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DOI: 10.35699/2317-6377.2022.39909
eISSN 2317-6377
Sob as Musas, sobre a técnica:
uma investigação de possíveis interfaces entre pós-
humanismo e música
Marta Castello Branco
https://orcid.org/0000-0002-2926-0215
Universidade Federal de Juiz de Fora, Departamento de Música
martacastellobranco@yahoo.com.br
SCIENTIFIC ARTICLE
Submitted date: 27 may 2022
Final approval date: 12 jun 2022
Resumo: A atualidade de uma simbiose entre música e mídia, nosso objeto de estudo, se nos apresenta em estreita
relação com o aspecto humano da reflexão grega antiga sobre arte. Com o objetivo de investigar o papel desta relação
para o pensamento contemporâneo sobre possíveis “lugares” sociais da arte, relacionamos o termo μουσική τέχνη
(mousik tékhnē) à telemática, assim como descrita por Vilém Flusser, que significa a consideração da alteridade e do
altruísmo na fruição estética. Assim, nossa metodologia coloca a música frente à corrente reflexão pós-humanista,
que justamente discute a amplitude social, política e ecológica de um altruísmo coletivo, que contextualizamos aqui
no aspecto simbólico da música e de sua fruição. Nossas conclusões incluem a discussão sobre formas de se recorrer
a uma herança grega, os ecos do utilitarismo e a compreensão da arte como forma coletiva e altruísta de inter-relação
humana.
Palavras-chave: pós-humanismo; altruísmo; convivialidade; telemática; música.
TITLE: UNDER THE MUSES, ON TECHNICS: AN INVESTIGATION OF POSSIBLE INTERFACES BETWEEN POST-HUMANISM
AND MUSIC
Abstract: The actuality of a symbiosis between art and media, our object of study, presents itself in close relationship
with the human aspect of ancient Greek reflection on art. In order to investigate the role of this relationship for
contemporary understanding on possible social “places” of art, we relate the term μουσική τέχνη (mousik tékhnē) to
telematics, as described by Vilém Flusser, which means the consideration of otherness and altruism in aesthetic
fruition. Thus, our methodology places music in front of the current post-humanist reflection, that discusses the social,
political and ecological scope of a collective altruism, which we contextualize here in the symbolic aspect of music and
in its fruition. Our conclusions include the discussion about the resort to a Greek heritage, the echoes of utilitarianism
and the understanding of art as a collective and altruistic form of human interrelationship.
Keywords: post-humanism; altruism; conviviality; telematics; music.
Per Musi, no. 42, General Topics, e224216, 2022
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Branco, Marta Castello. 2022. “Sob as Musas, sobre a técnica: uma investigação de possíveis interfaces entre pós-humanismo e música
Per Musi no. 42, General Topics: 1-19. e224216. DOI 10.35699/2317-6377.2022.39909
Sob as Musas, sobre a técnica:
uma investigação de possíveis interfaces entre pós-humanismo
e música
Marta Castello Branco, Universidade Federal de Juiz de Fora, martacastellobranco@yahoo.com.br
1. Apresentação (Abre-se o cenário)
Conta-me, Musa, sobre o homem de tantas voltas
(Homer., Odiss., tradução nossa).
Se a discussão sobre uma simbiose entre arte e técnica é frequentemente relacionada ao desenvolvimento
tecnológico atual, apresentamos aqui a hipótese de que não a tecnologia, mas antes a correspondência entre
ambas, notadamente expressa na Grécia Antiga através do conceito μουσική τέχνη (mousik tékhnē),
1
fundamenta a imagem de sua expansão na contemporaneidade. A busca atual por um capítulo “tecnológico”
da arte, que necessariamente envolve a discussão sobre a legitimidade da própria noção iluminista de
história, traz à tona o desenraizamento de um pensar emancipatório, como aponta Dörte Schmidt:
Nesse universalismo (não apenas) estético, atrás do qual se encontra uma última
insistência na possibilidade de um pensar emancipatório e, portanto, sobre as realizações
do Iluminismo justamente não se tem uma reivindicação hegemônica, mas muito antes
e claramente, a universalidade inerente a seu desenraizamento (Schmidt 2017, 183).
A criação de um “lugar” que suporte transformações, novas direções e engajamentos não hegemônicos é
tematizada aqui pela potencialidade inter-relacional de μουσική τέχνη (mousik tékhnē), em sua elucidação
atual pela telemática, cunhada por Nora e Minc (1978) e reiterada por Vilém Flusser (2008), que
apresentamos como o nexo central de nossa investigação teórica. A recapitulação do conceito grego antigo
pela telemática, assim como seu papel na fundamentação de uma simbiose entre arte e técnica nos parece
apontar para uma possível expressão daquela “universalidade inerente ao desenraizamento”, apresentada
por Schmidt (2017, 183). A saber, através do fortalecimento de redes inter-relacionais entre humanos,
1
A transliteração do Grego Antigo segue as definições do acordo entre a ELOT (Hellenic Organization for
Standardization) e a ISO (International Organization for Standardization). A ferramenta de transliteração está
disponível em: https://www.lexilogos.com/keyboard/greek_conversion.htm (Acesso em 11 de abril de
2022).
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ecossistemas e demais seres. Estas redes apontam para uma possível direção construtiva do conceito grego
na atualidade, que é tornada possível pela relação com a técnica: o altruísmo. Neste ponto da investigação
relacionaremos a telemática aos estudos do pós-humanismo nas obras de Stengers e Prigogine (1997), Alain
Caillé (2000, 2008), Serge Latouche (2009, 2010) e Frank Adloff (2018a, 2018b), ressaltando sua relevância
para a investigação contemporânea sobre arte. No entanto, não a técnica (isoladamente) é capaz de
estabelecer redes inter-relacionais que falem por coletividades, mas justamente o remetimento músico’, no
sentido de mousik tékhnē, propicia esta possibilidade como apresentaremos no decorrer deste trabalho.
A representação de ideais gregos antigos no decorrer da história envolve grandes ciclos de apropriação e
reinvenção, como observa-se notadamente tanto no renascimento quanto no romantismo alemão. Dos
escritos de Hölderlin e Kleist às imagens de Caspar David Friedrich encenam-se fabricações do mundo grego.
Seu caráter exerce impacto direto sobre a música e sobre a arte de maneira geral. Ele serve tanto à
condenação de uma suposta assimetria musical de Arnold Schoenberg quanto à perfeição humana das
imagens “gregas” de Leni Riefenstahl, a eficiente propaganda do partido nacional-socialista alemão. Na
atualidade, a reflexão sobre representações do humano se difundem pela Paidéia (παιδεία), como na obra
de Werner Jaeger (2013) [1947], que é traduzida na América Latina em 1966 com o subtítulo: a formação do
homem grego. Esta formação é apresentada não apenas no sentido educacional, mas também como a
construção de um ideal de humanidade do homem grego antigo e uma apologia de seus valores. Na mesma
década de 1960, as reflexões sobre o humano se expressam declaradamente por meio da arte e se
associam às transformações políticas e sociais do ambiente artístico e cultural brasileiro (Alvorado 1999;
Duarte 1998). Soares ressalta a participação social e a amplitude artística geral notável na “existência de
uma efervescência significativa da produção nacional em diversos setores da arte” (2011, 1). A investigação
da obra de Cláudio Santoro realizada por Buarque e Buscacio confirma o impacto sobre a música do “giro
cultural, epistemológico e político que vinha sendo promovido nas ciências humanas e na filosofia” (2019,
217). No entanto, não apenas um sentido vanguardista caracteriza a recapitulação de mousik tékhnē na
atualidade, sobretudo se contextualizada na investigação artística. Antes, a relação humana com a técnica
nos parece centralizar seu questionamento, como apresentaremos a seguir.
2. Entre a Grécia Antiga e o mundo contemporâneo: a telemática
“Entre arte e técnica, eu não faria nenhuma diferenciação” — afirma Vilém Flusser (2008, 134),
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em uma de
suas últimas palestras na Universidade de Bochum. Tendo em vista a correspondência entre arte e técnica
parece se expandir para além dos limites de uma interseção, ela se constitui como objeto de estudo imediato
e necessário, especialmente na contemporaneidade. Neste sentido, apresentamos aqui a ideia de uma
simbiose entre arte e técnica, sendo a última uma expressão direta da ação humana e de suas mídias.
Esta “expansão inter-relacional” (de uma correspondência intrínseca e fundamental entre arte e técnica)
parece acompanhar a reflexão humana sobre arte desde, no mínimo, o que reconhecemos hoje como suas
origens no ocidente. Assim, ao investigar-se a relação entre arte e técnica, torna-se inevitável a retomada
não apenas etimológica, mas da utilização do termo grego antigo μουσική τέχνη (mousik tékhnē). A palavra
“música” (atual) tem sua origem na raiz grega (mousik), mas na antiguidade, o termo significava não uma
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“Zwischen Kunst und Technik würde ich keinen Unterschied machen” (Flusser 2008, 134). Todas as
traduções são dos autores do presente trabalho, exceto quando indicado diferentemente.
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arte exclusivamente sonora, mas a “arte das musas”, o que equivaleria aproximadamente àquilo que
entendemos por “arte” de uma forma geral, desde que considerada a influência das musas sobre a mesma.
Liddell e Scott definem μουσική τέχνη como “qualquer arte sobre a qual presidem as musas, especialmente
a poesia cantada com música” (1889, 520).
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Considerando o rigor rítmico da pronúncia grega antiga, Babich
afirma que a música não se distinguia da fala (2005, 173), e neste ponto é relevante notar que se trata aqui
de processos artísticos que se baseiam na transmissão oral, na declamação (ou no cantar) das grandes
epopeias, que antecedeu a linguagem escrita. A partir da referência às musas, Thrasybulos Georgiades,
ressalta a função adjetiva do termo música’, que significa “[algo] músico, relacionado às musas” (1958, 45)
4
“musical” ou “músico” é aquilo que se refere às musas. Cruzeiro (2021) reafirma a amplitude do termo.
Neste sentido, a referência do conceito grego antigo à arte “música” não se referia a uma “arte sonora”,
exclusivamente, mas igualmente incluía outras expressões artísticas, desde que fosse mantido o
remetimento às Musas. Esta mesma expansão faz com que a referência filológica ao termo atual “música”,
como substantivo, aponte para esta como um modelo para todas as artes. Segundo Vilém Flusser: “Este uso
original da palavra ‘música’ prova que a música no sentido atual do termo era tida como a arte ‘par
excéllence’, uma espécie de modelo de todas as artes” (Flusser 2017, 37-38). Tendo como fundamento esta
possibilidade de compreensão de μουσική τέχνη como um modelo para as artes, consideraremos, no
decorrer deste trabalho, as interseções entre o conceito grego e a arte (no sentido atual do termo), como
forma abrangente de expressões simbólicas.
Ainda que nos fundamentemos em uma relação entre técnica e arte, que se apresenta na origem
terminológica do conceito, uma reflexão contemporânea do remetimento às Musas se faz necessária ao
tomá-las como referência conceitual. Um fazer “músicodirecionava o olhar do homem grego para uma
correspondência imediata entre sua atuação técnica e a transcendência da mesma. Este fazer o colocava em
contato direto com uma dimensão distinta da técnica, ainda que tornada possível por esta. Assim, a
referência às Musas aponta diretamente para uma realização humana que vai além da atitude autocentrada
e consequentemente do utilitarismo, que caracteriza a atualidade de diversas relações humanas,
diretamente relacionadas à arte, ou não.
Esta referência às Musas inclui algo que vai além de si mesmo, o que Vilém Flusser expressa através do
conceito de telemática e da elucidação do prefixo ‘tele-’, que se nas palavras, ‘telescópio’, ‘telefone’ ou
‘televisão’ e significa aproximar o distante. Segundo Flusser: “Este é o primeiro presgio do que a telemática
significa: trazer o distante para bem perto” (2008, 248),
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o que se dá através da técnica. O termo ‘telemática’
foi cunhado por Simon Nora e Alain Minc (1978) a partir da junção das palavras ‘telecomunicação’ e
‘informática’, com a intenção de tematizar a rápida expansão de meios técnicos que se difundiam pela
sociedade e passavam a fazer parte da vida cotidiana da época (Closets 1978). Temas como a comunicação
à distância, a centralização de informações e seus impactos sobre os homens eram centrais a este primeiro
3
“Any art over which the Muses presided, esp. poetry sung to music” (Liddell; Scott 1889, 520). Também
disponível em:
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.04.0057%3Aentry%3D%236889
1&redirect=true (Acesso em 10 de abril de 2021).
4
“Es bedeutet ‘musisch’, ‘auf die Musen bezogen’” (Georgiades 1958, 45).
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“Das ist die erste Vorahnung dessen, was Telematik bedeutet: Ferne ganz nah bringen” (Flusser 2008, 248).
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Branco, Marta Castello. 2022. “Sob as Musas, sobre a técnica: uma investigação de possíveis interfaces entre pós-humanismo e música
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momento da telemática. o uso que Vilém Flusser faz do termo passa a enfocar a alteridade, sendo assim
de grande relevância à presente abordagem.
Considere-se a centralidade do remetimento entre Musas e Homens (especialmente através de suas obras)
para o contexto grego antigo, e teremos nos (re-)aproximado do entendimento da telemática como relação
distante tornada próxima. Esta aproximação chega a se constituir como o centro do conhecimento” (Flusser
2008, 251), na medida em que se ampliam os elos mútuos de responsabilidade entre o próximo e o
“distante” (aproximado pela tecnologia, em sua capacidade telemática, ou, para o homem grego antigo, a
aproximação das Musas).
Neste sentido, destacamos aqui a telemática, assim como apresentada por Flusser, como referência
imediata ao altruísmo, que por sua vez se opõe à dispersão e ao utilitarismo mencionados anteriormente.
Da mesma forma, μουσική τέχνη é a relação distante tornada próxima, que se configura como o centro do
conhecimento, que também na Grécia Antiga se relacionava diretamente à técnica e, consequentemente,
ao fenômeno atual que conhecemos como tecnologia. Isso se expressa através do termo τέχνη (tékhnē), que
significava, assim como a acepção atual da nossa palavra ‘técnica’: destreza, habilidade, ofício, capacidade,
forma ou maneira por meio da qual algo é obtido ou alcançado, sistema ou método de se fazer algo.
6
correspondência imediata entre técnica e fruição (é a técnica que permite a transmissão daquilo que foi
criado), por isso retoma-se aqui a função do termo τέχνη. Como objeto técnico, a obra de arte é uma
tentativa de transmissão, uma partilha simbólica tornada possível por meio da técnica, mas não apenas a
obra representa o encontro entre arte e técnica. A própria relação simbólica, que inclui a fruição artística, já
atesta o pertencimento mútuo entre arte e técnica.
Compreendemos aqui o altruísmo a partir da obra de Ivan Illich (1973), para quem o avanço de todo aparato
técnico não deveria fundamentar estruturais sociais, sob o preço de que estas se tornassem essencialmente
desiguais. Assim, a ação altruísta deveria atuar em definições precisas do avanço técnico, não o contrário. O
mesmo se aplica à posse dos meios tecnológicos, que não deve caber apenas a uma pequena fatia da
sociedade, mas precisa ser acessível a toda a comunidade. Na obra de Illich (1973), convivialidade e altruísmo
se relacionam diretamente, sendo que o último se constitui como ação deliberada indispensável à vida
comunitária.
Neste sentido, tratamos de apresentar aqui uma correspondência entre a “Arte das Musas” (μουσική τέχνη)
e a telemática. Ambas tornam próximo o distante, e evidenciam que no passado, assim como no presente,
a relação entre arte e técnica é direta e imediata, além de apontar para relações distintas dessa mesma
técnica. A compreensão da telemática como uma presentificação da “arte das musas” reitera o sentido da
atitude altruísta como alternativa ao autocentramento individual e coletivo, e atesta a centralidade de uma
forma de altruísmo própria à arte, que se transmite por intermédio de seu ciclo estético e da difusão de seus
símbolos. Com o intuito de explicitar a presença e a centralidade da ação “música” (referente às Musas) na
contemporaneidade, apresentaremos a seguir a dispersão causada pelo utilitarismo, que desafia a
6
Liddell, Henry George; Scott, Robert. A Greek-English Lexicon.
Disponível em:
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.04.0058%3Aentry%3Dte%2Fxn
h (Acesso em 11 de abril de 2021).
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Branco, Marta Castello. 2022. “Sob as Musas, sobre a técnica: uma investigação de possíveis interfaces entre pós-humanismo e música
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possibilidade altruísta de uma simbiose entre arte e técnica. Baseados nesta contextualização do conceito
grego antigo, poderemos, então, relacioná-lo ao aspecto simbólico da arte.
3. Utilitarismo e pós-humanismo
A contemporaneidade tem sido frequentemente caracterizada a partir de dois fundamentos básicos, como
-se na obra do sociólogo alemão, Frank Adloff: a primazia do pensamento e da ação utilitarista, logo
egoísta, e a absolutização da crença no poder quase sagrado do crescimento econômico” (2018b, 1).
7
Seu
pensamento é diretamente relacionado ao do francês Alain Caillé (2000, 2008), que se tornou um
considerável porta-voz da razão não-utilitária e, junto com Adloff (2018a, 2018b) e outros intelectuais de
diversas nacionalidades, formulou os dois Manifestos Convivialistas (Convivialist Manifesto 2014, 2020).
Historicamente, uma crítica ao utilitarismo remonta à década de 1920, quando Marcel Mauss (1990)
apresenta sua teoria do “presentear” (gift-giving) como elemento fundante das relações humanas. A troca
faz dos humanos aliados e estabelece a solidariedade entre eles. Consequentemente, ela permite o que
posteriormente foi compreendido como relação não utilitária.
Este mesmo paradigma utilitarista se relaciona diretamente à concepção do crescimento econômico como
uma necessidade absoluta e superior a inúmeros outros aspectos da vida humana, como apresenta o
economista Serge Latouche (2009, 2010) em sua proposta de “decrescimento econômico” (degrowth).
Latouche defende uma “prosperidade simples”, que reflete a redefinição da riqueza, como crítica ao
crescimento econômico. Seu pensamento fundamentou diversas outras alternativas à soberania financeira
da atualidade, como descreve Ina Praetorius (2015), a partir da formulação do movimento oposto: de uma
economia centrada no cuidado (care-centered economy).
Os dois fundamentos básicos descritos por Adloff também se relacionam diretamente ao fortalecimento de
um pensamento pós-humanista, especialmente a partir da obra de Stengers e Prigogine (1997), que alimenta
alternativas de fortalecimento às redes inter-relacionais das quais somos parte, que se constituem como o
que identificaríamos como nossa própria existência, mas que envolvem diversas outras criaturas, elementos
da necessidade de estabelecermos alianças honestas com eles, e de compreendermos a existência como
relação ou, nas palavras do antropólogo brasileiro Stelio Marras: existir como coexistir” (2018, 256).
Consequências da compreensão de nossas redes inter-relacionais despertaram interesse em diversas áreas
do conhecimento e fundamentam investigações acerca de inovações ecológicas responsáveis (Pansera 2011)
e da avaliação de tecnologias condizentes à inter-relacionalidade (Grunwald 2009).
Neste contexto, apresentamos em um trabalho anterior (Castello Branco 2020, 391-404) o conceito de
dispersão, que contextualiza o utilitarismo e sua expansão por meio de nossas redes relacionais, de forma
metodológica: como mecanismo de diagnóstico da desconsideração inter-relacional. A dispersão se
configura como movimentos de expansão centrífuga como o utilitarismo e o crescimento econômico
soberano que, ao forçarem uma ampliação de seu raio, atropelam incontáveis elos inter-relacionais. Como
consequência, a dispersão estabelece zonas de conflito entre dinâmicas hegemônicas e excludentes, gera
inter-relações predominantemente conflituosas e se estende até aspectos limítrofes da existência em
extremos”, como no caso da miséria e da violência. A dispersão também se relaciona com a tecnologia, ainda
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“[…] the primate of utilitarian, ergo selfish thinking and acting, and the absolutisation of the belief in the
almost holy power of economic growth” (Adloff 2018b, 1).
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Branco, Marta Castello. 2022. “Sob as Musas, sobre a técnica: uma investigação de possíveis interfaces entre pós-humanismo e música
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que esta não seja a causa fundamental de movimentos dispersos. Seu uso, direcionado por intenções
humanas, é capaz de acelerar a dispersão, que continua a ser motivada pela razão autocentrada e
autorreferente do utilitarismo e do crescimento econômico desenfreado. Em resumo, a dispersão significa
qualquer movimento que atropele as redes inter-relacionais em que existimos.
Se a consideração da técnica inclui a necessária observação de seus efeitos sociais, econômicos, políticos, e
ecológicos, que se veem ampliados na contemporaneidade pelo uso da tecnologia, no campo da arte
observa-se uma dispersão de símbolos, que também é transformada pelo desenvolvimento tecnológico
atual, ainda que mantenha particularidades a serem discutidas a seguir. Na figura 1, representamos três
imagens da relação entre arte e técnica: interseção, interface e simbiose. Em uma consideração preliminar
(e parcial), as dispersões e convergências comparadas entre arte e técnica pareceriam se constituir como
uma interseção entre ambas (FIG. 1, conjuntos à esquerda), no sentido de que ambas apresentariam apenas
alguns aspectos similares; mas, se a relação entre dispersões e convergências for tomada em consideração,
a imagem de uma “interseção” se ampliaria pela totalidade dos dois conjuntos, e, assim, se representaria
uma correspondência fundamental entre arte e técnica (FIG. 1, conjunto ao centro). Neste caso, ao invés de
uma interseção, teríamos uma interface. Mas ainda, se neste conjunto único composto por arte e técnica,
buscarmos por uma representação de dispersões e convergências, ela não se apresentaria isolada por claras
delimitações, como no primeiro conjunto da figura 1, mas se deixaria perceber de forma difusa, como em
“manchas” ao longo de todo o conjunto (FIG. 1, conjunto à direita), o que deixa transparecer a técnica como
método de atuação próprio à arte, como um aspecto de seu ciclo estético, incluindo processos de criação,
transmissão e fruição artística e se esta relação entre arte e técnica é factível, naturalmente questiona-se
sua aplicabilidade à ação das mídias, considerando novamente a inter-relação entre ambas. Se a
correspondência entre arte e técnica é extensa a ponto de que a referência a seus escopos seja condensada
em um único conceito, também a convergência não se configuraria pela delimitação de uma interseção,
como uma ilha, mas se apresentaria de forma estrutural, generalizante e, por isso, aparentemente difusa,
ainda que essencialmente simbiótica (Figura 1, conjunto à direita) a hipótese à qual nos dedicamos aqui.
Figura 1 Três versões da distinção e convergência entre arte e técnica.
Ainda que a dispersão possa ser amplamente observada em aspectos políticos, ecológicos, legais e
econômicos da sociedade, ela ganha um sentido distinto se refletida no campo da arte, o que se deve,
sobretudo, ao aspecto simbólico da fruição e transmissão expansiva (mas não dispersa) de símbolos, que
possibilita a reflexão sobre o fazer técnico (investigado pela telemática) e o altruísmo como forma deliberada
de se evitar o atropelamento pela dispersão.
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Branco, Marta Castello. 2022. “Sob as Musas, sobre a técnica: uma investigação de possíveis interfaces entre pós-humanismo e música
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4. Arte-símbolo
Como expressão simbólica, a arte se configura como um arcabouço de possibilidades de significado, como
uma extensa paleta combinatória, a partir da qual formas bastante específicas de diálogo são possíveis
enquanto outras, naturalmente, não o são. Uma primeira marca imediata de sua capacidade dialógica se
relaciona a este mesmo “simbolizar” ao qual a arte se dedica, que se configura como um jogo de revelações
concomitantes a encobrimentos, o que é próprio ao símbolo, que, ao mesmo, tempo viabiliza e limita a
expressão artística. Recapitulando a Obra Aberta de Eco (2015) [1968], lembramos que lidar com símbolos
significa constantemente um balanço entre o que se expressa e o que não se pode (ou deliberadamente não
se deseja) expressar, a fronteira entre o dito e o não dito. Isso se deve à natureza do símbolo, que é limitado,
ainda que sirva como ferramenta da expressão o símbolo mesmo é um objeto técnico. Neste sentido
pode-se afirmar que: “Toda técnica imita uma maravilhosa janela para o infinito” (Castello Branco 2005, 1).
Imita.
8
Ela não é uma janela, e não é o infinito, ainda que possa vir a expressar a ideia de ambos, além de se
constituir como uma forma de remetimento aos mesmos. E ao fazê-lo, fabrica também sua existência para
os homens tornando impossível o questionamento sobre sua “realidade”,que a mídia-símbolo compõe
o escopo largamente aceito como ‘real’.
Para tratar a relação entre expressão e não-expressão é indispensável nos voltarmos ao pensamento de
Heráclito, que, em seus fragmentos 35 e 32, em uma tradução e síntese de Heidegger, ressalta que: “[o]
surgimento favorece o encobrimento” (Heidegger 2002, 143). A expressão permite que algo surja, mas esse
mesmo surgir é a condição fundamental para que a revelação mesma permita o encobrimento. Neste
sentido, referindo-se ao fragmento 123 de Heráclito, Heidegger aponta para o nexo essencial entre
surgimento e declínio (2002, 121-137), sendo que ambos são essenciais um ao outro. Sem declínio não
surgimento, assim como o surgimento é condição essencial para o declínio.
Da mesma forma, a partir da consideração de dois movimentos distintos, ainda que indispensáveis, do
surgimento e do encobrimento, ou ainda do não dito que sustenta o que se pode dizer, Arjun Appadurai
(2018) caracteriza riscos distintos inerentes ao diálogo. O primeiro deles é o risco de não se ser
compreendido e o segundo forma com ele um paradoxo, pois justamente se refere à compreensão daquilo
que não se pretende revelar. O segundo risco do diálogo levanta a questão sobre motivos e intenções que
não se colocam abertamente em um diálogo, pois, para que este seja efetivo, é preciso que ele se baseie em
um fundamento comum e que envolva concordância deliberada. Neste ponto, é relevante notar que o autor
não se refere especificamente ao campo da arte, mas ao diálogo que se estabelece entre indivíduos e suas
comunidades. No entanto, os dois los complementares de Heráclito (igualmente paradoxais se
confrontados com o pensamento de Appadurai) permanecem intocados se refletidos no contexto do diálogo
social. no contexto da arte, a ideia de algo que não se pretende revelar precisa ser confrontada com o
símbolo mesmo, no sentido de que, muitas vezes, a não-revelação não se trata de um ato deliberado, mas
de uma condição do símbolo. Não se pode revelar algo pela limitação do símbolo, mas, neste sentido,
ressalta-se também o fato de que, em um diálogo entre indivíduos, muito do que é dito de forma não
deliberada se relaciona a uma limitação e, talvez por isso, o estudo do diálogo em contextos de desigualdade
social e do cosmopolitismo de classes inferiores tenha seu sentido multiplicado. Em ambos os casos, tanto
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Ainda que a ideia de imitação nos pareça de relevância atual ao se tratar da técnica, deve-se lembrar sua
presença na Antiguidade, a exemplo da República de Platão e da Poética de Aristóteles.
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Branco, Marta Castello. 2022. “Sob as Musas, sobre a técnica: uma investigação de possíveis interfaces entre pós-humanismo e música
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na arte, quanto no convívio social, trata-se aqui da discussão sobre a utopia de uma compreensão integral.
Nas palavras de Appadurai:
Mas o entendimento integral, em um nível de convicções primárias éticas, religiosas e
políticas, ainda carrega em si outro perigo. Este perigo é a necessidade de se eliminar
completamente as diferenças básicas. Porque, se nós desejamos estabelecer fundamentos
comuns em um nível de convicções básicas, as convicções básicas de alguém precisam
mudar. E isso significa, usualmente, que as convicções mais profundas de uma das partes
se tornam a referência do fundamento comum. Esta é a forma pela qual falsos
universalismos podem apagar verdadeiras diferenças (2018, 6).
9
E como a arte se configura como partilha e como diálogo, assim como outras formas de interação social, a
discussão sobre os riscos do diálogo apresentados por Appadurai, nos parece essencial à reflexão aqui
apresentada. A eliminação não refletida de diferenças básicas, assim como o estabelecimento de um falso
universalismo que surge através da aniquilação desta mesma diferença, significa no campo da arte a
dispersão de símbolos que igualmente expressam a dispersão de suas redes inter-relacionais.
Por um lado, o diálogo que se estabelece na expressão simbólica mantém e preserva um certo lugar de fala,
fazendo com que o equilíbrio entre o dito e o não dito, entre a revelação e o encobrimento, naturalmente
se estabeleçam no diálogo, o que se dá pela presença e pela relação com símbolos que propiciam e também
limitam a expressão, que revelam e ao mesmo tempo resguardam o que é dito. Por outro lado, a fragilidade
da arte frente à dispersão de seus símbolos é muito maior, já que essa é dificilmente notada e,
consequentemente, tematizada ou discutida. Por esse mesmo motivo, a arte tem, frequentemente, servido
como ferramenta mantenedora de sistemas dominantes, pois, ainda que se pareça mais possível romper
com seus parâmetros do que com qualquer referente identitário, a natureza de sua expressão é mais difícil
de ser diagnosticada. Dificilmente se poderiam envolver as mídias de uma expressão, neste questionamento,
sem incorrer no equívoco básico de um “programa nostálgico”, como apresentado por Sérgio Costa (2014)
acerca de viradas decoloniais, especialmente na América Latina. Quer dizer: ainda que se almeje um retorno
a expressões locais anteriores às colonizadas, depara-se com sua inexistência. Neste caso, retornamos à
questão da técnica como uso, não como luta contra seus meios e nem como dúvida acerca de suas mídias,
pois, ainda que se refira a uma mesma materialidade é possível pensar-se em expressões distintas daquela
mesma mídia. O uso as diferencia e gera o que reconhecemos como expressões distintas, o que
novamente aceitamos em relação à arte, mas o em relação a indivíduos ou grupos de indivíduos. Assim,
uma tendência essencialista que se manifesta na arte é distinta de seu aspecto social. A apresentação de
discursos opostos por um mesmo país, por exemplo, causa-lhe falta de credibilidade, enquanto, no campo
da arte, uma multiplicidade de discursos é relacionada à pluralidade da expressão e, até mesmo, ao “ato
criativo” (que corresponde à dimensão do uso da técnica). Esta flexibilidade, que propicia a multiplicidade
de expressões e de uso de suas mídias, faz com que a arte lide diretamente com uma dispersão simbólica
e, também, que apresente grande fragilidade frente a esta.
9
“But complete understanding at the level of primary ethical, religious or political convictions carries yet
another danger with it. That danger is the urge to eliminate basic differences altogether. For if we wish to
establish common grounds at the level of basic convictions, somebody’s basic convictions must change. And
this usually means that one party’s deepest convictions become the measure of common ground. This is the
way in which false universalisms can erase true differences” (Appadurai 2018, 6).
10
Branco, Marta Castello. 2022. “Sob as Musas, sobre a técnica: uma investigação de possíveis interfaces entre pós-humanismo e música
Per Musi no. 42, General Topics: 1-19. e224216. DOI 10.35699/2317-6377.2022.39909
Neste ponto, é importante notar que a dispersão na arte não tem um caráter único e negativo, que se
relacionaria à impossibilidade de sua expressão pela dificuldade de síntese de seus elementos. O desafio na
“decifragem” ou na combinação de seus símbolos é parte essencial dos processos de criação e fruição
artísticas. Uma dispersão simbólica que não impeça a correlação entre seus elementos permite a
variabilidade, a reutilização (ressignificação) e a recontextualização de mídias e de seus usos. Por isso, uma
dispersão social que conduza aos limites do planeta, como apresentado aqui em relação à globalização e a
seus efeitos, especialmente aqueles que colocam a vida humana em situações limítrofes, como a miséria e
a violência, talvez expressem uma esfera de dispersão que impede a correlação simbólica e,
consequentemente, impossibilita qualquer fluxo artístico. No entanto, imagens dos “extremos da vida” tem
sido matéria prima (temática) da arte desde suas primeiras expressões, assim como as conhecemos na
história ocidental. As primeiras epopeias gregas são marcadas pela representação do herói cujos feitos
atingem a fronteira daquilo que conhecemos como mundo. Em sua Odisséia de volta para casa, Ulisses
precisa passar pela violência extrema dos Ciclopes, ou mesmo pelo mundo dos mortos talvez o extremo
dos extremos para os homens (Homero 2018b). Antes disso, também na Ilíada (Homero 2018a) e em suas
situações limítrofes que trazem à tona os extremos do perigo, é preciso, a partir dele, revelar a coragem
humana como um outro extremo que devolve o equilíbrio à existência. No entanto, ainda que a arte
represente os extremos, tanto sua produção quanto sua fruição dependem de alguma estabilidade para que
se realizem em outras palavras: o enaltecimento de uma expressão artística nascida em cenário de miséria
humana não atesta o universalismo da arte, mas a covardia humana. No contexto da Ilíada e da Odisséia,
seu estabelecimento oral passou pela formação de inúmeros “homéridas” pessoas que se formavam na
arte de proclamar os feitos humanos em extensas epopeias. A difusão de tais obras imensas da oralidade
naturalmente dependia, também, de uma estrutura social que permitisse aos cidadãos voltarem-se para a
escuta das histórias, além da dispendiosa formação dos artistas.
Um empecilho real ao fluxo da arte é o o estabelecimento de inter-relações o que pode parecer
impossível em um cenário de criaturas sociais, humanas, mas não o é, como exemplificado anteriormente
acerca das relações entre técnica e dispersão. A arte se constrói concomitantemente ao estabelecimento de
“figurações” sociais, como aquelas propostas por Norbert Elias (1971), mas ainda mais em “figurações
conviviais”, como apresentadas por Sérgio Costa (2019, 17),
10
que elas se referem a todo um contexto
humano e não-humano, pois não prescindem das condições de seu entorno, das estruturas, da
disponibilidade material, temporal e da natureza das relações humanas, no caso da arte, especialmente em
relação a seus símbolos.
Na “figuração” de Elias (1971), os atores se constroem na interação e, portanto, se relacionam diretamente
à dimensão do uso da técnica, aqui descrito, que, em momentos específicos, passa a se referir à
transformação de sua materialidade. Como a interdependência é a condição fundamental para o
estabelecimento de figurações, e como elas estão em constante mudança, seu paralelo com fluxos artísticos
é imediato. Justamente o caráter fluido desta constante mudança, assim como sua necessidade, faz com que
a ideia de “fluxo artístico” melhor represente a teia produtiva e disseminadora, do que a ideia de “obras de
arte” prontas e acabadas. Mas também uma relação com a dimensão estética da arte se apresenta nas
figurações de Elias, já que elas são estabelecidas não apenas intelectualmente, mas a partir da totalidade
10
O conceito de ‘convivialidade’ tem sido extensamente investigado pelo Centro Mecila (The Maria Sibylla
Merian International Centre for Advanced Studies in the Humanities and Social Sciences. Conviviality-
Inequality in Latin America), em São Paulo, ao qual os autores do presente trabalho agradecem.
11
Branco, Marta Castello. 2022. “Sob as Musas, sobre a técnica: uma investigação de possíveis interfaces entre pós-humanismo e música
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dos seres, o que recorda a ciência estética nascente em seus primórdios no ocidente, como na obra de
Baumgarten (2007) [1750], que compreendia o senso estético como um análogo ao intelecto, uma
capacidade humana que excede, mas complementa os limites da racionalidade. Ainda segundo Elias,
estruturas e atores se tornam reais e têm efeitos práticos por intermédio da interação, e não previamente a
ela (1971). Este caráter fluido, que descreve muito bem a natureza dos fluxos na arte, é ressaltado por Costa,
em relação ao caráter convivial das figurações: “Figurações conviviais são, por definição, dinâmicas, o que
significa que elas são encontradas em um processo permanente de reconfiguração e transformação” (2019,
17).
11
A arte é um acontecimento exclusivo da interdependência, no sentido de que, sem redes relacionais, ela
inexiste. Portanto, seu estudo pode prover um modelo da natureza e dos limites das inter-relações em que
existimos, a partir de um ponto de vista simbólico. Ao lidar diretamente com símbolos, ao manipulá-los,
combiná-los, criá-los ou decodificá-los, o homem se transforma imediatamente em um ser ativo o que
significa ‘ativo na interdependência’. Tanto os indivíduos que propõem combinações simbólicas (criação),
quanto aqueles que as decodificam (fruição), se constituem como atores ativos de um coletivo inter-
relacional. E esta ação se refere, em ambos os casos, tanto na criação quanto na fruição, ao jogo de sintetizar
elementos que anteriormente se apresentavam de maneira dispersa. É precisamente neste ponto que a arte
pode contribuir para a investigação da dispersão relacionada à técnica, pois seu fazer consiste em uma
convergência e em formas de organização de elementos “dispersos” em redes passíveis de decodificação.
Na contemporaneidade, o volume de elementos, a velocidade de sua transformação e a dispersão de sua
disposição aumentam a densidade de um fluxo inter-relacional. A ação de se tornar ativo neste fluxo, que
permite tanto a fruição quanto a criação artística, retoma a centralidade daquele que experiencia a arte, do
“espectador”, não isoladamente, mas como coletividade. A atividade de velar e desvelar símbolos se
configura como o fluxo artístico em si, que é necessariamente ativo e coletivo, sob o ponto de vista de seus
atores, e que novamente reforça o entendimento de Heráclito aqui apresentado, em que velar e desvelar
aparecem em uma esfera da partilha, que tem seu surgimento (desvelar) implicado pelo próprio declínio
(velar). E também: se a arte fosse um espelho, nenhum fluxo cultural seria necessário, já que ele retira e
recoloca us, interpreta e reinterpreta elementos em cadeias de sínteses. É justamente a continuidade da
produção artística que acontece na fruição, que indica o processo como um fluxo. Se a arte fosse um espelho,
o fluxo inter-relacional não formaria tão extensas cadeias temporais e espaciais. Cada indivíduo
contemplaria sua própria imagem e cairíamos todos no lago: a arte de Narciso.
12
Coletivamente, os atores se configuram na própria interação, de forma individual por meio da inter-relação
experiencial entre senso estético e racionalidade e, de forma coletiva, constituindo mutuamente grupos
humanos, suas estruturas e seus indivíduos. Tanto por meio da interação de indivíduos, quanto de
estruturas, a ideia de uma fixidez identitária se impactada pelo caráter (necessariamente)
fenomenológico das inter-relações que se estabelecem em torno da arte. Em detrimento de entidades fixas,
as transformações são enfatizadas por processos e fluxos inter-relacionais e, neste sentido, o foco dado aos
fenômenos atua como uma forma de combate (indireto e pacífico) ao essencialismo.
11
“Convivial figurations are, by definition, dynamic, that is, they are found in a permanent process of
reconfiguration and transformation” (Costa 2019, 17).
12
Considere-se aqui o mito grego de Narciso e a narrativa da reflexão de sua imagem no "espelho" do lago.
12
Branco, Marta Castello. 2022. “Sob as Musas, sobre a técnica: uma investigação de possíveis interfaces entre pós-humanismo e música
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As consequências de um paradigma essencialista também se veem impactadas pela relação entre símbolo e
“ficção”, já que o ciclo estético de transmissão e decifragem simbólica estabelece a criação de novas cadeias
inter-relacionais novos entendimentos e, consequentemente, novas posturas. A relação entre ficção e
conhecimento tem sido investigada em profundidade pela área de estudos literários nas últimas décadas
(Bhabha 2004; Ette 2010). Como fluxo artístico e inter-relacional, a ficção diz respeito direto à experiência
humana, a elabora e transforma. Fala aos homens e sobre os homens. Segundo Ottmar Ette, “a literatura
conecta a ficção ao vivido” (2010, 3) e se constitui em “estruturas polilógicas do saber”, que sintetizam a
relação entre vida e conhecimento (Lebenswissen), proposta pelo autor, tanto no sentido da vida do
conhecimento, quanto do conhecimento da vida. A ficção é uma forma de “conhecimento vivo” na medida
em que se configura como plataforma de inter-relação simbólica, o que também se na obra de Homi
Bhabha, em um sentido distinto que, no entanto, recapitula a discussão aqui apresentada sobre a fruição
artística como alternativa ao essencialismo. Em Bhabha (2004), lê-se uma teoria da literatura como teoria
identitária, que justamente é capaz de desafiar o essencialismo por intermédio da ficção.
Estas mesmas palavras, que constituem a ‘ficção’, não são senão símbolos inter-relacionais, pois indicam
imagens que permanecem em uma mesma dimensão simbólica, e que são, portanto, narrativas sobre o
mundo, o homem, a realidade; justamente por criarem a realidade mesma. Também as imagens são
narrativas, e também reconstroem um mundo simbólico, fazendo com que o caráter ficcional da arte
contenha (e represente) seu valor simbólico. O símbolo possível à arte é o símbolo possível ao homem. O
fluxo de significar, ressignificar, encobrir e desvelar gera a ficção que corresponde ao caráter humano de
nossas próprias inter-relações. Curiosamente, essa ficção que se dá na expressão artística nos aproxima do
mundo, não o contrário, pois justamente nos faz ativos nele.
A dispersão é um processo inerente ao fluxo da arte. Este fluxo artístico, que envolve criação e transmissão,
faz do homem ativo. Mas nem toda forma de dispersão é constitutiva do fluxo da arte. A dispersão social,
amplificada pela tecnologia contemporânea, também tem atuações capazes de dificultar o fluxo artístico,
como no caso de atitudes autocentradas, que justamente dificultam o aspecto coletivo do processo artístico,
o que veremos a seguir, por meio da investigação do utilitarismo.
5. O Utilitarismo como contraponto ao símbolo
Ainda que a arte não necessariamente apresente o apelo imediato da “utilidade”, compreendida como
ferramenta social, política e econômica, ela tem sido frequentemente utilizada como propaganda, símbolo
político ou comercial, o que não é um fenômeno recente e nem se mostra como algo incomum ao longo da
história, como denunciam Horkheimer e Adorno (2002, 169-214). A arte é extremamente eficiente na
transmissão de ideologias, paradigmas e entendimentos, e o faz de forma silenciosa, praticamente
transparente, como se não houvesse intenção alguma envolvida e, justamente por isso, ela se configura
como excelente meio de propagação ideológica associando ideais ao próprio movimento de velar e
desvelar símbolos. Na contemporaneidade, observa-se um aspecto histórico da relação entre arte e
ideologia, que se baseia na insistência em valores iluministas, como descreve Schmidt (2017). Dentre esses
valores, destaca-se um entendimento universalista, que conduziu a processos de aniquilação cultural por
intermédio da suposta configuração da arte como expressão hegemônica europeia, e na música, por
exemplo, o ideal universalista continua a ser revelado como a esperança por uma “linguagem universal”
13
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(Schmidt 2008, 1), que dificulta sua investigação sob o pretexto de que ela seria intangível. Neste
sentido, estaria em um patamar superior de existência o que deixa de considerar o conhecimento como
expressão de um contexto que inclui seus atores sociais, suas mídias, etc., como afirma Mignolo (2000).
Curiosamente, a ideia de utilidade é substituída pela utilização, que pode se configurar como um processo
de apropriação social indispensável à existência da arte em grupos sociais diversos, mas, ao mesmo tempo,
coloca a questão sobre a possibilidade de manutenção do “inútil” que novamente se relaciona a um
entendimento da arte como expressão sublime, que estaria desconectada do contexto ou da sociedade que
a mantém, o que simplesmente não se observa, pois uma expressão artística independente de qualquer
sociedade não se sustentaria. Atualmente, a ideologia de uma “utilização” da arte é frequentemente
responsável pela propagação de ideais universalistas, que precisam ser tornados claros, que estes
colaboram com posturas essencialistas em relação à arte, sobretudo perante processos globalizadores, que
em uma esfera local, provocam reações de “protecionismo cultural”, necessariamente calcados na ilusão de
uma identidade única, concreta e imutável. Segundo Rüsen: Por esta lógica de formação identitária, é
constituída uma quebra fundamental e universal de civilizações” (2004, 120).
13
Enquanto os estudos
colonialistas e pós-colonialistas são capazes de evidenciar processos sociais resultantes de um momento
histórico e de suas ideologias (por exemplo: de exploração, dominação, e de suas consequências para os que
sofreram este processo), a arte parece não apenas mostrar resultados (obras e processos) do colonialismo,
tais como os movimentos nacionalistas na poesia e nas artes plásticas, mas continua a reproduzir parâmetros
de culturas-fonte por culturas-alvo, mesmo quando existe ampla difusão de uma visão crítica sobre esses
mesmos parâmetros (por exemplo: o século XIX europeu cuidou de expressar desilusão em relação a ideais
iluministas, que continuamos a apontar). Neste sentido, pode-se questionar se, em alguns casos, a arte
representaria um movimento de conversão no sentido oposto à dispersão causada pelo utilitarismo,
considerando que a ideia de uma utilidade é projetada sobre ela e que poderia vir a ser questionada e
transformada. No entanto, o que se observa (de novo historicamente, não só na atualidade) são cadeias de
reconhecimento, negação e novo reconhecimento de autores, obras, mídias e processos; todos
extensamente baseados em ideologias ou em suas revisões.
Neste ponto do argumento, é possível recuperar a reflexão sobre técnica apresentada anteriormente,
agora no contexto da arte. O objeto artístico não é em si um utensílio, uma ferramenta, uma máquina
(contemporaneamente também não seria um aparato tecnológico), mas se configura como um meio para
um fim e, por isso, ele é um objeto técnico. O fim ou a finalidade não equivalem à obra em si, mas à fruição
que se estabelece a seu redor ao fluxo artístico como um todo, que vai muito além da obra, envolve
inúmeros indivíduos, contextos e temporalidades distintas. Assim, em detrimento de qualquer tentativa de
des-ideologização, o questionamento a ser colocado se relaciona ao esclarecimento sobre ideologias,
paradigmas, representações ou metas que determinam um objeto, processo ou grupo artístico que,
consequentemente, são disseminadas por eles. Na contemporaneidade, o questionamento sobre a
manutenção de um universalismo da arte parece extremamente central, pois ela não só se configura como
uma ideologia a ser esclarecida, mas como metodologia que bloqueia a investigação da arte. Assim, torna-
se indispensável ressaltar o utilitarismo que se projeta sobre a arte como elemento fortalecedor do
individualismo (já que tudo o que é útil o é para mim, para meu trabalho, ou para o meu país o utilitarismo
13
“By this logic of identity-formation a fundamental and universal clash of civilizations is constituted” (Rüsen
2004, 120).
14
Branco, Marta Castello. 2022. “Sob as Musas, sobre a técnica: uma investigação de possíveis interfaces entre pós-humanismo e música
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é invariavelmente autorreferente), e esse mesmo utilitarismo forma com o individualismo um ciclo auto-
alimentador e, justamente por isso, se relaciona ao universalismo, que “universaliza” uma arte hegemônica
e essencialmente autorreferente.
No entanto, a dimensão do “útil” na arte apresenta frequentes desafios à atitude autorreferente. Tome-se
como breve exemplo, entre diversos outros, as 7000 Eichen, de Joseph Beyus (1982),
14
por meio da qual o
artista mobilizou a população de Kassel a plantar árvores em locais determinados da cidade, o que criou não
uma intervenção no cotidiano daquelas pessoas, quanto as inseriu em um processo criativo que envolve
a contínua transformação do objeto artístico, já que as árvores continuam a crescer em Kassel. Observe-se,
ainda, que mesmo tocando o “útil” em algumas esferas práticas, sobretudo ecológica, plantar árvores não
apresenta relação direta com um paradigma utilitarista de auto-centramento, individualismo, de
centramento econômico ou de dispersão simbólica.
Historicamente, a arte representa um legado passível de compreensão, partilha e continuidade em
sociedades distintas de sua produção. Urge manter em mente a dimensão do intercâmbio humano que se
expressa por intermédio de suas expressões. Sua dimensão é, no mínimo, global, planetária. E este não é um
fenômeno típico do século XXI e não se relaciona ao desenvolvimento da tecnologia, e sim à natureza do
processo de criação, que é 1) contínuo e 2) envolve grupos humanos na medida em que diz respeito a
características comuns a indivíduos. Também a arte do Egito Antigo, por exemplo, é global em sua
correspondência com ‘o mundo da época. Neste sentido, pode-se pensar uma relação entre arte e
“universalismo”, que é distinta de qualquer legado iluminista e que não se refere a nenhum tipo de
hegemonia cultural, pois não se refere a uma única cultura que deva ser disseminada por sua suposta
superioridade o que se expressa na esperança por um “pluriversalismo” discutido pelo segundo Manifesto
Convivialista (2020, 72). Este “caráter universal” da arte diz respeito à sua existência nômade sua
necessidade de propagação em cadeia em redes de recriação) e à sua capacidade de expressar
características básicas do ser humano, que, ao serem partilhadas, necessitam de algum tipo de nomadismo
para a continuidade da existência da expressão. Um mesmo elemento simbólico permite a recriação em
sentido tanto temporal quanto espacial: há o movimento, a arte “andarilha”, que sobrevive ao se reinventar.
E, ao caminhar, se irradia em movimento centrífugo, passando “passo a passo” a corresponder ao ‘mundo’
como um todo. Neste processo “transartístico” e “transcriacional”, países com histórico colonial
desempenham um papel central. Mas, neste mesmo processo, a transformação das expressões é inexorável
e essencial. E neste sentido, elas significam a quebra de qualquer resquício essencialista em relação à arte
e, ao fazê-lo, revelam também a extensa e fortemente propagada -compreensão sobre a relação entre
universalismo (iluminista) e arte. Pois a “arte universal” não se expressa por meio de uma mesma
compreensão de um mesmo objeto ou obra, mas em múltiplas reinterpretações que, em alguns casos,
incluem o esquecimento; enquanto, em outros, se relacionam à redescoberta de obras e à presentificação
de significados. Em diversas culturas, processos de transformação cultural ocorrem de forma tão rápida
que se fazem notar mesmo entre duas gerações. Um estudo do etnomusicólogo Bruno Nettl relata de forma
comparativa o conceito de “mudança musical” em quatro culturas distintas. Em todas elas, a mudança é
presente: suas condições e características variam de acordo com questões sociais e geracionais, e atestam
14
A obra 7000 Eichen, de Joseph Beyus, foi desenvolvida durante as edições da Documenta Kassel 7 e 8, nos
anos 1982 e 1987. Imagens e informações detalhadas, incluindo bibliografia secundária estão disponíveis
em: https://www.7000eichen.de/index.php?id=2 (Acesso em 15 de abril de 2022).
15
Branco, Marta Castello. 2022. “Sob as Musas, sobre a técnica: uma investigação de possíveis interfaces entre pós-humanismo e música
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o constante movimento dessas mesmas culturas (2006).
15
a obra do artista e ativista alemão Christoph
Schlingensief (2020) se propõe como forma de mudança frente a um paradigma colonialista ultrapassado,
16
que o reconhecimento de grupos sociais distintos multiplica as possibilidades do processo criativo e atua
como matéria-prima de questionamento e quebra de um universalismo hegemônico.
Em seu movimento expansivo, o nomadismo da arte sua necessidade de propagação em cadeia ou em
redes de recriação poderia ser comparável ao movimento globalizador intensificado pela prioridade do
crescimento econômico e pelo desenvolvimento tecnológico dos séculos XX e XXI. No entanto, a arte permite
a observação de modelos nômades, expansivos e globalizantes que são anteriores à primeira Revolução
Industrial, à concepção moderna do lucro e da internacionalização do prejuízo, o que permite a formulação
da hipótese de que a “universalização” da arte se relaciona ao modelo de fluxos humanos e processos
globalizadores, tais como os que se instituíram em torno da Rota da Seda, como apresentado anteriormente,
mas também em civilizações anteriores, como a Civilização Harappa, a Babilônia, Grécia e Egito antigos,
todas mencionadas aqui. Mas, mesmo que os modelos de troca econômica e de trocas artísticas estejam
diretamente relacionados, ou ainda que seu desenvolvimento desde a história antiga seja concomitante,
uma diferença fundamental entre eles: a expansão de movimentos de troca que se institui em torno da
expressão artística é um aspecto essencial e fundante desta, indispensável tanto para sua criação quanto
para sua fruição, enquanto a expansão do crescimento econômico é uma consequência de seu “localismo”.
O que permite a conclusão de que a globalização econômica não é nada além de um “localismo” em maior
escala mesmo que ele chegue a atingir uma dimensão planetária.
Neste sentido, o crescimento econômico ilimitado é uma conveniência (obviamente para aqueles que se
beneficiam deste), enquanto a arte é um mecanismo de convivialidade. Muito curiosamente, ambos se
movimentam de forma centrífuga e podem ser descritos como movimentos de “dispersão”. No entanto, no
caso da arte, nada se dispersa (literalmente), pois a expansão de seus elementos é inerente à partilha do
símbolo por diferentes sociedades e grupos humanos. Por isso, a arte deve ser considerada o verdadeiro
movimento globalizador de nossos tempos. Todas as outras (globalização tecnológica, econômica, política)
“unem” indivíduos de forma eletiva, pois partem de metas autocentradas, o que necessariamente significa
a exclusão de outros indivíduos, grupos e “minorias”, que, se forem honestamente levados em consideração,
são maiorias em diversos contextos e, se fossem somados, revelar-se-iam invariavelmente como parcela
majoritária da humanidade (de alguma forma todos somos imigrantes, ou assalariados, ou mulheres, ou
pobres, ou negros, ou suburbanos, ou homossexuais, etc.). Duas correntes estão muito claras em processos
atuais descritos como globalizadores: uma delas é o crescimento econômico, a outra é a exclusão. Nenhum
crescimento que almeja o infinito pode ser igualitário, na verdade, ele precisa dizer respeito a uma minoria,
e com o passar do tempo, precisa ser cada vez mais excludente, para que continue a crescer. Precisamente
neste sentido, o que chamamos usualmente de globalização é uma forma de dispersão. Interessantemente,
o que mais se dispersa é o humano, o que nos coloca frente a um forte paradoxo: aquilo que nos une também
nos exclui. Neste ponto, o elitismo de alguns gêneros artísticos não serve como argumento que defenda uma
arte excludente, pois, enquanto associações entre expressão artística, poder e ganho se destacam em uma
15
Tratam-se da sociedade indígena Blackfoot (Estados Unidos), da cultura carnática do Sul da Índia, da
sociedade persa (Irã) e de instituições acadêmicas ocidentais.
16
Em 2009, Christoph Schlingensief criou o Operndorf Afrika, um projeto social e, por isso, artístico, em
Burkina Faso, na África. Imagens e histórico disponíveis em: https://www.operndorf-afrika.com/en/ (Acesso
em 15 de abril de 2022).
16
Branco, Marta Castello. 2022. “Sob as Musas, sobre a técnica: uma investigação de possíveis interfaces entre pós-humanismo e música
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sociedade que sofre pela supervalorização do supérfluo (e é evidente que a arte é frequentemente associada
à concepção de um produto comercial em um mundo onde tudo está à venda), diversos grupos humanos
continuam a expandir suas vozes “de um a um”, empoderando a cultura oral e se constituindo ao mesmo
tempo como atos de resistência.
17
6. Conclusão
O termo grego antigo μουσική τέχνη (mousik tékhnē), que, em seu contexto original fazia referência à “Arte
às Musas”, aponta para uma correspondência direta entre arte e técnica, indicada pelo próprio radical
tékhnē (τέχνη), que inclui a esfera do fazer técnico e de seu uso, no sentido de mousik (μουσική), da
referência às Musas. O fazer artístico é “músico(como forma adjetiva), pois se relaciona às Musas. A
elucidação atual desta relação pela telemática “torna próximo o distante” nas palavras do filósofo das
mídias, Vilém Flusser (2008, 248), o que permite a presentificação desse “distante-músico” pela ação técnica
humana.
No entanto, na telemática, ainda segundo Flusser (2008), esta relação com o distante é essencialmente uma
relação de alteridade e, neste sentido, ao ser investigada no campo da arte, ela revela o caráter humano da
simbiose entre arte e técnica, na medida em que inclui a necessidade de se refletir a arte como crítica ao
utilitarismo que ameaça esta mesma alteridade. Não mais as Musas, mas as redes inter-relacionais humanas
são matéria de remetimento pela arte. Assim, compreendemos que a forma de se recorrer a uma herança
grega antiga é reconstruída, na atualidade, como investigação das inter-relações humanas, incluindo o
diagnóstico de, entre muitos, aspectos sociais, políticos, ecomicos e ecológicos.
Assim, contextualizamos a arte frente à literatura pós-humanista, desde o “presentear” (gift-giving) de
Mauss (1990), passando pela “prosperidade simples” de Serge Latouche (2009, 2010), o anti-utilitarismo de
Alain Caillé (2000, 2008), chegando aos manifestos convivialistas (2014, 2020), entre outros. Concluímos que
a simbiose entre arte e técnica pode vir a se expressar por meio da atitude altruísta, que é inerente ao ciclo
estético e, em sua dinâmica simbólica, serve como modelo inter-relacional para a sociedade como um todo.
Não como forma abstrata de convivialidade, mas justamente como expressão de uma zona de conflito frente
à luta contra os extremos do mundo como a desigualdade, a violência e a miséria. Concluímos que a arte
também lida com a dispersão humana de forma direta. A atitude altruísta que fundamenta a fruição artística
também fundamenta formas de convivialidade de nossa rede inter-relacional, que justamente vão de
encontro à atitude auto-centrada, e assim se opõe às suas consequências.
Concluímos que a relação entre arte e técnica é uma forma de expressão dos elos que mantém coesas as
redes de inter-relação nas quais existimos, e que ela é potencialmente capaz de se opor à dispersão ao se
constituir como forma simbólica de lidar com o “outro”, ou com o “distante”. A telemática é uma forma
contemporânea de “tornar próximo o distante”. Neste sentido, ela é μουσική τέχνη (mousik tékhnē).
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A edição de primeiro de fevereiro de 2016 do Jornal The Guardian relata a prática musical de refugiados
da Síria no campo de Zaatari, na Jordânia. A reportagem menciona a necessidade dos moradores em
compreender a narrativa do conflito por intermédio da música. Disponível em:
https://www.theguardian.com/music/musicblog/2016/feb/01/syrian-refugees-reveal-heartache-through-
music-recording-earth-zaatari (Acesso em 15 de abril de 2022).
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Sobretudo, a arte fornece poderoso modelo de inter-relação humana, social e simbólica, desde que
consideremos μουσική τέχνη uma simbiose entre arte e técnica, que pode vir a se constituir como
fundamento para que se discutam as relações entre arte e sociedade.
7. Referências
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