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DOI: 10.35699/2317-6377.2022.36936
eISSN 2317-6377
Performance e sentido no DVD da Banda
Quilombo do Rio das Rãs
Rita de Cássia Mendes Pereira
https://orcid.org/XXXX-XXXX-XXXX-XXXX
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Programa de Pós-graduação em Letras
ricamepe@hotmail.com
Elisabete Tâmara Galvão dos Santos
https://orcid.org/0000-0003-1754-9924
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Programa de Pós-graduação em Letras
elitagal@outlook.com
SCIENTIFIC ARTICLE
Submitted date: 30 OCT 2021
Final approval date: 28 NOV 2021
Resumo: O texto tem por objeto a relação entre performance e produção de sentidos no espetáculo da Banda
Quilombo do Rio das Rãs, realizado em 2009, na cidade de Bom Jesus da Lapa-Ba. A análise foi calcada nas regras da
performance (Zumthor 2014), tendo como referência o tempo e o lugar de realização do espetáculo, a finalidade do
ato comunicacional, as ações dos músicos e das dançarinas e o perfil do público, nos diferentes tempos de recepção.
O protagonista da ação performática é o sujeito quilombola, que fez da música o meio para sair da sua condição
habitual, marcada pela exclusão e pelo preconceito. Por outro lado, o trabalho buscou refletir sobre o poder da
performance, de modificar o conhecimento que artistas e público têm sobre si mesmo e sobre o outro e, portanto, de
atuar sobre a percepção do mundo que mobiliza os sujeitos em seus processos identitários.
Palavras-chave: Performance; Produção de sentidos; Quilombolas; Identidade.
TITLE: PERFORMANCE AND MEANING IN THE QUILOMBO DO RIO DAS RÃS BAND'S DVD
Abstract: The text object it is the relationship between performance and production of meaning in the performance
of Banda Quilombo do Rio das Rãs - held in 2009 - at Bom Jesus da Lapa (state of Bahia, Brazil). The analysis was based
on the rules of performance (Zumthor 2014), having as reference time and place of performance, purpose of the
communicational act, musicians’ actions and audience profile. The protagonist of the performative action it is the
quilombola subject, who made Music as a mean to get out of his usual condition, marked by exclusion and prejudice.
This work sought to reflect on the power of performance, to modify the knowledge that artists and audience have
about themselves and to act on the perception of the world that mobilizes subjects in their identity processes.
Keywords: Performance; Production of meaning; Quilombolas; Identity.
Per Musi, no. 42, General Topics, e224203, 2022
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Pereira, Rita de Cássia Mendes; Santos, Elisabete Tâmara Galvão dos. 2022. “Performance e sentido no DVD da Banda Quilombo do Rio das Rãs"
Per Musi no. 42, General Topics: 1-19. e224203. DOI 10.35699/2317-6377.2022.36936
Performance e sentido no DVD da Banda
Quilombo do Rio das Rãs
Rita de Cássia Mendes Pereira, Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, ricamepe@hotmail.com
Elisabete Tâmara Galvão dos Santos, Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, elitagal@outlook.com
1. Introdução
O desenvolvimento e popularização dos recursos digitais de registro e arquivamento de informações está na
base do fenômeno contemporâneo de ampliação do universo da comunicação. Lipovetsky e Serroy (2011,
10) propõem abordar a partir do conceito de cultura-mundo esse tempo em que a circulação de imagens e
a multiplicação de canais de trocas são viabilizadas pelas tecnologias digitais. Nesse contexto
comunicacional, ao qual se pode nomear como cibermundo, as atividades e os objetos compreendidos na
ideia de cultura saem do enquadramento do supérfluo, do opcional ou do periférico e tornam-se essenciais
à abordagem da sociedade como dos processos de produção de conhecimentos. Por outro lado, artefatos
midiáticos de base digital tornaram-se veículos para fluxos ininterruptos de objetos e manifestações
culturais, cuja produção e difusão inserem-se em transformações sociais e políticas que envolvem tanto os
realizadores como o público. Desde as últimas décadas do século XX, as tendências à uniformização e à
pasteurização de formas, próprias ao fenômeno da globalização, convivem, contraditoriamente, com a
projeção de performances que reforçam processos identitários e viabilizam o reconhecimento e valorização
de manifestações culturais antes excluídas do circuito das artes. A ideia de hipercultura ajusta-se, com
perfeição, a esse tempo, no qual práticas e dinâmicas convergentes com as aspirações e experiências da
massa, projetadas pelas tecnologias digitais de reprodução, passam a ocupar o centro das reflexões em
diversos campos do conhecimento. Para Martín-Barbero, esse contexto comunicacional, viabiliza a
construção de novos sentidos, torna possível “outro tipo de existência das coisas e outro modo de acesso a
elas” (Martín-Barbero 1997, 74).
Schaeber (1997, 147), reconhece que a globalização da mídia e da indústria de lazer aponta para um processo
de homogeneização das práticas culturais, de conteúdos e performances, mas, ao mesmo tempo, permite a
projeção de culturas de base étnica e trocas simbólicas entre povos que comungam de referenciais análogos.
É o que ocorre com a juventude negra brasileira, que se abre a formulações identitárias e artísticas dos
negros de outras partes do mundo. É imperativo reconhecer o papel dos meios de comunicação e das formas
inovadoras de exposição midiática no favorecimento à produção de novos estilos de música capazes de
modificar a vida das novas gerações. Munanga e Gomes (2016, 163) destacam, como exemplo desse
fenômeno, a integração de ritmos e formas de expressão, como o funk e o hip-hop, às expressões musicais
e performativas brasileiras, em torno das quais se unem parcelas da juventude negra motivadas pela
perspectiva de construção de novos sentidos.
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Em consonância com recentes reflexões sobre cultura, comunicação e transformações sociais, na
contemporaneidade, e, em especial, com os estudos voltados às experiências culturais da juventude negra
no Brasil, o presente trabalho se dedica à análise da performance dos sujeitos do espetáculo da Banda
Quilombo do Rio das Rãs. Gravado ao vivo em 2009, em praça pública, na cidade de Bom Jesus da Lapa-Ba,
o vídeo da apresentação foi, posteriormente, prensado em mídia digital e distribuído em escolas e
universidades da região Oeste da Bahia. Realizada segundo os pressupostos das regras da performance,
conforme proposição de Paul Zumthor (2014, 34), a análise levou em consideração o tempo e o lugar de
realização do espetáculo, a finalidade da ação performática e as ações dos sujeitos que atuaram como
músicos e dançarinos. Procurou-se perscrutar, também, o perfil do público nos tempos distintos de produção
e divulgação do DVD.
A performance tem o poder de modificar o conhecimento que artistas e público têm sobre si mesmos e
sobre o outro e, portanto, atua sobre a percepção do mundo que mobiliza sujeitos em seus processos
identitários. A ação performática aqui tomada como objeto de investigação projeta como protagonista o
sujeito quilombola, representado pelos integrantes da banda. Esse sujeito coletivo aparece, no momento da
realização do espetáculo, em posição diferente da sua condição habitual, marcada pela exclusão das
condições de acesso à cidadania plena e pelo preconceito. A comunidade rural quilombola, representada
pela banda, ocupou a centralidade das atenções diante da sociedade urbana que sempre a manteve à
margem e pôde exibir-se em condições de pleno gozo do direito de vivenciar ritmos e danças e de enunciar
discursos ancorados em saberes e práticas inerentes ao grupo. A gravação, ao vivo, do espetáculo, assim
como a posterior produção e difusão do objeto audiovisual (DVD), indica que “algo se criou, atingiu a
plenitude e, assim, ultrapassou o curso comum dos acontecimentos” (Zumthor 2014, 35).
A confecção do objeto de divulgação midiática atendeu ao objetivo de divulgação do espetáculo e, de uma
forma mais geral, da expressão artística da comunidade do Quilombo do Rio das Rãs. Mas isso ocorreu cinco
anos após a produção, realização e captura do espetáculo em áudio e vídeo. Necessário, portanto, distinguir
os contextos nos quais esses processos ocorreram e essencial destacar o papel dos agentes sociais e
políticos, internos e externos à comunidade, que tornaram viável tanto o espetáculo como a produção e
distribuição do DVD. Uma das chaves explicativas para a presença excepcional da banda quilombola no
núcleo urbano do município está na natureza do evento que garantiu essa presença. Trata-se de um evento
comemorativo do aniversário da Pastoral da Juventude e do Meio Popular (PJMP), organização ligada a
setores progressistas da Igreja Católica. Quanto aos processos posteriores, que permitiram a divulgação do
espetáculo em tempos e espaços dos quais é impossível delimitar fronteiras, eles envolvem outros agentes
públicos e projetos culturais que confluíram para a realização do objetivo central do idealizador e produtor
da banda: a inserção da produção musical quilombola no universo da indústria cultural. O vídeo da Banda
Quilombo do Rio das Rãs foi contemplado com recursos públicos do Edital de 2014 do Calendário das Artes,
projeto do Governo do Estado da Bahia. As mídias produzidas com o recurso captado foram distribuídas em
escolas, bibliotecas e universidades.
A divulgação do espetáculo em outros tempos e espaços além daqueles da produção possibilitou a
renovação de sentidos sobre a cultura quilombola, de base territorial rural, à qual se pretendeu,
inicialmente, dar visibilidade no momento da performance. Como recurso sonoro e visual, o DVD possibilitou
a apresentação, a novos públicos, de um ideal estético e de um conjunto discursivo voltados à valorização
da história de negros e negras identificados com as memórias de luta dos quilombos. As tecnologias digitais
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disponíveis à época permitiram a difusão de marcas e simbologias próprias ao grupo e à sua comunidade.
Como salientam Lipovetsky e Serroy (2011, 10), no mundo globalizado produtos e ões calcados em
experiências identitárias ganham materialidade como objetos de consumo e, a partir deles, novos sentidos
e estilos são produzidos
Por meio de falas, cantos e danças, os integrantes da banda assumiram publicamente a responsabilidade
sobre as escolhas de temas e formas que orientaram a construção de novos modelos de conduta para os
jovens da comunidade. Mais do que isso, embora subordinado a determinadas normas socioculturais, o
espetáculo se orienta pela perspectiva de mudança, de reconhecimento e valorização da importância dos
negros e negras do Brasil, como de sua arte, e difunde o desejo de conquista da cidadania plena para todos
que se reconheçam nas histórias, nos ritmos e nos gestos ali evocados. Transpostas para outros lugares que
não o locus original de criação (a comunidade rural quilombola), o espetáculo performático mobiliza
memórias e afetos e incita a reflexão, primeiramente por parte do público presente ao espetáculo; depois,
com a difusão do DVD, por parte dos múltiplos sujeitos que não compartilharam as circunstâncias da
realização da performance, mas que por ela foram afetados. Esses novos públicos, adicionados à Banda
Quilombo do Rio das Rãs mediante a distribuição da mídia digital, são compostos, sobretudo, de crianças e
jovens de algum modo integrados às tecnologias digitais de informação e comunicação, que apontam para
a superação de fronteiras de espaço e tempo e para a interação entre as experiências sensoriais provocadas
por som e imagem.
O espetáculo cristalizado em mídia digital tem como base a música, linguagem universal que transcende
línguas e fronteiras, e integra esse campo mais amplo do que se entende como arte, que viabiliza a
aproximação entre os homens e as coisas e a ruptura de muros sociais. Por meio da arte, como salienta
Martín-Barbero (1997, 74), é possível sentir-se próximo até das coisas mais longínquas e sagradas. Todos
esses elementos apontam para as múltiplas possibilidades de recepção e, por conseguinte, de renovação de
conteúdo, formas e sentidos da performance por um público cada vez mais amplo e mais distante,
fisicamente, dos agentes performáticos.
Para os sujeitos envolvidos na realização da performance, e para aqueles que deram condições de existência
ao espetáculo e ao DVD, a produção artística serve à valorização das formas de expressão, como da força e
resistência do povo representado pela Banda Quilombo do Rio das Rãs. Mas ela deve servir de estímulo ao
autorreconhecimento e à mobilização de um contingente populacional muito maior do que a comunidade
rural na qual a banda teve origem. A produção e a difusão da ação performática servem, portanto, aos
propósitos de promover a mobilização de capacidades criativas e de desencadear ações sociais e políticas
em defesa da ampliação do acesso à educação, à profissionalização, à saúde e ao lazer, enfim, à cidadania
da população afrodescendente brasileira.
2. Espaço e elementos performativos na apresentação da Banda Quilombo do
Rio das Rãs
Como grupo musical performativo, a Banda Quilombo do Rio das Rãs fez a apresentação em praça pública
em consonância com os propósitos gerais definidos para o espetáculo, com a natureza do evento que
garantiu a sua presença em praça pública e com o horizonte de expectativas em relação ao público. Do ponto
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de vista da ocupação do espaço, o grupo esteve limitado ao padrão que orientava as apresentações musicais
na época da produção do espetáculo. O compositor/cantor e os músicos (instrumentistas e vocal de apoio)
ocuparam a área central de um palco retangular, de estrutura metálica, medindo 7 x 4 metros, posicionado
a dois metros de altura em relação ao chão. Os membros da banda permaneceram em posições mais ou
menos fixas durante toda a apresentação, o que sugere a existência de marcadores de palco e a realização
de pelo menos um ensaio no local da apresentação.
No fundo do palco, havia uma estrutura metálica coberta por uma lona branca, estendida verticalmente, na
qual destacava-se a presença de adereços artesanais, feitos com galhos retorcidos, com formato semelhante
a mandalas. Havia, na parte frontal superior do palco, uma faixa comemorativa dos 30 anos da Pastoral da
Juventude e do Meio Popular (PMJP). Na parte frontal inferior, encontravam-se expostas faixas de tecido em
cores: do lado esquerdo, faixas nas cores amarela, preta e verde; do lado direito, faixas amarelas, vermelhas
e azuis, cores comumente associadas à simbologia afro-brasileira. A superfície sobre a qual atuavam os
músicos encontrava-se coberta por uma lona plástica branca, semelhante à que recobria o fundo do palco.
O branco dava visibilidade aos elementos cênicos e, também, às dançarinas, que, com indumentárias
estampadas em cores semelhantes às das faixas, performavam à frente do palco, ao nível do chão.
O grupo contava com nove instrumentos de percussão: timbales, repiques e tambores, tocados por jovens
músicos, que tateavam baquetas ou batiam nos tambores com as mãos. Pintados de verde, amarelo e
vermelho, os instrumentos definiam o ritmo das músicas e reforçavam a vinculação do grupo com os
particularismos étnico-culturais evocados nas canções e no cenário. que se destacar, também, a presença
de um instrumento de corda, o violão, tocado pelo vocalista, compositor e líder da banda: Moisés Cândido
da Silva, conhecido como Professor Zezinho.
Os recursos de iluminação e sonorização eram compostos por grandes caixas de som, situadas dos dois lados
do palco, empilhadas próximas a pequenos canhões de luz. Para potencializar os efeitos de luz e som,
estavam também ali dispostos dois equipamentos de saída de gás-fumaça. A estrutura ofertada pela
organização do evento era, seguramente, muito distinta das condições de produção vivenciadas pela banda
na realidade socioespacial do quilombo.
A convite da organização do evento, o espetáculo deu materialidade, no espaço urbano do município de
Bom Jesus da Lapa, ao desejo de reconhecimento do trabalho desenvolvido na comunidade rural. Mas, em
última instância, permitiu a difusão de experiências mais amplas do universo afro-brasileiro e, mais
especificamente, quilombola. A gravação ao vivo era, para os seus idealizadores, uma possibilidade de
inserção do grupo em uma nova realidade, da reprodução e difusão de conteúdos e formas. Por outro lado,
o sonho de integração ao mercado da música tornava premente a adoção de novos modos de fazer. Como
salientam Lipovetsky e Serroy (2011, 17), em tempos de cultura-mundo, experiências socioculturais de
grupos tradicionais submetem-se aos padrões tecnológicos disponíveis e às exigências de bom desempenho
e eficiência próprios à cultura de mercado. Mas, como destacam os mesmos autores, globalmente, qualquer
perspectiva de homogeneização derivada dessa submissão é confrontada pela problemática das identidades
coletivas, das “raízes”, do patrimônio, das línguas nacionais, do religioso e dos sentidos que alimentam o
mundo da hipercultura.
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Pereira, Rita de Cássia Mendes; Santos, Elisabete Tâmara Galo dos. 2022. “Performance e sentido no DVD da Banda Quilombo do Rio das Rãs"
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Na apresentação da Banda Quilombo do Rio das Rãs, os elementos comunicativos não-verbais, dispostos na
organização do palco, como no figurino dos músicos e dançarinas, codificam referências e aspectos culturais
próprios à comunidade de origem, mas, de forma integrada, aludem às raízes e experiências identitárias da
população negra no Brasil. Todas essas referências são reforçadas pela performance. De acordo com
Zumthor (2014, 34), performance indica competência, um saber-ser que implica e comanda certa presença
e conduta inscritas em coordenadas espaços-temporais e fisiopsíquicas concretas, numa ordem de valores
encarnada em um corpo vivo.
Os corpos vivos presentes no espetáculo da Banda Quilombo do Rio das Rãs apontam para o anseio de
ressignificação dos corpos negros. Conforme afirma Gomes (2017, 79), as marcas históricas presentes nesses
corpos os direcionam a assumir, por meio da performance, competências adquiridas em uma história de luta
e resistência. Essa história renova-se, cotidianamente, na tensão vivenciada por negros e negras, espremidos
entre as exigências de adaptar-se e a necessidade de superar o pensamento racista, que toma seus corpos
por exóticos, eróticos ou violentos. É, pois, como expressão do embate com o racismo e a exclusão, que a
Banda Quilombo do Rio das Rãs exibe coreografias destinadas a enaltecer valores culturais e sociais de base
identitária.
Assim como as danças e outros movimentos corporais, a performance da banda engloba um modo próprio
de entoar os versos das canções, o ritmo, o cenário, as roupas, o modo peculiar de apresentação e manuseio
dos instrumentos musicais. Discurso e performance se conjugam para divertir, mas também para apresentar
corpos negros, não como força de trabalho e peças (objetificadas). Eles são, naquele contexto, corpos
políticos, marcados por lutas, processos identitários e saberes emancipatórios, no sentido proposto por
Gomes (2017, 98). As simbologias negras estão presentes nos cabelos trançados, nas batas estampadas, nas
cores das roupas usadas por músicos e dançarinas. Para os membros do grupo, todos esses elementos estão
assentados em referências ancestrais. O espetáculo atualiza essas referências diante do público ao negar os
estereótipos racistas e confrontar, por meio da ressignificação da história viva e vivenciada pelos negros, o
cotidiano marcado pela exclusão.
É possível apontar para a similaridade entre as sicas executadas pela banda e o que se convencionou
chamar de samba-reggae. Em seus aspectos mais gerais a temática das canções e a batida dos instrumentos
percussivos o trabalho da banda converge com as observações de Schaeber (1997, 146-147) sobre as
características da música negra baiana, em especial das músicas produzidas pelos blocos afro de samba-
reggae, que associam as síncopes picas do reggae com os tambores de som mais grave, tocados
lentamente. Schaeber (1997, 145), em suas considerações sobre a formação da identidade negra no Brasil,
destaca a importância do movimento cultural protagonizado pelos blocos afro de Salvador. A estética dos
seus integrantes, de acordo com o autor, tematiza a herança africana. As músicas, cantadas e tocadas no
ritmo marcado pela percussão, reportam à capoeira angola e trazem referências aos movimentos políticos
de libertação panafricana e ao movimento negro norte-americano. Mas, para além das experiências
performativas, as ações desenvolvidas por esses blocos englobam atividades educativas que conferem aos
negros da periferia de Salvador a oportunidade de aprender e desenvolver novas competências. Além disso,
ações mais amplas, do ponto de vista organizativo, são assumidas pelas lideranças no intuito de criar as
condições de realização dos desfiles. A escolha e preparação de instrumentistas, cantores, apoio vocal,
repertório, corpo de dança, figurino, precedem os momentos de exibição pública, no carnaval, e duram todo
o ano. Referindo-se à importância da música negra no enfrentamento de problemas que atingem o sujeito
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social negro no Brasil. Schaeber (1997, 151) ressalta o trabalho da Banda Olodum, que se tornou referência
na luta política contra o racismo. Os caminhos trilhados pelo Olodum, com projetos sociais de cunho
educativo e enunciação de discursos de resistência, materializados em canções, despertam, ainda hoje, em
uma parcela dos jovens de Salvador, o interesse pela história dos povos africanos e dos negros no Brasil.
Arte e educação são, nos projetos do grupo, a base para o autorreconhecimento, a construção da identidade,
a socialização e a luta por melhoria das condições sociais desses jovens. Na capital da Bahia, nas últimas
décadas do século XX, outros blocos afro somaram-se a esse propósito, de sustentação da autoestima de
negros e negras, em contextos marcados pelo recrudescimento de preconceitos e exclusão, mas, também,
pela renovação das formas de enfrentamento ao racismo.
O projeto da Banda Quilombo do Rio das Rãs integra-se a essa mesma perspectiva, de favorecer o
autorreconhecimento e a melhoria das condições de vida das crianças e jovens negros, mediante a realização
de ações nos campos da educação e da arte. Professor Zezinho expõe, em depoimento que integra o DVD
da banda, gravado em 2014, a sua trajetória, desde a criação do grupo de capoeira para crianças da
comunidade até a sua atuação como compositor e líder da banda:
[...] da capoeira a gente se estendeu fazendo o teatro, colocando as crianças para aprender
música [...] levando as crianças pra a escola, incentivando as crianças diretamente pra
escola, aonde graças a Deus, em 2002, nós conseguimos trazer 16 alunos que não tinha
formado dentro do quilombo do Rio das Rãs, conseguimos formar 16 alunos no Ensino
Médio, e daí prá frente se estendeu também com os alunos fazendo já faculdade também.
E o quê que aconteceu, no teatro necessitava de músicas que é...tivesse assim mais ao
que com os trabalho afro que nós fazíamos e, às vezes, eu pegava músicas de Gil, de... esse
menino, de... Edson Gomes e outras pessoas e tal, mas foi necessário que eu começasse a
compor, e aí então foi quando eu comecei a compor minhas próprias músicas, e uma delas
a primeira música foi a Ganga Zumba, né, que é as minhas tranças, né, “vocês pagam pau
pela minhas tranças”. Essa música ela chama Identidade Física, essa música eu escrevi é...
prá que as pessoas entendessem como era resgate dos negros quando estavam
escravizados, na época de Ganga Zumba e Zumbi, [...] prá poder, por exemplo, tirar dos
canaviais da mão das pessoas que escravizavam [...]” (Transcrição de depoimento do
Professor Zezinho que integra o DVD da Banda Quilombo do Rio das Rãs, 2009, 3’32” a
6’23”)
Por outro lado, a conhecimento e assimilação de ritmos do samba-reggae concede ao líder da Banda
Quilombo do Rio das Rãs o papel de mediador entre a expressão artística da comunidade rural quilombola
e um movimento cultural mais amplo, ancorado em ritmos, símbolos e outros aspectos culturais associados
às experiências dos africanos da diáspora. Como pode ser observado no registro audiovisual do espetáculo,
esses ritmos possibilitam a sintonia com parte significativa dos espectadores, que acompanham, com os seus
próprios corpos, o som dos tambores e a cadência dos movimentos corporais de músicos e dançarinas. Como
avalia Zumthor (2014, 41-42), o ritmo de uma canção implica juntamente com sua melodia, linguagem e
com os gestos que o acompanham pulsações comuns entre quem produz, quem aprecia e, mesmo, os
outros que transitam em volta do espetáculo. O ritmo dilui a divisão entre plateia e palco porque produz
uma experiência única. Schaeber (1997, 146) indica, por sua vez, que “música e dança refletem uma
realidade social e oferecem os instrumentos com que os indivíduos estão continuamente negociando e
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renegociando hierarquias e espaços entre eles”. Efetivamente, no ritmo marcado pelos instrumentos e
expresso nos movimentos dos corpos dos múltiplos sujeitos da performance, define-se, no tempo e espaço
do espetáculo, uma escala hierárquica, na qual os integrantes da banda ocupam o patamar mais alto. No
plano intermediário, à frente do palco, as dançarinas atuam como condutoras, orientando os movimentos
corporais das pessoas da plateia. Essa hierarquia contraria a ordem social que, fora da performance, coloca
os negros quilombolas em condições de subalternidade e exclusão.
Realizada em um determinado contexto cultural e situacional, conforme avalia Zumthor (2014, 35), a
performance emerge do modo de ser e ver o mundo atrelado a tradições culturais cuja essencialidade se
mostra em cada detalhe do espetáculo. A apresentação da Banda Quilombo do Rio das Rãs foi inserida na
programação do Congresso Nacional da Pastoral da Juventude e do Meio Popular como atividade cultural,
supostamente voltada ao entretenimento. Considerando-se, entretanto, a natureza do evento e os agentes
sociais e políticos envolvidos na sua realização, é possível vislumbrar uma perspectiva de integração social
dos jovens quilombolas e de valoração positiva de suas experiências culturais, dos seus modos peculiares de
ser e ver o mundo e de suas tradições.
A Pastoral da Juventude e do Meio Popular (PJMP), aludida na faixa do evento que abrigou o espetáculo da
banda, foi criada em julho de 1978, em Recife-Pe, e abrigou, em seus quadros, jovens do meio popular e
remanescentes da antiga Juventude Operária Católica (JOC), que havia sido objeto de perseguição pelo
governo ditatorial-militar, instalado com o Golpe de 1964. Oliveira e Paiva situam o nascimento da PJMP no
contexto de recrudescimento das lutas sociais e políticas e de reorganização interna da Igreja Católica na
América Latina, no final da década de 70 e início da década de 80 do século XX:
O contexto inspirador para o nascimento da PJMP foi, por um lado, a realidade concreta
dos jovens e o ressurgimento das lutas sociais e políticas que acontecia no Brasil, e, por
outro, o contexto eclesial da Igreja Latino-Americana e do Regional NE II, que, sob a
orientação e o pastoreio de Dom Hélder Câmara, construía um modelo de organização
pastoral no qual o pobre era sujeito histórico de libertação. A PJMP nasceu bebendo no
seio desta Igreja e assumiu a visão de que a transformação da realidade é obra dos
oprimidos e de todas as pessoas de boa vontade que se comprometem com as lutas de
libertação (Oliveira e Paiva s.d.)
A Igreja Católica teve atuação marcante em diversos outros momentos da história do povo do Rio das Rãs.
Na década de 90 do século XX, por exemplo, concedeu suporte às famílias durante os conflitos pela posse
da terra. Em 2009, com a integração do grupo cultural quilombola à programação do 3º Congresso Nacional
da PJMP, ofertou ao idealizador e aos jovens da banda a oportunidade de falar da história da comunidade
por meio da arte. A inciativa indica uma percepção particular, sustentada pelo movimento pastoral, sobre o
papel da juventude nas transformações sociais, e se insere na lógica dos movimentos sociais
contemporâneos, que passam a contemplar plataformas identitárias, o princípio da diversidade e a demanda
por universalização dos Direitos Humanos.
Assim, com a mediação da Igreja Católica, em seu segmento progressista representado pelo movimento
pastoral, no ano de 2009, depois de séculos de exclusão e preconceito, os quilombolas de uma pequena
comunidade rural do município de Bom Jesus da Lapa foram convidados a ocupar, em condições de
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centralidade, o território da praça pública da cidade-sede. Durante o espetáculo, os jovens quilombolas das
Rãs assumiram o protagonismo na luta de resistência e por direitos, espelhados na história e memória da
sua comunidade e nas referências aos ancestrais africanos e nascidos no Brasil. A corporeidade da negra e
do negro que protagonizam a experiência performática reflete uma trajetória marcada por solidariedades e
desejos de liberdade.
A canção de abertura do DVD da Banda Quilombo do Rio das Rãs, intitulada “Nossa história é exótica para
vocês”, evoca a força, a sabedoria e a ginga dos negros. O discurso é dirigido aos brancos que desconhecem
as histórias dos negros e desprezam os seus saberes ancestrais:
Vocês não aceitam nossa cor
Somos origem do negro banto, gege ou nagô
A nossa história é exótica para vocês
Angola, Iorubá e os ‘sudanês’
Nosso rei, Ganga Zumba, montado no seu cavalo
Vendo o seu povo escravizado ele sorria
Transmitindo a esperança e alegria
O negro é a ciência africana
Sabedoria, conhecimento da baiana
Nossos cabelos trançados rastafári
A nossa ginga mostra nossa identidade
Nosso batuque, nossa música, nossas danças
Vocês querem nos imitar
Sei que vocês “pagam pau” pelas nossas tranças (três repetições)
Mesmo vocês sorrindo dos nossos cabelos
Aumenta nossas esperanças
Mesmo vocês sorrindo dos nossos sorrisos
Aumenta nossas esperanças
O público, majoritariamente composto por jovens, lotou a praça para receber os quilombolas e dançou ao
ritmo dos instrumentos, acompanhou os movimentos propostos pelas dançarinas e cantou, juntamente com
o vocalista, trechos de canções com referências positivas à África e aos africanos da Diáspora.
Como destaca Zumthor (2014, 42), a performance não somente se liga ao corpo, mas, também, ao espaço
por ele ocupado. O espaço da apresentação da Banda Quilombo do Rio das Rãs se prolonga mediante o uso
de caixas de som amplificadoras e de um telão que, situado ao lado do palco, expandia as condições de
visualização dos músicos e das dançarinas e projetava imagens do público mobilizado. No espaço da praça,
é simbólico o papel desempenhado pelas dançarinas, que ora se perfilam à frente do palco, de costas para
a banda, de frente para a plateia, ora se aproximam do público, apresentando-se de frente para o palco.
Transitando entre as duas formas, elas sugerem integração, reconhecimento, aceitação, valorização do
outro e renovam as esperanças consignadas no lema do congresso que abrigou a apresentação: “Em nossas
mãos um sonho em mutirão”.
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Pereira, Rita de Cássia Mendes; Santos, Elisabete Tâmara Galo dos. 2022. “Performance e sentido no DVD da Banda Quilombo do Rio das Rãs"
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O público responde às provocações dos ocupantes do palco mediante a mobilização dos seus próprios
conhecimentos e toma decisões imediatas, que acabam por interferir na performance. Na situação
performancial, a operação cognitiva aproxima aquele que contempla daquele que desempenha o ato
performativo no caso, o sujeito quilombola , materializado nos corpos negros de músicos e dançarinas.
Entendido por Zumthor (2014, 44) como lugar cênico e próprio da manifestação das intenções do autor, o
espaço da performance prolonga-se para além do palco e da praça. No caso em análise, outros espaços
devem ser considerados, como a cidade e a região, lugares nos quais se renova o processo de apropriação
dos discursos enunciados e das formas culturais que lhes dão existência.
3. O corpo negro em performatividade
Para Zumthor (2014, 41), na performance há sempre um elemento irredutível, materializado pela presença
de um corpo. Na apresentação da Banda Quilombo do Rio das Rãs, a corporeidade negra é reafirmada e
ganha lugar de destaque. Ela é o símbolo vivo da luta de resistência, com a qual ficou marcada a história de
negros e negros no Brasil. Munanga e Gomes (2016, 152) observam que aos africanos escravizados e seus
descendentes brasileiros nascidos sob o regime da escravidão era negado o domínio sobre o próprio corpo.
Corpos obrigados a trabalhar no ritmo ditado pelos senhores, na produção rural, na mineração, na
manutenção e cuidados na casa senhorial, como em outras atividades determinadas pelas necessidades da
classe dominante. Além de submetidos ao trabalho braçal, homens e mulheres escravizadas tinham seus
corpos violentados, eram obrigados a alimentar os filhos da casa grande e a atender desejos e fantasias
sexuais dos brancos. Para Gomes (2017, 79), essas condições conduziram, historicamente, à condenação do
corpo negro, à sua invisibilidade e à negação de saberes e valores positivos a ele associados. Mesmo com a
suposta universalização da educação, que viabilizou a presença, ainda que em condições de desigualdade,
de negros em ambientes escolares, os corpos negros continuaram sendo tratados como exóticos e suas
manifestações foram associadas a temas relacionados ao folclore, compreendido como uma cultura de
segunda categoria.
Como contraponto a esse processo de exclusão e aos preconceitos dele derivados, desde o tempo em que
africanos e afrodescendentes estavam submetidos à escravização, como afirmam Munanga e Gomes (2016,
152), o corpo negro ganhou importância como instrumento de afirmação de valores socioculturais e como
agente emancipador. A performance corporal de natureza emancipatória estava presente em ações de
combate, como em ritos religiosos de matriz africana e em outras expressões culturais indicativas de
sociabilidade entre os negros e de processos de construção identitária entre descendentes de africanos. A
abolição formal da escravidão não significou, para a maioria dos negros do Brasil, a chegada de um tempo
de paz e conquista de melhores condições de vida. Pelo contrário, em muitos aspectos, preservou e
aprofundou as desigualdades sociais e raciais e impôs a necessidade de renovação das lutas de resistência,
por inclusão e por terra de trabalho. Munanga e Gomes (2016, 107) lembram como a desigualdade étnico-
social, reafirmada no pós-abolição, é ainda mais cruel com as mulheres, submetidas às opressões patriarcais.
É para os negros e negras, portanto, fortemente marcados pelas memórias de sofrimento e de luta de seus
ancestrais, que falam os corpos dos integrantes da Banda Quilombo do Rio das Rãs. As imagens do
espetáculo, registradas em áudio e vídeo, revelam a predominância de jovens negros na plateia. Gomes
(2017, 75) avalia que o olhar dos jovens negros na atualidade é muito mais firme e afirmativo do que o olhar
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da geração que os antecedeu. Muitos encaram o “outro”, discutem questões fundamentais para o bem-viver
de suas coletividades e posicionam-se sobre questões raciais. Além disso, ainda de acordo com Gomes (2017,
75), a partir dos anos 2000 ocorreu uma politização e valoração positiva da estética negra. O corpo negro
passa a ocupar, aos poucos, o foco de estratégias de mercado, conquista espaços na mídia, em espaços
acadêmicos, sobretudo em cleos e associação de pesquisadores negros, e em instâncias de gestão estatal.
Trata-se de um movimento de ressignificação dos corpos negros, com nuances de acordo com a região, com
os embates e acomodações entre forças políticas e econômicas e com a própria capacidade organizativa dos
movimentos de resistência negra. As políticas de ações afirmativas, sobretudo aquelas implantadas e
potencializadas entre 2003 e 2016, durante os governos Lula-Dilma, impactaram sobre as relações de negros
e as negras com os seus próprios corpos e demandaram um novo olhar da sociedade brasileira sobre os
corpos negros. Como destaca Gomes (2017, 75-76), essas políticas contribuíram para a configuração de um
novo perfil de juventude negra, ciosa de ocupar lugares sociais que antes lhes eram negados.
Desde o final do século XX, as mulheres negras, em especial, conquistaram autonomia e independência, ao
projetarem-se no espaço público como protagonistas de suas próprias lutas, com apoio ou não de políticas
públicas. Sua atuação nas organizações e nos movimentos de resistência negra foram ressaltadas por
Munanga e Gomes (2016, 133). Os seus avanços conduzem à interconexão com paradigmas e plataformas
de luta dos movimentos feministas e impulsionam à definição do feminismo negro como um novo campo da
práxis social transformadora na contemporaneidade. Gomes (2017, 73) destaca a atuação de ativistas negras
na difusão de novos saberes e discursos políticos, identitários e estético-corpóreos. Essas ativistas interagem
com o Movimento Negro, questionando o machismo, desafiando os homens a mudar suas atitudes em
relação às mulheres, seja no plano do público, seja no plano das relações pessoais. Elas denunciam a
violência cotidiana contra as mulheres nos espaços sociais, dentro dos lares, no emprego, nos sindicatos e
nos partidos. Suas práticas visam a construção de um novo modelo de sociedade, marcado por relações de
igualdade de homens e mulheres negros e que abarque pessoas de diferentes condições sociais e étnicas.
É na esteira dessas transformações que ocorre a atuação performática das jovens moças quilombolas
durante a apresentação da Banda Quilombo do Rio das Rãs. No espetáculo, a projeção, em primeiro plano,
de mulheres negras é encenada, sobretudo, pelas dançarinas. A análise da performance lança luzes sobre
facetas da experiência feminina na comunidade e fora dela. A princípio, as danças executadas à frente do
palco parecem apontar para uma memória corporal acumulada no curso de vida de cada uma daquelas
jovens, mas também de outras mulheres que as antecederam. Para Zumthor (2014, 79), as lembranças
corporais que se acumulam ao longo da vida produzem um conhecimento virtual, que interfere na percepção
do real. Nessa perspectiva, a performance corporal das bailarinas, integradas ao tempo e ao lugar, orientadas
por uma finalidade e ressaltada pelo figurino, revelam marcas ancestrais e modificam a percepção pessoal
e do outro sobre as violências enfrentadas pelas mulheres negras e sobre as lutas e conquistas de seus
antepassados.
Na realidade, como destacam Munanga e Gomes (2016, 133), a despeito das transformações das condições
de vida e da ampliação do papel social das mulheres, a mulher negra continua vivendo uma situação marcada
pela dupla discriminação, gerada pelo machismo e pelo racismo. Em sua maioria, essas mulheres são
responsáveis por cuidar de suas casas, dos próprios filhos, e, muitas vezes, das casas e dos filhos de outras
mulheres. Essa realidade afeta, de forma particular, as condições de existência das mulheres do Rio das Rãs,
como salienta Oliveira Jr. (1996, 214), em seus estudos sobre a organização social inicial das famílias da
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comunidade. Os papéis exercidos pela grande maioria das mulheres, no seio da comunidade, envolvem,
além do trabalho doméstico, a organização e realização de práticas religiosas e a consecução de trabalhos
manuais, especialmente aqueles voltados para a produção de vestuário. Para as mulheres do Rio das Rãs, a
oficialização do direito à terra implicou em mudanças na percepção do próprio corpo e de seus papéis. Na
história mais recente da comunidade, sem desvencilhar-se das obrigações com o cuidado da casa e dos
filhos, algumas mulheres passaram a atuar como educadoras em escolas municipais da localidade. Além
disso, como destaca Dutra (2007, 68), apesar da forte predominância das relações patriarcais, ocorreu o
crescimento da participação feminina nas discussões coletivas e na direção da Cooperativa Agropastoril do
Quilombo do Rio das Rãs. Elas atuam, sobretudo, na organização de grupos de mulheres dedicadas aos
trabalhos artesanais, ao cultivo de hortaliças e ao trabalho com corte e costura.
Para Gomes (2017, 97), corpos negros emancipados se distinguem e se afirmam no espaço público como
expressão da liberdade. Nesse sentido, a performance das mulheres que atuam na Banda Quilombo do Rio
das Rãs, longe de reforçar a exotização e a folclorização dos corpos negros, expressam emancipação e
confiança. A presença dessas mulheres, ainda que em papéis secundários, aponta para uma racionalidade
estético-expressiva. O canto e a dança enunciam saberes, formas de sentir o mundo e formas de viver o
corpo no mundo. As habilidades demonstradas ao dançar e cantar (há uma mulher no grupo vocal de apoio)
indica a incorporação desses saberes nos processos identitários que envolvem mulheres negras. A música e
a dança são campos nos quais essas mulheres podem expressar a abrangência desses saberes em torno de
questões sociais múltiplas. Ritmo, letra, sons e performance corporal servem ao entretenimento e à
ludicidade, mas são, também, indicativos de representatividade e engajamento.
As dançarinas que acompanham a Banda Quilombo do Rio das Rãs manifestam o sentimento que envolve a
parcela da juventude negra, em sua maioria periférica, que ostenta o orgulho de suas raízes ancestrais por
meio de ritmos, cantos e danças. O corpo, manifestamente livre, que balança ao ritmo da voz e da percussão,
coloca em cena um novo olhar sobre o mundo e propõe uma nova forma de participação. Os passos
sincronizados remetem ao samba de roda e ao samba-reggae, evocados como símbolos da identidade negra.
que se ressaltar a diferença entre os movimentos das dançarinas do Rio das Rãs e as danças executadas
nos blocos afro de Salvador, onde a forte influência das religiões afro-brasileiras, a exemplo do candomblé,
se faz presente na linguagem corporal, nas roupas e nos penteados. Em comum, a exposição dos corpos
negros, que se colocam à mostra e repercutem uma estética carregada de elementos simbólicos e
identitários.
Historicamente, a invisibilidade, espontânea ou involuntária, dos negros escravizados no Brasil esteve
incorporada às estratégias de resistência. Carvalho (1996, 46-47) avalia que a sobrevivência de comunidades
negras no Brasil passava, muitas vezes, pela ausência total de comunicação e trocas com a sociedade dos
brancos. Tornar-se invisível, simbólica e socialmente, sair do foco, demandava, entretanto, a criação de
formas de organização e subsistência amparadas em tradições. A experiência coletiva de autoregulação e
emancipação da comunidade negra, enquanto corpo social, orienta a experiência individual e coletiva do
autorreconhecimento identitário, como explica Gomes em texto escrito em primeira pessoa, endereçado a
outras pessoas negras:
O corpo negro não se separa do sujeito. A discussão sobre regulação e emancipação do
corpo negro diz respeito a processos, vivências e saberes produzidos coletivamente. Isso
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não significa que estamos descartando o negro enquanto identidade pessoal, subjetividade
e individualidade. aqui o entendimento de que assim como “somos um corpo no
mundo”, somos sujeitos históricos e corpóreos no mundo. A identidade se constrói de
forma coletiva, por mais que se anuncie individual. (Gomes 2017, 94)
É o que se entrevê na canção “Eu sou negro”, que integra o DVD da Banda Quilombo do Rio das Rãs. O
discurso, enunciado em primeira pessoa, indica autoaceitação e conclama ao reconhecimento do papel dos
povos vindos da África (“raça negra, índia, sela lá quem for”), na edificação da riqueza do Brasil:
Eu sou negro, Eu sou negro, Eu sou negro
Eu não me escondo, tira a minha foto
Eu sou negro, minha pele é escura
A semente genética fez essa mistura
Eu sou negro porque também sou gente
Eu sou negro pela minha cultura
Vindo da África dos meus pertences
Raça negra, índia seja lá quem for
O importante é que me valorizo
E não tenho vergonha de ser o que sou (Repete)
A nossa história é bela de se ver
E é bem facinho de se aprender
É que na verdade muitos tenham medo
Do que de repente venha acontecer
Pois a riqueza do nosso país Brasil
Só Deus saiba a quem merecer
A contribuição do nosso povo negro e índio
Foi quem fez nosso Brasil crescer
A proposição do autor ganha abrangência nas performances coletivas que mobilizam corpos negros capazes
de renovar e dar materialidade a saberes, tradições, símbolos. As experiências sensoriais motivadas por
essas performances criam conexões entre o mundo e o universo íntimo dos indivíduos. Zumthor (2014, 84)
salienta a importância da audição, que oportuniza uma presença não somente espacial, mas interior,
peculiar. É por meio da audição que o corpo promove uma autocomunicação, na medida em que revela o
sujeito para si mesmo e, de uma maneira diferente, para o outro. Deste modo, na apresentação da Banda
Quilombo do Rio das Rãs, os agentes da performance, como o público que dela participa, reconstroem em
suas consciências, por meio das músicas que ouvem e cantam, saberes sobre a história do povo negro.
Os saberes são mobilizados e se reproduzem, durante o espetáculo, mediante a união entre discurso, música
e movimento. Tanto como a audição, a visão é importante para os que dele participam porque permite
captar os limites e os elementos constituintes do espaço partilhado, ainda que momentaneamente. Uma vez
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capturado pelas câmaras e armazenado em mídia, esse espaço é reapropriado por uma nova audncia, em
uma experiência real e tardia, que pode ou não ser conquistada para o projeto de transformação proposto
pelas letras, pelos sons e movimentos corporais. Assim, passado, presente e futuro se entrecruzam a todo
momento, desde a idealização da banda, passando pela realização do espetáculo, até a difusão do DVD em
meio a uma plateia cada vez mais difícil de precisar a natureza e a abrangência.
4. Voz, performance e subversão
Zumthor (2014, 81-82) destaca a importância da ação vocal para que as palavras ganhem força e sejam
verdadeiramente expressivas, fundamentais na formação dos efeitos de sentido. Na enunciação, as vozes
extrapolam os limites do corpo ao serem escutadas pelo outro. Os corpos que as vocalizam são
transportados pelos versos das canções, por exemplo. As vozes e corpos que se expressam por meio da
Banda Quilombo do Rio das Rãs não podem ser, nem no aspecto performativo, tampouco no discursivo,
dissociadas da história do africano escravizado no Brasil e da história e memória dos negros e negras que,
desde o período de dominação colonial até o presente, se mantêm em luta contra as desigualdades, por
inclusão e por direito à cidadania plena.
No espetáculo, as vozes encarregadas de enunciar as histórias de negros e renovar o sentido da luta são o
vocalista principal, Professor Zezinho, que ocupa a parte central da frente do palco, e o trio vocal de apoio,
cujas palavras sonoras reverberam entre os demais membros da banda e no meio do público. Os
componentes do trio vocal de apoio à voz principal ocupam a lateral esquerda do palco. Vestidos com roupas
similares, eles movimentam-se, na maior parte do tempo, em passos sincronizados, e, por vezes, interagem
com a plateia. Acompanhadas por movimentos corporais, mais ou menos expressivos, dos sujeitos que as
enunciam, as múltiplas vozes que se somam no canto dão efetividade ao efeito visado de ampliar a reflexão
e mobilização em torno de pautas identitárias e transformadoras das condições da população negra.
A voz sempre foi uma aliada do povo das Rãs. Ela era a base de transmissão da memória social, de práticas
e saberes. No processo que antecedeu a posse da terra, na ausência de documentação formal que
explicassem por que, como e em que momentos a comunidade se constituiu em um grupo identificado e
identificável, as vozes dos moradores mais velhos foram responsáveis por construir o panorama histórico
que poderia vir a justificar e legitimar a presença e permanência no território (Doria e Carvalho 1996, 130).
A coleta de relatos orais e a observação de práticas tradicionais viabilizaram o reconhecimento, por parte de
pesquisadores e pelo poder judiciário, do processo histórico que levou os primeiros moradores a se instalar
na localidade, desde os primeiros movimentos de ocupação e organização e, também, pelos momentos de
agudização dos conflitos com proprietários de terra.
Doria e Carvalho (1996, 138-139) afirmam que a definição dos traços simbólicos e políticos dos negros das
Rãs remonta ao período da conquista da terra quando começaram a se estabelecer a rede de relações
comunitárias e de parentesco com a qual os quilombolas puderem enfrentar os fazendeiros os que se diziam
donos da terra. A organização comunitária foi a base para o desenvolvimento de formas coletivas de
trabalho e de uso do solo e favoreceu o reconhecimento de traços culturais comuns. As vozes se
constituíram, desde então, como instrumentos eficazes para demarcar o tempo dos acontecimentos. A
plausibilidade aos relatos dos moradores foi aferida, pelos pesquisadores, mediante a observância de
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confluência de informações sobre fatos, datas e personagens. Posteriormente, esses elementos
constitutivos da memória social do grupo, documentados e organizados para fundamentar o processo de
reconhecimento do direito à terra, retornaram para o grupo, dotados de uma nova dimensão simbólica, que
associa passado, presente e futuro.
A voz é recurso de recuperação e construção de tradições, mas pode ser compreendida, também, como
instrumento de subversão. A enunciação vocal comporta um movimento de ruptura, como propõe Zumthor
(2014, 81): “a voz é uma subversão ou uma ruptura da clausura do corpo. Mas ela atravessa o limite do corpo
sem rompê-lo”. A voz desaloja o homem do seu corpo, sem perdê-lo como referência para seu pranto, graça
e canto. Por outro lado, no canto performático, como no espetáculo da Banda Quilombo do Rio das Rãs, a
voz que chega ao público em timbres e entonações é muito mais do que a expressão de sujeitos reduzidos a
experiências e desejos particulares. Pelo contrário, a performance vocal é o lugar do triunfo coletivo. Em
conjunto, vocalista, trio vocal de apoio e plateia fazem de suas vozes um canal de comunicação, no qual
transitam enunciados discursivos, formas e ações decorrentes da recepção coletiva. Vislumbra-se, como
propósito, a construção de um efeito unânime, como propõe Zumthor (2014, 56): “Os que cantam em
público têm a intenção de provocar um movimento de multidão. Diversos meios retóricos, rítmicos, musicais
contribuem para esse efeito unânime”.
Aberta a um público diverso e, portanto, a recepções divergentes, o ato performático não necessariamente
logra atingir a unanimidade pretendida. No caso específico da Banda Quilombo do Rio das Rãs, é prudente
considerar que uma parte do público presente ao espetáculo esteja imbuída de preconceitos e estereótipos
racistas, que levam a julgamentos e reações negativas frente à mensagem proposta pelos quilombolas. Mas
o que se observa, durante a análise do documento audiovisual que garantiu o registro do espetáculo, é que,
naquele contexto específico, naquele congresso, uma parte significativa do público, composta por jovens
que acederam ao convite da Pastoral da Juventude, reage positivamente aos discursos enunciados, de
intenção educativa e transformadora. As vozes do vocalista e do grupo de apoio vocal, secundadas pelo
movimento dos corpos emancipados, criativos e autônomos, apresentam-se como contraponto ao racismo
e convidam ao engajamento nas lutas de resistência. Como afirma Gomes (2017, 58), o saber, o sábio e a
sapiência renovam-se no ato de comunicação oral. Neste caso, a função do locutor é apresentar a vida social
quilombola como ela se realiza e situá-la dentro do jogo simbólico de interesses. A voz é, conforme salienta
Zumthor (2014, 83), “uma forma arquetípica, ligada para nós ao sentimento de sociabilidade”. O ato de
vocalizar é indicativo de que não estamos sozinhos, que podemos ser ouvidos; do mesmo modo que, ao
ouvir uma voz, temos a certeza de companhia.
um longo caminho a percorrer, no sentido da valorização da diversidade étnico-racial como componente
de uma suposta cultura nacional e da conquista da cidadania plena para negros e negras no Brasil.
Performances artísticas como a da Banda do Quilombo do Rio das Rãs são fundamentais porque viabilizam
o reconhecimento dos povos quilombolas como sujeitos dotados de saberes e porque possibilitam a difusão
de conhecimentos sobre suas histórias, seus modos de vida e suas expectativas. Quando a esses grupos é
permitido falar em primeira pessoa e performatizar sua cultura e quando o registro dessa performance é
reproduzido e difundido em espaços formais de educação, lacunas são preenchidas e novos elementos são
ofertados para a ressignificação da sua presença e de sua importância na História do Brasil.
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Presente nas escolas, o vídeo da banda pode ser tomado como contraponto aos materiais didáticos que,
frequentemente, tendem a reforçar imaginários sociais, que atribuem ao povo negro papeis secundários,
que reduzem em importância as manifestações do corpo negro, das vozes negras e da cultura negra. Como
salienta Gomes (2017, 95), a educação escolar é um dos principais meios de socialização de discursos
reguladores sobre o corpo negro, normalmente amparados em imagens e discursos que fortalecem ideais
de beleza associados à branquitude. Na escola, como na vida cotidiana, esforços de construção de uma
estética negra são objeto de desconstrução sistemática. É contra esse quadro de coisas que se insurgem as
intervenções artísticas, poéticas e políticas que associam criatividade e engajamento político, a exemplo do
espetáculo da Banda do Quilombo do Rio das Rãs.
O projeto de prensagem e distribuição do DVD da Banda Quilombo do Rio das Rãs, financiado pelo Governo
do Estado da Bahia, resultou na inserção, nas escolas e em outros espaços de cultura, de discursos contra o
racismo e a exclusão social. Pautados pela necessidade de desvendamento da desigualdade étnico-racial e
de afirmação da importância da história e memória de luta do povo negro, esses discursos se renovam no
ato de recepção de imagens e sons veiculados pelas mídias digitais. Desde que exibidas e assistidas por
jovens escolares e universitários, as mídias mobilizam disposições cognitivas e afetos em relação à história,
memória e cultura dos moradores das Rãs, em relação aos corpos negros, marcados por uma trajetória de
luta e sofrimento vivenciada no território mais estrito da zona rural de Bom Jesus da Lapa, mas, também,
em toda a Bahia e no Brasil.
Os novos públicos colocados diante das canções e das imagens da banda são inseridos na luta simbólica
entre as classes e frações de classe (Bourdieu 1989, 12). Essa luta se reproduz no microcosmo que delimita
a existência de cada novo sujeito exposto às mensagens da banda, mobilizada em seus esforços de difundir
uma peculiar visão de mundo e uma reflexão sobre a sua presença (e do outro) nesse mundo. A perspectiva
afirmativa de que os negros, os quilombolas em especial, têm o seu lugar na história, reforça processos de
reconhecimento identitário e projeta os seus agentes na cena pública, política, artística e acadêmica. Como
propõem Munanga e Gomes (2016, 166), ao produzir, divulgar e cantar, os jovens tomam consciência de si
mesmos, de sua condição e dos elementos integrantes de suas identidades”. A difusão dessa produção em
espaços públicos, por meio de espetáculos ou de recursos midiáticos, é, pois, essencial à conquista de novos
sujeitos para as lutas de resistência e contra a exclusão e a desigualdade. Conquista que se realiza por meio
da visualização e da audição do espetáculo, ofertado ao vivo ou mediado por recursos de reprodução. Vozes,
ritmos, discursos reverberam na mente de cada um, são apropriados de formas distintas e suscitam tomadas
de posição a partir de suas próprias experiências. Como afirma Zumthor (2014, 81), escutar outro indivíduo
é ouvir, no silêncio de si mesmo, sua voz que vem de outra parte. Por vezes, as vozes dos múltiplos sujeitos
se encontram em um único cantar, em uma atmosfera de compartilhamento de leituras do mundo e de
desejo.
A música é, no caso em análise, o principal elemento de mediação entre os quilombolas e outros sujeitos
sociais, que podem ou não se associar aos propósitos definidos por aqueles que ocupam o palco em condição
de centralidade. Por meio dos sujeitos performáticos, o povo das Rãs propõe o reconhecimento de seu lugar
na história e na sociedade, afirma a diferença entre o seu próprio lugar e o lugar do outro, reforça a
consciência de que é necessário estar em luta permanente contra a desigualdade, a exclusão e a injustiça
que afetam os negros no Brasil. A Banda Quilombo do Rio das Rãs figura, nos espaços e tempos de realização
e difusão do espetáculo, como porta-voz do povo quilombola que representa. Assemelha-se, desse ponto
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de vista, a outros grupos e movimentos musicais por meio dos quais os negros denunciam a opressão e o
racismo. Munanga e Gomes (2016, 166) destacam o trabalho musical desenvolvido pelos grupos de rap,
movimentos de organização e intervenção social que compreendem a articulação de várias linguagens
artísticas e a realização de atividades comunitárias por jovens negros de periferia de grandes cidades. Do
mesmo modo, ao cantar histórias de seu povo e propor transformações, por meio de vozes e corpos, a Banda
Quilombo do Rio das Rãs aproxima-se dos ltiplos movimentos de resistência negra operacionalizados pela
arte.
No interior do quilombo, como fora dele, o processo de autorreconhecimento e o engajamento em lutas
fundamentadas na admissão de que há desigualdades das relações étnico-raciais demandam a aproximação
dos jovens com tradições ancestrais. Ao cantar e dançar de acordo com o que se compreende como parte
da história e cultura africana e afrobrasileira, em associação com outras referências culturais do passado e
do presente, a Banda Quilombo do Rio das Rãs vivencia uma performance genuína, fruto das expectativas
do idealizador da banda e do espetáculo, das memórias e dos saberes vivenciados pela comunidade e, em
especial, dos jovens integrantes do grupo musical. O produto midiático comporta, desse modo, uma
dimensão autoral e biográfica, reforçada pela inclusão, no vídeo, de depoimentos do Professor Zezinho, mas,
ao mesmo tempo, promove o reconhecimento, para além da comunidade de origem, de múltiplos talentos,
que cantam, tocam, dançam ou atuam nos bastidores, na produção do espetáculo. De alguma maneira,
todos esses sujeitos estão envolvidos no debate proposto pelas letras das canções, pelo trabalho vocal, pela
performance, centrados na história e cultura do seu povo.
Os sujeitos performativos da Banda Quilombo do Rio das Rãs se afirmam na condição de herdeiros daqueles
que implantaram as primeiras formas de vida comunitária no território do Rio das Rãs e partilham saberes
adquiridos nas experiências cotidianas. Cultivam a expectativa de que suas vozes e corpos, carregados de
simbolismo e conhecimentos, vão chegar ao outro. Ao emergir no cenário artístico, cultural e político da
Região Oeste do Estado da Bahia, as vozes do quilombo contribuem para a edificação de uma nova
interpretação da trajetória do povo negro quilombola, ao negar os estereótipos a ele imputados, de
incapacidade, incompetência e inabilidade. A banda é uma janela de acesso a esse conhecimento sobre os
sujeitos quilombolas. Com a gravação e distribuição do DVD, esse conhecimento avança para novos espaços
físicos e sociais. Os espectadores da apresentação em praça pública e todos aqueles que têm acesso às
mídias digitais são incorporados, assim, a um processo de troca de saberes que pode contribuir para a
desconstrução de estereótipos e para um novo modo de apreensão da história dos negros do Brasil.
Ainda que tardiamente, após um longo processo de recuperação e ressignificação da história e cultura negra,
espectadores são mobilizados pela ideia de que a cultura negra e quilombola é fruto da criatividade e do
trabalho de sujeitos emancipados e em luta permanente. Ao longo de mais de 500 anos, como destacam
Munanga e Gomes (2016, 139), homens e mulheres negros tiveram que forjar formas de sobrevivência,
inventar maneiras de lidar com o corpo e lançar mão de variadas formas de expressão para resistir à opressão
e à discriminação. Inicialmente performavam em seus redutos, onde a maioria espectadora era constituída
por sujeitos também negros, frente aos quais protagonizavam as (re)apresentações da história coletiva e
serviam de fonte de inspiração para outros. Agora, no contexto da cultura-mundo (Lipovetsky e Serroy 2011,
149), emergem forças positivas capazes de reduzir ou mesmo anular os males que o mundo e, também, a
própria cultura produzem. É nesse novo tempo que discursos, gestos, movimentos, caracteres linguísticos e
elementos propriamente musicais presentes no espetáculo e no vídeo da Banda Quilombo do Rio das Rãs
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Pereira, Rita de Cássia Mendes; Santos, Elisabete Tâmara Galo dos. 2022. “Performance e sentido no DVD da Banda Quilombo do Rio das Rãs"
Per Musi no. 42, General Topics: 1-19. e224203. DOI 10.35699/2317-6377.2022.36936
apontam para a possibilidade de afirmação de saberes que tomam a voz e a corporeidade negra como forças
de mobilização. O reconhecimento desses saberes, de acordo com o que propõe Gomes (2017, 92),
possibilita o estabelecimento de novos tipos de relações, suscita o aparecimento de novas linguagens e está
na origem de uma ética fundada em uma nova ecologia de saberes relacionados ao corpo e à estética negra,
fundamentais à autoaceitação do negro e à sua inclusão social.
5. Considerações finais
A noção de performance designa o objeto da apreensão sensível inicial e totalizante do real, o qual está
amparado pela diferenciação sensorial e pela posse cognitiva. A performance se emoldura no tempo do
espetáculo, quando o enunciado é recebido e apropriado pelo público. Zumthor (2014, 79) afirma que os
sentidos se alinham ao conhecimento e por ele são utilizados na cadeia epistemológica sensação-percepção-
conhecimento-domínio do mundo. Esse princípio orienta as reflexões finais desse trabalho, sobre a
participação do público no espetáculo performático, tendo como exemplo o trabalho da Banda Quilombo
do Rio das Rãs. Em silêncio, inertes ou somando-se às vozes e movimentos dos membros da banda, os jovens
que participam do espetáculo durante a apresentação ao vivo ou na condição de espectador do deo
vivenciam novas experiências. Novos conhecimentos são ativados e a esse outro a quem falam os
idealizadores e realizadores da performance é ofertada a possibilidade de rever preconceitos e estereótipos
sobre o corpo negro emancipado e sobre as condições de existência dos povos quilombolas.
O trabalho da Banda Quilombo do Rio das Rãs filia-se à perspectiva de que a emancipação do indivíduo negro
e a transformação social e cultural que poderia garantir novas experiências de cidadania tem por
pressuposto o envolvimento em ações da comunidade negra organizada (Gomes 2017, 49). Mas essas ações
envolvem tensões e contradições. O modo como indivíduos e grupos representam o mundo e elaboram os
conhecimentos são dessemelhantes de acordo com a história de cada sujeito e de suas referências coletivas.
Os sujeitos que compõem a Banda Quilombo do Rio das Rãs tomam a música e a performance como
estratégias para pôr em evidência e atribuir sentidos às histórias que elegem como adequadas aos
propósitos de reforço aos processos identitários e engajamento de novos indivíduos na luta de resistência e
por conquistas sociais. A produção do espetáculo, pensado a partir desses propósitos, exigiu uma logística
de preparação que não pode ser desconsiderada. De acordo com Zumthor (2014, 45-46), os processos e as
pulsões são elementos constitutivos dos atos performativos e a reflexão sobre os acontecimentos que
antecedem a realização desses atos é fundamental à análise dos sentidos que lhe são intrínsecos. Ou seja, a
performance não pode ser distanciada das razões e das ações que podem auxiliar o seu entendimento. Em
uma situação específica de comunicação, essas motivações e ações têm o poder de modificar as percepções
sobre as tradições e os conhecimentos postos em evidência.
Ainda que a recepção não ocorra no espaço e no instante da performance, como é o caso dos espectadores
do DVD da Banda Quilombo do Rio das Rãs que só tiveram acesso ao espetáculo anos após a sua realização,
a percepção é garantida pela eficiência de transmissão de som e imagem, eficiência que está em estreita
correlação com o trabalho de edição e com o aproveitamento dos recursos tecnológicos disponíveis. A
produção de sentidos é potencializada e modificada pela associação entre a linguagem musical a outros
recursos, como depoimentos sobre a história das músicas, da banda e do grupo de origem. Enfim, é preciso
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Pereira, Rita de Cássia Mendes; Santos, Elisabete Tâmara Galo dos. 2022. “Performance e sentido no DVD da Banda Quilombo do Rio das Rãs"
Per Musi no. 42, General Topics: 1-19. e224203. DOI 10.35699/2317-6377.2022.36936
considerar que a movimentação comunicacional, nas diversas etapas de realização e difusão do espetáculo,
organiza-se no espaço social e é mediada por práticas educativas, políticas e, mesmo, performativas, que
extrapolam as intenções e o tempo de realização. Os movimentos de resistência negra, a Igreja, o Estado, as
escolas (agentes escolares, professores e alunos), assim como as universidades, têm o seu papel nesse
processo de reconhecimento de saberes próprios às comunidades quilombolas e de projeção de suas formas
de expressão, aqui exemplificadas pelo espetáculo performático da Banda Quilombo do Rio das Rãs.
6. Referências
Banda Quilombo do Rio das Rãs. 2009. Bom Jesus da Lapa: Secretaria de Cultura do Estado da Bahia. 1 DVD
(1h33 min.).
Bourdieu, Pierre. 1989. O Poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
Doria, Siglia Z. e Carvalho, José J. de. 1996. “A experiência comunitária. In O Quilombo do Rio das Rãs:
histórias, tradições, lutas, org. por José J. Carvalho, Siglia Z. Doria e Adolfo N. de Oliveira Jr, 115-153.
Salvador: EDUFBA.
Dutra, Nivaldo O. 2007. Liberdade é reconhecer que estamos no que é nosso: comunidades negras do Rio
das Rãs e da Brasileira - BA (1982-2004). Dissertação (Mestrado em História) Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo.
Gomes, Nilma L. 2017. O Movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação.
Petrópolis: Vozes.
Lipovetsky, Gilles e Serroy, Jean. 2011. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada. São
Paulo: Companhia das letras.
Martín-Barbero, Jesús. 1997. Dos meios às mediações. Comunicação, cultura e hegemonia. Rio de. Janeiro:
UFRJ
Munanga, Kabengele e Gomes, Nilma L. 2016. O negro no Brasil de hoje. São Paulo: Global.
Oliveira, Íris M. de e Paiva, Pe. Antônio M. de. s./d. História da PJMP. Disponível em:
http://www.pjmp.org/historia. Acesso em: 9 set. 2020.
Oliveira Jr, Adolfo N. de. 1996. “Reflexão antropológica e prática pericial.” In O quilombo do Rio das Rãs:
Histórias, tradições, lutas, org. por José J. de Carvalho, Siglia Z. Doria e Adolfo N. de Oliveira Jr, 152-
175. Salvador: EDUFBA.
Schaeber, Petra. 1997. “Música negra nos tempos de globalização: produção musical e management da
identidade étnica o caso do Olodum. In Ritmos em trânsito: sócio-antropologia da música baiana,
org. por Livio Sansone e Jocélio T. dos Santos. São Paulo: Dynamis.
Zumthor, Paul. 2014. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naify.