eISSN 2317-6377
Desenvolvimento da performance e ensino crossover de canto:
entrevista com a atriz e cantora Bianca Tadini
Helen Bovo Tormina
https://orcid.org/0000-0003-1408-755X
Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes
helen.tormina@gmail.com
Angelo José Fernandes
https://orcid.org/0000-0001-6117-6702
Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes
angejojf@unicamp.br
INTERVIEW
Submitted date: 22 sep 2021
Final approval date: 17 nov 2021
Resumo: A presente entrevista realizada com a atriz e cantora crossover, Bianca Tadini, revela aspectos acerca de seus
métodos pessoais de estudo, aprendizado e ensino, utilizados com o propósito de cantar repertórios que exigem
consideráveis diferenças de produção vocal, sem, entretanto, reminiscências entre um estilo e outro. As questões
priorizam posturas tomadas frente às situações em que a demanda exigida pelo trabalho era de alternância entre os
gêneros Ópera e Teatro Musical. A entrevistada relata quais, a seu ver, foram os elementos facilitadores de seu
aprendizado e, ainda, quais costuma utilizar tanto em seu estudo e manutenção de técnica vocal quanto em sua
abordagem pedagógica.
Palavras-chave: Canto crossover; Ópera; Teatro musical; Técnica vocal híbrida; Pedagogia vocal.
The development of performance and crossover teaching of singing: an interview with the singer and actress Bianca
Tadini
Abstract: The present interview with the actress and crossover singer, Bianca Tadini, reveals aspects about her
personal methods of study, learning, and teaching, considering a variate repertoire. It is a situation that demands
considerable differences in vocal production, without, however, reminiscences between one style and another. The
questions in the interview prioritize the decisions over situations in which the work exigencies were the alternation
between Opera and Musical Theatre. The interviewee, in her opinion, relates which was the elements that facilitated
her learning process, and what else she applies as in her study and the maintainability of her vocal technique as in her
pedagogical approach.
Keywords: Crossover singing; Opera; Musical theatre; Hybrid vocal technique; Vocal pedagogy.
Per Musi, no. 41, General Topics, e214127, 2021
DOI: 10.35699/2317-6377.2021.36194
Tormina, Helen Bovo; Fernandes, Angelo José. 2021. “Desenvolvimento da performance e ensino crossover de canto: entrevista com a cantora e atriz Bianca
Tadini” Per Musi no. 41, General Topics: 1-24. e214127 DOI: 10.35699/2317-6377.2021.36194
2
Desenvolvimento da performance e ensino crossover de canto:
entrevista com a atriz e cantora Bianca Tadini
Helen Bovo Tormina, Universidade Estadual de Campinas, helen.tormina@gmail.com
Angelo José Fernandes, Universidade Estadual de Campinas, angejojf@unicamp.br
1. Introdução
Neste momento, o setor das artes performáticas e o seu ensino passam por grande transformação no Brasil.
Essa esfera como um todo passava por uma reinvenção compulsória desde 2019
1
, sendo severamente
afetada por cortes no orçamento da Lei Rouanet, tendo como principais impactados ramos como Teatro
Musical e Ópera. De acordo com Cardoso et al (2016) apud Prado (2012), na segunda metade da década de
1990, com o advento dos musicais franqueados da Broadway, o Brasil passou a fazer parte do itinerário das
superproduções internacionais, formando um corpo de profissionais especializado, com investimentos
superiores a 60 milhões de reais e geração de 25 mil postos de trabalho, até a data daquela publicação. Em
curto espaço de tempo, este mercado cresceu ainda mais, conforme pesquisa da FGV publicada pelo O Globo
(2019), que revelou que, em 2018, o mercado de Teatro Musical movimentou um bilhão de reais no Estado
de São Paulo.
Este crescimento por si próprio já configurava grande estímulo para que cantores de diferentes formações,
como o canto lírico ocidental, procurassem aprender novas técnicas de emissão vocal, visando a ampliação
de seus campos de trabalho. A somatória desses eventos promoveu certa intensificação desta
interseccionalidade, e artistas desta seara passaram a protagonizar consideráveis transformações no modo
em que a Ópera e o Teatro Musical são produzidos, incluindo novas linguagens em shows e produções
audiovisuais. Ademais, a pandemia do novo Coronavírus teve especial impacto nas artes performáticas,
exigindo que diversos artistas passassem por processos de aquisição de novas habilidades como por exemplo
gravação e edição de áudio e vídeo. Artistas acostumados a atuar em palcos para grandes plateias tiveram
de reaprender seu gestual com a atuação direcionada para câmera, e a mobilidade entre gêneros artísticos
tornou-se uma saída para aqueles cujos trabalhos foram cancelados por depender diretamente do contato
com o público.
De acordo com os dados publicados pelo G1(2020), a Associação dos Produtores de Teatro (APTR) afirma
que 12 mil profissionais do setor de espetáculos suspenderam as atividades apenas em São Paulo e Rio de
Janeiro, interrompendo as temporadas de quase 350 peças. Conforme a associação mencionada,
1
Mais informações sobre o assunto disponíveis em:
https://www.agazeta.com.br/entretenimento/cultura/mudancas-na-lei-rouanet-afetam-produtores-e-
artistas-locais-0419
Tormina, Helen Bovo; Fernandes, Angelo José. 2021. “Desenvolvimento da performance e ensino crossover de canto: entrevista com a cantora e atriz Bianca
Tadini” Per Musi no. 41, General Topics: 1-24. e214127 DOI: 10.35699/2317-6377.2021.36194
3
aproximadamente 70% destes espetáculos dependiam exclusivamente da bilheteria, pois não contavam com
patrocínio
2
. Nestas circunstâncias, o meio se viu obrigado a mais um processo de reinvenção, ocupando a
internet com modalidades digitais de todo tipo de espetáculo, ganhando até mesmo versões animadas, com
ensaios a distância e, em muitos casos, gravadas individualmente.
Para além desta conjuntura de exceção da pandemia, é notório que a performance vocal tem ciclos de
mudanças intensas desde os primórdios. A necessidade de alterações técnico-estilísticas na música vocal é
facilmente observável ao longo da História das práticas interpretativas. Normalmente, essas modificações
são frutos de exigências estéticas vigentes e, em outros momentos, evidenciam um recurso cênico.
Mudanças significativas no modo de usar a voz precisaram ser feitas a cada novo estilo e espetáculo. Os
materiais utilizados na pesquisa em performance vocal, como tratados, cartas e memórias de compositores
e performers, textos e livros de teor histórico e analítico sobre questões de estilo, permitem-nos constatar a
existência de tendências vocais ditadas pela moda em diferentes épocas (Elliot 2006).
O setor de Teatro Musical por si só possui um hibridismo de estilos desde sua origem, resultando em grande
variedade de estilos musicais e exigências vocais que já estavam presentes no cotidiano desses performers,
desde o aparecimento do gênero, mudando com maior velocidade a partir do surgimento e da aceitação dos
microfones nesse tipo de espetáculo. Originado dos espetáculos de Vaudeville e Operetas, é grande a
diversidade que o gênero abrange. Para atender às mudanças provindas das expectativas do público por
novidades, novos elementos vocais são inseridos frequentemente, atingindo, assim, seu objetivo comercial
(Oliveira 2016).
2
Profissionais do entretenimento passaram por uma situação financeira realmente periclitante. Segundo a
Agência Brasil (2020), a Lei Aldir Blanc previu a concessão de benefício de R$ 600,00, também possibilitando
a distribuição de quantias para manutenção de espaços culturais e empresas através do Fundo Nacional de
Cultura. Porém, os valores não são suficientes e segundo relatos de artistas na mesma publicação da Agência,
tornou-se bastante desgastante participar dos editais de fomento à cultura em meio à pandemia, por se
encontrarem em vulnerabilidade e serem colocados para competir entre si. A fragilidade da classe artística
também demandou a criação de fundos colaborativos, como o Fundo Iasmine para auxílio emergencial de
Técnicos de Teatro Musical, o festival Dreamcast Live, onde os maiores nomes do Teatro Musical do Brasil
se apresentaram de forma digital a fim de arrecadar valores revertidos para artistas que ficaram sem
trabalho, e a Lírica Solidária para cantores de ópera em situação de vulnerabilidade.
Fundo Fundo Iasmine - Criado pelas artistas Myra Ruiz e Fabi Bang, o fundo buscou oferecer um alívio às
famílias de iluminadores, camareiras, peruqueiros, técnicos de som, contrarregras, dentre outros técnicos
do setor. Mais informações sobre este fundo em:
https://mundodosmusicais.com/2020/06/15/myra-ruiz-e-fabi-bang-criam-campanha-de-financiamento-
coletivo-para-apoiar-tecnicos-de-teatro-musical/
Dreamcast Live - Idealizado pela Lab Cultural de José Toro, o projeto tem parceria com Diego Montez e
Robert Lima, funcionando como festival de Teatro Musical, com a arrecadação convertida em auxílio
emergencial para trabalhadores do setor. Mais informações sobre este fundo em:
https://mundodosmusicais.com/2020/07/22/dreamcast-festival-online-beneficente-reune-grandes-
nomes-do-teatro-musical/
Lírica Solidária - Projeto de auxílio mútuo entre os cantores líricos brasileiros, nascido na Comissão de
Trabalho de Medidas Econômicas Emergenciais da Classe dos Cantores Líricos do Fórum Brasileiro de Ópera,
Dança e Música de Concerto. Mais informações sobre este fundo em: https://www.liricasolidaria.com.br/
Tormina, Helen Bovo; Fernandes, Angelo José. 2021. “Desenvolvimento da performance e ensino crossover de canto: entrevista com a cantora e atriz Bianca
Tadini” Per Musi no. 41, General Topics: 1-24. e214127 DOI: 10.35699/2317-6377.2021.36194
4
É fácil perceber que o Teatro Musical busca ser um tipo de entretenimento popular: ele vai
na onda do público. [...] São criados musicais novos a cada temporada para refletir as
mudanças de gosto da audiência, pois, normalmente, quanto mais popular, maior o público
atingido e pode aser que a equipe criativa não esteja preocupada em ser sucesso de
público, mas a produção normalmente está (Oliveira 2016, 1).
Em função dessa exigência, segundo Spivey e Barton (2018), cantores da Broadway lidam com a pressão de
cantar constantemente em mais de um estilo e, por esse motivo, desenvolvem uma técnica crossover
3
. Esse
tipo de trabalho, com múltiplas demandas vocais, não é incomum ao mercado brasileiro, como veremos na
entrevista a seguir. Ademais, ambos os meios mencionados neste trabalho, Ópera e Teatro Musical,
requerem uma performance de grande destreza técnica e interpretativa.
Com o objetivo de entrever alguns dos processos e elementos que compõem o desempenho profissional de
alto nível, executado em ambas as práticas vocais por um mesmo artista, o grupo de pesquisa “Canto:
interpretação, técnica e pedagogia” do Instituto de Artes da Unicamp coletou dados por meio de uma série de
entrevistas semiestruturadas de acordo com a proposta de Colognese e Melo (1998, 144-145), com cantores
crossovers, considerados experts pelo meio especializado, sobre suas atividades e formações. De acordo
com Bogdan e Biklen (2010), a entrevista permite-nos recolher dados na linguagem do entrevistado, o que
possibilita ao entrevistador intuir acerca do modo com que seu sujeito interpreta o mundo ao seu redor.
A escolha do método ocorreu em função da ponderação sobre o caráter qualitativo da pesquisa e das
subjetividades implícitas, priorizando a interação entre entrevistados e entrevistadores em encontros
síncronos online, realizados com a ferramenta Skype ou Zoom, podendo-se observar gestos, entonações,
entre outros elementos da linguagem não verbal, além de ter como guia um roteiro pré-estabelecido,
contudo, não rígido.
O roteiro prévio foi inspirado em questões contidas no livro Great Singers on Great Singing, de Jerome Hines
(2006), o qual configura uma investigação sobre a construção da vivência musical, formação profissional,
rotina de manutenção diária da técnica e estratégias para situações profissionais de alta exigência técnica.
Com estas questões, buscamos observar elementos da prática deliberada
4
, como o alto nível de
aproveitamento relatado após determinadas práticas, a consciência do objetivo de cada prática, táticas de
correção e autoavaliação sobre os processos que levaram a maiores taxas de êxitos.
3
“É considerado cantor crossover aquele que conta com mais de uma técnica, capaz de produzir diferentes
resultados de emissão vocal, sem, no entanto, deixar reminiscências entre estilos vocais. LeBorgne e
Rosemberg (2014), que utilizam o termo cantor híbrido e atleta vocal para tais performers, afirmam que,
para realizar tais transições, o cantor deve possuir alto nível de excelência e adaptabilidade técnica”
(Tormina; Botechia, 2021).
4
Prática deliberada - termo relacionado à razão entre a prática e o nível de desempenho de determinadas
atividades, produto da quantidade de horas em que se praticou a atividade, visando ao rendimento superior.
Tem como principais pesquisadores do tema Karl Ericsson e Neil Chamess, ambos de Florida State University,
Ralf T. Krampe, de KU Leuven, e Jerad H. Moxley, de Weill Cornell Medicine.
Tormina, Helen Bovo; Fernandes, Angelo José. 2021. “Desenvolvimento da performance e ensino crossover de canto: entrevista com a cantora e atriz Bianca
Tadini” Per Musi no. 41, General Topics: 1-24. e214127 DOI: 10.35699/2317-6377.2021.36194
5
Como primeira entrevistada, convidamos Bianca Tadini, uma performer que atua profissionalmente em
frentes distintas da voz: teatro musical em diferentes gêneros - de legit
5
a high belt
6
, canto lírico, dublagem
e ensino de canto. Nascida em São Paulo, em 1980, o soprano, ganhadora do prêmio Qualidade Musical no
Brasil por sua performance de Maria, em West Side Story de L. Bernstein, obteve grande sucesso com a crítica
especializada, sendo aclamada e considerada uma artista com grande preparo em todas as áreas necessárias
ao Teatro Musical (atuação, dança e canto), em virtude de seu currículo que inclui papéis de significativa
exigência e versatilidade vocal. É classificada no meio do Teatro Musical como soprano belter
7
. Seu Fach
8
no
canto lírico ocidental é soprano lírico, sendo também designada pelo meio como cantora crossover.
Aos 20 anos de idade, a artista seguiu para os Estados Unidos da América com o intuito de estudar todos os
elementos que constituem a performance em Teatro Musical. Em canto, foi orientada por nomes como
Daniel Salve, Donna Reed, Amélia Gumes e Mary Setrakian, a qual foi responsável pelo preparo vocal da atriz
Nicole Kidman em Moulin Rouge. Sua compreensão do comportamento vocal no Teatro Musical garantiu-
lhe a aclamação também como versionista, pela criação da versão em português do musical Mudança de
Hábito, agraciada com o prêmio Bibi Ferreira de melhor versão.
Figura 1 Bianca Tadini
5
No teatro musical, o termo legit refere-se a uma técnica vocal semelhante ao canto clássico feminino e tem
sua produção predominante nos músculos cricotireóideos [sobre os músculos tireoaritenóideos] (Roll 2015).
6
Tradicionalmente, o belt feminino limitava-se a C5, entretanto, nas produções atuais da Broadway, é
recorrente a exigência de notas até F5 com este tipo de ajuste, sendo estas notas extras chamadas de high
belt (Roll 2015).
7
Cantor(a) especializado(a) em cantar em belt, que configura a técnica vocal utilizada para obter uma
sonoridade metálica tradicional em um nicho do gênero Teatro Musical. Segundo Rubim (2019), podemos
definir esta técnica como “[...] um ajuste de fonte e filtro [...]. A laringe sobe, a faringe retesa, o espaço
ariepiglótico é estreitado, o véu palatino é retesado e todo o sistema sofre um tensionamento global. Graças
a esses ajustes, o sistema fonatório produz um som estridente e ao mesmo tempo bem próximo à fala.”
(Rubim 2019, 90).
8
Fach: (plural Fächer) termo alemão para categoria, compartimento, disciplina, área de especialização,
especialidade, dentre outras traduções. Em canto, é utilizado como ‘categoria de voz’. “Mais do que
outros, os alemães m sistematicamente feito distinções entre os vários tipos de vozes cantadas e
estipulado quais papéis operísticos são adequados para cada um deles. Assim, cada uma das
categorias principais (soprano, contralto, tenor, barítono, baixo) tem suas próprias subdivisões [...]”
(Fach 2002, s. v., tradução nossa).
Tormina, Helen Bovo; Fernandes, Angelo José. 2021. “Desenvolvimento da performance e ensino crossover de canto: entrevista com a cantora e atriz Bianca
Tadini” Per Musi no. 41, General Topics: 1-24. e214127 DOI: 10.35699/2317-6377.2021.36194
6
Nesta entrevista, Bianca contou como sua musicalidade foi desenvolvida ao longo da infância e adolescência
e também de que modo sua técnica vocal foi construída, privilegiando o hibridismo que lhe permitiu
contemplar papéis em espetáculos que vão da Ópera à estética do belting. A cantora enumerou elementos
pedagógicos facilitadores, utilizados na instituição que frequentou, tendo sido orientada a estudar, de forma
complementar, técnicas nas quais possuía menor fluência. A artista contou que já possuía certo domínio da
técnica do canto lírico e que, por esse motivo, além das aulas de técnica lírica, a academia ofereceu-lhe o
reforço do aprendizado de belting, além das demais sonoridades necessárias ao trabalho de cantriz
9
.
Também fez apontamentos acerca do impacto da pandemia em sua carreira, da repercussão do pós Covid-
19 em seus alunos, e de suas avaliações sobre este panorama no ensino e na prática artística profissional.
Bianca concedeu, nesta entrevista, uma valiosa e completa descrição de seu tempo de “calibragem” entre
uma postura vocal e outra, de maneira que pudemos vislumbrar a forma como a artista utiliza suas memórias
musculares, além de sua relação com os estilos musicais, de forma a construir uma performance crossover
de excelência, bem como de sua compreensão do que seriam as práticas pedagógicas eficientes que hoje a
fazem despontar também como professora e versionista.
2. Construção da experiência musical: primeiros contatos e formação
acadêmico-profissional
Helen Tormina: Bianca, com que idade você começou a estudar canto?
Bianca Tadini: A minha história com o canto é de trás. Eu estudei desde muito cedo. Eu comecei a cantar
no coral, na escola com dez, onze anos. Acho que eu comecei em um lugar bom, porque, no coral, você
aprende de tudo. Você aprende música, aprende a ouvir o outro, aprende a timbrar... Eu estudei durante
toda a minha adolescência, mas profissionalmente comecei a estudar, considerando profissionalmente,
quando fui para o meu conservatório, que é lá fora, com vinte anos. Aí era rock and roll. Todos os dias.
H.T.: Qual conservatório era esse?
B.T.: O American Music and Dramatic Academy, em Nova York.
H.T.: A sua formação musical se deu inteiramente nesse conservatório ou também houve outro lugar?
B.T.: Não. Tudo lá. E lá, eles se formam nisso também. O que acontece? As pessoas acham que fazer musical
é cantar, se mexer e interpretar mais ou menos também. Não. Lá, a formação consiste em aula de canto,
aula de História do teatro, História do teatro musical, aula de dança, balé, [balé]
10
contemporâneo, teoria
musical, aula de fonética, tudo junto. É pesado, porque, em dois anos e meio, três anos, você tem uma carga
horária das oito às quatro, e depois você tem ensaio. É muita coisa. Mas é bom porque você também ganha
essa resistência que precisa para musical, porque são muitos shows por semana, e a gente não tem essa
coisa de dia de descanso, que às vezes em uma apresentação de música erudita acontece de dias alternados.
9
Termo designado pelo meio do Teatro Musical para artistas que possuem formação profissional simultânea
em Canto e Atuação.
10
O texto contido nestes e demais colchetes ao longo das falas da entrevistada são uma complementação
dos autores, para facilitar a compreensão do conteúdo implícito.
Tormina, Helen Bovo; Fernandes, Angelo José. 2021. “Desenvolvimento da performance e ensino crossover de canto: entrevista com a cantora e atriz Bianca
Tadini” Per Musi no. 41, General Topics: 1-24. e214127 DOI: 10.35699/2317-6377.2021.36194
7
Não, às vezes temos dois shows por dia. Então, nesse aspecto, eu achei essa questão do conservatório muito
interessante, porque já te prepara para o que será o trabalho, que será pesado, e raramente estaremos cem
por cento descansados. E tudo bem. Precisamos ter saúde vocal para isso.
H.T.: Você possui uma carreira notória como cantora belter e também é muito elogiada como cantora lírica.
Você diria que você se sobressai mais em alguma dessas técnicas?
B.T.: Eu acho que é muito equilibrado, mas o que acontece é que eu acabei fazendo muitos papéis mais legit,
por esse lado um pouco mais pro lírico. Eu tenho o physique da heroína trágica ou da mocinha dos musicais,
principalmente da Golden Age da Broadway. Eu acabei fazendo muito disso, tendo uma facilidade para isso,
desde sempre. O primeiro musical que fiz na vida, que foi na minha escola, eu tinha treze para catorze anos,
foi o West Side Story, e eu fiz a Maria, porque, numa escola de seiscentas pessoas, ninguém cantava um,
e eu abria a boca já com aquela idade e cantava um dó sustentado, por vários compassos. Era natural para
mim. Mas eu cantava no coral; eu nunca havia cantado sozinha. E ali, eu descobri, falei: “nossa, olha, eu
tenho voz para cantar sozinha!”, e foi quando comecei a estudar mais. Então, eu tenho uma facilidade para
esse tipo de repertório e uma compreensão muito boa do estilo, de como as coisas eram construídas, por
conta da formação. De entender a origem da música, de entender também a construção dramatúrgica, de
entender a época, porque eu estudei tudo isso, mas eu acho que é muito bem equilibrado, porque, na real,
Helen, o belt é simples, se você fala no lugar certo, não tem muito erro, porque ele é uma extensão da fala.
Ele é speaking on pitch, como eles falam fora. É só isso. É como se você estendesse a sua voz falada um
pouco mais pro grave e um pouco mais pro agudo. Acabou. É apenas isso.
As pessoas ficam tentando inventar a roda em torno do que é o belt. Mas não tem muito o que inventar, ele
é isso. É você falar on pitch, com ritmo. Então deveria ser natural. É claro que fisiologicamente falando,
temos pessoas que têm um pouco mais de facilidade para isso e outras que têm um pouco menos. Então aí
entram questões de posição de laringe, de como ela é, comprimento, largura e fibra muscular,
principalmente. Normalmente [ensinam-se] as meninas, e eu estou falando de meninas, porque homens são
belters naturalmente, porque eles cantam de voz plena. Eu adoro quando eu escuto um professor falando:
“ah, eu vou te ensinar, vou ensinar o menino a cantar belting”. Não, amor, você não vai, porque ele já canta!
Ele canta de voz plena, o resto ele pode cantar de falsete, alguma voz de cabeça. Agora, os homens são
natural belters porque cantam de voz plena. Ponto. Nós é que entramos neste lugar, porque a gente pode
cantar só de voz de cabeça ou não, por conta das nossas passagens e onde elas estão localizadas. Mas o que
eu vejo muito é que as meninas que são soprano mais leves, as leggieri, têm mais dificuldade num belting
com um pouco mais de astúcia, um pouco mais de tônus. Eno elas fazem uma coisa mais próxima do mix:
uma voz mais misturada. E tem que ser, porque se, elas pesarem, até conseguem chegar a um som mais belt,
mas elas ganham um buraquinho ali no meio, e podem não misturar a voz tão bem. Então, é uma questão
fisiológica: para que funcione para elas, tem que ser leve, tem que ser mais misturado mesmo [a
predominância da musculatura que comanda os registros]. Agora, com as sopranos que têm uma voz com
um pouco mais de corpo, as mezzos e contraltos, é natural, é só uma questão de malhar a passagem e
entender como é que se navega nesta região. Mas eu acho que é bem equilibrado, e eu acredito, inclusive,
que, quando as duas coisas estão equilibradas, melhora para os dois lados.
Raramente, no meu processo de estudo, pego um estilo só e fico um tempo apenas em cima de um tipo de
repertório, como, por exemplo, pegar um repertório mais “beltado” e ficar muito tempo em cima apenas do
Tormina, Helen Bovo; Fernandes, Angelo José. 2021. “Desenvolvimento da performance e ensino crossover de canto: entrevista com a cantora e atriz Bianca
Tadini” Per Musi no. 41, General Topics: 1-24. e214127 DOI: 10.35699/2317-6377.2021.36194
8
que é de belt. Eu sempre equilibro. Eu canto uma coisa mais belt, na sequência, vou cantar uma coisa mais
legit, porque acho que elas são complementares e ajudam a manter a voz saudável e equilibrada. Eu faço
igual com os meus alunos e minhas alunas, principalmente, porque a tendência é: se você ficar muito num
só lugar, principalmente no belt, a tendência é começar a pesar um pouquinho mais, o ar fica um pouquinho
mais preso, porque o fluxo dele não é tão soltinho quanto no erudito e no legit, ele é um pouquinho mais
preso, não é em apneia
11
, jamais, nunca pensei essa coisa de apneia, mas não é um fluxo gostosinho, como
o que estamos acostumadas no legit e erudito. É um pouquinho diferente, e existem pequenos ajustes desse
fluxo, dependendo de que região em que estamos. Então, a tendência é que, se ficarmos muito nesse
repertório, vamos endurecendo um pouquinho a voz, perde-se elasticidade. Eu acho que é o segredo,
principalmente para mulheres, manter a elasticidade, sempre tendo um repertório que complemente. Canta
um desse, canta um daquele.
H.T.: Então como você classifica a escola em que você se formou cantora?
B.T.: Teatro Musical Geral. Vou te explicar: nos Estados Unidos, principalmente as faculdades
e conservatórios focados em Teatro Musical, eles não separam as duas coisas, a voz é tratada como uma
coisa só. E o instrumento do performer de Teatro Musical tem que ser maleável e flexível para cantar as duas
coisas, porque o Teatro Musical é pautado nas duas coisas. No começo, temos as Operetas, Gilbert and
Sullivan, que são o início do Teatro Musical, e tem os reviews e o burlesco, que também são do início, quando
a música é mais voltada para o jazz, o pop da época. Ali nasceu o belt, no burlesco; e o legit nasceu da
Opereta. Juntou as duas coisas, temos o Teatro Musical. Então, eles ensinam como um todo, não separam a
voz em duas coisas. É claro que, muitas vezes, eles percebem que você tem uma facilidade maior para uma
coisa ou outra, e você tem um físico melhor para uma coisa ou outra, e aí, talvez, eles te encaminhem mais
para um lado do que o outro. Entretanto, irão trabalhar sua voz como um todo para todos os estilos.
3. Crosstraining Metodologias de um treinamento vocal híbrido
H.T.: Sobre esse trabalhar a voz como um todo, isso é desde o começo, alternando os estilos ao mesmo
tempo, ou existe uma ordem de aprendizado, como primeiro uma voz mais lírica ou primeiro a voz de Teatro
Musical?
B.T.: Eles avaliam o que cada um precisa. O trabalho de técnica vocal é individual. Então, na hora que você
audiciona
12
, eles avaliam essa voz como um todo e escutam sua entrevista já considerando “ela é mais desse
11
Apneia, segundo o Dicionário Houaiss, trata-se de um substantivo feminino da área da medicina e que
significa a suspensão momentânea da respiração. É comum o uso da expressão cantar em apneia como
referência ao ajuste de belting. Entretanto, a expressão nos parece equivocada, uma vez que o canto não
ocorre com respiração interrompida, em específico a expiração, pois é justamente o fluxo de ar saído dos
pulmões e que passa pela glote, através do princípio de Bernoulli, que fecha as pregas vocais levando a onda
sonora produzida por sua vibração ao longo do trato vocal. O termo “cantar em apneia”, se refere à
diminuição do fluxo de ar, a qual normalmente acontece durante a produção do referido ajuste, que possui
maior tempo de fase fechada das pregas vocais, diminuindo em certa medida o volume de ar expelido.
12
Audicionar: neologismo referente ao substantivo audição, no sentido de teste de atuação e canto, utilizado
comumente para seletiva de espetáculos. O termo origina do inglês Au.di.tion /ôˈdiSH(ə)n/, utilizado como
Tormina, Helen Bovo; Fernandes, Angelo José. 2021. “Desenvolvimento da performance e ensino crossover de canto: entrevista com a cantora e atriz Bianca
Tadini” Per Musi no. 41, General Topics: 1-24. e214127 DOI: 10.35699/2317-6377.2021.36194
9
tipo vocal aqui, mas ela precisa trabalhar x, y, z que ajudará”. mandam para o professor que acreditam
que será o certo para você. E esse professor vai decidir o que ele vai trabalhar primeiro. Então, se você já é
uma pessoa que tem facilidade de fazer uma determinada coisa, ele vai trabalhar as outras coisas ao mesmo
tempo. Se o aluno tem uma facilidade tanto no lírico/legit, quanto no belt, mas o ar está preso... foca-se um
pouco mais no lírico para a gente ter esse ar mais solto, para trabalhar um fraseado mais legato. No meu
caso, trabalhei as duas coisas ao mesmo tempo. E ela [minha professora], além das coisas que eu tinha que
fazer para o conservatório, que eram de Teatro Musical, me dava em paralelo árias de ópera para trabalhar
pedagogicamente. Não que eu fosse performá-las naquele momento, mas para malhar o que precisa ser
feito com a musculatura da costela, cantar legato. Então, depende muito. Cada um é avaliado. Não tem uma
regra específica, mas a tendência é que tudo seja trabalhado. No período em que você estiver lá,
eventualmente tudo será trabalhado.
H.T.: Você acredita que esta foi a melhor escolha de ordem de aprendizado (trabalhando todos os estilos ao
mesmo tempo), ou acredita que alguma coisa, nesse processo, poderia ser diferente?
B.T.: Eu acho que a melhor ordem, principalmente se o seu foco é Teatro Musical, é de tudo um pouco e, ao
mesmo tempo, com algumas ressalvas, prestando atenção em que consistem as dificuldades. Eu acho que
não para criar uma fórmula que funcione para todo mundo. Então, por exemplo, se eu tenho uma pessoa
que é mais belter, só que tem a voz muito pesada e o ar é muito preso, eu vou tirar um pouco o foco deste
lado do belting. Não vou deixá-la ficar cantando coisas muito agudas de belt, porque provavelmente ela está
subindo muito com voz de peito, e eu não quero isso. Então eu vou tirar um pouco esse foco, não que eu vá
abandonar, e vou dar um repertório um pouco mais legit, mais agudo, porque eu quero alongar a prega
vocal e soltar o ar. Então eu acredito que o melhor é fazer as duas coisas juntas, com a ressalva de olhar cada
caso e ver o que está acontecendo com aquela voz, se tem alguma coisa importante a ser olhada agora. E se
tiver, terei que focar em algo que vá resolver essa questão em primeiro lugar.
H.T.: E para pessoas que querem levar realmente duas carreiras em paralelo, uma carreira no lírico e uma
carreira no Teatro Musical? Voacredita que, dessa mesma forma, funciona? Ou você acha que tem que
buscar algum aprendizado específico primeiro?
B.T.: É difícil. Eu acho que para os homens, eu vou voltar nisso de novo, é mais simples. Os ajustes são menos
complicados, as distâncias são menores. Para a gente, é um pouco mais difícil. Eu acho que o que funciona
melhor é: começar com a base lírica, e quando a base estiver pronta, não precisa ser o melhor cantor lírico
do planeta, mas a base, falando de apoio, respiração, ressonância, quando estiver pronto, passar para outra
coisa, para a estética do Teatro Musical. E aí o que é difícil para a gente, o levar em paralelo, eu acho que é
difícil porque é muito complicado você cantar uma obra que é super “beltada”, como eu fazendo Evita, e aí,
amanhã, ter que cantar um concerto, cantar Carmina Burana. Será complicado, porque, bem ou mal, não é
que descoloca sua voz, mas coloca a sua voz num lugar diferente, ainda mais se você estiver repetindo isso
cinco, seis, sete, oito vezes por semana. Os ajustes são muito diferentes. Então pode dar confusão.
substantivo e verbo, que se refere a entrevista para um papel ou trabalho como cantor, ator, dançarino,
músico, consistindo na demonstração prática das habilidades do candidato. (Audition, 2021)
Tormina, Helen Bovo; Fernandes, Angelo José. 2021. “Desenvolvimento da performance e ensino crossover de canto: entrevista com a cantora e atriz Bianca
Tadini” Per Musi no. 41, General Topics: 1-24. e214127 DOI: 10.35699/2317-6377.2021.36194
10
para levar sim, para fazer uma coisa e outra, mas eu acho que tem que ter um tempo de parar e
pensar: “vou estudar agora isso aqui um pouquinho, porque eu vou ter que cantar isso, e daqui a duas
semanas eu vou focar naquilo ali”. Aí vou e eu canto aquilo ali. E posso parar com um repertório porque
eu não vou cantar mais e voltar para algum outro que eu tenha que cantar, porque, quando estamos falando
de temporadas longas e espetáculos difíceis ou óperas difíceis, precisa de um tempo para o corpo se ajustar
e entender o que esfazendo. Eu acho que isso é o mais saudável e o que vai te dar longevidade. Por
exemplo, [cito] a grande Maria Callas, maravilhosa que se intitulou absoluta. Fazer tudo ao mesmo tempo,
indo de um repertório aqui para outro muito diferente ali, tem um preço... Então, para levar, mas tem
que ter uma certa inteligência. O que eu acho é que tem que ter um cuidado nesse aspecto, e nós, mais que
eles [homens], porque os ajustes são maiores, bem maiores.
H.T.: Você acredita que ser cantor crossover é uma característica inata ou aprendida? Ou é uma habilidade
que se conquista com exercícios?
B.T.: Eu acho que é as duas coisas, viu? Eu acho que caminha junto. Eu acho que tem, sim, uma questão
neurológica de reconhecer padrões e acessá-los de uma forma rápida, mas eu também acho que para
adquirir. Eu acho que se pode nascer com uma flexibilidade maior, mas eu acho que não é uma coisa que
não para trabalhar. Pode-se trabalhar, mas eu não sei se será tão bom e terá tanta facilidade quanto
alguém que já nasce com essa flexibilidade. Eu acredito que um fator determinante nisso é do quanto você
consegue ser flexível e avançar nesse sentido, se você não nasceu [com esta facilidade], é a sua exposição a
vários tipos de música na sua infância e na sua pré-adolescência. Porque eu pego muita gente que escutou
apenas e sempre as mesmas coisas, e desta forma não vai, porque não tem [informações]. O HD está vazio.
Não compreende, não entende a música. Aí você coloca um jazz e fala: “faça esse melisma. Não, isso aqui é
um blue note!” E o aluno não reconhece [a diferença]. Ou um rock progressivo, também não reconhece.
4. O pensar crossover e a prática deliberada
H.T.: Então tem a ver com a exposição a gêneros em si, também?
B.T.: Muito! Eu acho que tem muito! Eu acho que isso facilita cem por cento o trabalho de quem o tem
esta facilidade e vai estudar para aprender. Óbvio que mais tarde na vida, você consegue, sim, se expor a
isso, se você correr atrás, mas não é a época ideal. O ideal é que aconteça cedo, quando o cérebro está
“plástico” [se moldando ainda]. Está lá bebendo das informações, então quanto mais cedo melhor.
H.T.: E como você acredita que desenvolveu essa habilidade de conciliar uma técnica/estilo com o outro que
você possui hoje? Pode descrever o seu processo de exposição e prática de estudos?
B.T.: De exposição desde muito cedo, eu a tive a tudo, musicalmente falando. De Beatles a Mozart, Yes, rock
progressivo, de Metallica a Nina Simone... Horas por dia eu não sei, era mais em casa quando eu era menor,
então talvez uma hora por dia. Quando estava crescendo, eu fui ouvindo [por conta própria] duas ou três
horas por dia. Quando fui estudar, era durante o tempo no conservatório, talvez não as horas que
estivéssemos fazendo as aulas de dança, mas, ao mesmo tempo, também expostos, porque é com música.
Então, cinco, seis horas por dia, todos os dias, cinco vezes por semana, durante três anos. E aí, tudo junto.
Tormina, Helen Bovo; Fernandes, Angelo José. 2021. “Desenvolvimento da performance e ensino crossover de canto: entrevista com a cantora e atriz Bianca
Tadini” Per Musi no. 41, General Topics: 1-24. e214127 DOI: 10.35699/2317-6377.2021.36194
11
Tudo bem que, para cantar, raramente, uma vez por semana na aula de canto tínhamos ópera e música
erudita. Mas o resto, dentro do Teatro Musical, íamos desde Gilbert e Sullivan até Mean Girls, até o
repertório de hoje em dia. Então, tivemos todos os estilos: pop, rock, jazz, belt, legit, broadway, tudo junto,
e a cada hora era cobrada uma coisa diferente, porque a maioria dos professores fala: “hoje quero te dar
esta música aqui”. Então eu cantei de West Side Story até Evita. Cantei de tudo, dentro de todos os estilos,
absolutamente todos os tipos. E a professora também me deu repertório como Batti, batti o bel Mazetto”
para estudar. Então, foi bem dividido nesse aspecto. Fora o tempo que eu também passava indo assistir a
espetáculos.
H.T.: Sabe dizer, mais ou menos, por quanto tempo de estudo técnico por dia você passava?
B.T.: Cantando em si, tinha dias que eram umas duas horas, e tinha dias que era tipo três, quatro,
dependendo das aulas que eu tinha. Porque, além do estudo que eu fazia em casa, dependendo da aula, se
tinha um dia que era aula de canto, mais aula de Teatro Musical, eu cantava umas três, quatro horas.
Vocalises dependem muito do professor, mas, às vezes, de quinze a vinte, trinta minutos, e repertório varia
uma hora e meia, duas ou três.
H.T.: Em sua opinião, quais são as principais diferenças entre esses vários estilos que você canta?
B.T.: Fluxo de ar. Quando estamos falando de canto erudito e de legit, mesmo o fluxo entre o erudito e o
legit, existe uma diferença também, mas é mais discreta. Entre o erudito e o belt, é um pouco maior. O fluxo
de ar é diferente: ele é muito controlado, no belt, ele não pode ser preso, ele também é solto, mas ele não
é tão solto quanto é no erudito. Ele não pode ser tão solto, pois senão teremos problemas com os ajustes
que teremos de fazer, que é a próxima coisa que eu vou falar, que é a posição de laringe. Eu acredito que,
no erudito, temos ajustes sim e que ela não pode ficar cem por cento parada, mas a posição dela é um pouco
mais baixa. E quando falamos sobre agudos, ela irá, sim, subir, porque se não [subir], não chegamos às notas.
Então ela sobe um pouquinho. Mas são poucos os ajustes que fazemos, em regiões muito específicas.
para o belt, são inúmeros ajustes: eles são micro, milimétricos, mas eles são quase constantes. Dependem
de muitas coisas, dependem das consoantes, de vogais, da distância de uma nota para outra, se um salto é
mais complicado, ou que não é tão difícil, mas está difícil porque tem uma consoante num lugar específico
complicando, e temos que articular muito mais do que precisamos fazer no erudito, porque é Teatro Musical,
então o texto está na frente. Evidentemente, não será tudo puro (os fonemas). Não tem como. Não será
cem por cento puro, mas será mais puro do que é no erudito. Então, precisamos de muitos ajustes. Então,
para mim, as maiores diferenças são: posição de laringe e fluxo de ar. Em relação à ressonância, o belt correto
tem a mesma ressonância que o erudito: da nasofaringe para cima. Se não estiver nesse lugar, você está
fazendo errado e pode se machucar, porque vai ficar pesado. É claro que aí há aquelas situações: estou em
um belt com um pouco mais de head voice, ou estou em um belt com um pouco mais de chest resonance…
vai-se dosando as ressonâncias pela sonoridade de que você precisa. Mas a vibração está tudo aqui, ó
[aponta a região entre nariz e olhos, subindo em direção à cabeça]. Tem que estar porque senão vai ficar
pesado e aí você vai gritar.
Não penso muito em prega vocal. Penso mais em pequenos ajustes. E para mim, em belting, [penso] não a
partir do A₃, mas acho que mais para o B₃. Talvez o A₃ de vez em quando, dependendo da vogal e do intervalo.
Tormina, Helen Bovo; Fernandes, Angelo José. 2021. “Desenvolvimento da performance e ensino crossover de canto: entrevista com a cantora e atriz Bianca
Tadini” Per Musi no. 41, General Topics: 1-24. e214127 DOI: 10.35699/2317-6377.2021.36194
12
Eu penso mais em ajuste muscular, ressonância e fluxo de ar. Então eu vou pensar basicamente: fluxo de ar,
quantidade de massa, apoio, posição de palato, pilares e como dosar a ressonância. E isso dependerá do
estilo e da música. Quanto de chest mix e quanto de headmix eu terei, isso vai de estilo, de tipo de musical,
se a influência é mais pop ou menos pop, se é uma música com muita intensidade, e do que a direção musical
pedirá. Então, é por aí.
H.T.: Existe uma rotina de estudo pensando em hábitos que se repetem? Como que você descreveria a sua
rotina em relação ao seu trabalho, pensando de uma forma global? E também qual a diferença entre o
preparo do repertório sozinho, preparo em ensaios pré-palco e depois de aprendidas as obras em questão?
B.T.: O que eu tenho visto muito como professora é que, muscularmente, não estão preparados para existir,
especialmente essas gerações mais novas. Cantar, então, de jeito nenhum. Por quê? Eu acho que as crianças
estão mais sedentárias, elas crescem sedentárias. Então, muscularmente, elas não têm [tônus], não
entendem, não sabem o que esacontecendo com o próprio corpo, têm percepção corporal zero e preparo
zero, os músculos são moles. Falando de mim, desde cedo, desde muito pequena, eu trabalhei o meu corpo,
então eu dancei um tempo, durante um bom tempo também fiz ginástica olímpica. Então muscularmente
meu corpo sempre estava muito preparado. Isso faz com que ele responda rápido. Se eu vou fazer um papel
que exige, como voar no Peter Pan, neste musical eu voava, vou trabalhar um pouco mais de pernas, treino
focado para aquele trabalho, para o que eu vou usar mais. Mas o meu corpo é um corpo que está
acostumado, então entra rápido em ação. A minha memória muscular é muito boa, porque eu cresci
trabalhando ela. Eu percebo que, para mim, sempre é mais fácil, sempre foi mais fácil entender o que é
apoio, ativar o assoalho pélvico, o abdômen... tudo, fica tudo mais fácil, porque eu tenho a musculatura
ativa. E eu vejo os meus alunos mais jovens com a musculatura toda mole. Então, assim, eu me pego muitas
vezes fazendo exercício, principalmente os de passagem, em que a voz sobe e desce muitas vezes, e que
você precisa de um grande apoio muito rápido que, se for do médio grave para o agudo muito depressa, sem
nem perceber, eu vejo alunos iniciantes “morrendo”. E eu peço para pular na cama, para fazer pliè na
ponta do pé, para que tentem entender o que é essa coisa do assoalho pélvico, porque não entendem. Então,
preparo físico desde sempre, porque essas coisas têm de andar juntas, até porque eu acho que se entendem
as coisas melhor, e o corpo responde mais rápido. E não apenas para as coisas físicas, como ator ou como
bailarino, para quem vai ter que dançar. Faz diferença para cantar mesmo.
No quesito repetição, eu acho que depende muito também do que que se está fazendo. Se eu estou
estudando só por estudar, para manutenção, quinze minutos de alguns exercícios, eu gosto muito desses
que são mais focados em passagem, porque eu resolvo o lugar que é sempre o lugar que vai atrapalhar, que
são as passagens de registro. Porque se isso está funcionando, provavelmente o que vem antes e o que vem
depois estarão funcionando. Então eu pego três, quatro, cinco ou seis da Jeannie Deva que é quem eu uso
muito, eu a acho maravilhosa. Eu gosto da forma como ela trabalha, porque ela trabalha nessas escalas que
sobem e descem meio aleatórias, então você não se prepara. Então isso faz com que você trabalhe
também a percepção musical e faz com que você tenha que trabalhar muscularmente o tempo todo, e não
acontecem situações como: “agora eu estou no grave, eu vou soltar o meu apoio, porque eu não preciso
dele tanto”. Voestá o tempo todo presente e trabalha com agilidade, deu acho que você, realmente,
deixa as coisas leves e no lugar certo. E esse trabalho resolve para o erudito e resolve para o musical.
Então, eu gosto muito disso: quinze minutos por dia são o suficiente, não precisa nem ser todos os dias. Para
quem está começando melhor, mas para quem já está estudando faz tempo, pode ser menos.
Tormina, Helen Bovo; Fernandes, Angelo José. 2021. “Desenvolvimento da performance e ensino crossover de canto: entrevista com a cantora e atriz Bianca
Tadini” Per Musi no. 41, General Topics: 1-24. e214127 DOI: 10.35699/2317-6377.2021.36194
13
Agora, em relação a estudo, preparo para um personagem e ensaio, o que eu faço? Primeiro, é a análise da
partitura. Pego a partitura, estudo ela inteira, marco as coisas que são mais difíceis, “partituro” todas as
minhas respirações, marco absolutamente tudo. Se eu tiver alguma dúvida, depois, evidentemente, eu vou
passar com a direção musical e vou limpar as coisas, mas já aprendo e marco tudo. Eu gosto de começar a
estudar antes de começarem os ensaios, pelo menos uns dois meses para ir absorvendo as coisas, porque
leva um tempo, algumas coisas são mais fáceis, porque, às vezes, estão naquela região em que falamos
“nossa, isso está no filezinho da minha voz”. Quando [é] assim, que bom. Mas tem coisas que não estão, e
aí leva um tempo a mais.
Durante os ensaios, que geralmente são de seis a oito semanas, seis dias por semana e oito horas por dia,
nesse tempo, cantando, depende muito. Tem dias que você canta de quatro a seis horas. Então, depende do
seu papel e depende do que você esfazendo naquele dia. Então, realmente, precisa-se ter um instrumento
muito resistente. E essa é a situação pré-palco. No palco, logo que a gente entra, complica-se um pouco
mais, porque entram outros elementos para lidar, como cenário, figurino, som… muda tudo. Principalmente
quando entra som, muda tudo. Mas eu adoro na verdade, eu gosto muito, porque eu falo: “nossa, agora tá
fácil”. O período mais difícil para mim, o momento em que eu me canso mais, é em sala de ensaio, porque
você acaba dando um pouco mais de voz e energia do que você precisa. Na hora em que se entra no palco,
eu falo: “nossa, que gostoso. tranquilo, fácil”. E é maravilhoso, porque daí já se passaram os perrengues
antes, então quando chegamos ao palco, está mais fácil. E quando entra o som é a mesma coisa, óbvio
que temos uma semana em que está tudo meio atravancado, porque estão ajustando a técnica. Mas depois,
é isso, é o espetáculo corrido. Então, às vezes, temos uma passagem do espetáculo corrido, dois corridos por
dia, levando duas horas a quatro horas cantando, dependendo do papel.
H.T.: Nesses dias em que você já es no palco, por exemplo, em uma temporada, o que você faz para a
manutenção do seu corpo?
B.T.: Eu vou te dar dois exemplos que são duas coisas completamente diferentes. Vou usar o exemplo da
Maria [West Side Story] e vou usar o exemplo da Evita. Para a Maria: eu dormia oito horas, pelo menos, de
um dia para o outro. Eu acordava, tomava banho, aquecia a voz no chuveiro, porque aí já está um ambiente
quentinho, já vou fazendo inalação do vapor e aquecendo a voz. Eu chegava ao teatro, fazia um aquecimento
corporal, meia hora de barra de balé com todo elenco, me arrumava e fazia um aquecimento vocal com
todo mundo de quinze minutos. Mas eu continuava me aquecendo no camarim, porque eu só ia cantar
depois de vinte a vinte e cinco minutos de peça. Então até eu entrar no palco minha voz poderia desaquecer.
Dez minutos antes de entrar em cena, eu entrava no banheiro do camarim, vocalizava e seguia para fazer a
peça. Terminada a peça, se era um dia em que havia dois shows, por ser um espetáculo pesado vocalmente
e por terminar “gritando” com todos e chorando, eu terminava a récita com a voz cansada e bastante
secreção. Então eu descia do palco, jantava e começava do zero: nebulização, desaquecimento e
reaquecimento, pois, como ao fim da peça eu gritei, chorei e fiz de um “tudo”, a voz ficava em outro lugar.
No dia seguinte, se repetia o mesmo processo. Nos dias de show, eu tentava ficar quieta, saía de e ficava
quieta até o dia seguinte.
Para a Evita, eu precisava de menos tempo para aquecer. Quanto menos tempo eu aquecia a voz, melhor.
Eu aquecia o corpo e aquecia cinco a dez minutos e daí fazia o show. E ao fim do espetáculo, se tinha outra
sessão em seguida, eu não desaquecia. A voz terminava o show lá em cima, aquecidíssima, e eu já emendava
Tormina, Helen Bovo; Fernandes, Angelo José. 2021. “Desenvolvimento da performance e ensino crossover de canto: entrevista com a cantora e atriz Bianca
Tadini” Per Musi no. 41, General Topics: 1-24. e214127 DOI: 10.35699/2317-6377.2021.36194
14
e fazia a segunda sessão. Terminando, eu estava “morta", pois não é um show legal de fazer duas
apresentações seguidas. Normalmente, alternam as “Evitas”, pois é um show muito pesado e em uma região
bizarra da voz: vai de um fá grave (F₂) até um sol agudo meiobeltado” (G₄), é praticamente escrito para um
tenor, e não para uma voz feminina. Então, ao acabar, eu ia para casa e ficava absolutamente em silêncio
até o meio dia do dia seguinte. Então ao acordar, eu fazia nebulização, aquecia o corpo primeiro, para depois
começar a cantar.
Então esse processo depende muito do papel em que se está atuando. Eu acredito que, no repertório mais
beltado, precisamos aquecer um pouco menos. Justamente por aquela questão que mencionei, sobre ser
um lugar da voz muito próximo ao seu lugar de fala. Se o seu corpo está aquecido e você está saudável, você
vai aquecer um pouco, e daí é falar. Agora no repertório que é um pouco mais erudito, aí precisa colocar a
voz em outro lugar, soltar o ar, subir a voz, alongar. É diferente.
5. Desenvolvimento de uma pedagogia vocal híbrida
H.T.: Você leciona canto há quanto tempo?
B.T.: Desde 2014.
H.T.: E qual você acredita ser o principal ponto comum e a principal diferença de ensino dessas técnicas que
você leciona?
B.T.: A base comum para mim é o básico que todo mundo tem que fazer certo: apoio e respiração. E o
resto, por mim, nem seria necessário falar sobre isso: afinação, saber o que se está fazendo musicalmente,
saber o ritmo certo. Isso é o básico! Entender um pouco de música, e se não entender, correr atrás. Não vou
nem falar disso, mas é muito importante. E eu pego muito no [dos meus alunos], porque, para mim, o
mínimo é afinar. Então a base, para mim, é igual. Tanto que, no curso do Sesi, que foi onde eu comecei a dar
aula, antes da aula particular, começávamos com ária antiga. Do zero. Ensinávamos o aluno a respirar, a
apoiar, colocação de voz, as ressonâncias, o que são, como funcionam, como funciona o diafragma, ou seja,
do zero. Então, isso é comum [entre as técnicas], e tem que ser. Algumas pessoas falam: “eu não trabalho
com apoio”. Amor, desculpa, mas você trabalha, você não sabe. Entendeu? Porque sem isso [técnica],
não existe. E existe gente que fala isso. “Ah o, nessa nota que é difícil, eu vou cantar em apneia”. Não acho
que será legal. Pode ser que funcione, porque o fato de você segurar o ar, dá aquele truque para a voz não
quebrar. Mas a que preço você esfazendo isso? Em uma tensão absurda de toda a musculatura intrínseca?
Então, isso é uma coisa que se faz em um momento de desespero: fiz um dance break gigantesco, estou sem
ar, preciso dar essa nota: ok, eu vou fazer [uso dessa estratégia]. Mas não é uma coisa que se deva usar para
o resto da vida, tipo cantar sempre [dessa forma]. Não pode. o é isso. Então, essa base toda de respiração,
fluxo de ar, de entender o que é a ressonância, a parte fisiológica também, eu faço questão de falar de
fisiologia e demonstrar. É importante porque, às vezes, é muito difícil. A gente fala “levanta o palato”, e o
aluno: “onde é?” E você mostra, porque poucas pessoas têm essa coisa de conseguir entender e sentir o que
se está fazendo muscularmente. A percepção não é uma percepção fácil. E então essa base eu acho que é
muito parecida.
Tormina, Helen Bovo; Fernandes, Angelo José. 2021. “Desenvolvimento da performance e ensino crossover de canto: entrevista com a cantora e atriz Bianca
Tadini” Per Musi no. 41, General Topics: 1-24. e214127 DOI: 10.35699/2317-6377.2021.36194
15
Para o belting, em toda a região que é abaixo do primeiro passagio, eu só penso em falar. E eu literalmente
faço isso com os meus alunos. Eu peço: “fala isso aqui”. Então o aluno fala. E mesmo quando vai subindo um
pouco mais a região das notas, às vezes eu falo para falar em um pitch um pouco mais agudo e oriento que,
se estiver falando com alguém que está no cômodo ao lado e que não se trata de volume em si, mas da
colocação do falar quando se quer ser ouvido de longe então subimos um pouquinho essa ressonância. Eu
oriento a partir disso. Tudo antes da passagem, eu penso em falar. Chegando próximo, aí eu penso em fazer
os ajustes daqui para cá, dali para lá, e quanto eu vou usar e dosar as ressonâncias.
Para mim, a maior diferença é estilística, no sentido de que, no erudito, temos que ficar muito atrelados às
informações contidas na partitura. Eu vou respirar onde ela esme falando para respirar, eu vou fazer os
ritmos perfeitos. No Teatro Musical, depende muito da direção, porque estamos a serviço do texto. Então,
se eu quiser respirar em um lugar em que não tem uma pausa, mas eu estiver interpretando da forma certa,
como “eu preciso fazer isso porque a minha ação é essa”, es tudo bem. O compositor ou diretor musical
não jogarão um sapato em mim.
E falando dos espetáculos modernos, temos muitos riffs”, que são, de certa forma, mais livre, ad libitum.
Isso parece um pouco com as cadências, que, por algumas cadências terem ficado tão famosas, nos
sentimos na obrigação de fazer igual. Criou-se toda uma tradição. No Musical, não. Cada uma tem a sua,
porque pensamos: “eu sou legal e eu vou inventar a minha”. Então, isso também é diferente. E mais o
fraseado, que é bem distante um do outro. Como falamos da questão da articulação, no Musical, trabalha-
se um pouco menos o legato. Acredito que o fraseado e as frases com mais legato são bem diferentes. E aí,
colocação. Eu acho que tanto a voz mista, quanto o legit são muito próximos ao que a gente faz com a
ressonância no erudito. Nós apenas damos uma “achatadinha”, tiramos um pouco dos harmônicos. Então,
eu falo o seguinte para os meus alunos: sabe um sino? Se você bate no sino, ele ressoa inteiro. E aí, os
harmônicos graves, médios e agudos, e o som é gordo. Se colocamos o dedo na borda do sino e batemos, o
som fica meio achatado, ele perdeu alguns harmônicos. O belting é isso. Você só seleciona que harmônicos
você quer usar e diminui um pouquinho, é só isso. Não tem nada além disso, entendeu? É claro que existem
alguns ajustes que eu te falei de fluxo diário que muda um pouquinho de uma região para outra. Por
exemplo, se eu estou em um high belting, em (F₄), Sol (G₄). Aqui, ó [faz o gesto de tamanho pequeno],
isso aqui de ar. E uso de massa (de T.A.) tem que ser minúsculo, porque senão a sua laringe vai “explodir”.
Tem que ser pequeno. E a gente tem o microfone para isso, justamente para isso. Eu não posso usar muita
massa, se eu for mandar voz demais, acabou, já era. Daqui a dez anos, a minha prega vocal estará flácida.
Eu acho que, nesse sentido, o belting evoluiu muito, se olharmos lá atrás, para as cantoras de antigamente,
como a Ethel Merman, que foi a primeira grande belter da Broadway, reconhecida. Sejamos sinceras: ela
dava uma gritada, entendeu? Era um “berrelting”, porque não tínhamos o microfone, e tinha-se de furar
uma orquestra tocando, por exemplo, Cole Porter, que é jazz, então [na orquestra tínhamos] metais. E você
tem que furar a orquestra. você vai na [faz gesto e som apontando para a garganta], entendeu? Com o
microfone, as coisas melhoraram muito. Então as coisas ficaram mais leves. E tem que ser, porque aí você
mantém essa saúde e consegue fazer os ajustes melhor, porque, se vai na força, ganha-se um grande buraco
no meio da voz, na passagem. Acaba distanciando as duas coisas, e ocorre um desequilíbrio de CT e TA. E
para juntar as duas coisas, será difícil. O importante é juntar, deixar equilibrado para poder brincar com essa
escolha, por exemplo: “agora eu vou usar um pouquinho mais deste, agora eu vou usar um pouquinho mais
Tormina, Helen Bovo; Fernandes, Angelo José. 2021. “Desenvolvimento da performance e ensino crossover de canto: entrevista com a cantora e atriz Bianca
Tadini” Per Musi no. 41, General Topics: 1-24. e214127 DOI: 10.35699/2317-6377.2021.36194
16
daquele”. Então eu acho que toda base é igual. E aí, são os pequenos ajustes que fazem a diferença e o
estilo.
6. Desafios de uma carreira crossover
H.T.: Ao fazer a transição entre as técnicas, em situações em que se tem que fazer o uso de duas técnicas
em um mesmo evento ou temporada, qual seria o seu pensamento predominante: fisiológico (mudanças
feitas no trato vocal), sinestésico (sensações, quais sensações alvo) ou imagética sonora (sons metálicos
etc.)?
B.T.: Para mim, acredito ser a segunda opção. Apesar das coisas serem muito próximas, não são tão
distantes. Eu preciso lembrar da diferença do fluxo de ar: se eu cantei algo mais legit, mais girado e com ar
mais solto, e migro para algo mais “beltado, eu preciso segurar a onda um pouco, pensar o ar mais dosado.
Porque, em relação à parte que está vibrando da prega vocal, é claro que, se eu estiver cantando alguma
coisa muito aguda do repertório erudito, a voz vai para outro lugar. Mas, para mim, é mais aquela imagem
do sino mesmo. Por exemplo: “aqui deixo o sino inteiro, ali eu foco um pouco mais, restrinjo ou foco em
alguns harmônicos”. Mas é mínimo, eu não tenho que pensar demais, por isso é tranquilo neste aspecto
para mim.
Uma outra questão: fazer o que estamos acostumadas a fazer no erudito, das vogais que não são puras, mas
misturadas com outras, deve-se fazer o oposto para o que é “beltado”, como se estivéssemos fazendo uma
tradução. Vou abrir um pouco mais a voz. E é como uma equação: em um estilo, temos que abrir de uma
forma; no outro, de outra forma. Não é tão complicado, é mais simples do que se pensa.
Eu trabalho muito com sensações, por exemplo, ao cantar uma nota, eu sei o que ela é [afinação - Dó, Ré,
etc.], fisicamente, eu sei o que minha musculatura está fazendo nessas horas. Eu acho isso mais proveitoso
do que a questão sonora, porque às vezes se acaba copiando coisas que não são saudáveis; primeiro porque
é interessante achar a nossa voz, e às vezes o aluno pode acabar copiando o professor, o colega… e ao pensar
as sensações, o parâmetro é em você. Então eu acho que é uma boa forma de entender o instrumento, de
uma forma mais profunda, sabe? O nosso instrumento fala muito conosco, é só a gente ouvir.
A sensação para mim é tudo. Para se ter uma noção: hoje em dia, eu reconheço notas através de como eu
as sinto no meu corpo. Eu não tenho ouvido absoluto, mas eu sei, se eu canto em dó, eu sei que é um dó,
um dó sobre agudo ou no passagio. Meu corpo sabe. Tem uma história no [Musical] Cinderela. No primeiro
dia de ensaio, fomos fazer uma passagem musical. Começamos pela primeira música. Eram umas quatro
frases que eu cantava. Comecei a cantar e comecei a sentir estranho em outro lugar. Eu virei e falei para o
maestro: - “o piano es desafinado”. Ele falou: - “Não está, imagina! O afinador veio há dois dias”. Eu insisti:
“ele está desafinado”. Então, o assistente de direção musical pegou o celular dele com afinador para testar.
E foi lá, tocar as notinhas no tecladinho do celular, foi ver… e estava desafinado mesmo. Tipo um pouquinho,
mas estava desafinado, e meu corpo entendeu. Provavelmente meu ouvido ouviu que estava um pouco;
mas o que realmente me disse que estava desafinado foi o meu corpo, porque os meus ajustes estavam
diferentes. Essa história é legendária. Ficou todo mundo com a cara no chão, porque ninguém tinha ouvido
que estava desafiado. E eu, na verdade, acho que nem eu ouvi. Eu senti. Para se ter uma noção de como
Tormina, Helen Bovo; Fernandes, Angelo José. 2021. “Desenvolvimento da performance e ensino crossover de canto: entrevista com a cantora e atriz Bianca
Tadini” Per Musi no. 41, General Topics: 1-24. e214127 DOI: 10.35699/2317-6377.2021.36194
17
quando o negócio é um negócio muito pequeno, como as sensações são importantes. Porque os ajustes às
vezes são tão minúsculos que um coma faz diferença. Então chamaram afinador de novo, reafinaram o piano,
e aí ficou tudo bem. Mas foi porque comecei a cantar e senti que tinha alguma coisa estranha.
H.T.: Você tem repertórios muito diferentes simultaneamente em uma mesma temporada? Se sim, com que
frequência isso acontece?
B.T.: O que acontece muito é você estar em cartaz e estar audicionando para um outro espetáculo. Às vezes,
estamos cantando algo super legit e audicionando para um espetáculo, como Mamma mia! É bastante
frequente, na verdade. Eu trabalho muito com dublagem. Neste ramo, você não sabe o que virá em termos
de música, muitas vezes, se aprende na hora. Tem dia que é mais pop, tem dia que é um repertório que
demanda mais giro da voz, outros em que é rock, e às vezes é tudo junto, gravando quatro ou cinco músicas
no mesmo dia, e cada uma em um estilo. Então, muitas vezes, temos que ajustar a voz a uma grande
mudança com o intervalo de meia hora.
H.T.: Você considera que a dublagem é um tipo de crossover vocal?
B.T.: Na minha opinião, todos os bons dubladores que cantam são crossovers. E têm que ser. Primeiro porque
se trabalha o tempo todo com microfone, e precisamos ter o domínio do volume, saber como segurá-lo. Não
se pode usar exatamente a emissão de um cantor lírico, tem que ser menor, e é difícil para cantores que são
exclusivamente líricos diminuir bastante o tamanho da emissão. E tem que ter muita agilidade para mudar
rapidamente de um estilo para outro, pois, às vezes, estamos cantando um solo com a voz “mais rasgada”
(com distorções) de rock, e logo em seguida temos de gravar o coro com uma voz mais suave. E às vezes,
para a gravação de um coro, se grava tanto soprano 1, quanto contralto. Então esse tipo de situação
acontece o tempo todo. Eu acho que, neste meio, se tratam os cantores de Teatro Musical como pessoas
mais flexíveis neste aspecto, não são todos, mas muitos estão acostumados a ter que mudar de estilo de
uma hora para outra, então é realmente muito comum.
Por exemplo, dentro de um mesmo espetáculo, como a Evita, eu era a amante do Perón, que tinha aquele
solo Another Suitcase in another Hall, em que se precisa da voz mais em mix, e cantava também as partes
de coro como soprano 1. Tínhamos notas muito agudas como C₅, D₅, como costuma estar escrito nas canções
de Andrew Lloyd Webber, ao passo que eu também era cover de Evita. Então tinha dias em que eu estava
fazendo o papel da amante do Perón, com a voz mais misturada e aguda, e, no dia seguinte, eu estava
atuando como Evita, para a qual a demanda é para uma voz “beltada”, e a extensão vai de um fá grave (F₂)
a um sol agudo em “belt” (G₄). Aí dependemos de, entre uma coisa e outra, entrar no camarim, desaquecer
a voz e reaquecê-la em um lugar diferente. É isso.
H.T.: Isso adentrou parte do assunto desta próxima pergunta, que é sobre quais hábitos você acredita serem
imprescindíveis para ter um bom desempenho quando este tipo de situação acontece. Pode resumir?
B.T.: Principalmente se estamos saindo de um repertório que pede uma voz mais girada e vai para uma voz
mais beltada”, em que se desce a voz para o grave e ficamos recorrentemente cantando as notas na
passagem de registro, nesta situação, eu acho que o ideal é começar do zero: desaquecer a voz e reaquecer
na região média. Para o oposto, se estou fazendo um repertório mais beltado”, que não considero tão
Tormina, Helen Bovo; Fernandes, Angelo José. 2021. “Desenvolvimento da performance e ensino crossover de canto: entrevista com a cantora e atriz Bianca
Tadini” Per Musi no. 41, General Topics: 1-24. e214127 DOI: 10.35699/2317-6377.2021.36194
18
pesado, eu consigo apenas fazendo uma nebulização, exercícios que alongam a musculatura vocal, e
trabalhando meu fluxo de ar, para que ele fique mais solto.
Eu acho que a transição do lírico para o belting é mais difícil. Por isso, eu acho que, nesses casos, deve-se
começar do zero. Entretanto, em situações de audição, eu aconselho meus alunos, no caso da exigência de
cantarem duas opções e não se ter tempo entre uma coisa e outra, a começarem com a peça em legit, pois,
na hora do nervosismo, é possível que se grite na canção mais beltada”, e isso vai destruir o legit, se ele
vier em seguida. Então peço para cantar o legit primeiro e depois beltar”. Agora, quanto à performance
profissional, o que eu acho melhor para o lírico/belting é o processo de desaquecer e reaquecer; para o
contrário, é só alongar.
7. A prática e o ensino do canto em quarentena
H.T.: Pode nos contar um pouco da experiência profissional que tem tido desde o começo da pandemia?
Conte-nos um pouco do impacto que a pandemia teve em sua carreira.
B.T.: Em relação às aulas online, elas têm sido muito mais produtivas do que eu imaginei. Eu já sabia que elas
funcionavam porque eu, de vez em quando, ainda fazia aulas online com a minha professora de Nova Iorque,
a Mary Setrakian. E elas sempre foram muito boas. Mas eu imaginava que elas eram mais produtivas porque
a Mary conhecia a minha voz, enfim, tínhamos uma história juntas. Então, com as minhas alunas mais
antigas, eu sabia que daria certo. Eram vozes que eu já conhecia bem, eu já sabia o que precisava trabalhar
pedagogicamente, quais eram as dificuldades e as facilidades. Mas surgiram muitos alunos que conheci
apenas na pandemia e que tinham professores locais em outras cidades, no interior e até em outros países.
Eles me procuraram para fazer aula online, e tem sido muito bom. Eu vejo um desenvolvimento maravilhoso
deles. Acredito que, pela amplificação, escutamos melhor algumas coisas que, às vezes, ao vivo, podem
passar batido, porque estamos focando em outras coisas. Acredito que eu tenha coisas boas a dizer das
aulas online. Mas é claro, eu sinto falta de poder orientar ao vivo, com o corpo das pessoas, porque, às vezes,
é interessante a gente poder fazer isso. Mas eu tenho achado formas diferentes de fazer com que elas sintam
o corpo delas e entendam a musculatura como um todo. A gente acha outras formas de isso acontecer.
Sobre cantar em ambientes menores com intervenção de microfone, para mim, não é uma grande novidade,
porque eu dublo muito. E tive banda. Então, para mim, é tranquilo. Eu sei muito bem lidar com microfone.
Às vezes, o que precisamos levar em consideração é que existem pequenas distorções, então, às vezes,
temos que ajudar os alunos nesse sentido, em relação às aulas.
Em relação ao impacto da minha carreira o impacto maior foi com certeza em relação aos musicais. Então
parou tudo, as coisas começaram a voltar agora, nesse meio de ano. Com algumas flexibilizações, mas ainda
assim muito complicado, eu tenho alunos e colegas que voltaram aos palcos, que voltaram a participar de
ensaio de máscara e isso tem levado a um aumento de lesões de prega vocal. Eu tenho um trabalho muito
próximo à Adriana Bezerra que é fono[audióloga], a gente troca muita figurinha e tem muitos alunos e
pacientes em comum, e ela m me dito que essa questão de ensaiar de máscara tem realmente sido um
um grande problema, porque você acostuma no período de ensaio a cantar com a máscara que está te
vedando, então você e mais volume pois o ar não está saindo do jeito que ele deveria sair, e as pessoas
Tormina, Helen Bovo; Fernandes, Angelo José. 2021. “Desenvolvimento da performance e ensino crossover de canto: entrevista com a cantora e atriz Bianca
Tadini” Per Musi no. 41, General Topics: 1-24. e214127 DOI: 10.35699/2317-6377.2021.36194
19
tem se cansado muito e às vezes se lesionado. Aí na hora que você chega no palco e tira máscara muda tudo
né? Os ajustes têm que mudar de novo. E tem sido complicado também nesse aspecto, além da questão da
logística de testes, às vezes rola um teste falso negativo e aí é toda uma complicação. Mas enfim, agora as
coisas estão retornando, com a cobertura de vacinação maior e as pessoas um pouco mais seguras, esmais
tranquilo. Eu ainda não voltei às aulas presenciais porque eu tenho alunos de sete a sessenta anos, então eu
não posso flexibilizar pra um e não para outros. Eu preciso ter todos vacinados. Eu dou aula em casa e eu
não pretendo dar aula de máscara porque é isso entendeu? Se eu estivesse dando aula presencial teria que
ser de máscara, e não pra tirar as máscaras ainda e eu acho que pedagogicamente isso traz mais
problemas do que soluções. E falando com os otorrinos… Então em relação às aulas eu continuei dando as
minhas aulas on-line e acho que a princípio havia um pequeno preconceito. As pessoas gostam do contato
físico, mas com o tempo elas perceberam que funciona muito bem e eu não tinha esse preconceito porque
eu continuei fazendo algumas aulas periodicamente com a minha professora em Nova York, por Skype. Então
eu sei que funciona e isso me abriu [oportunidades] também para ter alunos do país todo e de outros países
como Estados Unidos, Inglaterra, Canadá e da Austrália. Eu sou bilíngue então eu dou aula em inglês e em
português. Isso me abriu portas para poder dar aula para outros alunos de outros países. Basicamente é isso.
H.T.: Você teve alunos que tiveram Covid-19? Se teve, conte-nos como foi a experiência.
B.T.: Tive vários. E a coisa maluca do Covid-19 eu não tive. Inclusive eu não tive porque eu fui observando
como as pessoas reagiam e assim: é traiçoeiro. Digo isso porque tive alunos basicamente assintomáticos e
que tiveram um pós Covid-19 longo, com questões neurológicas, respiratórias, e que demoraram para ser
resolvidas, e alguns alunos que tiveram sintomas leves gripais, pouca febre, pouca tosse, e que não tiveram
um pós Covid-19 ruim mas tiveram um pouco de perda de função respiratória, [capacidade] pulmonar e
então eu fiz de tudo que eu pude pra não pegar, porque eu percebi que é um negócio que não dá pra saber
[o que vai acontecer com quem contrai a doença]. Ter a doença com sintomas mais pesados, incluindo falta
de ar e tosse, não quer dizer que você terá um pós Covid-19 ruim, e ter um sem sintoma algum,
assintomático, ou sintomas muito leves, não quer dizer que você não terá um pós Covid-19 ruim. Então, para
a maioria dos meus alunos que tiveram uma síndrome pós covid-19 um pouco mais complicada eu fiz o
acompanhamento deles junto à fono[audióloga] e ao otorrino[laringologista]. Alguns que tiveram de ir para
fono, não faziam ou não precisavam fazer [antes da Covid-19] e tiveram que ir para a fonoterapia pois
tiveram questões de nervo [não respondendo] mesmo, as coisas começaram a ficar esquisitas em relação a
passagem, a laringe não estava respondendo do jeito que devia responder, sinais cruzados e coisas que
demoraram em torno de três meses para resolver. Tive outros alunos que não precisaram ir na fono, mas
que foram ao otorrino para averiguar a saúde no pós Covid-19, e foi feita uma reabilitação respiratória
usando apenas o Respiron®
13
junto com as aulas de canto. Aí eu acabei escolhendo, durante um tempo, um
repertório mais leve, menos beltado, com algumas canções mais tranquilas ou árias antigas para ajudar na
questão respiratória, pois o fraseado é mais longo normalmente nas canções mais eruditas do que em
musical. Eu não permiti que os alunos fizessem a aula durante a Covid-19. Tive uma aluna que não me falou
que estava com Covid-19 e daí eu descobri na aula e eu dispensei, óbvio. Eu só fui dar aula depois dos quinze
dias, não foram nem quatorze, eu esperava quinze dias do primeiro dia de sintoma, ou de teste caso não
houvesse sintoma, quinze dias para daí voltar às aulas. Após esse período, faço uma reavaliação dos aspectos
relacionados ao canto, e solicito uma avaliação otorrinolaringológica. Constatando essa síndrome pós Covid-
13
Equipamento exercitador e incentivador respiratório. Fabricante: www.ncsdobrasil.com.
Tormina, Helen Bovo; Fernandes, Angelo José. 2021. “Desenvolvimento da performance e ensino crossover de canto: entrevista com a cantora e atriz Bianca
Tadini” Per Musi no. 41, General Topics: 1-24. e214127 DOI: 10.35699/2317-6377.2021.36194
20
19, então, se estabelece um acompanhamento com otorrino, fono e eu durante um bom tempo, até que as
coisas voltem para o lugar. Mas o que eu pude perceber é que cada corpo reagia de uma forma. E que ter
sintomas muito leves, não significa que você não possa ter uma síndrome pós Covid-19 complicada de
resolver.
H.T.: Porque, mesmo com as aulas online e o aluno aparentemente em boas condições, você optou por não
manter aulas?
B.T.: Porque mesmo assintomáticos, como sabemos muito pouco sobre a doença, e como às vezes o s
Covid-19 é complicado, é melhor deixar quieto. Sabe? Não cantem. Fiquem quietinhos. Cada um reage de
um jeito, sabemos muito pouco ainda de como isso nos afeta, e cada um é afetado de uma forma diferente.
Então eu preferi não deixar cantar, pedir para fazer repouso, se hidratar muito, fazer nebulização, no máximo
usar o Respiron®, que é algo tranquilo, que todo mundo [dos meus alunos] sabe fazer. Para os outros, que
tiveram questões mais sérias durante ou no pós Covid-19, [eu indicava] um acompanhamento bem de
perto comigo, com fono e otorrino juntos. A fono durante um tempo também era online, é tudo um pouco
mais devagar, principalmente na questão da fono, na minha opinião, quando é online, porque eles
manipulam fisicamente muito o nosso corpo. O trabalho em conjunto ajudou a resolver muitas questões,
mas tive muitos alunos assintomáticos com pós Covid-19 complicado.
H.T.: Em sua experiência, você acredita que a aula de canto pode ter um papel importante na recuperação
pós Covid-19?
B.T.: Eu acho que teremos ainda muitas surpresas. Principalmente em relação ao pós. Porque é isso né? Uma
inflamação e cada corpo reage de um jeito. E as coisas mais estranhas acontecem, então eu acho que a
gente, com o tempo, vai descobrir coisas novas. Uma coisa interessante em Londres, e outros locais como
Los Angeles, é que cantores líricos estavam ajudando pacientes no pós com a recuperação respiratória
14
.
Além dos fisioterapeutas e fonos, alguns hospitais contrataram cantores líricos para ajudar as pessoas na
parte respiratória, porque a gente respira direito, né? A gente, que canta, pelo menos deveria respirar
direito. Temos uma conscncia respiratória maior do que os que não cantam. Então isso é algo legal.
Inclusive, acho que tem umas matérias do New York falando sobre isso também, é uma coisa legal a ser dita.
Porque pra quem teve a doença com sintomas mais pesados e que realmente perdeu um pouco dessa função
respiratória pulmonar, a aula de canto pode ser terapêutica neste aspecto também, e neurologicamente
falando também. Não só a fisio, que também é de extrema importância, respiratória principalmente, mas o
canto pode ser também algo bem positivo na recuperação de um paciente com um pós Covid-19 mais
complicado.
H.T.: Pode nos falar um pouco também da experiência de ser jurada de um festival de canto online, como o
“Minha vez de brilhar?”
14
Documentário “Singing your way out of long COVID”: https://m.youtube.com/watch?v=Y1j8vc9FoUU;
Matéria menciodada do New York Times:
https://www.google.com.br/amp/s/www.nytimes.com/2021/02/16/arts/music/opera-singers-covid-19-
treatment-eno-breathe.amp.html.
Tormina, Helen Bovo; Fernandes, Angelo José. 2021. “Desenvolvimento da performance e ensino crossover de canto: entrevista com a cantora e atriz Bianca
Tadini” Per Musi no. 41, General Topics: 1-24. e214127 DOI: 10.35699/2317-6377.2021.36194
21
B.T.: Eu sou uma das juradas e diretoras do concurso. Ele teve várias edições, edições adultas e infantis.
Avaliamos tanto o canto, quanto a interpretação. E não somos só nós, jurados, que avaliamos. Também
um voto popular, pelo Instagram, nesse período. Nas diferentes temporadas, vimos uma adesão maior, cada
vez maior, e um crescimento, uma evolução [artística] das pessoas. Estavam mais preparados, ouviam nosso
feedback nas outras etapas, melhoravam captação de vídeo e de áudio e escolhiam melhor as músicas. Foi
bem legal, pois as pessoas usaram esse período para compreender melhor algumas questões,
principalmente no quesito escolha de repertório e a melhor forma de se captar.
8. Considerações Finais
Conhecer os métodos de estudo pessoal de uma artista crossover considerada expert pode desvendar
importantes pistas sobre como é possível coordenar a técnica vocal de forma global, culminando em
diferentes práticas musicais, em que cada uma seja expressa com a autenticidade de seu gênero musical
específico. A entrevista ainda nos fornece indicadores importantes de quais métodos e soluções da
entrevistada, ainda que em nível pessoal, são empregados para coordenar a técnica vocal de forma global,
culminando em diferentes práticas musicais, que expressam a autenticidade de seu gênero musical
específico.
Destacamos, no método de estudo de Bianca, que os diferentes tipos de produção vocal entre o canto lírico
e o Teatro Musical são tratados a partir de suas peculiaridades, usando-as de forma a ressaltar os contrastes.
Dessa forma, pode-se executar essas distâncias de maneira que pontos fortes de cada tipo de produção vocal
possam ser aplicados como estratégia para compreender e solucionar problemas vocais, indistintamente do
estilo escolhido naquele momento.
Bianca Tadini evidencia diferenças de pressão subglótica, referindo-se a fluxo de ar, a uso do sistema fonte-
filtro na escolha das sonoridades, ao restringir ou ampliar alguns harmônicos e ao mencionar ressonâncias.
Nesses casos, a artista refere-se aos ressonadores do trato vocal. Ainda aponta contrastes entre ajustes no
que se considera ser o estilo belting, considerando uma determinada estética dentro do amplo universo do
Teatro Musical, e do ajuste específico de voz belt, quando menciona as demandas de repertórios distintos.
Também faz distinção entre modos de fonação, uso dos registros, referindo-se ao registro modal 1, como
voz de peito, e ao modal 2, como voz de cabeça. Também identifica oposições de uso da massa das pregas
vocais entre os estilos, pontuando o emprego de mecanismo denso de prega vocal no belt, referindo-se,
pois, a ele como o “aumento do uso da massa de prega”, enquanto recomenda que, em outros momentos
e estilos, o mecanismo tênue possa ser adotado como forma de economia da voz. Também aponta uma
semelhança importante entre o canto lírico e o belting, como a posição mais alta da laringe e o mesmo
formato de trato vocal durante a produção de notas sobreagudas. Titze et al. (2011, 570) mencionam esta
postura afirmando que, para notas extremamente agudas, sopranos de ópera recorrem ao mesmo formato
de megafone do trato vocal de uma belter, apresentando uma boca amplamente aberta.
Sobre estas diferenças fonatórias entre estilos, colocadas em evidência na fala da entrevistada, o estudo de
Sundberg et al. (1993, 306) comparou as diferentes características de pressão e formantes entre o canto
operístico e o de Teatro Musical, encontrando um coeficiente de pressão subglótica mais alto no belting do
que no canto operístico, bem como diferenças de posição de laringe entre os estilos. No caso, o canto lírico
Tormina, Helen Bovo; Fernandes, Angelo José. 2021. “Desenvolvimento da performance e ensino crossover de canto: entrevista com a cantora e atriz Bianca
Tadini” Per Musi no. 41, General Topics: 1-24. e214127 DOI: 10.35699/2317-6377.2021.36194
22
exige uma posição mais baixa em comparação ao belt, e uma posição mediana no que os autores chamaram
de estilo misto, informação que vai ao encontro da postura da entrevistada sobre o tema.
No estudo conduzido pelos mesmos autores (2012), demonstraram-se importantes desigualdades
articulatórias e fonatórias nos vários subestilos de belting e também em oposição aos parâmetros do canto
operístico. Tais características, como a pressão subglótica, o coeficiente de adução das pregas vocais, as
variações de forma da faringe, dentre outras, descritas no estudo em que utilizaram apenas uma cantora
como objeto de estudo, aparentemente coadunam com o proceder de Tadini, ao transitar entre um estilo e
outro de canto.
Restam ainda muitas lacunas a se preencher tanto no estudo do belting quanto dos processos envolvidos no
canto crossover, para os quais seria muito interessante, em futuras investigações, o uso de exames de
imagem para compreendermos com mais claridade o comportamento do trato vocal, ao mudar de um estilo
contrastante para outro, como aconselham Titze et al. (2011). Adiciona-se, igualmente, a necessidade de
mais informações no que se refere ao comportamento acústico da voz durante a passagem de um estilo para
outro por um mesmo cantor. No entanto, estas não são as únicas lacunas neste tema a serem preenchidas.
Bianca Tadini menciona o seu contato com a música na infância, durante a qual, moldou sua interação e suas
percepções musicais. De acordo com Kuhl (2011), a exposição durante a “janela de oportunidade”, que
ocorre na infância, possibilita um pré-preparo da musculatura e do ouvido para a aprendizagem futura. Esse
processo é comparável ao de aquisição da fala e da linguagem. Ademais, ao discutir sobre o engajamento
contínuo de regiões encefálicas envolvidas na percepção e execução musical, Benz et al. (2016) apontam
que o treinamento musical pode promover mudanças funcionais e estruturais em nosso sistema nervoso.
Há, ainda, muito o que compreender sobre a relação das memórias de trabalho, que, de acordo com Schulze
e Koelsch (2012), têm forte ligação com a produção musical e como estas se relacionam com o
processamento do timbre, cuja variação é uma das características mais importantes ao se pensar o canto
crossover. Yamaguchi e Bortz (2021) revelam que a literatura sobre memórias em música, até o ano de sua
publicação, tendeu a privilegiar abordagens acerca da abstração relacional entre eventos, como contorno
melódico, em detrimento de outros parâmetros do som, por exemplo, a variação de timbre (para nós, é o
mais importante). Estes últimos autores afirmam que ainda escassez de pesquisas para compreender
melhor os processos de interação entre as operações conscientes da memória operacional e os conteúdos
sensoriais de processamentos automatizados da escuta musical. Ao trazermos o contexto ao universo do
canto crossover, percebemos um grande campo a explorar, sobre os processos mentais que tornam uma
pessoa capaz de cantar variados estilos com fluência musical.
Ao final da entrevista, Bianca revela quais posturas foram tomadas perante a crise sanitária e seu trabalho
enquanto professora e artista. A entrevistada procurou observar com cautela seus alunos, não fazendo
pressuposições ou mesmo utilizando-se de dados incipientes para tomar suas decisões, mas buscou respaldo
de profissionais da área da saúde e de pesquisas científicas
15
. Por fim, Bianca Tadini enfatiza, mesmo em
15
Castillo-Allendes, Adrián, Francisco Contreras-Ruston, Lady Cantor, Juliana Codino, Marco Guzman, Celina
Malebran, Carlos Manzano, et al. 2021. “Terapia de Voz En El Contexto de La Pandemia Covid-19;
Tormina, Helen Bovo; Fernandes, Angelo José. 2021. “Desenvolvimento da performance e ensino crossover de canto: entrevista com a cantora e atriz Bianca
Tadini” Per Musi no. 41, General Topics: 1-24. e214127 DOI: 10.35699/2317-6377.2021.36194
23
tempos pré-pandemia, a necessidade do atendimento com uma equipe multidisciplinar composta por
médicos otorrinolaringologistas e fonoaudiólogos, a fim de assegurar um atendimento adequado ao cantor
ou aluno de canto. Sobre este período pandêmico, a entrevistada reafirma, e estes autores concordam,
sobre a importância do distanciamento social e da vacinação, para que as atividades artísticas e pedagógicas
possam retornar presencialmente com segurança.
7. Referências
Audition. 2021. In Cambridge Dictionary Online.
<https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/audition>.
Benz S., Sellaro R., Hommel B., and Colzato LS. 2016. “Music Makes the World Go Round: The Impact of
Musical Training on Non-musical Cognitive Functions—A Review”. In Frontiers in Psychology (6): 2023.
doi: 10.3389/fpsyg.2015.02023.
Bogdan, R., Biklen, S. 2010. Investigação Qualitativa em Educação: Uma Introdução à Teoria e aos Métodos.
Porto: Porto Editora.
Bond, Letycia. 2020. “Artistas buscam alternativas de sustento durante a pandemia.” Agência Brasil.
https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-06/artistas-buscam-alternativas-de-sustento-
durante-pandemia.
Cardoso, Adriana Barea, Angelo José Fernandes, and Cassio Cardoso Filho. 2016. “Breve História Do Teatro
Musical No Brasil, e Compilação de Seus Títulos.” Revista Música Hodie 16 (1).
doi:10.5216/mh.v16i1.42982.
Colognese, Silvio A., e Melo, José Luiz D. 1998. “A Técnica de Entrevista na Pesquisa Social.” In Cadernos de
Sociologia (9): 143 - 159.
Elliot, M. 2006. Singing in Style: A Guide to Vocal Performance Practices. Yale University Press.
Fach. 2002. In Grove Music Online.
<https://www.oxfordmusiconline.com/grovemusic/search?q=Fach&searchBtn=Search&isQuickSearch=tru
e>.
Hines, Jerome. 2006. Great Singers on Great Singing. Limelight Editions, Amadeus Press, New Jersey.
Kuhl, P. K. 2011. “Early Language Learning and Literacy: Neuroscience Implications for Education”. In Mind,
Brain, and Education, 5(3): 128142. doi.org/10.1111/j.1751-228X.2011.01121.x.
Leborgne, Wendy D., and Rosemberg, Marci D. 2014. The Vocal Athlete. San Diego: Plural Publishing.
Lichote, Leonardo. 2019. “Teatro Musical Movimentou R$ 1 Bilhão Em São Paulo Em 2018.” O Globo.
https://oglobo.globo.com/cultura/teatro/teatro-musical-movimentou-1-bilhao-em-sao-paulo-em-
2018-23968372.
Oliveira, Rafael. 2016. “Os microfones e a Broadway”. In Musical em bom Português.
https://sites.google.com/site/musicalembomportuguesintro2/material-teorico/artigos-sobre-teatro-
musical/45-os-microfones-e-a-broadway
Recomendaciones Para La Práctica Clínica.” Journal of Voice 35 (5): 808.e1-808.e12.
doi:10.1016/j.jvoice.2020.08.018.
Tormina, Helen Bovo; Fernandes, Angelo José. 2021. “Desenvolvimento da performance e ensino crossover de canto: entrevista com a cantora e atriz Bianca
Tadini” Per Musi no. 41, General Topics: 1-24. e214127 DOI: 10.35699/2317-6377.2021.36194
24
Physique du Rôle. 2021. Michaelis, Dicionário Online de Português. Editora Melhoramentos Ltda.
https://michaelis.uol.com.br/busca?id=OKyLa.
Prado, Carol. 2020. “Teatro Se Reinventa Na Internet, Mas Ainda Busca Forma de Faturar Para Salvar
Profissionais Parados.” G1. https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2020/04/20/teatro-se-reinventa-
na-internet-mas-ainda-busca-forma-de-faturar-para-salvar-profissionais-parados.ghtml
Roll, Christianne. 2016. “The Evolution of the Female Broadway Belt Voice: Implications for Teachers and
Singers”. In Journal of Voice 30 (5).
Rubim, Mirna. 2019. Voz Corpo Equilíbrio. Rio de Janeiro: Thieme Revinter.
Schulze, Katrin, and Koelsch, Stephan. 2012. “Working memory for speech and music: Schulze & Koelsch. In
Annals of the New York Academy of Sciences 1252 (1): 229236.
Spivey, Norman, and Barton, Mary. 2018. Cross-Training in the Voice Studio: A Balancing Act. San Diego:
Plural Publishing.
Sundberg, J., Gramming, P., and Lovetri, J. 1993. “Comparisons of Pharynx, Source, Formant, and Pressure
Characteristics in Operatic and Musical Theatre Singing,” In Journal of Voice 7 (4): 301310.
Sundberg, J., & Thalén, M., & Popeil, L. 2012. “Substyles of Belting: Phonatory and Resonatory
Characteristics”. In Journal of Voice 26 (1): 4450.
Titze, I., Worley, A. S., and Story, B. H. 2011. Source-Vocal Tract Interaction in Female Operatic Singing and
Theater Belting. In Journal of Singing 67 (5): 561-572.
Yamaguchi, Vitor, e Bortz, Graziela. 2021. “Memória operacional em música: Principais marcos teóricos e
alguns dos desafios em seu estudo”. In Musica Hodie 21, e67358.