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DOI: 10.35699/2317-6377.2021.35298
eISSN 2317-6377
Canção como gênero multimodal:
um estudo no ciclo Volare
Tadeu Moraes Taffarello
https://orcid.org/0000-0002-9952-1660
Universidade Estadual de Campinas, Centro de
Integração, Documentação e Difusão Cultural
tadeumt@unicamp.br
Maria Cristina de Moraes Taffarello
https://orcid.org/0000-0002-7767-5466
Centro Universitário Padre Anchieta (aposentada)
cristinataffarello@hotmail.com
SCIENTIFIC ARTICLE
Submitted date: 18 jul 2021
Final approval date: 15 aug 2021
Resumo: O artigo tem como objetivo discutir as formas como poema e música se inter-relacionam na construção dos
efeitos de sentido e seus desvios no gênero canção; e propor o entendimento da canção como um gênero multimodal.
Nossos objetos de estudo são as reflexões sobre as leituras dos poemas de Sônia Cintra (1949-2018) para a criação do
ciclo de canções Volare (2018), por Tadeu Taffarello, para voz feminina grave e orquestra de cordas. A canção será
debatida como gênero multimodal a partir de um enfoque interdisciplinar e os contextos de criação serão abordados.
As canções de Volare serão, ainda, agrupadas a partir de eixos temáticos, demonstrando a orquestração e a
estruturação global do ciclo. Como resultado final, pretende-se que possam ocorrer novas abordagens ao gênero
canção baseadas em uma perspectiva interdisciplinar, buscando abrir novas possibilidades de desenvolvimento
científico e colaborar na ampliação da compreensão do gênero canção e da música brasileira atual.
Palavras-chave: Canção; Multimodalidade; Composição musical; Sônia Cintra; Poesia.
TITLE: SONG AS MULTIMODAL GENRE: A STUDY IN THE CYCLE VOLARE
Abstract: The article aims to discuss ways in which poetry and music are interrelated in the construction of meanings
and their deviations in the song genre; and to propose the understanding of song as a multimodal genre. Our objects
of study are the reflections on the readings of Sônia Cintra's poems (1949-2018) for the creation of the song cycle
Volare (2018), undertaken by Tadeu Taffarello, for low-pitched female voice and string orchestra. Adopting an
interdisciplinary approach, song will be discussed as a multimodal genre and the creation contexts will be presented.
Then, the songs from Volares will be grouped according to the thematic axes, demonstrating the orchestration and
global structuring of the cycle. As a final result, it is intended that new approaches to the song genre may occur, based
on an interdisciplinary perspective that seeks to open up new possibilities for scientific development and to collaborate
for the understanding of the song genre and of current Brazilian music.
Keywords: Song genre; Multimodality; Musical composition; Sônia Cintra; Poetry.
Per Musi, no. 41, General Topics, e214118, 2021
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Taffarello, Tadeu Moraes; Taffarello, Maria Cristina de Moraes. 2021. “Canção como gênero multimodal: um estudo no ciclo Volare
Per Musi no. 41, General Topics: 1-35. e214118. DOI 10.35699/2317-6377.2021.35298
Canção como gênero multimodal:
um estudo no ciclo Volare
Tadeu Moraes Taffarello, Universidade Estadual de Campinas, tadeumt@unicamp.br
Maria Cristina de Moraes Taffarello, Centro Universitário Padre Anchieta (aposentada),
cristinataffarello@hotmail.com
1. Introdução
O gênero canção envolve a junção de duas modalidades de expressão artística, o poema e a música. Para
Stein e Spillman (1996), a essência da canção é “uma igualdade de música e texto, uma síntese de uma nova
forma de arte a partir de duas mídias distintas.”
1
Partindo desse princípio, o presente trabalho pretende
discutir maneiras pelas quais poema e música se inter-relacionam na busca da construção de efeitos de
sentidos e seus desvios no gênero canção. Inicialmente, discorrer-se-á sobre o conceito de “texto” e suas
perspectivas para pensarmos a canção como um gênero multimodal. Em um segundo momento, aplicar-se-
ão tais reflexões na explanação dos contextos e das leituras feitas para a criação do ciclo de canções Volare
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(2018), para voz feminina grave e orquestra de cordas, com música composta por Tadeu Taffarello utilizando
poemas de Sônia Cintra (1949-2018).
2. Canção como gênero multimodal
Com o desenvolvimento do campo de estudos da Linguística Textual o conceito de texto foi sendo, aos
poucos, ampliado. Atualmente, é aceitável dizer que um texto é uma forma de interação e de representação
do mundo que possibilita transformá-lo ao mesmo tempo em que tece sua reconstrução por meio de
profícua criação de sentidos.
O texto é a unidade funcional que não somente permite a interação, como também
viabiliza diversas formas de representar o mundo, de transformá-lo e de, a um só tempo,
reconstruir-se a partir dessa dinâmica emergência dos sentidos, que envolve toda espécie
1
Traduzido a partir do original em inglês: The essence of song (...) is an equality of music and text, a synthesis
of a new art form out of two disparate media.
2
O ciclo de canções Volare, em sua versão resumida, foi estreado na Sala Cecília Meireles durante a 23ª
Bienal de Música Brasileira Contemporânea realizada no ano de 2019 no Rio de Janeiro-RJ pela Fundação
Nacional de Artes (Funarte). Participou da estreia a cantora Andrea Adour, acompanhada pela Orquestra
Sinfônica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sob regência do maestro Thiago Santos. O deo
da estreia está disponível em https://youtu.be/DERt2BA_lmI?t=402 . Acesso em 25 abr. 2021.
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de heterogeneidades enunciativas, dentre elas as relações intertextuais e interdiscursivas.
(Bentes e Leite 2010)
Um texto é sempre heterogêneo, aberto a relações e interações com outros textos e discursos. Antes de
detalharmos essa ideia, será importante perceber que a capacidade de manifestação textual do ser humano
adquire diferentes formas. A textualidade de um texto, isto é, aquilo que faz com que um texto seja um
texto, pode ocorrer não apenas de maneira verbal, por meio do uso da língua escrita ou falada, mas também
por meio de outros sistemas de signos, sendo estes compreendidos por textos não verbais. As autoras Fávero
e Koch (2000) discorrem sobre a ampliação da noção de texto para mídias de textualizações variadas que
não os textos verbais:
Os textos empíricos individuais podem ser considerados como realizações verbais
(“textualizações”) de sua textualidade. Estas noções permitem adotar a posição de que os
mídias da textualização podem adquirir formas variadas, de tal modo que não só os textos
verbais, mas também pictóricos, arquitetônicos, fílmicos ou quaisquer outros podem ser
concebidos como "textos", isto é, como manifestações de uma textualidade. (Fávero e
Koch 2000)
E mais adiante, ao buscarem uma definição mais precisa para o significado do termo texto, as autoras
concluem que:
[...] texto, em sentido lato, designa toda e qualquer manifestação da capacidade textual do
ser humano (quer se trate de um poema, quer de uma música, uma pintura, um filme, uma
escultura etc.), isto é, qualquer tipo de comunicação realizado através de um sistema de
signos. (Fávero e Koch 2000 grifo das autoras)
A partir da percepção de que textos, em sentido lato como discorrem as autoras, se manifestam de maneira
verbal e não verbal, é possível agora classificarmos os dois sistemas de signos envolvidos no gênero canção.
O poema, por utilizar a língua escrita ou falada, pode então ser considerado um texto verbal; enquanto a
música, um texto não verbal.
A leitura de um texto, quer seja ele verbal ou não, passa por um processo ativo de construção de sentido(s).
(Carmelino et al. 2017) Essa construção de sentido(s), entretanto, faz com que o texto seja aberto a
diferentes possibilidades de leitura, por se tratar de um objeto simbólico, sempre sujeito a “falhas” ou
“defeitos” no processo de interpretação. Comparando o texto ao discurso, Orlandi escreve sobre a abertura
do objeto simbólico a diferentes possibilidades de leituras:
Se vemos no texto a contrapartida do discurso - efeito de sentidos entre locutores - o texto
não mais será uma unidade fechada nela mesma. Ela vai-se abrir, enquanto objeto
simbólico, para as diferentes possibilidades de leituras que, a meu ver, mostram o processo
de textualização do discurso que sempre se faz com “falhas”, com “defeitos”. (Orlandi
2001)
O texto é, portanto, heterogêneo, aberto a possibilidades interpretativas. Essa característica é inerente às
manifestações textuais simbólicas, quer sejam verbais ou não verbais. O discurso, nesta visão, tem relação
com a maneira pela qual o texto permite efeitos de sentidos variados. Se o texto é heterogêneo e aberto a
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diferentes leituras, no discurso as relações histórico-sociais do sujeito são colocadas em prática. Entretanto,
é importante frisar que a relação entre texto e discurso não é dada a priori, ela é construída e elaborada.
Pensar o texto abrindo-se para a interpretação, coloca-nos na posição de considerar que
essa relação entre discurso e texto não é, pois, dada. Ela está sempre sendo elaborada. [...]
Esta elaboração contínua da relação texto/discurso pode ser observada na maneira como,
nos vestígios da textualização, o sujeito se “ancora”, se “engata”, em um e não outro
discurso, em um e não outro sentido. Isto certamente vai resultar em diferentes leituras.
Por isso, quando digo que o texto é heterogêneo, estou dizendo que ele é afetado de
muitas e variadas maneiras pela discursividade. (Orlandi 2001)
Para entendermos melhor a abertura de um texto e sua relação com o discurso, é importante também frisar
que o discurso é construído com base na interação: um autor não está sozinho na criação textual, pois
depende do contexto, das relações sociais e históricas construídas consciente ou inconscientemente. “O
sentido de um texto não se estabelece sem se levar em conta essas interações, bem como crenças, desejos,
preferências, normas e valores dos interlocutores,” afirmam Bentes e Leite (2010, p. 229). O entendimento
que leva em consideração fatores de ordem linguística, cognitiva e sociocultural da produção de um texto
para a criação de sentidos ocorreu sobretudo a partir da década de 1980, naquilo que é considerado como
a “virada cognitiva” dos estudos sobre o texto.
Sendo assim, para a interpretação de um texto dentro de suas múltiplas leituras possíveis, é importante
pensar não apenas aquilo que o texto diz, mas sim a maneira pela qual diz determinada coisa, frisa um
sentido ao invés de outro, se liga a um discurso e o a outro. Essa ideia é trabalhada por Gouvêa, Pauliukonis
e Monnerat:
Em vez da prática comum de se captar primeiro o significado, o que, [...] deve-se partir para
o enfoque do modo como o texto foi produzido; ou seja, deslocar-se do
significado/conteúdo original para os efeitos de sentido a partir das operações linguísticas
que o produziram. Desse modo, em vez de se buscar o que o texto diz, procurar analisar
como o texto diz e porque diz o que diz de um determinado modo trará consequências
importantes para o desvendamento do sentido como um todo. (Gouvêa, Pauliukonis e
Monnerat 2017 grifo dos autores)
A intertextualidade é também importante para a construção de efeitos de sentidos na leitura de um texto.
Na verdade, todo texto é heterogêneo por se relacionar com outros textos de origem, com os quais pode
dialogar, aos quais pode aludir ou se opor. Numa visão semiológica, o princípio da intertextualidade aplica-
se também entre diferentes semioses ou signos, como os textos verbais e os não verbais. Entre as várias
classificações de intertextualidade consideradas por Koch, Bentes e Cavalcante (2012), interessam-nos
particularmente, a explícita, a implícita, a estilística e a metatextualidade.
A intertextualidade explícita menciona a fonte, sendo o caso das citações, resumos, resenhas, amplamente
usados, por exemplo, em textos acadêmicos. Quanto à implícita, a fonte não é mencionada e o produtor ou
o compositor do texto esperam que o ouvinte/leitor reconheça a presença do texto-fonte em sua memória
discursiva. Vale mencionar que a introdução de intertexto alheio, seja explícita ou implicitamente, varia
conforme “o objetivo quer de seguir-lhe a orientação argumentativa, quer de contraditá-lo, colocá-lo em
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questão, de ridicularizá-lo ou argumentar em sentido contrário.” (Koch, Bentes e Cavalcante 2012) No
primeiro caso, ocorrem paráfrases e, no segundo, paródias.
A intertextualidade estilística ocorre quando “o produtor do texto [...] repete, imita, parodia certos estilos
ou variedades linguísticas” (Koch, Bentes e Cavalcante 2012). Na verdade, todo texto emoldura, enforma
determinado conteúdo de uma maneira peculiar, o que caracteriza o estilo, definível como “conjunto de
tendências e características formais, conteudísticas, estéticas etc. que identificam ou distinguem uma obra,
um artista etc. ou determinado período ou movimento” (Houaiss e Villar 2009).
A metatextualidade é considerada pelas autoras em observação aos escritos do pesquisador Gérard Genette.
Ela “corresponde a uma relação de ‘comentário’ que une um texto fonte a outro que dele trata” (Koch,
Bentes e Cavalcante 2012). Observam também que o texto-fonte pode aparecer sob a forma de uma alusão.
Com base na percepção de que um texto se manifesta em formas distintas e de que a construção de efeitos
de sentido(s) e seus desvios é sempre heterogênea e aberta, chegamos à hipótese de que o texto verbal,
manifesto no poema, e o texto não verbal, manifesto na música, são, em uma canção, interdependentes,
atuando conjuntamente na cocriação de sentido(s). Um gênero que envolve duas ou mais modalidades,
como é o caso da canção, é considerado um gênero multimodal.
[...] os diferentes gêneros de texto organizados por diferentes modalidades de linguagem,
verbal escrita, verbal oral, não verbal, imagética e sonora etc., [são] denominados de
gêneros multimodais. (Melo, Oliveira e Valezi 2012)
Dessa forma, a relação entre texto e discurso na canção se constrói na conjunção de duas modalidades de
linguagens, sendo esta uma relação em construção, uma elaboração contínua de efeitos de sentido(s).
Poema e música compartilham significados e acrescentam sentidos quando unidas em uma canção, gerando
assim um discurso que é sempre uma possibilidade de interpretação dentre outras, pois leva em
consideração fatores de ordem linguística, cognitiva e sociocultural na produção e compreensão do texto.
A canção tem ao menos três materializações possíveis enquanto gênero multimodal:
1. Em uma partitura musical, o poema ocorre na forma de texto verbal escrito e a música como grafia
musical. Esta é a realização textual do autor-compositor
3
e se manifesta enquanto sistemas de signos
no papel;
2. Em uma interpretação musical ou gravação sonora, o poema ocorre na forma de texto verbal
falado/cantado, e a música, na forma de sons. Esta é a realização textual do intérprete musical e se
manifesta por meio de um texto não verbal sonoro (a música), a partir de sua leitura da partitura
3
Decerto que também outras possibilidades de manifestações artístico-musicais que não envolvam ou
não se delimitam na dicotomia entre compositor e intérprete, expandindo e interpenetrando o ato de
criação e interpretação de forma que essas duas funções ou arquétipos se diluam e se mesclem. Pensamos
aqui, por exemplo, na música com dispositivos eletrônicos tais como a acusmática e/ou a mista que envolva
transformações sonoras em tempo real; na livre improvisação; ou em outras em que a relação compositor e
intérprete não seja tão definitiva e marcada. Mesmo em relação a manifestações artístico-musicais nas quais
essas funções estavam anteriormente bem delimitadas e definidas, como é o caso da canção na maneira
como se está pensando nesse artigo, estudos recentes demonstram o quanto o intérprete também exerce
influência, por meio de suas escolhas interpretativas, no resultado artístico final, podendo, assim, ser
considerado um coautor da obra.
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musical, um texto escrito, em sintonia com o contexto de execução da obra, sendo esta, por sua vez,
também aberta a mais de uma interpretação;
3. Em uma escuta musical, o poema ocorre na forma de texto verbal, interpretado na canção
sonorizada. Esta é a realização textual do ouvinte e, assim como as demais realizações textuais, fica
à mercê de inúmeras possibilidades de interpretação, haja visto o fato de um poema ser uma obra
aberta a isso e, na junção com a música, tal abertura se expande para a representação do mundo,
construindo-se e reconstruindo-se em múltiplos sentidos, atrelados à inevitável heterogeneidade
enunciativa.
O recorte do presente trabalho será explicitar a(s) leitura(s) feita(s) a partir dos poemas de Sônia Cintra para
a criação do ciclo de canções Volare, para voz feminina grave e orquestra de cordas, com música de Tadeu
Taffarello. Sendo esta uma realização do autor-compositor
4
, será demonstrada a partitura musical resultante
enquanto texto de um gênero multimodal, reforçando os contextos interacionais de sua criação e buscando
desvendar os possíveis efeitos de sentido ao demonstrar as leituras propostas na obra.
3. Contextos
O contexto de criação de uma obra é de extrema importância no desvendamento de possíveis efeitos de
sentidos pretendidos por seu autor. “Não acreditamos que, seja qual for a análise empreendida, deva-se
desconsiderar o contexto no qual foi criada a obra”, escreve o pesquisador e compositor Achille Picchi
(2019). O entendimento da noção de contexto vai ao encontro das pesquisas de texto e de discurso
anteriormente abordadas em Orlandi (2001), Bentes e Leite (2010). Sabendo-se que o texto é heterogêneo
e aberto a possibilidades interpretativas, o contexto auxilia no entendimento da construção de efeitos de
sentidos por discorrer a respeito das interações sociais e históricas do autor que o motivaram a se unir em
um e não outro sentido e, dessa maneira, contribui no entendimento sobre como o texto diz e porque diz o
que diz de um determinado modo e não de outro.
Partindo dessa compreensão, discorrer-seinicialmente sobre o contexto biográfico e artístico da poetisa
Sônia Cintra, cujos poemas foram utilizados na obra Volare, para posicionar o contexto de relacionamento
interpessoal entre o autor-compositor, a poetisa e sua família e, por fim, trazer o contexto de criação da
obra Volare.
3.1. Contexto 1 - sobre a poetisa e sua obra
A poetisa Sônia Cintra nasceu no ano de 1949. Teve formação acadêmica com a obtenção dos títulos de
mestre (2009) e doutora (2016) em literatura portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), pesquisando
respectivamente sobre as obras poéticas de Cesário Verde (1855-1886) e de Albano Martins (1930-2018).
Foi membro efetivo da União Brasileira de Escritores, da Academia Feminina de Letras e Artes de Jundiaí-SP
e da Academia Jundiaiense de Letras.
Sua obra poética foi publicada em 13 livros, sendo que alguns deles possuem edições bilíngues. No prefácio
de Limão, Nancy Cury discorre sobre o estilo poético de Sônia. Para Cury, a poesia de Sônia é retratada por
meio de “poemas-minuto”, nos quais “cada verso é uma ilha de significados” (Cury 2009). Na realidade, o
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No presente artigo, optou-se por utilizar a referência ao autor-compositor em terceira pessoa pelo fato de
um dos autores do artigo coincidir com a pessoa do compositor.
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que a autora pretende dizer é que a poesia de Sônia se manifesta em poemas de curta duração, com poucos
versos. Entretanto, tais versos, mesmo que curtos, são múltiplos de significados, proporcionando inúmeras
leituras e aberturas.
A pesquisadora e professora Dra. Raquel de Sousa Ribeiro, por sua vez, analisando os poemas publicados em
Versátil, encontra características que, em nosso entendimento, se aplicam a toda a produção poética de
Sônia Cintra. Para a pesquisadora, o leitor, ao entrar em contato com a poesia de Sônia,
[...] depara-se com uma grande variedade de temas a que as palavras, os fonemas, a
sintaxe, o ritmo, as sinestesias, os ecos, as aliterações, as imagens e muitos outros recursos
poéticos, dão vida, produzindo intenso efeito de empatia e convocando à celebração de
todos os momentos vividos por aqueles que se revelam sensíveis ao que a leitura suscita.
(Ribeiro 2014)
Interessante notar a capacidade de síntese da pesquisadora e professora ao perceber na obra poética de
Sônia Cintra uma abertura múltipla de significados a partir de seus poemas “geralmente curtos, mas de longa
ressonância” (Ribeiro 2014), ou seja, marcantes pela brevidade e pela expansão duradoura de significados e
emoções.
Profissionalmente, Sônia se dedicou à docência como professora e assistente de direção em escolas da rede
pública e privada de ensino. Sônia também foi mãe de duas pessoas. Embora os fatos de ela ter sido
professora e mãe possam parecer deslocados em relação a uma biografia de autora conforme ela é
normalmente construída, esses fatores serão os principais pontos de contato da poetisa com o autor-
compositor, conforme apresentado a seguir.
3.2. Contexto 2 - sobre o relacionamento interpessoal autor-compositor-poetisa-família
O autor-compositor do ciclo de canções Volare conhecia pessoalmente a poetisa Sônia Cintra e seus filhos.
Sônia foi sua professora de redação e escrita durante o ensino médio, época na qual pôde ter o primeiro
contato com a poesia e os pensamentos de Sônia Cintra.
Em relação aos filhos de Sônia, o autor-compositor teve um contato longo e duradouro na infância,
juventude e início da fase adulta, mantendo uma forte amizade até os dias atuais. Em relação à filha de
Sônia, o contato se iniciou ainda na infância, quando tocaram juntos em uma orquestra jovem na cidade de
Jundiaí-SP e, posteriormente, cursaram a mesma faculdade de música na cidade de Campinas-SP, sendo ela
formada em regência e canto; e ele em composição musical.
em relação ao filho mais novo de nia, o contato ocorreu principalmente em dois períodos. Ambos
frequentaram o mesmo colégio na cidade de Jundiaí-SP, sendo este um dos colégios no qual Sônia lecionava.
E, assim como ocorrera em relação à filha de Sônia, a proximidade entre eles se fortaleceu também durante
o período de estudos no curso de música da Universidade Estadual de Campinas. Apesar de o filho de Sônia
ter cursado uma modalidade diferente em relação ao curso frequentado pelo autor-compositor, ambos
acabaram frequentando conjuntamente algumas disciplinas, o que certamente reforçou o laço de amizade
pessoal entre ambos e com a família da poetisa como um todo.
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O contexto de relacionamento interpessoal do autor-compositor com a poetisa e sua família será
fundamental para a compreensão da leitura feita nos poemas de Sônia, pois ele auxiliou no direcionamento
da seleção de poesias a serem musicadas no ciclo de canções, conforme discorreremos mais adiante.
3.3. Contexto 3 - sobre a criação da obra
Sônia Cintra faleceu em março de 2018. Essa notícia impactante foi, sem dúvida, a mola propulsora final para
a criação de um ciclo de canções que teve a intenção de ser uma homenagem à amizade construída ao longo
dos anos com a poetisa e sua família.
4. Leituras
Para o autor-compositor, devido às características marcantes da obra de Sônia Cintra anteriormente
descritas por Nancy Cury e Raquel Ribeiro, a leitura e imersão em sua obra poética para a seleção de apenas
alguns poemas a serem musicados foi uma tarefa ao mesmo tempo prazerosa, por ter tido a oportunidade
de se aprofundar no conhecimento e leitura dos escritos da poetisa, e de extrema dificuldade (como escolher
apenas alguns poemas?).
Sendo assim, uma maneira de selecionar os poemas foi agrupá-los em eixos temáticos de inter-relação a
partir do(s) sentido(s) criado(s) pela leitura que podem ser separados em três grupos. Essa divisão em grupos
de eixos temáticos não era clara no início e foi aos poucos ganhando forma durante o processo de seleção e
de criação musical do ciclo. Dessa maneira, alguns poemas foram selecionados pela lembrança marcante
suscitada a partir da leitura feita em referências à própria poetisa ou a seus filhos. Essas lembranças se
relacionam ao contexto social no qual o autor-compositor vivenciou em contato com Sônia e sua família.
Outros poemas foram selecionados por uma possível leitura, cujo significado os relaciona a eventos sonoros
específicos ou a intertextualidades com outras produções musicais que fazem parte do repertório de mundo,
do contexto artístico do autor-compositor, ou ainda que contenham uma imagem musical marcante,
resultado do sentido criado pela leitura feita. O terceiro eixo temático são os poemas que, por sua beleza,
sonoridade e abertura poética, foram também selecionados para fazer parte do ciclo, auxiliando na
constituição da organização global das canções. O resultado final foi a seleção de 11 poemas musicados que
foram unidos a 2 interlúdios para a criação do ciclo de canções Volare, para voz feminina grave e orquestra
de cordas. Os poemas de Sônia Cintra utilizados foram Feição, Dengo, Pois é, Disciplina, Volare, Noturno,
Cadência, Partitura, Vade Retro, Canção e Morada.
4.1. Eixo temático 1 - a poetisa e sua família
Dentro desse eixo temático estão as canções Feição
5
, Volare, Morada, Pois é e Partitura, além da peça
instrumental Interlúdio I.
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Quando se tratar das canções do ciclo Volare, os títulos virão entre aspas. Quando a referência for aos
poemas de Sônia Cintra, virão escritos em itálico.
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Feição
Não fui feita
para grandes coisas
grandes feitos
não fui feita
grandiosa
nem prosa
Feita pequena
faço poesia
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A leitura feita para o poema Feição nos remete à poetisa apresentando-se ao mundo, mostrando suas
características e feições enquanto pessoa e poeta. O poema nos direciona tanto à pessoa de Sônia Cintra,
que não tinha exatamente uma grande estatura, como à forma poética preferida de sua obra, que são os
poemas de curta duração, despretensiosos, porém de uma potência artística imensa. Os versos "Não fui feita
/ para grandes coisas", por exemplo, podem ser lidos como uma relação direta aos tamanhos de seus
poemas, na grande maioria curtos. O verso "nem prosa" indica que não é o texto em prosa a maneira
escolhida para a sua expressão artística. os versos finais "Feita pequena / faço poesia" podem ser lidos
tanto como uma referência direta à sua estatura, conforme mencionado anteriormente, quanto a uma certa
despretensão intencional de um fazer poético formado por pequenos versos. Por essas características de
auto-apresentação, o poema foi escolhido para ser musicado e posicionado como peça de abertura do ciclo
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em sua versão completa. Dessa maneira, a peça possui uma introdução instrumental em andamento lento
com dobramentos de vozes entres os instrumentos (Figura 1), no caso específico, violinos dobrando entre
si, com violas, violoncelos e contrabaixos também dobrados.
Figura 1: início da abertura instrumental lenta em Feição. Ciclo de canções Volare (Taffarello 2018), compassos 1-4
6
Publicado originalmente em Melopéia (Cintra 2002)
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Uma explanação mais detalhada da ordem e organização dos poemas no ciclo será apresentada ao final do
texto.
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Na entrada da voz e ao longo de quase toda a canção, o poema é musicado com o uso de figuras rítmico
musicais longas sobre um ostinato de notas com durações curtas. Isso gera uma separação em camadas de
estratos musicais na qual temos o acompanhamento formado por todos os instrumentos de cordas se
movimentando com maior velocidade que a melodia principal na voz. Outro fator relevante é o uso de uma
métrica musical mista de três tempos, agrupados em 2+2+3 colcheias, conforme pode ser mais claramente
percebido no ostinato dos violinos (Figura 2).
Figura 2: entrada da voz e separação em estratos de camadas musicais com o uso de ostinato em Feição. Ciclo de canções Volare (Taffarello
2018), compassos 15-17
Volare
quando
um poeta
abre as asas
o mundo
se cala
e voa com ele
8
Volare é tanto o poema que deu o título ao ciclo como um todo, como o quinto poema em ordem de
apresentação no ciclo em sua versão completa e o primeiro em sua versão resumida. Uma leitura possível
do poema é que se trata de uma apresentação do poeta em seu fazer artístico e mostra a sua potência de
fazer o mundo voar consigo em sua fantasia poética, transformando-o e sendo transformado por essa ação.
Dessa forma, relaciona-se tematicamente com o poema Feição, no qual a poetisa apresentava-se ao mundo
enquanto pessoa e poeta. Curiosamente, Volare não estava na seleção feita inicialmente para o ciclo, porém,
em conversa informal com a filha da poetisa, o autor-compositor foi informado de que se tratava de seu
8
Publicado originalmente em Sustenido (Cintra 2011)
11
Taffarello, Tadeu Moraes; Taffarello, Maria Cristina de Moraes. 2021. “Canção como gênero multimodal: um estudo no ciclo Volare
Per Musi no. 41, General Topics: 1-35. e214118. DOI 10.35699/2317-6377.2021.35298
poema favorito escrito por sua mãe, o que prontamente o tornou elegível não apenas a um dos movimentos,
como ao título geral do ciclo.
Musicalmente, ele é o único poema a voz solo, sem acompanhamento instrumental. De certa maneira, essa
forma musical de tratar o poema é também uma homenagem à filha da poetisa, que é formada em canto
lírico. Este é o único poema que é repetido em sua integridade, sendo cantado por três vezes e meia. O
tratamento musical é o de um tema com variações, em andamento lento. O tema em si (Figura 3) tem a
duração de seis compassos, com métrica livre, andamento Lento com ternura e flutuações livres de tempo
e de dinâmica.
Figura 3: tema de Volare. Ciclo de canções Volare (Taffarello 2018), compassos 1-6
Morada
Digo adeus à velha casa
da escadaria
como quem se despede
ouço meu passo de outrora
seu corredor devagar
com outros passos
e no silêncio do pé-direito
ir-se embora
me despo dos fantasmas
Cerro as janelas
Digo adeus aos jardins
como se fecha um álbum
já não tão floridos assim
apago a luz com um último sopro
e à infância que esqueci
o pálido rosa das paredes desbota
brincando de esconde-esconde
em meus olhos
no por-enquantos da vida
aquilo que foram um dia
Deixo ranger mais uma vez
Enterro no porão do meu coração
o portão
e aos leões de pedra
mais uma vez ouço ranger
da memória
o sininho
entrego a chave
9
e no silêncio do mármore
Morada foi o poema selecionado para ser a última peça do ciclo tanto na versão completa quanto na
resumida. Ele é o poema mais longo utilizado. Uma leitura possível é a da despedida, de alguém que vai
embora de um lugar cheio de memórias e afetos. Uma despedida de certa maneira dolorosa, mas necessária.
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Publicado originalmente em Melopéia (Cintra 2002).
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Taffarello, Tadeu Moraes; Taffarello, Maria Cristina de Moraes. 2021. “Canção como gênero multimodal: um estudo no ciclo Volare
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Podemos entender, a partir dessa leitura e do seu posicionamento como última canção, a despedida do eu-
lírico do ciclo como um todo, sua última intervenção.
Entretanto, o contexto de criação do ciclo (Contexto 3) direcionou a leitura para uma outra construção de
sentido. Nessa perspectiva, a leitura feita remeteu diretamente à ausência da poetisa, que nos deixou nesta
vida para alçar voos mais altos em outro(s) lugar(es). Dessa maneira, a velha casa
10
e os jardins de que a
poetisa se despede seriam a própria Terra, morada de todos os seres vivos conhecidos.
Musicalmente, Morada tem uma relação direta com os materiais musicais utilizados em Feição. Há o uso de
ostinato, como na canção inicial do ciclo. Os ostinati das duas canções são trabalhados por meio de invero
da retrogradação (Figura 4). Esse procedimento acabou gerando, em Morada o uso de uma métrica mista
de três tempos agrupados em 3+2+2 colcheias, o retrógrado da métrica utilizada anteriormente em Feição.
Figura 4: ostinati em redução para uma pauta de Feição e Morada. Ciclo de canções Volare (Taffarello 2018). M = Maior; J = Justa; m =
menor
Os procedimentos de retrogradação e inversão dos materiais de Feição em Morada são também, em uma
visão mais ampla, utilizados nos compassos finais da canção de abertura e nos compassos iniciais da canção
de encerramento. Como se pode perceber nos exemplos a seguir, os compassos finais de Feição (Figura 5)
têm a dinâmica em um arco de crescendo e decrescendo.
Figura 5: compassos finais em redução para duas pautas de Feição. Ciclo de canções Volare (Taffarello 2018)
10
Posteriormente, o autor-compositor foi informado pela filha da poetisa que a morada do título se tratava,
na verdade, de uma residência pertencente à família em uma cidade no interior de São Paulo.
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Taffarello, Tadeu Moraes; Taffarello, Maria Cristina de Moraes. 2021. “Canção como gênero multimodal: um estudo no ciclo Volare
Per Musi no. 41, General Topics: 1-35. e214118. DOI 10.35699/2317-6377.2021.35298
As notas da linha melódica mais aguda (violino I), são, em ordem, Ré, Mi, e Sol. o uso do ostinato
previamente descrito. No compasso de encerramento, um acorde de um m
11
com sétima ressoa. Este é
também o exato acorde de início de Morada (Figura 6). Utilizando-se também de dinâmicas em arco de
crescendo e decrescendo, a peça de encerramento tem, na linha melódica mais aguda (violino I), um
movimento descendente que se inicia com a mesma nota Sol presente no término de Feição, passando
posteriormente para Fá, Mib e Ré. É como se a canção de encerramento tivesse início no término da canção
de abertura ou vice-versa, que a canção de abertura tivesse término no início da canção de encerramento,
completando assim, metaforicamente, um ciclo de vida e arte.
O principal acréscimo no acompanhamento de Morada, em relação ao de Feição, são as figuras rítmicas
musicais curtas de colcheias com pausas nos contrabaixos, reforçando o ritmo métrico da canção, conforme
pode ser percebido na Figura 6.
Figura 6: compassos iniciais em redução para duas pautas de Morada. Ciclo de canções Volare (Taffarello 2018)
Pois é
Com catorze de idade
não andava de batom
nem usava salto alto
não sabia geometria
nem tocava contrabaixo
minha cara tinha espinha
meu cabelo embaraço
Mas fazia poesia
e de luas fiz você
12
11
m = menor.
12
Publicado originalmente em 40 Graus (Cintra 1993)
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Taffarello, Tadeu Moraes; Taffarello, Maria Cristina de Moraes. 2021. “Canção como gênero multimodal: um estudo no ciclo Volare
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A leitura feita para o poema Pois é se remeteu diretamente à filha da poetisa, que era contrabaixista. Essa
interpretação está presente sobretudo a partir do quinto verso "nem tocava contrabaixo". Neste poema
temos a própria poetisa lembrando-se de suas realizações e aparências na idade de catorze anos. Entretanto,
pelo conhecimento da família de Sônia, é possível perceber que se trata, na realidade, de uma comparação
de suas lembranças juvenis de ações que realizava e aparências de seu rosto e cabelo com as ões e
aparências de sua filha, provavelmente com a mesma idade de catorze anos à época da escrita do poema.
Essa possível interpretação é reforçada também no último verso "e de luas fiz você". A interpretação feita
para este verso foi em dois sentidos: tanto a poetisa fez literalmente a sua filha, sendo a sua genitora; como
também a criou e educou, fazendo-a crescer de acordo com seus princípios e crenças, nas quais a poesia
tem um papel fundamental. Essa segunda interpretação também é percebida pelo uso do substantivo no
plural "luas". Decerto que a Terra tem apenas uma lua, portanto o plural pode também, nesse caso, referir-
se à passagem do tempo, contado em luas por algumas culturas. À princípio, ao longo de toda a primeira
estrofe, dá-se a impressão de que as realizações e aparências da filha são melhores ou, ao menos, diversas
das delas. Porém, na segunda e última estrofe, percebe-se que a poetisa também tem algo de extraordinário:
fazer poesia, criar e cuidar dos filhos.
Musicalmente, a canção Pois é utiliza apenas a voz, violas e contrabaixos. Ao longo de toda a primeira
estrofe, o uso de fragmentos da escala cromática é relevante musicalmente. Elas estão, por exemplo, na
figura descendente da voz nos trechos do primeiro verso “de idade” e do segundo verso “de batom”, além
também de estarem presentes nos contrapontos de viola e contrabaixo entre os compassos 7-9 (Figura 7).
Figura 7: entrada da voz em Pois é. Ciclo de canções Volare (Taffarello 2018), compassos 5-9
Na segunda estrofe do poema, a introdução da palavra “luas” teve uma leitura que se remeteu musicalmente
ao motivo utilizado pelo compositor Arnold Schoenberg (1874-1951) em sua canção Nacht do ciclo Pierrot
Lunaire (Figura 8). Esse motivo é formado por três notas separadas por intervalos de 3 semitons e 4 semitons,
podendo ser utilizado em qualquer direção e sentido, melódica ou harmonicamente. Por ter sido
inicialmente utilizado na canção de Schoenberg, cuja tradução para a língua portuguesa é "noite'', esse
motivo musical será denominado a partir de agora como motivo da noite. Esta é uma referência musical,
uma intertextualidade implícita
13
presente no ciclo Volare. Neste caso, a construção de efeito de sentido
13
A intertextualidade é uma das características necessárias para a classificação de uma canção no segundo
eixo temático, conforme será demonstrado. As canções Pois é e Partitura, dessa forma, encaixam-se em dois
eixos temáticos, sendo homenagens aos filhos da poetisa e contendo uma intertextualidade com outras
peças musicais.
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Taffarello, Tadeu Moraes; Taffarello, Maria Cristina de Moraes. 2021. “Canção como gênero multimodal: um estudo no ciclo Volare
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ocorreu por seguimento da orientação argumentativa do texto original, caracterizando-se como uma
paráfrase.
Figura 8: motivo da noite entre clarone e violoncelo em redução para uma pauta da canção Nacht de Pierrot Lunaire, de Arnold Schoenberg,
compassos 2-3. Legenda: ST = semitom
O motivo da noite aparece em Pois é pela primeira vez no ciclo Volare na linha melódica da voz sobre a
palavra “luas” (Figura 9), palavra essa que nos remete diretamente à noite, e retornará nas canções Noturno
e Partitura, como será posteriormente demonstrado, criando uma ligação sonoro-musical-temática entre
essas três canções.
Figura 9: compassos finais de Pois é. Ciclo de canções Volare (Taffarello 2018)
Interlúdio I
Os dois interlúdios introduzidos no ciclo m a função de possibilitar um descanso à cantora e, por isso, estão
estrategicamente posicionados de maneira igualitária, de forma a dividir o ciclo na versão completa em três
partes, formadas por 4+4+3 canções.
O movimento Interlúdio I é uma peça instrumental para contrabaixo solo. A instrumentação utilizada é uma
homenagem à filha da poetisa, que, à época do contato mais próximo com o autor-compositor, integrava
uma orquestra jovem tocando este instrumento.
Musicalmente, o movimento explora sonoridades de cordas duplas no agudo do instrumento, impulsionadas
por arpejos ascendentes com o uso de figuras rítmicas em acelerando e dinâmica em crescendo (Figura 10).
Figura 10: trecho de Interlúdio I. Ciclo de canções Volare (Taffarello 2018)
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Taffarello, Tadeu Moraes; Taffarello, Maria Cristina de Moraes. 2021. “Canção como gênero multimodal: um estudo no ciclo Volare
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Partitura
Pela fresta da porta
do quarto
escapa de manso
um raio de luz
Estudas
já é tarde
e toda a cidade
adormece
ao som do violão
que apertas contra o peito
O som que te foge dos dedos
vibra na escala da vida
nas cordas do meu coração
14
No poema Partitura percebe-se a descrição de uma cena familiar, sonora, noturna e afetiva de alguém
estudando o instrumento violão. O entendimento de se tratar de algo familiar é pelo local onde ocorre,
narrado nos primeiros versos. Em “Pelas frestas da porta / do quarto / escapa de manso / um raio de luz”,
entende-se que o eu-lírico está em uma casa observando, a partir do lado externo de um quarto, aquilo que
dentro acontece, que é alguém estudando violão, buscando aprimorar sua cnica instrumental neste
instrumento. Pelo conhecimento do contexto familiar da poetisa, é possível compreender que o músico
estudante é, na realidade, seu filho, que é guitarrista e violonista. Portanto, a inclusão desse poema no ciclo,
é uma homenagem ao filho da poetisa.
Musicalmente, Partitura tem, assim como anteriormente demonstrado em Volare, Pois é e Interlúdio I, uma
instrumentação diferenciada, reduzida em relação ao todo do conjunto instrumental disponível. Esta canção
utiliza apenas a voz solista e os instrumentos do naipe de violoncelos, em divisi. O instrumento violoncelo
foi o escolhido para a homenagem ao filho da poetisa pois, dentre os instrumentos da orquestra, este é o
que maior proximidade de tessitura e timbre tem com o violão. No exato momento em que a voz declama o
nono verso do poema, “ao som do violão”, os violoncelos 2 a 5, em conjunto, realizam em pizzicato uma
figura ascendente, simulando conjuntamente um arpejo dedilhado realizado ao violão (Figura 11),
intencionado reforçar, dessa maneira, a ligação musical pretendida entre os dois instrumentos feita a partir
da leitura do poema.
Pelo ambiente noturno descrito no poema, Partitura desenvolve melódica e harmonicamente o motivo da
noite previamente demonstrado. Nesta canção, ele serve como base para a criação de uma série
dodecafônica simétrica (Figura 12). Para Brindle (1966), esta qualidade ocorre quando uma série tem “duas
ou mais porções simétricas em suas estruturas intervalares”. Na rie dodecafônica utilizada, o motivo da
noite é organizado respectivamente em sua forma original (O), inversa (I), retrógrada da inversa (RI) e
retrógrada (R), separados por intervalos de 2 semitons ou de 3 tons, gerando quatro eixos possíveis de
simetrias de reflexão. Esse procedimento resulta que a versão original (O) da série, transposta um intervalo
de três tons, torna-se a sua versão retrógrada (R).
14
Publicado originalmente em Melopéia (Cintra 2002)
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Taffarello, Tadeu Moraes; Taffarello, Maria Cristina de Moraes. 2021. “Canção como gênero multimodal: um estudo no ciclo Volare
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Figura 11: simulação de um arpejo de violão com o uso de pizzicati nos violoncelos em Partitura. Ciclo de canções Volare (Taffarello 2018),
compassos 30-33
Figura 12: motivo da noite serializado em Partitura, do ciclo de canções Volare (Taffarello 2018). O = original; I = inverso; RI = retrógrado
inverso; R = retrógrado; ST = semitom; T = tom.
Uma série dodecafônica simétrica formada por quatro porções de três notas cada é encontrada também no
Concerto para nove instrumentos, op. 24, de Anton Webern. A partitura de Partitura explana, em seu
subtítulo, a referência à obra de Webern, estabelecendo uma intertextualidade explícita e estilística com a
mesma (Figura 13). Em Webern, a série é espacializada entre os instrumentos e atomizada em suas porções
de três notas. Da mesma maneira, nos compassos iniciais de Partitura, cada instrumento ou grupo
instrumental toca uma porção da série, com articulação, ritmo e dinâmica distintas. Conforme pode ser visto
no próximo exemplo (Figura 13), nos compassos iniciais o motivo da noite, em sua forma original aparece
no compasso 1 em pizzicati, colcheias e dinâmica mf no violoncelo 2; no mesmo compasso em sua forma
inversa no violoncelo 5 em legato, tercina de semínimas e dinâmica p; em anacruse para o compasso 2 em
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Taffarello, Tadeu Moraes; Taffarello, Maria Cristina de Moraes. 2021. “Canção como gênero multimodal: um estudo no ciclo Volare
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sua forma retrógrada do inverso no violoncelo 4, em marcato, quiálteras de colcheias e dinâmica f; e entre
os compassos 2 e 3 em sua forma retrógrada no violoncelo 3, em semínimas e dinâmica p com crescendo e
decrescendo.
Figura 13: compassos iniciais de Partitura. Ciclo de canções Volare (Taffarello 2018)
Em Webern, o instrumento piano é tratado como solista. Uma maneira utilizada para destacar tal
instrumento em relação aos demais é o uso simultâneo de transposições distintas das séries, de forma que,
quando o piano está soando uma transposição, todos os demais instrumentos, em conjunto, estão em outra.
Da mesma maneira, em Partitura, a voz e o violoncelo 1 são tratados como instrumentos solistas e
apresentam conjuntamente transposições da série distintas das apresentadas pelos demais violoncelos. No
próximo exemplo, voz e violoncelo 1 apresentam juntos a transposição P5 (Figura 14), ou seja, um intervalo
de 5 semitons acima da série original. Este trecho coincide com os versos 3 e 4 do poema: “escapa de manso
/ um raio de luz”.
Figura 14: transposição P5 entre voz e violoncelo 1 em Partitura. Ciclo de canções Volare (Taffarello 2018), compassos 14-17
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4.2. Eixo temático 2 - intertextualidades
Dentro desse eixo temático de escolha dos poemas, encontram-se aqueles que, de alguma forma,
remeteram o autor-compositor a outras produções musicais de seu repertório de mundo, tornando a
intertextualidade um elemento de grande relevância na criação das canções, quer seja ela implícita, explícita,
estilística ou metatextual.
A noção de intertextualidade na composição musical pode ter uma ligação com a ideia de reescritura
trabalhada por Ferraz e Penha, dentre outros. O pesquisador Silvio Ferraz, por exemplo, em sua tese de livre
docência, desenvolve a reescritura como uma força de atração que determinados materiais ou gestos
musicais atuam sobre a criação musical, abrindo a possibilidade de os mesmos serem refeitos em uma nova
obra.
O que é a reescritura? É ser atraído por uma música de outro compositor, de outro período
ou de nós mesmos. Ser atraído por uma música de outra cultura e querer reescrevê-la,
porém explorando não sua forma aparente, mas tentando extrair dela aquelas forças que
nos atraíram. O que pode estar em uma pequena sonoridade: ouve-se uma música inteira
e é um pequeno intervalo arrastado de segunda menor que nos chamou a atenção. Por
vezes é como se a outra música se convertesse em um grande gesto a ser refeito. (Ferraz
2007)
A reescritura, para Ferraz, implica uma certa irregularidade no uso dos materiais e gestos musicais na nova
criação musical.
De um modo geral, a reescritura é simplesmente tomar um trecho de música de outro
compositor, uma frase, uma sequência harmônica, um timbre, e copiá-la de modo
irregular, arrastando as notas para lugares errados, fazendo pequenos ou grandes retardos
e antecipações, esticando algumas passagens. (Ferraz 2007)
Para o autor, uma diferença entre a reescritura e a intertextualidade. Apesar de este termo não ser
debatido em seu texto, a concepção que o autor traz de que a referência ao texto musical original não deve
ter a função de citação, de identificação, afasta de certa forma a sua concepção de reescritura da ideia de
intertextualidade, na qual a referencialidade ao texto original pode atrair novas ou distintas compreensões
ao texto, ampliando a possibilidade de leitura e de criação de sentido(s).
Os dois conceitos, reescritura e intertextualidade, encontram uma maior aproximação nos escritos de
Gustavo Penha, que desenvolve e amplia a ideia debatida por Ferraz. Para Penha,
A reescritura implica num diálogo entre diferentes pensamentos criativos historicamente
determinados de uma mesma manifestação artística. Aquele que reescreve lança um olhar
para trás e faz confrontarem-se os pensamentos e procedimentos composicionais
presentes no texto que será reescrito, com aqueles próprios seus e de seu contexto
histórico, e dessa maneira acaba por lançar um olhar a si mesmo, como que num espelho.
Ao reescrever um autor se apresenta também como um leitor crítico, e é justamente uma
leitura, ou uma escuta, que ele tratará de escrever a partir de suas próprias ferramentas
composicionais, atualizando, assim, a obra original; ele reescreve porque escreve uma
leitura sua de um texto já escrito. (Penha 2010)
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Taffarello, Tadeu Moraes; Taffarello, Maria Cristina de Moraes. 2021. “Canção como gênero multimodal: um estudo no ciclo Volare
Per Musi no. 41, General Topics: 1-35. e214118. DOI 10.35699/2317-6377.2021.35298
A partir do desenvolvimento de algumas categorias de intertextualidades, Penha busca, em seu texto,
relações intertextuais em peças musicais que tenham a reescritura como base do pensamento
composicional, aproximando, dessa maneira, os dois conceitos e buscando exemplos na música dos séculos
XX e XXI.
Da mesma forma, a intertextualidade na criação do ciclo de canções Volare ocorreu a partir da reescritura
de certas obras musicais, com o uso irregular de determinados materiais ou gestos musicais na recriação de
uma nova composição. Fazem parte desse eixo as canções previamente demonstradas Pois é e Partitura,
além das canções Dengo, Disciplina, Noturno e Cadência.
Dengo
Vesti
a fantasia
de bailarina
o tule pinica
não gosto
Prefiro a
de baianinha
cheirosa
miçangas vistosas
cetim de mim
15
Uma leitura possível para o poema é a de um eu-lírico feminino experimentando roupas distintas, uma de
bailarina, a outra de baianinha, e demonstrando a sua preferência pela segunda. As duas estrofes também
podem ser entendidas como um jogo de oposição entre duas culturas totalmente diferentes, uma
europeia/ocidental, com a vestimenta apropriada para uma atuação artística conhecida, e outra
local/regional, com a maneira própria da baiana de se vestir. O fato de o tule pinicar torna-se o motivo
principal para a rejeição da primeira vestimenta, enquanto adjetivos como cheirosa” e “vistosas” se tornam
prerrogativas desejáveis na preferência pela segunda vestimenta. Há um certo ar de brincadeira e leveza no
poema como um todo. o último verso, “cetim de mim”, foi interpretado como se o eu-lírico feminino
estivesse nua, sendo ela mesma a sua própria roupa, o seu próprio cetim. Esta interpretação foi fundamental
na busca da criação de sentido na canção.
Dessa forma, a intertextualidade explícita e estilística ocorre com Erotica, quarto movimento da
Symphonie pour un homme seul, composição concreta de Pierre Schaefer e Pierre Henry. O pesquisador
Alexandre Fenerich observa que tal composição foi feita a partir de gravações previamente realizadas
trabalhadas em loops com duas camadas sobrepostas. Para o pesquisador, a peça
[...] é construída a duas vozes, cada qual abrindo um campo imagético distinto: uma é feita
de curtos loops vocálicos de duas ou três notas formando pequenos ostinatos. [...] A outra
camada é feita de risadas, gemidos, vocalizes e outros gestos vocais, todos ligados a uma
expressão muito íntima de prazer. (Fenerich 2012 grifo do autor)
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Publicado originalmente em Salvador (Cintra 2005)
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Os elementos mecânicos - loops - e íntimo de prazer foram reescritos na partitura de Dengo com o uso de
ostinati, glissandi e indicações textuais para a cantora e os instrumentistas de cordas (Figura 15).
Figura 15: compassos iniciais da canção Dengo. Ciclo de canções Volare (Taffarello 2018)
Conforme é possível observar na Figura anterior, as instruções verbais aos intérpretes tentam recriar o
caráter mecânico e de prazer íntimo da peça de Schaeffer e Henry. As indicações e instruções aos músicos
de cordas para tocar “como gravações que surgem e desaparecem” e para que “realizem as retomadas de
arcos ou pizzicati com gestos repetitivos e mecânicos” são a maneira encontrada para que os ostinati
presentes possam ser interpretados como loops mecânicos gerados a partir de sons curtos e repetitivos. A
cantora, por sua vez, tem a indicação para que seus glissandi sejam cantados “com lascívia”. A intenção desta
indicação é a busca de uma interpretação vocal que tenha uma aproximação às risadas, vocalizes e outros
gestos vocais desenvolvidos em "Erotica" e, dessa forma, recriar estes gestos musicais nesta nova
composição.
O material musical para a criação dos ostinati veio da ideia desenvolvida por Mannis e Bellaver e apresentada
por Fenerich em anexo à sua tese de doutorado, que foi a transcrição em uma partitura musical das
sonoridades resultantes do trabalho composicional de Erotica. O autor-compositor de Volare teve
conhecimento do trabalho feito por Mannis e Bellaver, porém não utilizou a transcrição feita por eles,
realizando a sua própria. Esse processo acabou gerando uma certa irregularidade no resultado final de
Dengo, algo desejável em se tratando de um processo de reescritura musical, conforme explanado
anteriormente com base nos escritos de Ferraz e de Penha.
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Taffarello, Tadeu Moraes; Taffarello, Maria Cristina de Moraes. 2021. “Canção como gênero multimodal: um estudo no ciclo Volare
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Disciplina
todos os dias
ao raiar
do sol
um pássaro
canta
em fá
sustenido
16
O poema traz uma imagem rotineira de um pássaro que disciplinarmente canta diariamente pela manhã, ao
raiar do sol. A intertextualidade na canção ocorre entre os textos verbal e não verbal. Caracteriza-se, dessa
maneira, por uma metatextualidade. A partir da leitura feita para esse poema, a imagem sonoro-musical de
que a canção do pássaro ocorre com o uso da nota musical Fá sustenido gerou o tratamento musical desta
altura a partir de uma harmonia resultante da recriação em ambiente instrumental da série harmônica da
nota sustenido até o 15º harmônico (Figura 16). Dessa maneira, os instrumentos de cordas, todos eles
em divisi, tocam alguma nota integrante desta rie harmônica. Nos compassos iniciais da canção, são
utilizadas apenas as notas mais agudas da série harmônica, atingindo, aos poucos, a fundamental no grave,
com um crescendo de dinâmica até esse ponto.
Figura 16: série harmônica de Fá # utilizada como base harmônica para a canção Disciplina. Ciclo de canções Volare (Taffarello, 2018)
Apenas após o gesto inicial anteriormente descrito é que a voz entra. Ironicamente, na interpretação musical
dos dois últimos versos do poema, quando a nota sustenido é verbalmente apresentada, é o momento
em que a voz sonoramente canta uma nota natural (Figura 17), distante um intervalo de trítono (3T) da
sonoridade geral de Fá sustenido presente nos instrumentos de cordas.
Figura 17: melodia de Disciplina. Ciclo de canções Volare (Taffarello 2018), compassos 17-23. Nos versos finais, percebe-se a contraposição
entre o texto verbal (Fá sustenido) e a nota soada (Dó natural), buscando causar uma sensação de estranhamento e afastamento entre os
textos verbal e não verbal
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Publicado originalmente em Sustenido (Cintra 2011)
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Taffarello, Tadeu Moraes; Taffarello, Maria Cristina de Moraes. 2021. “Canção como gênero multimodal: um estudo no ciclo Volare
Per Musi no. 41, General Topics: 1-35. e214118. DOI 10.35699/2317-6377.2021.35298
Dentro da concepção harmônica do ciclo de quintas, o trítono é o intervalo mais distante possível entre duas
notas. A intenção da criação de sentido com isso foi gerar um estranhamento, que é fruto do distanciamento
entre os textos verbal e não verbal neste ponto específico da canção.
Noturno
céu de ébano
vai a lua
nua
mergulhar
no cafezal
17
Esse poema retoma a temática da noite. Seus dois primeiros versos ambientam a cena em uma paisagem
noturna, escura, enluarada. Musicalmente, o motivo da noite é trabalhado. Se em Pois é, ele era introduzido
e em Partitura, tratado à maneira de uma série dodecafônica, em Noturno, o motivo da noite aparece de
maneira mais livre, atonal, assim como fora utilizado por Schoenberg em sua canção Nacht, peça essa que é
a intertextualidade explícita pretendida pelo autor-compositor. Em Noturno, o motivo da noite aparece
tanto melódica quanto harmonicamente dentre os vários naipes instrumentais e na voz (Figura 18).
Figura 18: aparições diversas do motivo da noite na canção Noturno. Ciclo de canções Volare (Taffarello 2018). Compassos 18-21
Outra interpretação feita à leitura do poema e da qual se buscou o efeito de sentido na música foi a busca
por uma sonoridade escura na voz, com o prolongamento melódico da vogal “u” presente nos versos 2, 3 e
4 do poema. No exemplo anterior, é possível perceber o prolongamento em notas melismáticas na palavra
“mergulhar”. A vogal “u” das palavras “lua” e “nua” são trabalhadas em apoio aos naipes de violinos. Estes
atacam inicialmente a mesma altura da nota da voz, com o uso de trilos de arco e indicações de tocar com a
ponta do arco sobre o cavalete do instrumento. O motivo da noite é atingido a partir dos glissandi em arcos
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Publicado originalmente em Versátil (Cintra 2014)
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Taffarello, Tadeu Moraes; Taffarello, Maria Cristina de Moraes. 2021. “Canção como gênero multimodal: um estudo no ciclo Volare
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de dinâmica de crescendo e decrescendo desses dois naipes que se distanciam da nota prolongada pela voz,
completando as outras duas alturas do motivo (Figura 19).
Figura 19: exploração sonora da vogal “u” por prolongamento melódico na canção Noturno. Ciclo de canções Volare (Taffarello 2018),
compassos 12-17. Em destaque, duas aparições harmônicas do motivo da noite
Cadência
os relógios
seculares
mantêm o ritmo
acordado
haverá passado
nesse tique-taque
presente
onde o futuro
depende
do prumo da parede
e da constância
do pêndulo
18
Uma interpretação possível ao poema Cadência é o da constância do tempo em justaposição às incertezas
do porvir. A primeira estrofe nos remete à ancestralidade do tempo, mantendo o ritmo acordado por meio
de seus relógios seculares. Já a segunda e última estrofe nos remete às incertezas do porvir pelo fato de ele
depender de fatores que, muitas vezes, nos são fugidios, como o prumo da parede e a constância do
pêndulo, detalhes esses difíceis de serem controlados. Apesar de não haver nenhuma pontuação, a segunda
estrofe pode ser interpretada como uma indagação, uma incerteza em relação ao passado e ao futuro. Os
versos curtos criam também um ritmo próprio por meio de suas sílabas tônicas.
A intertextualidade musical criada para esse poema foi com a música do compositor brasileiro José Augusto
Mannis, Relógio. Em um artigo anterior (Taffarello e Ferraz 2007), demonstramos, por meio da análise
musical, o funcionamento de um sistema de ciclos que estrutura o ritmo e a composição musical de Mannis.
Um sistema parecido foi trabalhado em Cadência. Esta canção tem a sua instrumentação reduzida e deve
18
Publicado originalmente em Sustenido (Cintra 2011)
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ser tocada apenas pela cantora acompanhada por um quarteto de cordas. As notas da escala cromática
foram divididas entre a voz e os instrumentos, de tal forma que não haja coincidências e que determinadas
notas sejam tocadas apenas por determinados instrumentos.
Figura 20: divisão do total cromático entre a voz e os instrumentos do quarteto de cordas na canção Cadência. Ciclo de canções Volare
(Taffarello 2018)
Conforme demonstrado na Figura anterior, a voz canta o texto presente no sexto verso do poema “tique-
taque” usando apenas as alturas Dó e Fá#; a viola utiliza as notas Dó# e Sol; violino I, Mi e Fá; violoncelo, Ré
e Mib; e, por fim, violino II, as notas Sol#, Lá, Lá#, Si e suas enarmonias.
Cada instrumento, além de alturas próprias, tem uma função específica na constituição da textura musical.
Os versos do poema são declamados pela cantora com voz falada. A única exceção é o “tique-taque”, no
qual a voz, em parceria com a viola, cria ciclos regulares de 7 e 13 colcheias respectivamente. (Figura 21) O
intervalo musical utilizado pelos dois instrumentos é o trítono (3T).
Os instrumentos violino I e violoncelo realizam ciclos descontínuos, sem uma clara definição de seu tamanho
total. Apesar de o intervalo entre as notas destes instrumentos ser o semitom (ST), ele nunca ocorre nessa
configuração, aparecendo preferencialmente de maneira invertida ou composta nos intervalos de sétima
maior (7M) ou nona menor (9m). Já o violino II tem uma função de articulador estrutural da forma musical.
O “tique-taque” da voz, os instrumentos violino I, viola e violoncelo têm todos sons curtos, em pizzicato. O
violino II é o único que tem notas longas, com o uso do arco. Este instrumento tem apenas três entradas, no
início, meio e fim da canção.
Figura 21: ciclos de 7 e 13 colcheias da voz “tique-taque” e da viola na canção Cadência. Ciclo de canções Volare (Taffarello 2018)
Por serem baseados em números primos, os ciclos da voz e da viola somente se reencontram após 7 ciclos
de 13 colcheias da viola ou 13 ciclos de 7 colcheias da voz. O primeiro ponto de reencontro destes dois ciclos
marca a segunda entrada do violino II e, dessa forma, se torna um ponto importante de articulação estrutural
da forma musical. Na Figura 22, é possível perceber o uso da voz falada na declamação do poema pela
cantora (notas indicadas com a cabeça em forma de x) e os ciclos descontínuos do violino I e do violoncelo.
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No compasso 26 do exemplo seguinte, estes instrumentos tocam as suas alturas pré-determinadas com
intervalos abertos.
Se anteriormente argumentamos que os instrumentos violino I e violoncelo utilizam exclusivamente um
número reduzido de duas alturas cada, uma exceção. Durante as entradas do violino II, aqueles
instrumentos tomam emprestadas as alturas deste instrumento e articulam seus ciclos descontínuos a partir
das alturas disponíveis para o violino II, com o uso principal do intervalo de segunda maior (2M). Essa
mudança é perceptível na Figura 22 entre os compassos 28-31, nos quais mudanças nas alturas dos
instrumentos violino I e violoncelo, passando a tocar as notas Sol#, Lá, Lá# e Si.
Figura 22: ponto de encontro dos ciclos da voz e viola e entrada do violino II na canção Cadência. Ciclo de canções Volare (Taffarello 2018),
compassos 24-31
A terceira e última entrada do instrumento violino II conduz a canção para seu final, no qual o primeiro verso
do poema é repetido pela voz falada.
4.3. Eixo temático 3 - beleza poética
Conforme escrito anteriormente, neste eixo temático estão os poemas que, por sua beleza poética, foram
selecionados e auxiliam na constituição global do ciclo. Eles foram utilizados como letras para as canções
Vade Retro e Canção.
Uma leitura possível do poema Vade Retro é o de um eu-lírico que, cansado/a da presença de alguém,
reclama de seus hábitos e imundices, desejando a sua retirada. Este alguém “destila veneno”, “limpa a lama
das tamancas no capacho”, “derrama vinho na toalha” e age “porcamente”, advérbio utilizado como
sinônimo de “sujo”. Pela repetição das expressões “Vens outras vez” e “Vens como outrora”, percebe-se que
este alguém é também uma visita corriqueira, podendo ser um amante, cujo encanto amoroso foi desfeito,
se quebrou, e, dessa forma, restou apenas o desejo de que se vá, que não frequente mais a casa, com suas
qualidades negativas sendo ressaltadas. O próprio título do poema faz referência a este desejo: Vade retro
é uma expressão latina utilizada para afastar algo indesejável, sobretudo em rituais de exorcismo.
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Vade Retro
Vens outra vez
na toalha
bater à porta
Vens outra vez
e destilar
porcamente
o teu veneno
e nem reparas
em nossa mesa
que tudo está limpo
Vens como outrora
e diferente
limpar a lama
que há flores na janela
das tamancas
E a casa cheira
no capacho
A pão honesto e quente
19
e derramar vinho
Uma mudança drástica no poema ocorre nos cinco últimos versos. Nestes, o eu-lírico deixa de bravejar
contra a presença indesejada do visitante e passa a contemplar as qualidades da casa, que agora es
“limpa”, “diferente”, “com flores na janela” e “cheirando a pão honesto e quente”, todas características
contrastantes com as imundices e ações trazidas e praticadas pelo visitante.
A utilização desse poema no ciclo de canções Volare ocorreu, a partir da leitura empreendida pelo autor-
compositor, por meio da percepção da presença de uma energia nervosa, de muita raiva e desgosto, na
parte inicial do poema. Musicalmente, esta energia é tratada por uma figuração contínua em colcheias nos
instrumentos graves da orquestra de cordas em dobramento, criando uma textura enérgica pelo uso de
dinâmicas de bastante intensidade e cromatismos melódicos pontuados por acentos curtos nos demais
instrumentos. A voz, em dobramento com os naipes de violinos e violas, canta o título do poema, também
com uso de muita energia, em dinâmica ff e acentos. Esta canção é a única na qual o título do poema é
cantado juntamente com o poema em si, sendo utilizado tanto no início quanto no final, como uma espécie
de refrão (Figura 23).
Figura 23: compassos iniciais de Vade Retro. Ciclo de canções Volare (Taffarello 2018). A energia raivosa da interpretação feita ao poema é
trabalhada musicalmente pelo uso de dinâmicas ff, acentos e figuração rítmica contínua em colcheias dos violoncelos e contrabaixos
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Publicado originalmente em Melopéia (Cintra 2002).
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A virada que ocorre no poema é acompanhada musicalmente com uma mudança radical da textura utilizada.
A partir dos versos “que tudo eslimpo / e diferente”, musicalmente a diminuição pela metade do
andamento musical pelo uso de uma unidade de tempo que tem o dobro da duração da que vinha
anteriormente. A mudança é reforçada também pela diminuição da dinâmica, pelo uso de fraseados mais
ligados e pela cessão da figuração rítmica contínua dos instrumentos graves. Acompanhando musicalmente
o verso “que flores na janela”, por exemplo, uma textura mais melodiosa e estática, com o uso de
notas mais agudas e pouca movimentação das linhas melódicas dos instrumentos de cordas (Figura 24).
Figura 24: mudança textural acompanhando mudança no poema em Vade Retro. Ciclo de canções Volare (Taffarello 2018), c.c 33-37
Vade Retro é finalizada pelo retorno e pela textura que acompanha o título do poema, reforçando o desejo
de expulsão do suposto visitante.
Canção
Era uma vez
uma menina
bem pequenina
que só fazia
bolhas de sabão
Em cada bolha
guardava a menina
um raio de sol
uma canção
canção colorida
a sete tintas
que tinha sempre
o mesmo refrão
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Era uma vez
uma menina
bem pequenina
que só fazia
bolhas de sabão
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Uma possível leitura ao poema Canção
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é uma que nos remete ao universo infantil, da diversão, do lúdico.
O primeiro verso, “Era uma vez”, nos liga à tradição dos contos infantis que usam esta frase como início. Na
primeira estrofe, nos é apresentada uma menina que se diverte fazendo bolhas de sabão. Essa mesma
menina, na segunda estrofe, realiza algumas ações que podem ser compreendidas enquanto metáforas.
Ela consegue guardar um “raio de sol” e “uma canção” em cada bolha de sabão que fazia, sendo tal canção
“colorida a sete tintas”. Colorir uma canção, guardar um raio de sol e inserir uma canção em uma bolha de
sabão são belas imagens poéticas que reforçam o caráter lúdico e de fantasia que este poema traz.
O poema apresenta também uma forma cíclica, pois o último verso da segunda estrofe reposiciona o
significado não apenas da terceira estrofe que o segue, como também o da primeira, que lhe é idêntica. Ao
declarar que a terceira estrofe é, na realidade, o refrão à canção colorida guardada pela menina em sua
bolha de sabão, também a primeira estrofe pode ser, por semelhança, repensada não como uma descrição
de uma ação, mas como o mesmo refrão da mesma canção, havendo, portanto, um deslocamento do
significado inicial.
Musicalmente, a canção Canção foi estruturada em uma forma ternária simples, na qual é respeitado o
esquema de retorno ao tema inicial na parte final, assim como ocorre no poema. Dessa forma, para a
primeira e a terceira estrofes é utilizada a mesma música (Figura 25). Essa mesma melodia acompanha
também os quatro primeiros versos da segunda estrofe.
A partir da leitura feita do poema, o dico e a brincadeira são tratados musicalmente por meio de uma
textura bastante leve, com uso de pizzicati nas cordas médio e graves, com predominância da figuração
rítmica em contratempo e dinâmica baixa (mp ou p). As cordas agudas (violinos) criam figuras de vai-e-vem
com rítmica em colcheias, reforçando a harmonia implícita que é, por sua vez, bastante tonal. A indicação
geral de caráter (Lúdico) também auxilia na ambientação musical pretendida.
A seção que apresenta características um pouco diferentes corresponde aos versos 5 a 8 da segunda estrofe,
quando há a descrição da canção. Nesse momento, musicalmente, a indicação de um caráter lírico, com
a manutenção dos pizzicati em contratempo nas cordas graves, uso de notas prolongadas no agudo e a
figuração rítmica de vai-e-vem em colcheias, distribuída entre violinos II e violas. A voz atinge a nota mais
20
Publicado originalmente em Melopéia (Cintra 2002)
21
A inclusão do poema Canção no ciclo Volare ocorreu por uma experiência onírica do autor-compositor.
Tendo este poema sido contemplado em uma pré-seleção de poemas possíveis de serem utilizados, ele
inicialmente não participava da configuração global pensada para o ciclo. Entretanto, durante o processo de
criação da música, certa noite o autor-compositor foi acordado com a melodia e acompanhamento
inteiramente prontos em sua potencialidade musical. O principal trabalho realizado foi o de passar a limpo
no papel, interpretando na partitura com o uso de símbolos musicais, a melodia e o acompanhamento
sonhados na situação.
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aguda da canção como um todo, o sustenido, permanecendo em uma tessitura um pouco mais elevada
em relação à melodia das demais seções e tratada em uma sequência melódica descendente. (Figura 26)
Figura 25: música usada na primeira estrofe de Canção. Ciclo de canções Volare Taffarello (2018), compassos 1-5
Figura 26: seção B utilizada para os versos 5 a 8 da segunda estrofe de Canção. Ciclo de canções Volare (Taffarello 2018), compassos 9-13
5. Orquestração e estruturação global do ciclo
Pensando no ciclo em sua totalidade, percebe-se que algumas peças podem ser agrupadas devido a
características comuns. Uma dessas características é a orquestração. O uso mais tradicional da orquestra de
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cordas é a divisão da mesma em 5 naipes (violinos I e II, violas, violoncelos e contrabaixos), com o uso
ocasional de divisi ou soli em um ou mais naipes. Em Volare, a orquestração de quatro das canções segue
essa divisão. Entretanto, conforme demonstrado anteriormente, algumas canções utilizam uma
instrumentação ampliada, com o uso de divisi na totalidade dos instrumentos requeridos, ou reduzida, com
o uso de apenas alguns naipes ou instrumentos.
A canção Disciplina, por exemplo, utiliza o divisi em todos os instrumentos, tratando-os de forma
individualizada. as canções Volare, Pois é, Partitura, Dengo, Cadência e o Interlúdio I utilizam,
respectivamente: voz solo; violas e contrabaixos; naipe de violoncelos em divisi; ausência dos contrabaixos;
quarteto de cordas; e contrabaixo solo. Estas o, portanto, formações reduzidas extraídas do todo
disponível.
Os naipes de violinos, únicos até o momento que ainda não foram citados com o uso no ciclo de uma peça
de orquestração reduzida exclusiva, são utilizados no Interlúdio II. Nessa peça, há o divisi, dentro dos naipes
de violinos I e II, caracterizado pelo uso de instrumentos solistas, le spalle, separados dos demais
instrumentos. Essa formação é inspirada no repertório de Concerti Grossi do período barroco, no qual o
concertino, grupo de instrumentos solistas, dialoga com o ripieno, demais instrumentos da orquestra (Figura
27).
Figura 27: separação instrumental entre concertino (violinos soli) e ripieno (demais violinos) em Interlúdio II. Ciclo de canções Volare
(Taffarello 2018), compassos 11-14
Sendo assim, os aspectos considerados para o agrupamento de determinadas canções foram:
1. Temática do poema em acordo com a leitura feita pelo autor-compositor:
a) Poetisa: sua apresentação e despedida;
b) Familiares da poetisa;
2. Materiais musicais trabalhados por retrogradação da inversão;
3. Uso do Motivo da Noite;
4. Intertextualidade musical implícita, explícita, estilística ou metatextual;
5. O fato de conter ou não alterações no poema;
6. Beleza poética;
7. Instrumentação.
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Às vezes, uma mesma canção pode estar em mais de um agrupamento ou, mais raramente, como o caso de
Interlúdio I, pertencer a um único grupo.
Além disso, no decurso do ciclo, as primeiras canções têm características mais tonais, caminhando cada vez
mais para um cromatismo, atonalismo livre e para um serialismo dodecafônico, presentes sobretudo nas
canções centrais. Esse percurso se inverte na terminação do ciclo, retornando a um atonalismo livre,
cromatismo e tendo as canções finais novamente mais vínculos com um estilo composicional tonal.
O ciclo como um todo pode ser tocado em sua versão completa (VC), com todas as 11 canções e 2 interlúdios,
ou na versão resumida (VR), com apenas 6 canções. Interessante destacar que, pela análise dos manuscritos
do autor-compositor, é possível perceber que a ordem de escrita das canções (ORD) não corresponde à
ordem final sugerida para a interpretação das mesmas. A única exceção é a canção Morada: tendo sido
escrita por último, é o 13º movimento da versão completa ou o 6º da versão resumida.
A ligação entre as peças na estruturação global do ciclo, os vínculos a estilos composicionais e a ordem de
interpretação e de composição podem ser visualizados na sequência (Figura 28).
6. Considerações finais
A hipótese de que a canção pode ser compreendida como um gênero multimodal ocorreu pela percepção
de que o texto verbal, manifesto no poema, e o texto não verbal, manifesto na música, são interdependentes
e atuam conjuntamente na construção de efeitos de sentido(s) e seus desvios. A intertextualidade pode
auxiliar nesta construção. Esta percepção foi desenvolvida em uma abordagem interdisciplinar, com base
em estudos da Linguística Textual, da Análise do Discurso e da Composição Musical.
O ciclo de canções Volare (2018) para voz feminina grave e orquestra de cordas, escrito por Tadeu Taffarello
a partir de poemas de Sônia Cintra (1949-2018), foi usado como exemplo para o desenvolvimento de tal
hipótese. Dessa maneira, foi demonstrada a construção conjunta de efeitos de sentido(s) e seus desvios a
partir das leituras feitas dos poemas e das músicas criadas para o ciclo. Nesse aspecto, os contextos de
criação da obra auxiliaram na seleção de determinados poemas que, até mesmo por serem heterogêneos e
múltiplos em suas leituras, puderam ser agrupados de acordo com determinados critérios: temático
(referência à poetisa e família); de materiais musicais utilizados; de tipos de intertextualidade; de
fidedignidade ao texto verbal do poema; de beleza poética; e/ou de tipo de instrumentação.
Com este estudo, pretende-se que novas abordagens ao gênero canção possam ocorrer a partir de uma
perspectiva interdisciplinar, buscando, dessa maneira, abrir novas possibilidades de desenvolvimento
científico e colaborar com uma ampliação na compreensão do gênero canção e da música brasileira atual.
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Figura 28: Estrutura global do ciclo de canções Volare (2018) de Tadeu Taffarello. Legenda: VC: Versão Completa; VR: Versão Resumida;
ORD: Ordem de composição.
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