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DOI: 10.35699/2317-6377.2022.36934
eISSN 2317-6377
Kurze Schatten II:
procedimentos composicionais e princípios estéticos
Artur Miranda Azzi
https://orcid.org/0000-0002-7741-4442
Hochschule für Musik und Darstellende Kunst Frankfurt am Main, Fachbereich 1
arturmmazzi@gmail.com
Rogério Vasconcelos Barbosa
https://orcid.org/0000-0003-4573-6057
Universidade Federal de Minas Gerais, Departamento de Teoria Geral da Música
rogeriovb2@gmail.com
SCIENTIFIC ARTICLE
Submitted date: 30 oct 2021
Final approval date: 08 feb 2022
Resumo: O artigo propõe uma análise da obra para violão Kurze Schatten II de Brian Ferneyhough. A análise tem como
objetivo compreender os procedimentos composicionais e princípios estéticos do compositor, revelando uma
aproximação com conceitos oriundos do pensamento de Gilles Deleuze, Felix Guattari e T. Adorno. A partir da
compreensão dos elementos que regem a lógica interna da obra é evidenciado que a herança serialista do compositor,
desenvolvida à luz do conceito adorniano de música informal está presente nas componentes estruturais de Kurze
Schatten II e na processualidade do gesto criativo. O rompimento com o conceito tradicional de unidade percebido na
análise origina uma música de transformações, passagens, aproximações e contrastes, efetivada em um espaço
rizomático operado por um jogo de diferenças e impermanências. A análise técnica da obra traz a primeiro plano
questões que são melhor compreendidas à luz dessas considerações de ordem estética.
Palavras-chave: Análise; Música contemporânea; Teoria da música; Brian Ferneyhough; Violão.
TITLE: KURZE SCHATTEN II: COMPOSITIONAL PROCEDURES AND AESTHETIC PRINCIPLES
The article proposes an analysis of the guitar piece Kurze Schatten II by Brian Ferneyhough. The analysis aims to
understand the compositional procedures and aesthetic principles of the composer, revealing an approximation with
concepts from the thought of Gilles Deleuze, Felix Guattari and T. Adorno. By understanding the elements that manage
the internal logic of the work, it is evident that the composer's serialist heritage, developed in the light of the Adornian
concept of informal music, is present in the structural components of Kurze Schatten II and in the processuality of the
creative gesture. The rupture with the traditional concept of unity perceived in the analysis originates a music of
transformations, passages, approximations and contrasts, realized in a rhizomatic space operated by differences and
impermanences. The technical analysis of the work brings to the forefront issues that are better understood in the
light of these considerations of aesthetic order.
Keywords: Analysis, Contemporary music; Music theory; Brian Ferneyhough; Guitar.
Per Musi, no. 42, General Topics, e224210, 2022
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Azzi, Artur Miranda; Vasconcelos, Rogério Barbosa. 2022."Kurze Schatten II:
procedimentos composicionais e princípios estéticos Per Musi no. 42, General Topics: 1-27. e224210. DOI 10.35699/2317-6377.2022.36934
Kurze Schatten II:
procedimentos composicionais e princípios estéticos
Artur Miranda Azzi, Hochschule für Musik und Darstellende Kunst Frankfurt a. M, arturmmazzi@gmail.com
Rogério Vasconcelos Barbosa, Universidade Federal de Minas Gerais, rogeriovb2@gmail.com
1. Uma breve introdução à estética de Ferneyhough
A extrema complexidade é certamente uma das características mais marcantes da estética de Ferneyhough.
Para o compositor, a complexidade pode ser definida como a decodificação das relações entre situações,
tendências ou diferentes estados da substância sonora que geram impulsos e condições para novos modelos
formais.
Ferneyhough reconfigura o papel do intérprete, que se encontra em um labirinto que lhe apresenta desafios
que o levam a fazer escolhas pessoais e a moldar a obra de acordo com suas necessidades e preferências.
Em obras como Cassandra's Dream Song (Ferneyhough, 1975), por exemplo, o material às vezes é
deliberadamente irrealizável, de modo que os limites do possível e do impossível não são claramente
definidos, e as escolhas do intérprete operam como um filtro de materiais.
Não é apenas o papel do intérprete que é deslocado para um novo nível. Uma escuta intensa e ativa é
proposta ao ouvinte, mergulhando-o em um espaço repleto de linhas descontínuas nas quais várias
tentativas de esboços formais se dissolvem em alta velocidade. Em um contexto caótico onde todas as
formas que surgem retornam imediatamente às profundezas, a figura é liberada do figurativo e o gesto é
dessemantizado, a audição se volta para o molecular e os espaços se dobram e se desdobram
incessantemente.
No ato da criação, o artista é confrontado com um material infinito, mergulhando no caos e lutando para
torná-lo sensível. A fim de exercer uma espécie de filtragem deste espaço caótico, Ferneyhough, de forma
semelhante à prática serial, estabeleceu um sistema preciso para os materiais de seu Quarteto de Cordas
2.
A Figura 1 representa o plano de composição da quarta seção do segundo quarteto de cordas, organizado
em nove camadas sobrepostas. Assim, percebe-se o extremo detalhe do plano pré-composicional.
Ferneyhough não se contenta em simplesmente gerar o material como resultado de um procedimento
automático, ou seja, um sistema que é fixado a priori e determina resultados sonoros, como ocorre em
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algumas organizações seriais ou tonais. O compositor entra na estrutura, confronta-a e deforma-a para
finalmente produzir o material resultante.
Figura 1: Esquema composicional do segundo Quarteto de Cordas
A primeira camada do esquema diz respeito aos instrumentos que estarão ativos em cada unidade,
representados pelas letras "A" (1º violino), "B" (2º violino), "C" (viola) e "D" (violoncelo). As letras são
maiúsculas quando um determinado instrumento executa um material primário e minúsculas quando
executa um material secundário. Os números no lado direito das letras indicam uma subdivisão com base
em outros elementos determinados. Entretanto, não explicações mais profundas sobre este
procedimento na literatura. A segunda camada indica o agrupamento dos cartuchos em unidades formais e
a terceira camada define o tempo de cada unidade. A quarta camada define a duração das frases, enquanto
a quinta camada define a organização dos compassos. A sexta camada define o material das alturas, a sétima
camada define o material rítmico e as duas camadas seguintes definem o tratamento das alturas e do ritmo,
respectivamente.
A Figura 2 representa o quarto agrupamento dos cartuchos. De acordo com o esquema pré-composicional,
três frases com a colcheia a 70 BPM são indicadas: a primeira com cinco colcheias, a segunda com seis
colcheias e a terceira com cinco colcheias, organizadas em três compassos.
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Figura 2: Detalhe do esquema composicional
Observa-se na Figura 2 que no primeiro e no segundo cartucho todos os instrumentos estão ativos, mas no
terceiro cartucho faltam os dois violinos. Ao analisar a partitura abaixo (compassos análogos aos cartuchos
20 e 21) destaca-se um desvio do esquema dado: a presença do primeiro violino no compasso 125, onde de
acordo com o esquema somente viola e violoncelo deveriam tocar.
Figura 3: Compassos 124 e 125 do Quarteto
2. A Música Informal e a Noção de Automático
Em Vers une musique informelle Adorno (1961) critica o pensamento serial, que até então dominava o cleo
da vanguarda musical européia. Segundo Adorno, na composição serial, “a unidade é pensada como um
existente imediato e um oculto; na composição motívico-temática, por outro lado, a unidade se define
sempre como um devir e um revelado” (Adorno 1986, 516). Desta forma, o serialismo não é antagônico ao
pensamento temático-motívico e se apresenta como uma figura oculta do tematismo que emergiu da
totalidade desse pensamento.
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Por "informal" Adorno entende uma música que é livre de qualquer forma fixa e abstrata imposta de fora,
mas que, ao não se submeter a qualquer lei alheia a sua própria lógica, se constituirá por necessidade
objetiva no próprio fenômeno. Trata-se, portanto, de abandonar os esquemas abstratos pré-composicionais
enquanto modelos absolutos generalizantes e permitir ações e sistematizações locais que operam em uma
lógica interna da própria obra.
O conceito de automatismo vai em direção oposta. Para Brian Ferneyhough, o caráter automático é
efetivado a partir da evidência de um sistema previamente estabelecido através do fenômeno sonoro
historicamente condicionado. Nesse sentido, a técnica serial, assim como os procedimentos tonal e modal
já consagrados pela academia, podem ser vistos como um processo automático.
A dialética entre procedimentos automáticos e informais permeia o pensamento e a prática composicional
de Ferneyhough. As ões locais criam uma tensão no processo de composição do Quarteto No. 2 e
evidenciam como o compositor interpreta esta noção adorniana do informal. Ferneyhough aborda esta
questão no texto La musique informelle: (à partir d’une lecture d’Adorno)
1
onde estabelece as bases teóricas
para uma resposta ao problema denunciado por Adorno na técnica serial da década de 1950 e sua recusa do
tematismo, assim como de qualquer linearidade no processo temporal.
O compositor encontra uma resposta pessoal ao problema, através do conflito entre um sistema serial de
planejamento e uma atitude deliberada no modo de atualizar o planejamento virtual com liberdade através
de ações locais.
A liberação do material de um centro hierárquico e unificador acima mencionada está também relacionada
à leitura do compositor do conceito de figural criado por Jean-Francois Lyotard e desenvolvido por Gilles
Deleuze em Lógica da Sensação. No texto, Deleuze propõe a idéia de figural como o desprendimento da
figura de sua condição figurativa. Bamford afirma que o figural consiste em "desestabilização dos sistemas
de representação a partir de dentro, a fim de demonstrar a presença contínua daquilo que não pode ser
contido" (Bamford apud Campolina 2013, 200). Nesse sentido, Ferneyhough propõe uma música figural cuja
processualidade se revela na dessemantização do gesto, na desterritorialização
2
de sua condição habitual
de símbolo. O corpo, liberado de seu organismo, permite detectar desvios das constantes que operam forças
soberanamente centradas.
3. Kurze Schatten II
3.1. Aspectos gerais da peça
A obra Kurze Schatten II, composta em 1983-89, recebeu seu título em referência a uma sequência de textos
constituída por sete aforismos de Walter Benjamin. Como os sete textos de Benjamin, a estrutura da
macroforma de Ferneyhough é articulada em sete pequenos movimentos. Em uma clara alusão à suíte
1
Cf. Ferneyhough, 1999.
2
A desterritorialização é aqui entendida como um processo voluntário ou forçado de dissolução de laços
territoriais pessoais ou coletivos - econômicos, simbólicos, materiais, etc.
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barroca, estes movimentos são agrupados em três pares, alternando tempos rápidos e lentos, e terminando
com um uma espécie de fantasia.
Quando se aproxima o meio-dia, as sombras ainda são apenas as orlas negras e nítidas na
base das coisas e estão prontas para, silenciosas, de improviso, se recolher à sua estrutura,
ao seu segredo. Então, em sua plenitude densa e encolhida, é chegada a hora de Zaratustra,
do pensador no "Lebensmittag" ("Meio-dia da Vida"), no "Sommergarten" ("Jardim de
Verão"). Pois o conhecimento delineia, como o Sol a pino, as coisas com máximo rigor
(Benjamin 1972, 264)
3
.
O texto acima, Kurze Schatten, último dos sete textos de Benjamin, provocou o impulso composicional inicial,
como observa o compositor. A imagem do sol se aproximando de seu zênite, quando ao meio-dia as sombras
desaparecem e as coisas se tornam uma só, encontra uma analogia no gesto criativo de Ferneyhough de
escrever movimentos extremamente curtos e formalmente compactos nos quais o processo gradualmente
se torna o objeto, de forma que ambos "se tornam a si mesmos de uma forma hiperreal" (Ferneyhough 1998,
139).
Um processo que desempenha um papel dominante na configuração de identidade da obra é a expansão
das possibilidades harmônicas do instrumento, que é obtida através da modificação da scordatura
tradicional. A ilustração abaixo mostra as mudanças feitas pelo compositor.
Figura 4: scordatura
O segundo sistema estabelece que a primeira, quinta e sexta cordas foram afinadas em quartos de tom; a
segunda corda foi afinada um semitom mais baixo; a terceira e quarta cordas foram mantidas na afinação
padrão.
Ao longo do movimento há uma direção muito clara de um ponto de vista harmônico. Ao final de cada par
de movimentos, uma das cordas volta à afinação tradicional, ou seja, há um afastamento gradual da
sonoridade original em favor de uma reterritorialização da ressonância familiar do instrumento, um caminho
3
Wenn es gegen Mittag geht, sind die Schatten nur noch die schwarzen, scharfen Ränder am Fuß der Dinge
und in Bereitschaft, lautlos, unversehens, in ihren Bau, in ihr Geheimnis sich zurückzuziehen. Dann ist, in ihrer
gedrängten, geduckten Fülle, die Stunde Zarathustras gekommen, des Denkers im »Lebensmittag«, im
»Sommergarten«. Denn die Erkenntnis umreißt wie die Sonne auf der Höhe ihrer Bahn die Dinge am
strengsten(Benjamin 1972, 428).
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que leva de um conjunto de elementos regidos pelo mod |24| ao mod |12|. Assim, uma filtragem das
propriedades gerais do instrumento também pode ser observada, pois a scordatura estabelece uma relação
de ressonâncias completamente nova. Embora o retorno ao campo diatônico possa ser verificado no último
movimento, a reaproximação total à identidade tradicional do violão não é realmente realizada, uma vez
que a segunda corda permanece alterada, o que representaria "uma vitória dos princípios de
defamiliarização" (Ferneyhough 1998, 152).
3.2 Ensaio de uma Análise da Obra
3.2.1 O Primeiro Movimento
Cada movimento de Kurze Schatten II foi elaborado como uma espécie de estudo, com o objetivo de
concentrar os critérios de composição em uma problematização particular.
O primeiro movimento opera duas camadas polifônicas diferentes. Uma das camadas consiste em
harmônicos naturais e está dividida em dois sistemas na partitura. A outra camada é articulada através de
uma polifonia de sucessão baseada em quatro categorias diferentes de figuras. Tanto as figuras como os
harmônicos desempenham um papel central no desenvolvimento formal do movimento, uma vez que a
forma é o resultado de um processo em que uma contradição vetorial pode ser percebida. Até um certo
ponto do movimento, uma tendência para a diminuição dos harmônicos naturais, que ocorre em paralelo
com uma intensificação da atividade figural. Este ponto, realçado pela ausência de harmônicos e pela maior
densidade figural do movimento, marca o momento a partir do qual a lógica é invertida.
Como é comum na estética do compositor, uma organização complexa antes de se iniciar a escrita da
obra. Ferneyhough define a priori uma estrutura detalhada que serve, não como um modelo representativo
do fenômeno sonoro, mas como uma rede flexível com a qual o compositor opera tomando uma posição em
frente do material abstrato.
O movimento foi dividido em cinco unidades formais com diferentes tempos metronômicos, contendo cinco,
três, quatro, quatro e quatro compassos respectivamente. Por sua vez, o tamanho de cada compasso foi
derivado da mesma sequência numérica pela adição de valores sucessivos e a divisão do resultado por dois:
(5 + 3) ÷ 2 = 4; (3 + 4) ÷ 2 = 3 ½; (4 + 3 ½ 2 = 3 ¾. Estas operações refletem as proporções métricas utilizadas:
5/8, 3/8, 4/8, 7/16, 15/32. Note-se que a ordenação dos primeiros compassos de cada unidade resulta na
mesma série métrica da primeira unidade.
Embora as cinco divisões formais sejam claras a nível conceitual, no plano perceptual existe uma
discrepância entre o planejamento a priori e o resultado sonoro. Ou seja, a forma da obra nem sempre
reflete a forma da organização abstrata dos materiais.
Um exemplo é a contradição formal que surge a partir da quarta unidade. O processo de intensificação figural
atinge o seu clímax no último compasso da terceira unidade onde, ao mesmo tempo, se verifica uma
completa ausência dos harmônicos. Poder-se-ia dizer que existe uma articulação formal, planejada pelo
compositor no plano abstrato, enfatizada pela mudança de tempo, pela recorrência de eventos nos sistemas
superiores e pela disposição dos materiais. No entanto ocorre uma atividade repentina dos harmônicos que
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é acompanhada por uma diminuição da dinâmica no sistema inferior, levando a um novo clímax apoiado
pela dinâmica de fff poss. A longa ressonância resultante do reaparecimento abrupto dos harmônicos leva a
uma nova tendência articulatória, solidificando assim, uma contradição formal.
Figura 5: Clímax da densidade figural e contradição formal
As relações estruturais também podem ser refletidas em relação a sequências numéricas presentes na obra
de Ferneyhough, tais como a sequência de Fibonacci. No primeiro movimento de Kurze Schatten II, um
jogo interessante com estes números: do primeiro ao terceiro compasso, são introduzidas as categorias de
figuras (ver Tab.1); após o quinto compasso, uma nova seção; após os três compassos seguintes o oitavo
compasso do movimento - aparece novamente uma articulação formal; o décimo terceiro compasso da peça
prossegue com outra articulação, desta vez enfatizada pela inversão da lógica do processo formal e pelo
retorno da sobreposição das duas camadas; oito compassos contados para trás desde o fim do
movimento até ao décimo terceiro compasso.
Para além das características apontadas, existe uma relação interessante na área de maior densidade figural
do movimento. Neste ponto, a lógica processual é invertida, dividindo a obra em duas grandes secções.
Førisdal (2017) aponta que a primeira grande secção tem 56,25 colcheias e a segunda 35,125. A relação
proporcional entre estes valores é a razão da secção áurea: 56,25 / 35,125 = 1,6.
As proporções rítmicas das camadas de harmônicos derivaram também da estrutura métrica, acrescentando
os numeradores e denominadores dos compassos sucessivos. Para o segundo sistema da partitura, foi
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realizada a seguinte operação: 5 + 3 = 8, dando uma proporção de 8:5; 3 + 4 = 7, dando uma proporção de
7:3; 4 + 3 ½ = 7 ½; e assim por diante.
Para o primeiro sistema (de cima para baixo), após a soma dos compassos sucessivos, o valor do compasso
seguinte foi subtraído: 5 + 3 - 4 = 4 dá uma proporção de 4:5 ou 8:10; 3 + 4 - 3 ½ = 3 ½ dá uma proporção de
7:3; 4 + 3 ½ - 3 ¾ = 3 ¾ dá uma proporção de 15:8; e assim por diante.
Tal como com o quarteto de cordas mencionado acima, a partitura não busca representar o sistema pré-
estabelecido. Existem algumas discrepâncias que ilustram como Ferneyhough lida livremente com o seu
material, não como os antigos serialistas, mas com uma liberdade informal, um primeiro passo para a
realização de um campo virtual, uma filtragem do caos.
O sistema inferior consiste em quatro categorias de figuras, que o compositor submete à chamada
intensificação figural. Este processo é uma alternativa à variação tradicional e baseia-se em alterações de
intensidade, perfil melódico, articulação e mesmo nas alturas. Segundo Chaigne (2008), as proporções
rítmicas desta camada derivaram da retrogradação das proporções métricas da primeira unidade,
produzindo as seguintes subdivisões: 2 ⅛ - 17:10; 3 ½ - 7:6; 2 ½ - 5:4; 3 ¼ - 15:14; 4 ¼ - 17:15. Comparando
este esquema com a partitura final, fica claro que Ferneyhough também realizou as suas operações locais,
que são uma contradição à estrutura previamente estabelecida. O quadro abaixo mostra as quatro
categorias de figuras:
Quadro 1 Quatro categorias de figuras
O conteúdo intervalar desta camada revela uma interessante propriedade estética que permite uma
abordagem que dialoga com um conceito de Gilles Deleuze e Felix Guattari. Em Mille Plateaux: Capitalisme
et schizophrénie 2, os dois autores propõem o conceito de rizoma, um modelo que se opõe aos modelos
arborescente ou de raiz pivotante. A árvore ou modelo arborescente funciona através da dicotomia e
hierarquia de constantes cujos ramos se referem a uma fase anterior e aos seus ramos subsequentes. A
árvore linguística de Chomsky, as categorizações binárias da sexualidade e a estrutura da tonalidade são
agenciamentos arborescentes. Embora permita mais ligações, a raiz pivotante, tal como a árvore, oferece
sempre a possibilidade de regressar ao centro através de gradação hierárquica. No modelo de raiz pivotante,
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os radículos derivam de um ponto genético central, como as várias representações da série em estruturas
seriais.
Em um rizoma, todos os pontos podem ser ligados pela sua multilinearidade. o existe um plano causal
generalizado, e muito menos uma tendência para a centralidade. O rizoma funciona por interpenetrações,
como ocorre em microrganismos como os vírus, quando saltam de um organismo hospedeiro para outro.
Um modelo rizomático, como um objeto cartográfico, pode ser introduzido em qualquer ponto, e também
pode ser quebrado em qualquer outro ponto, uma vez que funciona segundo o princípio da ruptura não
significativa.
O rizoma não pode ser justificado por um modelo estrutural ou generativo, é o oposto de estrutura, porque
enquanto a estrutura é definida por posições hierárquicas dicotomicamente relacionadas, o rizoma é
definido por "linhas de segmentação, de estratificação, como dimensões, e também linhas de fuga ou
desterritorialização [...] de onde a multiplicidade se transforma numa mudança de natureza" (Deleuze e
Gutarri, 1980).
Em contraste com a processualidade serial, Brian Ferneyhough trata suas alturas rizomaticamente,
penetrando nas suas estruturas para operar informalmente mudanças locais e ligar pontos díspares
anteriormente pensados como desconectados numa lógica de arborescência ou de raíz-pivotante. A
organização das alturas no primeiro movimento começa com um complexo de sete notas (7-12, prime form:
0134568, ic vector: 444441) que está sujeito a três princípios que contribuem para uma configuração
rizomática do material: permutação, scordatura e filtragem das alturas através da camada de harmônicos.
Figura 6: Conjunto originário do primeiro movimento
A permutação é um dos procedimentos composicionais mais utilizados nos séculos XX e XXI e aparece em
várias correntes estéticas. No entanto, a permutação pode assumir aspectos diferentes e cumprir funções
completamente distintas. Segundo Ferraz, "a permutação permite ao compositor tanto criar um complexo
funcionalmente estruturado como alcançar o limiar das interjeições caóticas" (Ferraz, 1998).
O primeiro agenciamento requer uma hierarquização dos componentes estruturais internos, de uma
maneira que a identidade e a forma sejam claramente estabelecidas. O segundo tipo de agenciamento
baseia-se na libertação do material das forças hierarquizantes, o que contribui para uma repetição
assimétrica que não se submete a qualquer identidade pré-imposta e conduz a uma escuta fractalizada,
molecular e rizomática.
Esta libertação do material através da permutação já se tinha anunciado em obras de compositores de
gerações anteriores como Olivier Messiaen e Edgard Varèse. Ao contrário das permutações dodecafônicas,
as permutações de elementos heterogêneos no Poème Electronique, de Varèse, não podem ser reduzidas a
uma única célula inicial, nem as numerosas permutações na Chronochromie, de Messiaen.
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No primeiro movimento de Kurze Schatten II, Ferneyhough opera com uma permutação de seu conjunto de
sete notas, cujo resultado elimina completamente qualquer possibilidade de um regresso a um centro
generativo no nível perceptivo. É evidente que na obra de Ferneyhough, como na de Messiaen e Varèse, a
permutação o está sujeita a um sistema unificador, mas funciona como um mecanismo de geração de
sistemas complexos, abrindo o caminho para uma escuta que emerge através da repetição de diferenças. O
compositor derivou duas variantes do seu conjunto original. A primeira derivação representa uma
retrogradação inversa típica, enquanto que a segunda foi o resultado de um filtro de alturas em que os
intervalos ordenados das classes de alturas 2 3 2 3 8 3 foram subtraídos por 1, resultando em 1 2 1 2 7 2 2.
Figura 7: Variantes do conjunto originário, respectivamente 7-2 e 7-11
Ferneyhough efetua cruzamentos de catorze notas com os dois conjuntos e depois repete o procedimento,
transpondo os conjuntos e alterando a sua ordem. Como se pode ver nas figuras abaixo, os resultados das
operações do compositor não permitem um retorno discernível ao centro gerador, como seria plausível, por
exemplo, em abordagens dodecafônicas da série.
Figura 8: Permutações com os conjuntos de sete notas
A primeira sequência de quatorze notas é deduzida a partir da alternância simples das notas dos conjuntos
7-11 e 7-2. A segunda sequencia segue uma lógica similar, entretanto os conjuntos de sete notas são
operados por transposições. O conjunto 7-2 foi transposto uma terça menor, ou seja, bemol se torna Si,
Lá se torna Dó, Si se torna Ré e assim por diante. O conjunto 7-11 foi transposto uma quinta, de forma que,
Sol se torna Ré, Si bemol se torna Fá, Ré se torna Lá e assim por diante. Após as operações de transposição,
o compositor realiza a mesma alternância anterior dos conjuntos 7-11 e 7-2.
Nos compassos 12 e 18-19 do primeiro movimento é possivel verificar a utilização da primeira sequencia de
quatorze notas. A figura abaixo à esquerda mostra um fragmento do compasso 12 onde todas as alturas são
utilizadas e constituem um gesto de direção ascendente. A figura da direita mostra a utilização das quatro
primeiras alturas da sequência. É importante apontar que, como essas alturas estão dispostas em oitavas
distintas, a scordatura provoca um resultado perceptivo diferente para o mesmo conjunto de notas.
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Figura 9: Compassos 12 e 18-19
Desta maneira a scordatura desempenha um papel essencial na abordagem rizomática da organização das
alturas do primeiro movimento, porque permite a percepção fractal e a repetição, onde a mesma coisa
nunca regressa. Como se pode notar no exemplo acima, uma mesma nota em diferentes oitavas é, na
prática, uma nota diferente. Merece destaque o fato do compositor nem sempre ter especificado as cordas
para serem tocadas, de modo que não Ferneyhough mas também o intérprete deve tomar decisões locais
que quebram o plano estrutural preestabelecido.
também um filtro de alturas causado pela camada de harmônicos. Uma vez que os harmônicos têm
frequentemente de soar durante um longo período de tempo, o número de cordas disponíveis para a
camada figural é limitado. Considerando a questão da scordatura, torna-se mais uma vez claro que o
compositor e o intérprete devem agir informalmente.
O primeiro movimento de Kurze Schatten II ilustra claramente o processo de composição, em que o material
é libertado das restrições estruturalistas para formar uma espécie de máquina de guerra nômade que
desterritorializa tendências hierarquizantes e mergulha o ouvinte num labirinto caótico e multilinear que se
dobra e desdobra internamente através de repetições operativas da diferea, cuja efetivação processual
ocorre principalmente no movimento seguinte.
3.2.2 O Segundo Movimento
No centro do segundo movimento está uma distinção entre dois vetores opostos: o tempo metronômico do
movimento e a densidade do material. Desta forma, o tempo é diminuído em blocos regulares, enquanto a
densidade dos acontecimentos tende a aumentar. Castro-Magas (2016) aponta que a oposição entre os dois
materiais encontra uma possível analogia no segundo texto de Benjamin Ein Wort von Casanova, no qual
uma relação dialética na prostituição é evidenciada através do dinheiro, com o qual o prazer é comprado,
mas vem carregado de vergonha:
“Ela sabia”, diz Casanova de uma alcoviteira, " que eu não teria coragem de me ir embora
sem lhe dar nada." Estranha afirmação. Que coragem seria necessária para enganar a
alcoviteira com a sua paga? Ou, mais exatamente, que fraqueza é essa com que ela pode
sempre contar? É a vergonha. A alcoviteira vende-se, mas não a vergonha do cliente que
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Azzi, Artur Miranda; Vasconcelos, Rogério Barbosa. 2022."Kurze Schatten II:
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solicita os seus serviços. Este, cheio de vergonha, procura um esconderijo e encontra o
mais escondido de todos: o dinheiro. O descaramento lança a primeira moeda sobre a
mesa; a vergonha paga mais cem para a encobrir (Benjamin 1972, 264).
4
Comparando as Figuras 10 e 11, a diferença entre os dois vetores é notável: No final do movimento, a
atividade figural é muito mais densa e há uma desaceleração temporal progressiva de 90 para 60 BPM.
Figura 10: Primeiros compassos do segundo movimento
Figura 11: últimos compassos do segundo movimento
4
"Sie wußte«, sagt Casanova von einer Kupplerin, »daß ich nicht die Kraft haben würde, zu gehen, ohne ihr
etwas zu geben.« Seltsames Wort. Welch einer Kraft bedurfte es, die Kupplerin um ihren Lohn zu prellen?
Oder, genauer, welche Schwäche ist es, auf welche sie sich stets verlassen kann? Es ist die Scham. Die
Kupplerin ist käuflich; nicht die Scham des Kunden, welcher sie bemüht. Der sucht, von ihr erfüllt, sich ein
Versteck und findet das verborgenste: im Geld. Die Frechheit wirft die erste Münze auf den Tisch; die Scham
zahlt hundert drauf, sie zu bedecken“ (Benjamin 1972, 425).
14
Azzi, Artur Miranda; Vasconcelos, Rogério Barbosa. 2022."Kurze Schatten II:
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O automatismo típico de Ferneyhough está aqui presente na organização estrutural do movimento. Como
abordado por Castellani (2009), a peça é dividida em seis grupos de seis compassos
5
que são sujeitos a
uma permutação cíclica. O desenvolvimento dos vetores é percebido em cada permutação, como mostra o
quadro abaixo.
Quadro 2 Estrutura do segundo movimento
Colcheia = 90
1 2 3 4 5 6
Colcheia = 83
2 3 4 5 1 6
Colcheia = 76
3 4 5 1 6 2
Colcheia = 71
4 5 1 6 2 3
Colcheia = 67,5
5 1 6 2 3 4
Colcheia = 63,5 até 60
1 6 2 3 4 5
Existe uma anomalia no procedimento cíclico da primeira permutação, uma vez que o primeiro elemento
que deveria tornar-se o último se torna o penúltimo. É interessante notar que em cada compasso, como no
primeiro movimento, as figuras sofrem um processo de intensificação figural no qual elas se deformam e
rompem completamente com a periodicidade ou desenvolvimento motívico tradicional.
Figura 12: Primeiro compasso do segundo movimento
O compasso abaixo é análogo ao anterior. Ao se transformar no penúltimo elemento do segundo grupo
através da permutação cíclica, a figura foi deformada e adquiriu maior densidade:
Figura 13 Décimo primeiro compasso do segundo movimento
5
Os grupos são constituídos pelas seguintes fórmulas de compasso: 5/16, 3/16, 2/8, 1/8, 3/8 e 5/16, cada
uma representada pelos números inteiros 1 a 6 no quadro 2.
15
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No que diz respeito às alturas, é novamente proposto um procedimento automático, no qual um certo grupo
de notas é apresentado nos primeiros seis compassos. Este grupo será sempre repetido, com alguma
liberdade e ocasionais permutações, mas os procedimentos informais rompem com o automatismo
estabelecido. A Figura 14 mostra as notas expostas durante o primeiro ciclo de seis compassos:
Figura 14: Alturas dos compassos 1 ao 6 representadas por inteiros
À medida que a densidade das figuras aumenta, é necessário inserir novas notas no final do grupo, alterando
assim a clareza e obviedade originais. A Figura 15 mostra as notas do segundo grupo de seis compassos:
Figura 15: Alturas dos compassos 7 ao 12 representadas por inteiros
É importante salientar que o conteúdo harmônico das duas passagens é praticamente o mesmo até o último
compasso, na qual foram acrescentados novos elementos.
Figura 16: Alturas dos compassos 13 ao 18 representadas por inteiros
Acima está o terceiro grupo e as respectivas alturas. Mais uma vez, as notas permanecem basicamente as
mesmas, incluindo as novas notas do segundo grupo e uma nova série de notas no último compasso. Este
procedimento é repetido até ao fim da peça, resultando em cinco repetições do "campo harmônico" exposto
nos primeiros seis compassos. Na Figura 17 é possível ver os demais agrupamentos de alturas.
16
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A repetição e a diferença permeiam o discurso de diferentes correntes estéticas na música do século XX. O
serialismo e o minimalismo comportam elementos para uma reflexão sobre uma repetição constituída por
um retorno constante da mesma coisa: o mesmo material e o mesmo conceito. O minimalismo e o serialismo
diferem do ponto de vista da repetição pelo "grau de necessidade da representação de objetos passados na
memória" (Ferraz, 1998). A escuta da música serial é efetuada pela necessidade de unificar a diversidade,
que funciona através da memória, relacionando eventos uns com os outros a uma certa distância. Na sica
serial existem então dois tipos de repetição: a repetição material, que é controlada pela memória, e a
repetição conceitual, que é representada pela série, por regras, por leis formais e estruturais.
A diferença no minimalismo é uma consequência da sensibilização através da repetição de um objeto, que
rompe com a necessidade de repressão da repetição material causada pelo serialismo e se torna um
elemento central e essencial do discurso. A identidade da obra minimalista é o resultado de uma
processualidade que, em princípio, não requer uma memória atenta, pois é articulada através da repetição
incessante do material.
Figura 17: Alturas a partir do compasso 19 representadas por inteiros
17
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Embora as duas correntes estéticas sejam opostas, pode-se dizer que se envolvem em repetição negativa
6
ou seja, uma repetição que permite o constante retorno do mesmo, seja ele material ou conceitual. No
entanto, há outra repetição, a repetição afirmativa, que traz de volta a diferença para tornar as identidades
possíveis e representa um obstáculo à subjugação da repetição à representação.
Embora os procedimentos automáticos sugiram repetição material, Ferraz
7
propõe que Ferneyhough opera
com repetições e diferenças em dobras locais que não visam representar o mesmo objeto e regressar às
semelhanças mas, no sentido oposto, envolvem uma repetição que repete a diferença.
Vamos de dobra em dobra, não de ponto em ponto, e todo contorno se atenua
com proveito das potências formais do material que vem à superfície e se
apresenta com outros tantos entornos e redobras suplementares. A
transformação da inflexão não admite mais a simetria. (Deleuze apud Ferraz 1998, 36)
8
.
A passagem acima de Gilles Deleuze em Le Pli corresponde muito bem à estética de Ferneyhough. O nível
estrutural e processual do segundo movimento é rompido na camada perceptual pela necessidade de
incorporar novas alturas. As notas são distribuídas livremente por diferentes oitavas, e desta forma a
diversidade dos resultados sonoros é potencializada através da scordatura.
Figura 18: Primeiro e sétimo compassos do segundo movimento
Os fragmentos acima referidos ignoram a scordatura e mostram uma repetição exata não ordenada de notas
em diferentes oitavas. No acorde do primeiro compasso, o deve ser tocado na primeira corda e o na
quinta corda, uma vez que o Si e o Ré devem ser tocados em cordas soltas. Neste caso as alturas reais são:
Fá meio bemol, Si bemol, Si meio bemol e Ré. No sétimo compasso há um Si meio bemol, um Lá bemol, um
Sol meio bemol e um Ré.
Na Figura 19, pode-se ver que o décimo terceiro compasso é também uma repetição das alturas previamente
estabelecidas. Neste exemplo, apenas a nota e o segundo Si têm a indicação da corda a ser tocada. Desta
maneira, ao longo do movimento diferentes soluções para a mesma altura escrita. As alturas reais deste
compasso seriam: bemol, Si bemol/Si natural, possivelmente La meio bemol, possivelmente Mi - nada
impede que seja, por exemplo, Lá meio bemol e Fá - Fá meio bemol, Si meio bemol e assim por diante.
6
Cf. Ferraz 1998.
7
Ibid.
8
"C'est qu'on va de pli en pli, non pas de point en point, et que tout contour s'estompe au profit des
puissances formelles du matériau, qui montent à la surface et se présententent comme autant de détours et
de replis supplémentaires. La transformation de l'inflexion n'admet plus de symétrie, ni de plan priviégié de
projection" (Deleuze 1988, 23).
18
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Figura 19: Décimo terceiro compasso do segundo movimento
O sistema repete-se a si mesmo, mas através de procedimentos informais pode realmente ouvir-se uma
repetição da diferença, um retorno incessante de materiais metamorfosados que "transformam cada
momento numa singularidade " (Ferraz, 1998).
3.2.3 O Terceiro Movimento
O terceiro movimento opera com fluxos distintos e com a distribuição de materiais fragmentados em uma
lógica simétrica. É também o movimento em que uma maior concentração de eventos percussivos.
Segundo Ferneyhough,
O princípio subjacente é extremamente simples; defino uma série de compassos de
durações diferentes que, após o ponto central do movimento, com exceção de algumas
pequenas irregularidades, retrocedem até ao seu ponto de partida. A maior diferença
entre o original e a métrica retrogradada é que, enquanto cada compasso alternado na
primeira metade contém ou um silêncio completo ou uma subdivisão interna
predeterminada em ressonância tenuto e silêncio, a versão retrogradada inverte esta
relação, de modo que os compassos inicialmente marcados pela música real são agora
essencialmente silenciosos, e vice-versa (Ferneyhough, 1998).
9
Castellani (2009), certamente apoiado pelos comentários do próprio compositor, apontou precisamente
como os materiais foram estruturados nestes diferentes fluxos em um quadro. Entretanto sua abordagem
permite uma observação do ponto de vista terminológico. A terminologia dos eventos do movimento são
simplificações baseadas na descrição do compositor, nomeadamente, música, silêncio e tenuto.
Ferneyhough, ao justapor ressonância e tenuto, deixa claro o significado de ressonância prolongada. Isolar
a palavra tenuto, como ocorre no quadro de Castellani, gera certa imprecisão, pois o termo tem ampla
utilização em relação aos modos de articulação. Além disso, no terceiro movimento de Kurze Schatten II, o
prolongamento da ressonância vem sempre seguido de pausa o que fica claro na descrição de
9
The underlying principle is extremely simple; I define a series of measures of many different lenghts which,
after the midpoint of themovement, with exception of a few small irregularities, runs retrogade back to its
start point. The major difference between the original and its metric retrogade is that, whereas every
alternate measure in the firt half contains either complete silence or else a predetermined internal
subdivision into tenuto ressonance and silence, the retrogade version reverses this relationship, so that the
measures initially marked by actual music are now essentially silent, and vice-versa.
19
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Ferneyhough, mas não no quadro de Castellani. É também passível de crítica a escolha do termo música.
Ora, ressonâncias e silêncios não seriam igualmente música?
A figura abaixo mostra um quadro similar ao de Castellani, porém com algumas alterações terminológicas.
Pode-se ver que na primeira unidade do movimento os eventos sonoros dinâmicos predominam sobre os
eventos silenciosos ou ressonantes. A partir do eixo de simetria, quando a lógica estrutural é invertida,
verifica-se que os eventos silenciosos ou ressonantes ocupam uma parte maior do discurso e os gestos
sonoros dinâmicos têm um caráter aforístico e uma finalidade pontual.
Embora o automatismo prevaleça neste movimento, dois princípios em particular que estimulam as linhas
de fuga. O conteúdo percussivo não foi devidamente categorizado e explicado por Ferneyhough. uma
escrita gráfica onde se pode supor alturas diferentes, mas a qualidade do som depende inteiramente do
intérprete. Devido à riqueza percussiva do instrumento, as escolhas locais feitas pelo intérprete podem ser
completamente diferentes.
Os impulsos sonoros são dados de acordo com o princípio da fragmentação. Não existe entre eles nem uma
relação material nem uma relação causal, criando uma tensão entre as várias figuras aforísticas e entre elas
e o tempo, o que indiretamente se refere à dialética entre a densidade do material e o fluxo temporal do
segundo movimento.
Quadro 3 Estrutura simétrica do movimento: Sequência original
7/8
2/8
4/8
3/16
7/16
4/8
15/16
Evento sonoro
dinâmico
Pausa
Evento sonoro
dinâmico
Pausa
Evento sonoro
dinâmico
Ressonância
Prolongada/Pausa
Evento sonoro
dinâmico
2/8
11/32
3/8
13/16
4/8
15/16
2/8
Ressonância
Prolongada/Pausa
Evento
sonoro
dinâmico
Ressonância
Prolongada/Pausa
Evento
sonoro
dinâmico
Ressonância
Prolongada/Pausa
Evento sonoro
dinâmico
Pausa
Quadro 4 Estrutura simétrica do movimento: Sequência retrógrada
2/8
15/16
4/8
13/16
3/8
11/32
2/8
Evento sonoro
dinâmico
Pausa
Evento sonoro
dinâmico
Ressonância
Prolongada/Pausa
Evento
sonoro
dinâmico
Ressonância
Prolongada/Pausa
Evento sonoro
dinâmico
15/16
4/8
7/16
3/16
4/8
2/8
7/8
Ressonância
Prolongada/Pausa
Evento sonoro
dinâmico
Pausa
Evento sonoro
dinâmico
Pausa
Evento sonoro
dinâmico
Ressonância
Prolongada/Pausa
3.2.4 O Quarto Movimento
Formalmente, o quarto movimento pode ser visto como uma espécie de "valsa genérica", articulada na
forma ternária A B A', e cujos materiais estão baseados na noção de tripartismo. A primeira unidade exibe
uma métrica ternária, embora existam liberdades rítmicas ocasionais resultantes de uma divisão
proporcional interna dos compassos. A segunda unidade consiste numa estrutura métrica diferenciada, e a
textura é claramente hierárquica entre a melodia e o acompanhamento. A ideia de tripartismo é retomada
pela melodia, que tem em sua estrutura agrupamentos ternários articulados por quiálteras de diferentes
durações cujos componentes individuais são separados e divididos em compassos numa espécie de "sincope
irracional".
20
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A textura da segunda unidade chama especialmente a atenção. A configuração típica do acompanhamento
de valsa, ou seja, mais lento e menos complexo que a melodia, inverte a sua lógica e adquire uma textura
densa e elaborada. É interessante notar que, devido às características da melodia e da scordatura, a
mobilidade da mão esquerda do intérprete é limitada, o que se reflete na configuração do
acompanhamento, que consiste numa elevada proporção de notas repetidas. No entanto, a mobilidade da
mão esquerda é realçada na terceira e última unidade pela introdução de vários harmônicos. A textura se
tranforma e passa a consistir praticamente apenas de complexos sonoros, resultando numa tendência para
uma densidade textural máxima.
As notas deste movimento, ao contrário do primeiro ou segundo, não procedem de uma lógica regida pelas
alturas, mas, são resultados da conexão entre pontos distintos, como um vírus que salta de um organismo
hospedeiro para outro - um processo que só é possível numa lógica rizomática. A harmonia é consequência
de uma determinação a priori das possibilidades de digitação de mão esquerda organizadas em um sistema
abstrato, que inicialmente ignora relações harmônicas do material. Existe, portanto, uma interessante
inversão da relação entre corpo e procedimento composicional. Normalmente, o corpo está subordinado à
lógica da altura e desempenha um papel secundário na concepção harmônica da obra. Ferneyhough propõe
uma experiência diferente, que põe em primeiro plano o corpo e a sua relação com o instrumento e submete
o material sonoro a outras condições.
Førisdal (2017) e Chaigne (2008) apontam que a sistematização de Ferneyhough considera cinco parâmetros
diferentes: A posição da mão esquerda da primeira à décima quarta posição, combinações de cordas,
digitações, número de cordas para cada digitação e cordas a serem utilizadas que permanecem após a
formação de uma digitação. Abaixo encontra-se uma linha da tabela do compositor
10
.
Quadro 5 Linha “10” da tabela do compositor para o quarto movimento
Fórmula
Cordas
Dedos
I c 5
1 2 4 6
1 4 3 2
A coluna "Fórmula" consiste em três parâmetros: o primeiro é a posição da mão esquerda no instrumento;
o segundo refere-se à combinação de cordas. As letras representam um campo com todas as permutações
possíveis usando quatro cordas que consistem em quinze combinações: (1, 2, 3, 4) (1, 2, 3, 5) (1, 2, 3, 6) (1,
3, 4, 5) (1, 3, 4, 6) e assim por diante. Cada possibilidade é sujeita a uma permutação cíclica: (1, 2, 3, 4) (2, 3,
4, 1) (3, 4, 2, 1) e assim por diante. Cada permutação é então atribuída a uma letra ou combinação de letras.
Os últimos dígitos indicam que padrão de substituição de dedos é utilizado a partir de seis combinações
possíveis de dedos, começando com o dedo indicador: (1, 2, 3, 4) (1, 2, 4, 3) (1, 3, 4, 2) (1, 3, 2, 4) (1, 4, 3, 2)
(1, 4, 2, 3). As duas colunas restantes indicam as combinações de cordas ou os dedos utilizados.
O segundo gesto do compasso abaixo reflete claramente a realização em partitura do sistema abstrato
descrito acima, mais especificamente, da décima linha da tabela do compositor. O dedo “1” se encontra na
primeira posição e toca a primeira corda, o dedo “4” toca a segunda corda, o dedo “3” toca a quarta corda
e o dedo “2” a segunda corda. Desta forma, o complexo Fá, Mi bemol, Fá, Sol bemol importante notar que
as alturas reais são ainda microtonais neste movimento), é resultado de uma projeção abstrata de variáveis
distintas e não possuem uma relação consequente com uma organização harmônica lógica.
10
Cf. Paul Sacher Stiftung, 1984.
21
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Figura 20: Realização em partitura do esquema abstrato (quinto compasso do quarto movimento)
3.2.5 O Quinto Movimento
O quinto movimento apresenta uma textura em que o potencial colorístico do instrumento ocupa uma
posição central na configuração do discurso. A forma é dividida em sete unidades, cada uma com o seu
próprio tempo metronômico, e, como no primeiro movimento, o plano formal estabelecido pelo compositor
nem sempre reflete a mesma articulação formal na prática. Contudo, a fim de tornar a análise mais objetiva,
são consideradas as unidades formais estabelecidas pelo compositor no plano composicional.
De acordo com Ferneyhough (1998), os campos harmônicos foram derivados de uma forma simples, baseada
no princípio da proliferação linear de complexos sonoros, ou seja, um complexo foi utilizado na primeira
secção formal, dois complexos na segunda secção formal, três complexos na terceira secção formal, etc.
Embora não tenha sido possível identificar com precisão os complexos sonoros, é interessante notar que
existe uma grande variedade em termos de organização das alturas e uma flexibilidade da identidade
harmônica dentro das secções formais. No entanto, há um elemento unificador que são as notas comuns ao
longo de todo o movimento. É também importante salientar que, embora ao menos teoricamente, haja um
aumento gradual na variedade harmônica, por outro lado há uma diminuição nos gestos que consistem em
acordes apresentados verticalmente.
Castellani (2010) apresenta o conteúdo intervalar do quinto movimento em alturas reais. A ilustração abaixo,
extraída do seu texto, mostra grandes campos harmônicos gerados a partir da justaposição das alturas de
cada uma das sete unidades formais.
As técnicas utilizadas durante o movimento são: Ungh refere-se a um golpe frontal apenas com a unha; Polp
é um golpe sem unha, apenas com a ponta dos dedos; Arpa é a forma tradicional de tocar; Tamb é um golpe
percussivo nas cordas com a mão ou dedos; Tamb. (2) são golpes percussivos nas cordas com um padrão
rítmico livre que criam uma ressonância; Pizz é o pizzcato indicado tradicionalmente; Pizz atrás da mão
esquerda é indicado pelo pequeno triângulo; harmônicos são indicados por um pequeno losango; o
quadrado indica que a corda é tocada com a mão esquerda ou direita nos trastes do instrumento (criando
um efeito semelhante a um multifônico); as setas indicam a direção do arpejo e o trêmulo é tocado da forma
tradicional. É importante notar que a densidade de atividades articulada por diferentes técnicas diminui
tende a diminuir ao longo do tempo.
22
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Figura 21: Alturas do quinto movimento (Castellani 2010, 97)
Dentro do movimento, existe uma relação entre o conteúdo harmônico e as técnicas aplicadas. Esta relação
se dá, sobretudo na coincidência da mudança dos complexos sonoros e das diferentes formas de tocar, de
modo que o potencial colorístico do instrumento sublinha a mudança do repertório harmônico disponível.
Tal como no segundo movimento, encontra-se uma dialética no centro do discurso, evidenciando um
contraste entre um plano harmônico estático e uma grande atividade das diferentes técnicas utilizadas
3.2.6 O Sexto Movimento
Em contraste com o efeito estático do quinto movimento, o sexto movimento é um scherzo dinâmico. O
ponto central do discurso é a tensão resultante da transformação sonora, que se baseia na alternância entre
os sons produzidos normalmente e os sons harmônicos. A fim de investigar como estes acontecimentos se
comportam, foi criado um gráfico que permite uma visualização mais detalhada do desenvolvimento da
qualidade das alturas. O comportamento das linhas do gráfico mostra um interessante movimento contrário
iniciado por um movimento ascendente. Nos três primeiros momentos, os sons harmônicos e naturais
alternam a predominância, para em seguida ser estabelecida uma predominância dos sons naturais.
Chaigne (2008) e Førisdal (2017) indicam um pré-planejamento cuidadoso dos campos e das estruturas
temporais. Como no primeiro movimento, existe uma organização da forma e do tempo em proporções,
mas no sexto movimento estas proporções articulam sobreposições de valores irracionais sob um único
tempo metronômico, o qual ironicamente não é indicado na partitura. Ferneyhough parte de um conjunto
de 24 proporções sujeitas a um princípio que estabelece uma analogia entre as proporções ou as suas
respectivas repetições e uma simples sequência numérica (1, 2, 3, 4, 5, 6) e opera uma permutação destes
elementos. Esta operação criou uma estrutura temporal de proporções para o movimento, cuja configuração
métrica, que é concebida a posteriori - em contraste com os outros movimentos e, em geral, com a estética
de Ferneyhough - recebe a função de organizar a configuração gestual a priori.
23
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Figura 22: Gráfico representando a qualidade das alturas do sexto movimento
Para as alturas, o compositor tem uma abordagem semelhante à do primeiro movimento. Ferneyhough
começou com cinco notas dispostas em intervalos ascendentes de 1, 2, 3 e 4 semitons, sujeitas a vários tipos
de permutações, filtragem de alturas, inversões e retrogradações. Embora vestígios do conteúdo intervalar
do conjunto primário possam ocasionalmente ser encontrados na partitura, também aqui a música não
representa o sistema preestabelecido, mas a sua identidade é marcada pela operação local executada pelo
compositor e, sobretudo, pelo intérprete.
Figura 23: Conteúdo intervalar semelhante à sequência originária: +1+3+3 na primeira figura. +1+3+3+4+4(-8)+3 na segunda figura
As ambiguidades presentes no segundo movimento, que resultam uma repetição que traz de volta a
diferença, são também características neste movimento. A scordatura e a ausência de indicações de cordas
afetam a equivalência das oitavas, além disso, e tendo em conta as considerações anteriores, abre-se uma
gama adicional de possibilidades quando um som é tocado como um harmônico. Algumas alturas não
produzem simplesmente harmônicos, mas sim multifônicos, ou mesmo diferentes harmônicos, dependendo
de pequenas movimentações da mão esquerda.
O conceito de atual/virtual pode ser conectado a esta problemática. Gilles Deleuze desenvolve este conceito
nos seus estudos sobre Bergson (1966) e em Différence et Répétition (1968), e mais tarde explora-os
juntamente com Felix Guattari (1980). O par atual/virtual pode ser visto como um campo de problemáticas
dividido em dois lados. Atual é o que pode ser visto, o que existe como matéria, e o que é presente, enquanto
o virtual não é visível nem tem forma, mas é imanente ao atual. O virtual faz parte do atual e, portanto,
24
Azzi, Artur Miranda; Vasconcelos, Rogério Barbosa. 2022."Kurze Schatten II:
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permite que se desenvolva em novas criações e novas identidades. O virtual seria, portanto, um nível
metafísico abstrato que presente no atual é, portanto, real. Contém intensidades potenciais que diferem
umas das outras, ou seja, é um campo de diferenciação que não tem identidade específica. O virtual
representa precisamente a essência (de se tornar) ou a sintonia fina da mutação em curso. "A virtualização
enquanto tal não é nem boa nem má, nem neutra. Apresenta-se como o movimento de 'tornar-se outro' -
ou heterogeneidade - do ser humano" (Lévy 1996, 12). Um campo atual pode se desdobrar de diferentes
maneiras, cuja disposição contém um campo virtual imanente que se atualiza em identidades diversas.
O par atual/virtual pode ser ilustrado pelo contraste do cálculo diferencial e integral. A inclinação de uma
linha reta pode ser calculada com a operação y = mx + b. Numa outra situação, uma linha curva figura sob a
forma de uma parábola. Ao selecionar dois pontos nesta linha e repetir a operação anterior, obtém-se uma
linha reta ligando dois pontos diferentes, sem considerar a linha curva (ver figura 24). A forma de analisar
uma linha curva é feita por cálculo diferencial. Começa-se com um ponto na linha e depois cria-se uma
fórmula para produzir um conjunto de proporções. O cálculo integral permite tomar a abordagem oposta,
começando com o conjunto de proporções para derivar os pontos. Por outras palavras, o cálculo diferencial
começa com um ponto atual que regressa ao campo de diferenciação que o criou, enquanto o lculo
integral começa com o campo de diferenciação para definir que pontos podem ser atualizados a partir das
suas fórmulas.
Figura 24: A linha reta e a linha curva
A sica de Ferneyhough experimenta esses conceitos de forma consciente e (pós-)estrutural. Cada solução
proposta pelos diferentes intérpretes, provocada pela ambiguidade da partitura, atualiza o campo virtual de
formas completamente diferentes. A obra Kurze Schatten II envolve este jogo de diferenciações no centro
da sua estrutura, e a imensa rede de possibilidades presentes na (pós-)estruturação do movimento permite
uma descoberta incessante de novos caminhos e experiências.
3.2.7 O Sétimo Movimento
No final do sexto movimento os três agrupamentos de pares rápidos e lentos são completados e a scordatura
microtonal é completamente filtrada. Entretanto a segunda corda permanece alterada em Si bemol.
Tal como em outros movimentos de Kurze Schatten II, o sétimo movimento caracteriza-se também por uma
estreita relação com as estruturas cíclicas. A peça consiste em seis seções de seis compassos, interrompidas
por longas fermatas. Como se pode ver na ilustração abaixo, os compassos são geralmente os mesmos,
mesmo que apareçam permutados e repetidos.
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Azzi, Artur Miranda; Vasconcelos, Rogério Barbosa. 2022."Kurze Schatten II:
procedimentos composicionais e princípios estéticos Per Musi no. 42, General Topics: 1-27. e224210. DOI 10.35699/2317-6377.2022.36934
Figura 25: Organização métrica do sétimo movimento representada por inteiros
A cada compasso foi atribuído um número inteiro, de modo a que 1 = 3/8; 2 = 3/16; 3 = 2/8; 4 = 2/8; 5 =
5/16; 6 = 5/32. O único compasso que aparece apenas uma vez é 7/16, ao qual foi atribuído o número 7. As
seções são interrompidas por longas fermatas de 5, 4, 5, 3 e 3 segundos respectivamente, que por vezes
prolongam as ressonâncias, por vezes as pausas, e dessa maneira uma referência aos processos
suspensão do fluxo temporal presentes no terceiro movimento. Os gestos das secções formais mostram uma
grande densidade e variedade figural, para além de ocasionais fermatas de menor duração que contribuem
para uma fragmentação da textura. O sétimo movimento contém praticamente todas as convenções
técnicas tradicionais do instrumento condensadas na identidade epigramática desta música.
A rápida sucessão de texturas e cores variáveis, cujo fluxo é interrompido pelas suspensões temporais das
fermatas, é gradualmente intercalada por gestos violentos de glissando, que se tornam um elemento central
nas secções finais da obra. Comentando sobre a qualidade compacta e densa do material, não só do sétimo
movimento, mas do ciclo como um todo, Ferneyhough observa:
(...) tal miniaturização das dimensões formais e temporais seria uma re-expressão
adequada da questão da escala que mencionei no início ou seja, como a violência, a
massa e a gestualidade poderiam ser transportadas da minha prática anterior para o
universo acusticamente restrito do violão (Ferneyhough 1998, 152)
11
Esta miniaturização é levada às últimas consequências na secção final, quando o compositor concentra todo
o seu material na segunda corda do instrumento e conclui a obra com um harmônico da nota Si Bemol, B na
notação germânica, a letra inicial do nome de Benjamin.
4. Considerações finais
uma forte conexão entre a técnica de um compositor e suas referências estéticas. No caso de
Ferneyhough, podemos dizer que a herança serialista é desenvolvida à luz do conceito adorniano de música
informal. Assim, a organização do material na pré-composição - o lado automático - é apenas um ponto de
partida para transformações de várias naturezas que se seguem, não se interrompendo, inclusive, nas
operações do compositor - o lado informal - mas requisitando do intérprete escolhas adicionais na
performance.
11
(…) such miniaturization of formal and temporal dimensions would be an apt re-expression of the issue of
scale I mentioned at the outset that is, how violence, mass and gestural emphasis could be carried across
from my previous practice into the acoustically restricte universe of the guitar. (Ferneyhough 1998, 152)
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Azzi, Artur Miranda; Vasconcelos, Rogério Barbosa. 2022."Kurze Schatten II:
procedimentos composicionais e princípios estéticos Per Musi no. 42, General Topics: 1-27. e224210. DOI 10.35699/2317-6377.2022.36934
O conceito tradicional de unidade, associado pela tradição serialista a um princípio de origem, o núcleo da
série, que refletiria suas proporções de modo fractal na superfície sonora das peças, é deslocado. Não se
tem mais presente um centro que explicaria, por dedução e variações, os diferentes momentos da obra. Ao
invés disso, tudo é passagem e transformação, aproximação e contraste, em um espaço rizomático onde as
conexões se formam e se desfazem num jogo de impermanências.
A escuta apreende as potências expressivas do material sonoro sem fixar completamente sentidos ou
formas. As linhas de força dos gestos atualizam suas faces virtuais em cada instante de modo diferente. O
caos permanece presente, sendo filtrado apenas pelas dobras do plano de organização. Por sua vez, o
princípio informal reintroduz a escolha e o desejo nesse movimento de gênese do processo criativo, sem
fixar completamente um sentido definitivo e, ao mesmo tempo criando tendências, inclinações e atratores
para a escuta.
Acreditamos que a análise técnica de Kurze Shatten II desenvolvida no texto traz a primeiro plano algumas
questões que são melhor compreendidas à luz dessas considerações de ordem estética.
5. Referências
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Editado por Peter Szendy, 109-117 Paris: Harmattan.
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