musicais.
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Estas abordagens
inspiraram também o mosaico de imagens que pode ser visualizado na contracapa de CD, ilustrado pela
Figura 3, que, juntamente com a letra da música Janelas de Goiás, chama atenção de forma significativa para
manifestações culturais goianas que devem “abrir as janelas de Goiás” para o Brasil, já que fazem parte dele
e não são conhecidas pela maioria dos brasileiros.
Figura 3: Mosaico de imagens presente na contracapa do CD Fogaréu. Fotos e montagem realizadas pelo próprio Dimerval Felipe da Silva
Bororó (2003).
Janelas de Goiás (faixa1 - QR code
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), portanto, letra e música de autoria de Bororó, funciona como uma
espécie de prólogo para o CD: um “canto de entrada” aos moldes das Folias, anunciando o conjunto de
tradições lembradas; uma colagem de imagens do que se considera, costumeiramente, marca de goianidade,
abertamente explicitado em sua letra. O próprio CD, na sua condição midiática, e a peculiaridade da
contracapa, uma montagem que clama o pertencimento de Goiás ao Brasil, colocando em foco letra e fotos
que deixam em evidência realidades socioculturais brasileiras, revelam naturalmente o resultado das
produções culturais e midiáticas com eles implicados. Junto aos símbolos e significados que evocam, dentre
outros elementos, ajudam a forjar a transversalidade dos poderes oblíquos já mencionados.
Em termos musicais, Janelas de Goiás traz as marcas dos cantos devocionais das Folias, das danças de São
Gonçalo e Santa Cruz, ou seja, um canto de entrada que, diferentemente dos cantos de folia originais,
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Em conversa informal junto aos alunos e professores da disciplina Música, Cultura e Sociedade do PPG da
Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás (EMAC/UFG) no mês de outubro de 2017,
Bororó falou de suas fortes impressões quando em contato com a música desta comunidade, a constatação
de que os músicos falavam com o corpo e com a voz sobre a sua realidade sócio-histórico e cultural, sua
ancestralidade, atualidade e perspectivas, o que fez com que estreitasse mais o contato com eles e
incorporasse em sua música elementos que também remetiam a circunstâncias desta realidade. Isso sem
deixar de trabalhar esses elementos no universo musical híbrido, que sempre se apresentou perpassado por
poderes oblíquos, que, neste caso, resultou o CD Brasil Nação Kalunga.
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QR Code é um código de barras bidimensional que pode ser lido por smartphones. Para ler o QR Code: a)
instalar no seu celular o aplicativo QR Code leitor; b) em seguida, abrir o aplicativo e posicionar a câmera do
seu dispositivo sobre o código e aguardar que a leitura seja feita.
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Clímaco, Magda Miranda; Souza, Ana Guimoar Rego; Aragão Manassés Barros. 2021.. Diálogos interculturais hibridações e construção identitária: estudo
do CD Fogaréu do músico goiano Bororó. Per Musi no. 41, General Topics: 1-20 e214114. DOI 10.35699/2317-6377.2021.35009
cantados em terças, é realizado em uníssono por vozes masculinas. Janelas de Goiás
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apresenta a forma
binária “AB” (aliás, como a maioria das músicas deste CD). A parte “A” inicia com o toque do bombo e caixa
clara
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(Exemplos 1 e 2), que conduz os passos acelerados dos Farricocos na Procissão do Fogaréu. Na parte
“B” observa-se a intervenção do ponteado de uma viola caipira que acompanha uma voz solo masculina.
Exemplo 1: Grafia aproximada do “Toque 1” da Procissão do Fogaréu. Fonte: Transcrição de Manassés B. Aragão.
Exemplo 2: Grafia aproximada do “Toque 2” da Procissão do Fogaréu. Fonte: Transcrição de Manassés B. Aragão
Tochas da
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contrapõe aos versos alusivos à Procissão do Fogaréu e aos seus ecos rítmicos
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, vozes que
contrariam o estereótipo da goianidade: harmonias e intervenções do sax-soprano de caráter jazzístico que
aparecem em contraponto com ritmos contramétricos de matriz africana, se opondo e desconstruindo o
caráter marcial da Procissão, evidenciando e chamando atenção para a sua inserção no cenário pós-
moderno. Circunstância que aponta para novas possibilidades interativas, mas também para um significativo
conflito entre sonoridades culturais. No final, uma referência a Debussy por meio de uma escala
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QR Code 2. Janelas de Goiás (Faixa 1 do CD Fogaréu).
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O toque do bombo e caixa clara aparece em releitura da base rítmica de caráter marcial da procissão.
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QR Code 3. Tochas da Fé (Faixa 5 do CD Fogaréu)
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A célula rítmica realizada pela caixa durante a Procissão do Fogaréu que faz intervenções durante toda
música.