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DOI: 10.35699/2317-6377.2022.39994
eISSN 2317-6377
Ciclo Artístico-Reflexivo de Dupla Checagem (CARDC):
A proposição de uma ferramenta metodológica no campo da
Investigação Artística
Leonardo Vieira Feichas
https://orcid.org/0000-0002-5288-6873
Universidade Federal do Acre, Centro de Educação, Letras e Artes
leonardo.feichas@ufac.br
SCIENTIFIC ARTICLE
Submitted date: 02 jun 2022
Final approval date: 10 jul 2022
Resumo: Este artigo consiste em um estudo no campo da investigação artística que propõe a aplicação de uma
ferramenta metodológica específica para a construção de uma interpretação, baseada no estudo de obras do
compositor Flausino Valle (1894-1954). O foco consiste na observação do processo, com considerações de questões
técnicas e musicais e com o objetivo de sistematizar e propor uma ferramenta teórico-metodológica replicável. A partir
da Prática Artística Reflexiva (PAR), estruturada em um percurso com dois ciclos de coletas de dados, uso do diário
reflexivo e a análise através do método autoetnográfico buscou-se captar, descrever, analisar e, por fim, sistematizar,
o processo de aplicação de estratégias para o desenvolvimento da interpretação das obras em questão. A metodologia
escolhida para a construção da interpretação mostrou-se como colaborativa ao estímulo autorreflexivo e
autorregulatório e gerou uma ferramenta metodológica.
Palavras-chave: Prática instrumental como pesquisa; Autoetnografia; Estratégias de estudo; Investigação artística em
música.
TITLE: DOUBLE CHECK REFLECTIVE ARTISTIC CYCLE (CARDC): THE PROPOSITION OF A METHODOLOGICAL TOOL IN
THE FIELD OF ARTISTIC RESEARCH
Abstract: This article consists of a study in the field of artistic research that proposes the application of a specific
methodological tool for the construction of an interpretation, based on the study of works by the composer Flausino
Valle (1894-1954). The focus is on the observation of the process, with consideration of technical and musical issues
and with the aim of systematizing and proposing a replicable theoretical-methodological tool. From the Practice as
Research (PaR), structured in a path with two cycles of data collection, use of the reflective diary and the analysis
through the autoethnographic method, we sought to capture, describe, analyze and, finally, systematize, the process
application of strategies for the development of the interpretation of the works. The methodology chosen for the
construction of the interpretation proved to be collaborative to the self-reflexive and self-regulatory stimulus and
generated a methodological tool.
Keywords: Instrumental practice as research; Autoethnography; Study strategies; Artistic research in music.
Per Musi, no. 42, General Topics, e224218, 2022
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Feichas, Leonardo Vieira. 2022. “Ciclo Artístico-Reflexivo de Dupla Checagem (CARDC): A proposição de uma ferramenta metodológica no campo da
Investigação Artística” Per Musi no. 42, General Topics: 1-24. e224218. DOI 10.35699/2317-6377.2022.39994
Ciclo Artístico-Reflexivo de Dupla Checagem (CARDC):
A proposição de uma ferramenta metodológica no campo da
Investigação Artística
Leonardo Vieira Feichas, Universidade Federal do Acre, leonardo.feichas@ufac.br
1. Introdução - O conceito da Practice as Research (PaR)
Dentro do campo da Investigação artística, opta-se aqui pelo uso da Prática Artística como Pesquisa (Practice
as Research - PaR) como principal metodologia para obtenção de soluções interpretativas. A prática artística
reflexiva como pesquisa é um modelo, ainda em desenvolvimento, que leva em consideração o aspecto
prático do instrumentista e que abarca elementos objetivos e subjetivos da música. Além disso, aborda
elementos e fenômenos envolvidos no fazer musical através de uma linguagem compatível com o meio
artístico, propiciando um acesso privilegiado e direto a elementos do processo. Acredita-se que a Prática
Artística como metodologia possa colaborar na validação de procedimentos práticos aplicados ao estudo
instrumental. Nelson (2013, 8-9) define o conceito:
PaR envolve um projeto de pesquisa em que a prática é um método chave de investigação
e no qual, no que diz respeito às artes, a prática (escrita criativa, dança,
partitura/performance, teatro/performance, exibição visual, filme ou outra prática
cultural) é apresentada como evidência substancial de um inquérito de pesquisa. Em
contraste com aqueles céticos que desconsideram ou desprezam a PaR como insubstancial
e carente de rigor, percebo que o projeto PaR exige mais trabalho e uma gama mais ampla
de habilidades para se engajar em uma pesquisa multimodal do que processos de pesquisa
mais tradicionais e, quando bem-feitos, demonstram um rigor equivalente.
1
Segundo Luhmann (2017, 248) a PaR contribui para uma descrição própria do sistema artístico, envolvendo
questões acerca da identidade interna, que, no caso da arte, “‘reage’ a problemas internos de significado e
não se preocupa apenas em ilustrar teorias filosóficas gerais. [...] Na autodescrição, o sistema se torna seu
1
PaR involves a research project in wich practice is a key method of inquiry and where, in respect of the arts,
the practice (creative writing, dance, musical score/performance, theatre/performance, visual exhibition,
film or other cultural practice) is submitted as substantial evidence of a research inquiry. In contrast to those
skeptical scholars who dismiss, or look down upon, PaR as insubstantial and lacking in rigour, I recognize that
PaR project requires more labour and a broader range of skills to engage in a multi-mode research inquiry
than more traditional research processes and, when done well, demonstrate an equivalent rigour”. (Nelson
2013, 8-9)
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Feichas, Leonardo Vieira. 2022. “Ciclo Artístico-Reflexivo de Dupla Checagem (CARDC): A proposição de uma ferramenta metodológica no campo da
Investigação Artística” Per Musi no. 42, General Topics: 1-24. e224218. DOI 10.35699/2317-6377.2022.39994
próprio tema; reivindica uma identidade própria
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”. Bippus (2013, 122-124) enfatiza a importância da
experimentação na Prática como Pesquisa:
O experimento nas artes enfoca os meios de produção e representação; isto é, as práticas
estéticas são exploradas através dos próprios instrumentos ou das próprias tecnologias. Os
meios e objetos de experimentação são cores, formas, convenções, técnicas e tecnologias.
[...] a experimentação coloca em questão as relações entre diferentes técnicas
representacionais, respectivamente métodos e expressões.
3
Esse método de investigação tem como característica o fato de que o próprio performer deve se observar
nos momentos de insights, registrar esses momentos através dos diários e gravações, realizar a associação
entre a Teoria e a Prática (práxis), dentro de um processo interativo de fazer e refletir articulado (NELSON,
2013). Nelson (2013) define que a parte escrita das investigações segue três preceitos: 1. Localização do tipo
de linha seguida; 2. Estrutura conceitual; 3. Explicação do processo. A estrutura conceitual seria uma parte
mais tradicional, com discussões na voz passiva ou terceira pessoa. Durante o account process, que
consistiria em explicar o processo, Nelson sugere o uso da primeira pessoa, pois acredita que seria um
absurdo despersonalizar o si mesmo. O account process objetiva trazer o método prático para estrutura da
metodologia do PaR, com o intuito de documentar e dividir a abordagem que produziu tanto o trabalho
artístico quanto as descobertas investigativas.
Nelson adota o termo “escrita complementar” para o documento escrito da dissertação/tese, e que serve
para auxiliar na articulação e evidência da pesquisa. A escrita complementar abriria acesso ao processo de
construção aos não especialistas. O acesso a esses insights, a documentação e a escrita complementar são
os pilares para essa pesquisa. Ele também referencia a importância do embodied, que seria o conhecimento
internalizado, fruto de experiências passadas/acumuladas e questões biológicas, psicológicas e de contexto
cultural.
Outro conceito pilar desse método é o know how, ou seja, saber como e o que está a se buscar através de
reflexões críticas constantes. É possível, por exemplo, capturar momentos na documentação em que “as
coisas não estão funcionando” e quando começam a funcionar, identificar quando se tratava de um
momento de prática e quando de fato acontece um grande insight. O trabalho de López-Cano esem
consonância com esse pensamento de Nelson, trata-se do conhecimento que ele chama de “processual-
funcional” (López-Cano, 2015, 113), definido como “saber-fazer” ou “saber-como”: “É o conhecimento
baseado na experiência e manifestado na prática. Portanto, é o conhecimento em ação” (López-Cano 2015,
113, grifos do autor).
Sobre a importância da escrita, Correia et al. (2018, 14-15) explicam que tanto o trabalho do artista
(interessado na possibilidade) quanto o trabalho do pesquisador (interessado na atividade experimental)
2
“[…] the mode of operation by which systems generate their internal identity; in the case of art, it “reacts”
to internal problems of meaning and is not just concerned with illustrating general philosophical theories. […]
In self-description, the system becomes its own theme; it claims an identity of its own” (Luhmann, 2017, 248).
3
Experiment in the arts thus focuses on the media of production and representation; that is, aesthetic
practices are explored though the very instruments or technologies themselves. The means and objects of
experimentation are colours, forms, conventions, techniques, and technologies. […] experimentation brings
into question the relations between different representational techniques, respectively methods and
expressions.” (Bippus 2013, 122-124)
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Feichas, Leonardo Vieira. 2022. “Ciclo Artístico-Reflexivo de Dupla Checagem (CARDC): A proposição de uma ferramenta metodológica no campo da
Investigação Artística” Per Musi no. 42, General Topics: 1-24. e224218. DOI 10.35699/2317-6377.2022.39994
podem gerar produção de conhecimento, que pode ser verbalizado através da pesquisa acadêmica
tradicional ou materializado através de obras de arte ou performances, por exemplo a pertinência destas
seria clarificada através de documentos escritos. Para obter esse resultado, as atividades devem ser
observadas e descritas de forma sistemática. A justaposição dessas mídias (a obra material e a verbalização),
afirmam os autores, é o que é chamado de “pensamento material”. Portanto, a elaboração de um material
escrito (ou verbal, que não necessariamente deveria ser escrito) que reflita acerca da produção artística
em si, é, para esses autores citados, essencial para a produção e elucidação do conhecimento. Esses dois
processos, devem ser, portanto, feitos de forma sincronizada.
O fazer artístico musical assemelha-se, em vários aspectos, ao fazer de um cientista (Davidson 2004, 134
apud Benetti 2013, 160). As experimentações, estudos e hipóteses levantadas pelo cientista podem ser
associadas ao fazer musical do instrumentista: a escolha de um dedilhado, por exemplo, que possa resultar
em determinado fraseado é realizada através de tentativas (com reflexões e definições de critérios). Porém,
apenas a prática artística - sem o viés da crítica, da reflexão e do registro do processo - não se caracteriza
como uma investigação artística.
Essa proposta também é embasada por Borgdorff (2012, 53). Para esse autor, a prática artística caracteriza-
se como pesquisa caso tenha o objetivo de aumentar o conhecimento e compreensão por meio de uma
investigação original que consiste em e se dá através de objetos de arte e processos criativos. A pesquisa se
inicia por meio da elaboração de questões que fazem referência ao contexto da pesquisa e ao mundo da
arte:
Os pesquisadores empregam métodos experimentais e hermenêuticos que revelam e
articulam o conhecimento tácito que está localizado e incorporado em obras e processos
artísticos específicos. Os processos e resultados da pesquisa são documentados e
divulgados de uma maneira apropriada para a comunidade acadêmica e para o público
mais amplo
4
.
López-Cano apresenta uma leitura ontológica da pesquisa em interpretação musical para evidenciar as
diferenças entre quatro problemas nos quais se concentram as pesquisas em interpretação musical: práticas
interpretativas, processo criativo, exercício profissional e técnicas especializadas. A pesquisa em práticas
interpretativas envolve análises de técnicas instrumentais e estilos de interpretação (de músicas, épocas e
lugares). A pesquisa em processo criativo tem como objeto o processo de construção musical mais que os
resultados, com registros sobre o processo criativo e relatórios sobre os critérios de interpretação, “a
maneira como surgiram as ideias, a inspiração ou os materiais. [...] Mais uma vez trata-se de um
conhecimento orientado para a ação.” (López-Cano 2015, 75-76, grifos do autor).
A pesquisa voltada para o exercício profissional tem como foco a análise e proposições ao modo de difusão
e representação musicais os locais, rituais, a renovação da performance, aspectos cênicos e gestuais, entre
outros. Em resumo, tais trabalhos buscam melhorar a atividade profissional do músico, a formação de
público e renovação/reconstrução de repertórios. A pesquisa com foco em técnicas personalizadas possui
4
Researchers employ experimental and hermeneutic methods that reveal and articulate the tacit knowledge
that is situated and embodied in specific art works and artistic processes. Research processes and outcomes
are documented and disseminated in an appropriate manner to the research community and the wider
public. (Borgdorff 2012, 53)
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Feichas, Leonardo Vieira. 2022. “Ciclo Artístico-Reflexivo de Dupla Checagem (CARDC): A proposição de uma ferramenta metodológica no campo da
Investigação Artística” Per Musi no. 42, General Topics: 1-24. e224218. DOI 10.35699/2317-6377.2022.39994
trabalhos que visam desenvolver determinada “técnica ou metodologia no âmbito da interpretação, técnica
instrumental, higiene postural e experiência técnica” (LÓPEZ-CANO, 2015, 77) por meio de processos
individuais. Dentro desse campo, também se pode realizar uma autoetnografia para registro de evolução e
rendimento. Estes estudos particulares servem muito bem como modelo para novas experiências similares.
A médio prazo, a revisão crítica de vários trabalhos pode dar lugar a novos métodos desenvolvidos
exclusivamente para o meio musical” (López-Cano 2015, 77-78). Este trabalho envolve tanto a pesquisa com
foco no processo criativo como contém elementos das técnicas personalizadas.
2. Metodologia
2.1. A PaR associada ao diário reflexivo
Os métodos escolhidos que sistematizam a investigação neste artigo constituem a prática artística reflexiva
como forma de gerar produtos artísticos e intelectuais/conceituais com o uso de um diário reflexivo,
seguindo o modelo Gray & Malins, (2004) para coleta de dados, incluindo decisões e soluções interpretativas,
registros de insights, relato e direcionamento da investigação interpretativa e desenvolvimento artístico
reflexivo. O diário reflexivo é uma base de dados documental com planejamentos e reflexões sobre a prática
e, também, um meio de coleta de dados para futura análise. Ele deve conter diferentes tipos de informações
como documentação do trabalho em progresso
5
, pontos-chave de avaliação. Trata-se de um método
qualitativo:
Um aspecto fundamental dos métodos qualitativos é o registro dos dados obtidos nas
diferentes estratégias de pesquisa. Enquanto nos todos quantitativos o registro é muito
sistematizado e os dados são coletados por meio de formulários ou modelos estáveis, no
qualitativo sua coleção é mais complexa e menos padronizada. É por isso que é essencial
ter preparados diferentes recursos. O elemento substancial é o caderno de notas de
campo. É um registro físico ou digital, onde se vai compilando tudo o que é relacionado à
investigação. É dividido em diferentes seções ou classes de informação: notas de campo,
diário de campo, registros de campo e reflexões de campo.
6
(López-Cano, Rubén e San
Cristóbal 2014, 109)
O método do diário reflexivo nesta pesquisa serviu como base de coleta dados entre 15 de dezembro de
2017 até 23 de fevereiro de 2020. Ao longo período, foram realizadas anotações em momentos distintos:
1) Coleta de dados/sessões de experimentações em momentos “livres";
5
Como Laboratórios de experiências. Cada coleta referente a algum episódio, seja uma sessão de estudo,
seja anotações sobre a preparação de um recital e anotações pós-recital, direcionamentos, etc.
6
Un aspecto fundamental de los métodos todos cualitativos es el registro de los datos obtenidos en las
diferentes estrategias de investigacion. Mientras que en los metodos todos cuantitativos el registro es muy
sistematizado y los datos se recogen por medio de formularios o plantillas estables, en los cualitativos su
recoleccion es mas compleja y menos estandarizada. Por ello es fundamental tener preparados distintos
recursos. El elemento sustancial es el cuaderno de campo. Se trata de un registro fisico o digital, donde se va
recopilando todo lo relacionado con la investigación. Se divide en diferentes secciones o clases de
informaciones: notas de campo, diario de campo, registros de campo y reflexiones de campo”. (López-Cano
e San Cristóbal 2014, 109)
6
Feichas, Leonardo Vieira. 2022. “Ciclo Artístico-Reflexivo de Dupla Checagem (CARDC): A proposição de uma ferramenta metodológica no campo da
Investigação Artística” Per Musi no. 42, General Topics: 1-24. e224218. DOI 10.35699/2317-6377.2022.39994
2) Primeiro ciclo de Coleta de dados/sessões de experimentações;
3) Segundo ciclo de Coleta de dados/sessões de experimentações.
As funções e maneiras como o diário reflexivo foi usado nesses momentos serão analisados a seguir.
2.2. Análise dos diários reflexivos
7
por meio da autoetnografia
Propõe-se aqui uso da autoetnografia como método para a interpretação do diário reflexivo. A
autoetnografia, um método de pesquisa qualitativo, geralmente usado nas Ciências Sociais e Humanas
(principalmente na antropologia) é definido por Santos (2017, 219):
[...] o que caracteriza a especialidade do método autoetnográfico é o reconhecimento e a
inclusão da experiência do sujeito pesquisador tanto na definição do que será pesquisado
quanto no desenvolvimento da pesquisa (recursos como memória, autobiografia e
histórias de vida, por exemplo) e os fatores relacionais que surgem no decorrer da
investigação (a experiência de outros sujeitos, barreiras por existir uma maior ou menor
proximidade com o tema escolhido, etc.). Dito de outra maneira, o que se destaca nesse
método é a importncia da narrativa pessoal e das experiências dos sujeitos e autores das
pesquisas, o fato de pensar o papel político do autor em relação ao tema, a influência desse
autor nas escolhas e direcionamentos investigativos e seus possíveis avanços.
Segundo Lópes-Cano e San Cristóbal (2014, 167), a autoetnografia nas artes permite o enriquecimento do
conhecimento do processo de ação e criação artística:
Toda a autoetnografia nos permite nos conhecermos como membro de uma cultura,
identificando como reagimos ou atuamos em nome dela. O que se busca através da
autoetnografia é conhecer essa cultura. A autoetnografia artística nos permite conhecer e
que os outros conheçam como fazemos, como reagimos, como atuamos no contexto da
ação-criação artística e em torno das perguntas de investigação do nosso projeto. É um
processo de geração de informações emergentes, técnicas comuns ou novas e em geral,
com tudo o que fazemos quando fazemos arte. A autoetnografia nos ajuda a conhecer
7
I Diário Reflexivo disponível em:
https://drive.google.com/file/d/1Y1L3LpDbAKqD9Gt106O3Q0bnd7ObE5De/view?us=sharing. Acesso em
30/05/2022.
II Diário Reflexivo (primeira metade) disponível em:
https://drive.google.com/file/d/1ShhGRl4TNDMq13rf2oeu09XPNFFdCq5-/view?usp=sharing. Acesso em
30/05/2022
II Diário Reflexivo (segunda metade) disponível em:
https://drive.google.com/file/d/1PWQ9HJ4EQWla0lO17ejYD0aQZ1wfdMBl/view?usp=sharing. Acesso em
30/05/2022.
III Diário Reflexivo disponível em:
https://drive.google.com/file/d/1Hwh6YzBjfEVfVVdIToEPE0ejXUxOFdRw/view?usp=sharing.
Acesso em 30/05/2022
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Feichas, Leonardo Vieira. 2022. “Ciclo Artístico-Reflexivo de Dupla Checagem (CARDC): A proposição de uma ferramenta metodológica no campo da
Investigação Artística” Per Musi no. 42, General Topics: 1-24. e224218. DOI 10.35699/2317-6377.2022.39994
como fazemos, como queremos fazer, como necessitamos fazer para responder as
perguntas e realizar as tarefas de investigação e criação.
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Benetti (2017, 163) explica que o ‘gesto’ autoetnográfico é um subgênero da etnografia, diferenciando-se
desta pelo fato de o observador ser o objeto de investigação, ao mesmo tempo em que valoriza as
experiências afetivas e cognitivas do pesquisador/pesquisado.
Com o uso da autoetnografia busca-se analisar e sistematizar as memórias através da análise do diário
reflexivo. Trata-se de uma análise da documentação das transformações vividas pelo pesquisador e são
vistas como resultado da realização do trabalho de campo. É uma fonte reflexiva de perguntas e
comparações. Esse método possibilita realizar uma crítica mais contundente; fazer contribuições e/ou
estender a pesquisa e teórica existente; escrever para conectar com o mundo interno do pesquisador;
estimular o debate da Prática como Pesquisa; entender as emoções; tornar a pesquisa acessível a diversos
públicos e; registrar contato exterior com a pesquisa durante o processo (recitais prévios como laboratórios
de experiências).
Diversas universidades, congressos e publicações mostram o potencial desta linha nos últimos anos no
campo musical. O trabalho de Benetti (2013, 2017) mostra-se como uma investigação que propõe
sistematizar um modelo prático de estudo para a expressividade com o uso da autoetnografia aliado a um
diário reflexivo. Sobre essa associação entre o diário e a metodologia autoetnográfica, Benetti (2013, 155)
afirma:
O diário reflexivo uma base de dados documental que permite registrar reflexões sobre
o planejamento e autoavaliação da prática constitui uma ferramenta de coleta de dados
como base da autoetnografia, e esta, um mecanismo de análise e validação científica do
diário reflexivo. A compatibilidade entre os dois é favorecida pela presença mútua dos
componentes autoreflexivos, analíticos, observacional, pessoal, experiencial (afetivo e
cognitivo) e qualitativo. Além disso, a estrutura aberta que caracteriza do diário reflexivo
é compatível com a necessidade autoetnográfica de registrar o fenômeno de forma ampla
e adequada às suas próprias necessidades e facetas. [...] Além disso, o diário reflexivo e a
autoetnografia permitem complementar a abordagem reflexiva de forma a conciliar a
abordagem reflexiva de forma a conciliar as modalidades da prática instrumental e
pesquisa científica na medida em que fornecem, respectivamente, ferramentas
experimentais e analíticas coadjuvantes ao processo envolvido.
8
Toda la autoetnografa nos permite conocernos como miembros de una cultura, identificando cmo
reaccionamos o actuamos en nombre de ella. Lo que se busca a travs de la autoetnografa, es conocer esa
cultura. La autoetnografa artstica nos permite conocernos y que otros conozcan cmo hacemos, cmo
reaccionamos, cmo actuamos en el contexto de la accin-creacin artstica y en torno a las preguntas de
investigacin de nuestro proyecto. Es un proceso de generacin de informacin relacionada con nuestras
rutinas o despliegues originales, estrategias habituales o emergentes, tcnicas comunes o novedosas y en
general, con todo lo que hacemos cuando hacemos arte. La autoetnografa nos ayuda a conocer cmo
hacemos, cmo lo queremos hacer, cmo lo necesitamos hacer para lograr responder las preguntas y realizar
las tareas de investigacin y creacin. (Lópes-Cano e San Cristóbal 2014, 167)
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Feichas, Leonardo Vieira. 2022. “Ciclo Artístico-Reflexivo de Dupla Checagem (CARDC): A proposição de uma ferramenta metodológica no campo da
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Neste tipo de investigação, acredita-se que o grande desafio consiste no fato de que o performer também é
o pesquisador (performer/pesquisador). No período de coleta de dados, é o artista/performer que relata a
sua prática, o fazer artístico, suas experimentações, soluções e decisões. No período de análise dos dados
colhidos, o artista é posto de lado (na medida do possível) e o pesquisador assume a atividade, e, à luz de
uma metodologia definida, deverá analisar, interpretar e propor discussões e considerações.
Ao optar pelo uso destas metodologias combinadas, que se caracterizam pela constante autorreflexão, pela
autocrítica, pelo processo de tomada de sentido através da autoregulação e pelo processo de construção da
performance com auto-aprendizado escrita em primeira pessoa, espera-se gerar questionamentos que
impulsionem a investigação e propostas de soluções técnico-musicais referentes às obras em questão, e para
além disso, espera-se colaborar para um entendimento de estratégias de estudos sistematizados e
protocolados que possam vir a contribuir com a literatura da Prática como Pesquisa.
Ainda a respeito da PaR, mas ao se referir ao ganho de espaço da pesquisa qualitativa nos últimos anos,
Little (2011) afirma que a pesquisa qualitativa tem ganhado legitimidade, dado que por meio dela se pode
buscar entender a forma na qual se vive, como se dá sentido ao mundo, e que é necessária uma abordagem
pela qual se leve em consideração a presença e o papel do pesquisador no processo de pesquisa (Little, 2011,
22). Ao salientar a importância e pertinência de trabalhos dessa natureza, Bridgens (2007) considera que
será somente através de estudos autoetnográficos, autobiográficos ou narrativos que algumas experiências
ignoradas, distorcidas ou silenciadas pelo desconforto que causam podem ser conhecidas e compreendidas.
Para resumir as etapas desse experimento proposto, apresentamos aqui um esquema geral das etapas
principais do processo:
Figura 1: Esquema geral do processo / experimento proposto
A partir desta exposição do conceito desta investigação, realizo algumas análises dos diários reflexivos
através da autoetnografia, com utilização da primeira pessoa do singular, como é inerente a esse método. A
escrita nos diários tem como algumas de suas características a coleta de informações com uma linguagem
própria, muitas vezes sem o rigor de um raciocínio lógico, sem estar em um ambiente suficientemente
tranquilo para imediatamente conectar as ideias.
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2.3. A Coleta: Os ‘Ciclos de Coleta de dados/sessões de experimentações’ e os ‘momentos de
Coleta de dados/sessões de experimentações em momentos livres’
Os momentos de coleta da prática artística diária (o estudo instrumental aplicado ao entendimento e
construção do repertório em questão), estruturada e pré-definida, funciona como um laboratório de
experiências que gera informações coletadas pelo diário reflexivo e que são posteriormente analisadas
através do método autoetnográfico. As coletas aconteceram de 2017 até 2020 da seguinte maneira:
Figura 2: Diagrama com o esquema e períodos dos diferentes períodos de coletas
As coletas de dados/sessões de experimentações tiveram objetivos distintos:
- Coleta de dados/sessões de experimentações em momentos livres: momentos de significado relevante
para a investigação, como as aulas de violino no primeiro ano de doutoramento, experimentações, fatos
marcantes, etc. Acredita-se que esta categoria de coleta seja importante para captação de detalhes,
anotação de informações e insights e para colaborar no desenvolvimento do hábito de uso do diário reflexivo
pelo performer/investigador dessa investigação. Não houve registro em vídeo/áudio, apenas o diário
reflexivo. Esses momentos acontecem aleatoriamente antes do primeiro ciclo de Coleta de dados/sessões
de experimentações, entre o primeiro e segundo ciclo de Coleta de dados/sessões de experimentações e
depois do fim da coleta do segundo ciclo de Coleta de dados/sessões de experimentações. Durante os ciclos
aconteceram também episódios em que foram coletados insights no diário.
- Primeiro ciclo de Coleta de dados/sessões de experimentações: 18 semanas (28 registros), com a coleta
de duas obras por semana. Como referência de modelo de ficha de registro de cada sessão, utilizo o modelo
de López-Cano e San Cristóbal (2014), que será abordado no item seguinte deste artigo. Para além dessa
Ficha de Registro de Sessão anexada ao Diário, o registro em vídeo e a escrita no Diário reflexivo, com
informações mais detalhadas.
- Segundo ciclo de Coleta de dados/sessões de experimentações: 9 semanas (28 registros). Segue-se o
mesmo modelo de ficha de registro de sessão de López-Cano e San Cristóbal, registro em vídeo e escrita no
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Feichas, Leonardo Vieira. 2022. “Ciclo Artístico-Reflexivo de Dupla Checagem (CARDC): A proposição de uma ferramenta metodológica no campo da
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Diário reflexivo. O objetivo em sistematizar dois ciclos com os mesmos protocolos é em virtude da
possibilidade de compará-los.
2.3.1. Definição dos critérios/questões/estratégias a serem observados
Após definir o Primeiro e Segundo ciclos de Coleta de dados/sessões de experimentações, buscou-se definir
os critérios musicais/técnicos a serem observados nesses ciclos protocolados. Diversos fatores podem
moldar os critérios/questões/estratégias a serem observados. No meu caso, isso ocorreu a partir de um
conhecimento prévio das peças
9
e um importante ciclo de aulas de violino no primeiro ano de doutoramento,
na Escola Superior de Música de Lisboa (ESML). Tivemos a oportunidade de explorar as obras, levantar
diversos questionamentos, hipóteses, problematizar e discutir possibilidades que moldaram os critérios, que
nesta pesquisa chamamos de critérios/questões/estratégias a serem observados. Segue a lista desses nove
itens:
I. Escolha de dedilhados e suas possibilidades (de acordo com andamento, caráter, dinâmica);
II. Execução de articulações e escolha de arcadas (valorização de ritmos, definição de regiões de arco);
III. Detecção de trechos de dificuldade técnico-mecânica e o trabalho específico relacionado às possibilidades
de sua resolução;
IV. Dinâmicas propostas pelo compositor, análises de alternativas e fraseados;
V. Identificação e possibilidades de execução de efeitos onomatopaicos (imitações de vozes da natureza
presentes nos Prelúdios)
10
;
VI. Escolha de Andamento (agógica) de acordo com o caráter, indicação de expressão de ideias musicais e
aspectos rítmicos.
VII. Preparação de gestos e movimentos físicos. Esse estudo colabora para interpretação e a transmissão da
mensagem - identificar e eliminar gestos desnecessários - e proposição de gestos cênicos com base no
caráter do trecho;
VIII. Uso do gravador/ filmadora;
IX. Sonoridades - realização de contrastes de dinâmica/timbre/articulação;
2.4 Protocolos pré-sessões, durante sessões e pós-sessões
Antes de começar uma sessão de coleta alguns protocolos foram padronizados na tentativa de sistematizar
o processo. Cada peça possui um grupo de critérios/questões/estratégias a serem observados apresentado
no item anterior, que era o primeiro passo para iniciar uma coleta. Observava-se a obra e marcava-se os
9
As peças observadas foram os “26 Prelúdios Característicos e Concertantes para Violino Só”, Serenin
(violino e piano) e Doce Momento (violino e piano), do compositor Flausino Valle (1894-1954).
10
Os efeitos onomatopaicos (Imitação/Evocação) são características importantes na obra de Flausino Valle,
justificando assim inserir esse item V na lista de critérios/questões/estratégias a serem observados.
11
Feichas, Leonardo Vieira. 2022. “Ciclo Artístico-Reflexivo de Dupla Checagem (CARDC): A proposição de uma ferramenta metodológica no campo da
Investigação Artística” Per Musi no. 42, General Topics: 1-24. e224218. DOI 10.35699/2317-6377.2022.39994
critérios identificados. De uma maneira geral, alguns critérios foram determinados em praticamente todos
os Prelúdios por se tratarem por questões gerais da linguagem da música em geral.
Outro protocolo presente nas sessões do primeiro e segundo ciclo foram as fichas de registros, segundo o
modelo de López-Cano e San Cristóbal (2014, 158). Fazem parte dos itens desse modelo de ficha de registro:
1) Ação artística;
2) Descrição da tarefa;
3) Data de realização;
4) Resultado técnico;
5) Resultado musical;
6) Observações;
7) Pensamentos associados à ação;
8) Emoções associadas à ação.
Os itens 1) Ação artística; 2) Descrição da tarefa; 3) Data de realização constituem itens que foram
preenchidos antes da sessão de coletas, sendo que a contagem do tempo de sessão já era contabilizada a
partir dessa primeira parte. Esses itens foram preenchidos seguindo um padrão:
1) Ação Artística, sempre foi preenchido “Observação da peça XXXXXX”.
2) Descrição da tarefa, padronizou-se preencher com os critérios/questões/estratégias a serem observados
identificados naquela obra. Logo observava a lista completa dos critérios, encontrava quais eram aplicáveis
naquela peça e preenchia;
3) Data de Realização com a data do dia, local de coleta (cidade) e hora de início e hora de fim de coleta.
Após preencher os três itens iniciais, registrava-se a coleta em vídeo, assistia-se ao vídeo e terminava-se de
preencher os itens seguintes da Ficha de Registro:
4) Resultado técnico: buscou-se observar de maneira geral as principais observações e resultados referentes
à técnica instrumental, sem um aprofundamento na discussão.
5) Resultado musical: nesse item observava-se a principais características musicais, fraseológicas e
harmônicas, sutilezas da obra em questão.
A partir dos itens 6, 7 e 8, o caráter subjetivo da coleta mostrou-se mais presente e evidente, principalmente
nos dois últimos itens:
6) Observações: neste item constam observações referentes a impressões na coleta, observações
técnicas/musicais, ideias abstratas referentes a trechos musicais, etc.
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Feichas, Leonardo Vieira. 2022. “Ciclo Artístico-Reflexivo de Dupla Checagem (CARDC): A proposição de uma ferramenta metodológica no campo da
Investigação Artística” Per Musi no. 42, General Topics: 1-24. e224218. DOI 10.35699/2317-6377.2022.39994
7) Pensamentos associados à ação: item inteiramente voltado a perceber/sentir/captar aspectos abstratos
do momento da realização da sessão.
8) Emoções associadas à ação: assim como o item anterior, o objetivo aqui foi o de tentar perceber os
sentimentos envolvidos em cada obra e cada trecho.
O que se buscou nesses itens foi captar e registrar qualquer observação, por mais abstrata e “sem sentido”
que parecesse naquele momento. Esse aspecto faz parte da natureza dessa investigação como uma tentativa
de colaborar no alargamento das considerações nas pesquisas da área.
Figura 3: Exemplo de uma ficha de Registro de Sessão preenchida.
Scanned with CamScanner
13
Feichas, Leonardo Vieira. 2022. “Ciclo Artístico-Reflexivo de Dupla Checagem (CARDC): A proposição de uma ferramenta metodológica no campo da
Investigação Artística” Per Musi no. 42, General Topics: 1-24. e224218. DOI 10.35699/2317-6377.2022.39994
Após posicionar a câmera da melhor maneira possível, antes de ligar a câmera, era importante ter a Ficha
de Registro próxima, para direcionar a sessão. Nesta ficha, o item 2, Descrição da tarefa, orienta o intérprete
para quais itens deve observar e assim, progressivamente são realizadas as tarefas de observação. Funciona
como um check list que colabora com a organização do estudo.
Após gravar a sessão, padronizou-se: assistir ao vídeo da sessão; terminar de preencher a Ficha de Registro
de Sessão; colar essa Ficha no Diário; anotar no Diário Reflexivo. Os dados contidos na Ficha de Registro de
Sessão são observações que têm como principal objetivo fazer um registo geral de diversos aspectos, tanto
objetivos quanto abstratos (7 - Pensamentos associados à ação; 8 - Emoções associadas à ação). Reserva-se
o Diário Reflexivo como um espaço para tratar de detalhes mais técnicos.
3. Análise
3.1. Análise da Coleta de dados/sessões de experimentações em momentos livres:
As Coletas em Momentos Livres aconteceram em três momentos entre o final de 2017 e começo de 2020.
É importante ressaltar que, para além desses períodos, aconteceram também registros de insights,
anotações antes e depois de concertos, dentro do período de realização do primeiro e segundo ciclos de
coletas. Julguei que não poderia deixar passar tais anotações, o que gerou um trabalho extra. De maneira
geral, os momentos da Coleta em Momentos Livres
11
nos três volumes do diário reflexivo apontam para
considerações em três grandes grupos:
1) As aulas de violino;
2) Planejamentos (laboratório de experiências);
3) Insights.
Essas categorias não apresentam um rigor absoluto, que, muitas vezes elas se confundem, embora haja
momentos nas quais se enquadram nas categorias propostas. O objetivo primordial de categorizar é o de
organizar a transmissão das informações, já que quando coletei no diário nos momentos de Coleta em
momentos livres não pensei nessas categorias.
Nas seções que seguem, algumas transcrições dos diários com análises mais relevantes ilustram o processo.
3.2. As aulas de violino
Um ciclo completo de aulas referentes aos 26 Prelúdios de Valle e sobre as peças “Serenim” e “Doce
momento” foi realizado nas aulas de violino durante o doutorado. Neste item falarei de uma maneira geral
de aspectos e momentos que me ajudaram a moldar os critérios/questões/estratégias a serem observados.
11
Em um primeiro momento observei no Diário Reflexivo I a ambientação com o hábito de escrever em um
diário e isso fica evidente com as lacunas entre alguns dias sem escrever e também, pelo fato da mudança
de estilo de letra ao longo das anotações no primeiro volume (letra cursiva para letra de fôrma). A mudança
de letra foi pelo fato de julgar que entendimento por parte do leitor poderia ser melhor.
14
Feichas, Leonardo Vieira. 2022. “Ciclo Artístico-Reflexivo de Dupla Checagem (CARDC): A proposição de uma ferramenta metodológica no campo da
Investigação Artística” Per Musi no. 42, General Topics: 1-24. e224218. DOI 10.35699/2317-6377.2022.39994
Usualmente, eu estudava de um a três Prelúdios por semana e mostrava em aula normalmente dois
Prelúdios. Ao levar para aula a minha interpretação, muitas vezes do diálogo entre nossas ideias surgiam
questionamentos, que acabaram servindo como base para proposição dos critérios/questões/estratégias a
serem observados. Discutimos arcos, possibilidades sonoras e de timbres, dedilhados, realização de
ralentandos, acentuação de notas, ligaduras, execução de acordes, questões relativas a andamentos,
execuções dos efeitos onomatopaicos, identificação e resolução de algumas dificuldades cnicas. As aulas
foram essenciais para gerar questionamentos em relação à interpretação e às sutilezas sonoras e de efeitos
que poderiam ser enfatizados.
3.3. Planejamentos (laboratório de experiências)
Esse item de análise do diário constitui-se como uma tentativa de entendimento do quanto as reflexões
sobre os concertos das obras em estudo, planejamentos pré e pós-recitais e feedbacks de colegas e
especialistas puderam colaborar na moldagem desta investigação artística, bem como na transformação
gradativa da interpretação. Essas situações, em que pude mostrar o trabalho em progresso na performance,
serviram como laboratório de experiências para ir moldando a interpretação, seguindo o conceito da
Performance as Research PAR (Litlle 2011, 26):
Muitas vezes, o foco é colocado na prática ou no processo de criação de trabalhos criativos
e no conhecimento experimental que pode ocorrer nesse ambiente de laboratório. O
interesse e a valorização do conhecimento experimental fazem parte da lógica de outro
modelo comum, a exegese escrita, que trabalha para facilitar a reflexão e registrar insights
e descobertas de forma que seja publicável. Uma exegese que acompanha é geralmente
um requisito no desempenho acadêmico e na prática como submissão da pesquisa. [...] A
exegese não deve ser considerada uma 'tradução' da obra de arte ou prática, mas um
documento que é lido em conjunto com a obra, que informa e explica a outra e vice-versa.
12
As apresentações constituíram-se como situações de performance que chamarei aqui de “Performances em
Situações Experimentais” (PSE), nas quais pude ter feedbacks especializados que colaboraram para o
amadurecimento da obra ou em situações que “o peso social” da performance era menor que a performance
final objetivada. Considerei como momentos de PSE as aulas de violino, masterclasses, conferências e
recitais acadêmicos, sempre deixando claro para a audiência que se tratava de uma
investigação/interpretação em progresso por essa razão as chamo de situações “experimentais”.
Por se tratar de um grande volume de coletas nos diários, selecionei algumas que mostrem transformações
e fatos marcantes sobre a interpretação, bem como sobre a construção do percurso adotado nesse trabalho.
12
Often the focus is placed on the practice or process of making creative work and the experimental
knowledge that can occur in this laboratory-like environment. The interest and valuing of experimental
knowledge is part of the rationale for another common model, the written exegesis, wich works to facilitate
through reflection and to record insights and findings in a form that is publishable. An accompanying exegesis
is usually a requirement in academic performance ans practice as research submission. (…). The exegesis
should not be considered a ‘translation’ of the artwork or practice but a document that is read in conjunction
with the work, the one informing and explicating the other and vice-versa. (Litlle 2011, 26)
15
Feichas, Leonardo Vieira. 2022. “Ciclo Artístico-Reflexivo de Dupla Checagem (CARDC): A proposição de uma ferramenta metodológica no campo da
Investigação Artística” Per Musi no. 42, General Topics: 1-24. e224218. DOI 10.35699/2317-6377.2022.39994
Deve ficar claro aqui que se trata uma análise autoetnográfica dos diários em que busco “pescar” os assuntos
tratados ali (pelo artista/intérprete no passado) e interpretar e conectar os raciocínios que moldaram o
processo.
Inicialmente, as coletas desse planejamento no I Diário Reflexivo eram comentários gerais que ocorriam
após os recitais. Um relato relevante aconteceu dia 09/05/2018 (I Diário Reflexivo, 31) após um recital de
violino e piano, no qual toquei pela primeira vez com o arco reformado de Flausino Valle, que cito como
exemplo:
Pela primeira vez realizei um concerto com o arco do Flausino Valle. A resposta sonora do
arco me agradou muito, em combinação com o violino. Para além disso, toquei pela
primeira vez também a minha edição do Serenim de Valle para violino e piano. A obra
mostra-se simples em estrutura e agradou o público. Os arcos e dedilhados funcionaram.
Escolhi fazer os harmônicos no c. 26 até 29 para mudar o timbre. O sul tasto que realizei
no c. 20 resultou em um bom contraste.
No próximo relato, em uma conferência na Escola Superior de Música de Lisboa, refleti com maior
preocupação em como transmitir de maneira didática alguns aspectos da imitação/evocação na obra de
Valle. Surgiram questões referentes às técnicas e escolhas sobre a maneira de realização da imitação da
porteira da fazenda (Prelúdio XIV).
No dia 12 de junho de 2018 (45, 46 e 47 do diário Reflexivo I) fiz uma coleta referente ao
planejamento/metodologia da tese de doutorado em progresso naquele momento. Naquela altura, eu
estava elaborando meu projeto de doutoramento para ser defendido no fim daquele ano. Nessa coleta eu
realizei um piloto
13
do que eu chamo na tese de Coleta de dados/sessões de experimentações no qual simulei
como seria uma coleta utilizando como roteiro/modelo a ficha de registro de López-Cano e San Cristóbal
(2014). Defini o Prelúdio a ser estudado (Prelúdio XVI “Requiescat in Pace”), preenchi parte da ficha de
Sessão (itens 1 a 3, presentes na transcrição logo a seguir) e os critérios que seriam observados. Em seguida,
liguei a câmera testei as possibilidades de cada um desses itens. Depois de levantadas as hipóteses e
possibilidades, desliguei a câmera, assisti ao vídeo, terminei de preencher os outros itens, colei a ficha no
Diário e, por fim, escrevi no Diário de maneira mais detalhada a respeito de tudo o que aconteceu na sessão.
A partir desse piloto, embora percebesse que precisaria realizar ajustes, decidi por esse caminho de coleta
pois os benefícios como músico e pesquisador foram perceptíveis. Segue parte da descrição em Diário do
piloto:
Hoje eu realizei um piloto das sessões de coletas de dados com o objetivo de aperfeiçoar
o método interdisciplinar (vídeo, fichas de coletas e diário) e também para certificar que
será um caminho que colabora para o ganho artístico e consequentemente para a
literatura da área. [...] Usei o modelo de Ficha de Registro de sessão de López-Cano (2014).
[...]O simples fato de ter uma câmera ligada, modifica o nível de exigência e observação
dos erros. Depois de finalizar a coleta, ao assistir ao vídeo e preencher a ficha, ampliam-se
e se fixam ideias. [...] Com o vídeo já aponta questões de técnica, posturas e musicalidade
13
Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1YaEu93IwLBUX5R7ediQlI8nolc4mi68f/view?usp=sharing
16
Feichas, Leonardo Vieira. 2022. “Ciclo Artístico-Reflexivo de Dupla Checagem (CARDC): A proposição de uma ferramenta metodológica no campo da
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a serem trabalhadas como má postura da cabeça, tensão corporal (principalmente facial),
afinação condução de frases, etc.
Acredito ser relevante evidenciar as reflexões do planejamento a respeito de como pensei alguns detalhes
das coletas do segundo ciclo (Diário Reflexivo II, 134-135). Antes de começar o segundo ciclo de coletas fiz
reflexões de seus objetivos e aponto focos que buscaria dar maior atenção, como a observação em “gestos
conscientes de reforço” da mensagem poética e pensar na ASC (Ancoragem Semntica Criativa
14
) em cada
peça.
Como o objetivo aqui é ilustrar a categoria e o desenvolvimento progressivo de como minha relação com o
diário foi se modificando, julgo que esses exemplos mostrados são suficientes. Na coleta de dados sobre os
últimos recitais, percebi um aumento considerável nas informações coletadas. São observações referentes
ao artista e à linguagem do artista, em contato direto com a obra, bem alinhado com a PaR. Enquanto as
coletas nas aulas de violino foram focadas no levantamento de possibilidades técnicas e musicais, nas coletas
de planejamento de recitais as observações foram referentes a aspectos técnicos-interpretativos, mas
também aspectos da performance, e os registros foram se tornando cada vez mais elaborados. Trata-se de
um indício do aumento do poder reflexivo e do entendimento no uso da metodologia de coleta, que
certamente colabora na validação da proposta do diário.
3.4. Insights
Para esta parte do trabalho, considero “insights” (registrados no diário algumas vezes como “epifanias”)
como situações nas quais alcanço uma compreensão maior acerca de determinada questão de intepretação
ou do processo. Foram momentos de ideias referentes à construção da interpretação, mas também à
construção do caminho investigativo da pesquisa de doutorado. Aqui tento analisar a condição e o porquê
dessas ideias e como elas tiveram impacto no desenvolver da construção da interpretação.
Em maio de 2018, em Lisboa, surgiu uma primeira reflexão que apresentava ideias diversas sobre as
imitações de vozes da natureza na obra de Valle e em comparação com compositores estrangeiros e um
compositor brasileiro, Guerra-Peixe. Surgiram dois questionamentos mais evidentes, que, nessa altura da
pesquisa, viriam a influenciar o desenvolvimento da tese: “Será que todos os Alla Guitarra são viola caipira?”;
“Valle, além de violinista, era violeiro?’”.
Em agosto de 2019, realizei uma coleta na qual surgiram reflexões sobre diversos aspectos da investigação.
Em uma parte refleti sobre as aulas de violino na Escola de Música e como assimilei as ideias depois desse
período, citei o exemplo do spiccato mais horizontal para ser mais melódico, apontando mudanças de
arcadas para valorizar ritmos, indicadas pelo professor. Mais uma vez, tirei conclusões preliminares do
processo, sobre como refletir sobre as diversas frentes ao moldar o repertório. Isso mostra que esse processo
é eficiente para contribuir na construção de um músico/investigador mais pragmático. A partir daí, pensei
na necessidade dessa experiência gerar uma sistematização.
Em outra parte da citação, eu elenco pessoas que tiveram contato com a pesquisa e como foi a minha
percepção dessas relações e suas influências. De um modo geral, com contatos com profissionais da área
14
Mais sobre o Ancoragem Semântica Criativa no artigo:
https://proa.ua.pt/index.php/jdmi/article/view/3720
17
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musical, mostrei a intenção de tentar absorver opiniões e críticas referentes à interpretação e sobre o
percurso escolhido.
3.5. Análise dos ciclos
Aqui busquei analisar aspectos que envolveram a realização dos dois ciclos de coletas de dados. Nesses dois
momentos busquei uma sistematização com protocolos, a fim de ser possível estabelecer parâmetros de
comparação, diferentemente dos períodos de coletas livres que tiveram um caráter flexível e sem
protocolos. O objetivo de ter dois ciclos, como foi dito, é permitir a análise das transformações e/ou
considerações do intérprete em momentos distintos da pesquisa. Isso porque não só as questões do estudo
técnico da obra contrastariam esses dois momentos, como a pesquisa em si modifica a forma com a qual o
pesquisador-intérprete considera a obra estudada.
Uma análise para ilustrar esse experimento seria da primeira coleta de cada um dos dois ciclos, ou seja, o
Prelúdio I - Batuque. Essa primeira coleta tornou-se um modelo para todas as outras coletas do Primeiro
Ciclo.
Prelúdio I Batuque Primeiro Ciclo
Nota-se na Ficha de Registro da primeira coleta do Primeiro Ciclo, o item 1,) Ação Artística, registrei como
“Observar Prelúdio I Batuque”, ou seja, entender as possibilidades e levantamentos de questões. No item
2), Descrição da tarefa, são elencados os seis critérios/questões/estratégias a serem observados:
1) Escolha dedilhados e suas possibilidades (de acordo com andamento, caráter, dinâmica, uso
incomum do violino na técnica Alla Guitarra);
2) Execução de articulações e escolha de arcadas (valorização de ritmos, definição de regiões de arco);
3) Estudo dos fraseados com o intuito de identificar os contrastes de dinâmica, salientar contrastes de
articulação, bem como aplicação de rubato de acordo com o caráter a partir da análise harmônica-
fraseológica;
4) Escolha de Andamento (agógica) de acordo com o caráter, indicação de expressão de ideias musicais
e aspectos rítmicos. Depois de escolhidos os andamentos, verificar a relação com itens como dedilhado,
articulação;
5) Preparação de gestos e movimentos físicos (definir gestos para cada momento). Esse estudo colabora
para interpretação e a transmissão da mensagem, identificar e eliminar gestos desnecessários e proposição
de gestos cênicos com base no caráter do trecho;
6) Identificação e possibilidades de execução de efeitos onomatopaicos (imitações de vozes da natureza
presentes nos Prelúdios);
Após a realização da sessão com gravação em vídeo, preenchi o item 4), Resultado técnico, com uma
perspectiva de observação. Apontei a opções possíveis em trechos selecionados referentes às escolhas de
sentido de arco e também uma preocupação com identificação de trechos com dificuldade técnica e seu
comportamento em Performance. No item 5), Resultado musical, além de anotar possibilidades de arcadas
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Feichas, Leonardo Vieira. 2022. “Ciclo Artístico-Reflexivo de Dupla Checagem (CARDC): A proposição de uma ferramenta metodológica no campo da
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e dedilhados, aponto a gravação de Valle como uma fonte de informações sobre musicalidade,
especificamente sobre o ralentando que ele executa em sua gravação, não indicado na partitura. No item
6), Observações, aponto observações típicas de um início de processo, como a busca por entender a
dinâmica do experimento, comentários sobre meu desempenho em frente à câmera e minha dificuldade de
realizar a coleta em vários ambientes diferentes. No item 7), Pensamentos associados à ação,
considerações que muitas vezes não foram possíveis de serem analisadas, pois a busca foi anotar todos os
pensamentos, por mais vagos que parecessem.
No ano anterior a essa coleta, eu participei do Dartington International Summer School, no qual tive a
oportunidade de ter aulas com o violinista Thomas Gould. As ideias de Gould sobre como tocar violino solo
foram pensamentos constantes ao longo da coleta. Nas masterclasses trabalhamos questões como o
posicionamento em palco, a projeção sonora e os gestos físicos com a intenção de reforçar uma mensagem
musical.
Prelúdio I Batuque Segundo Ciclo
A primeira coleta do Segundo Ciclo, do Prelúdio I - Batuque mostrou-se, um modelo para todas as outras
coletas do Segundo Ciclo. Essas coletas, embora tivessem os mesmos protocolos do Primeiro Ciclo,
mostraram que o principal objetivo era o de observar para comparar com o primeiro ciclo e assim tirar
conclusões e posicionamentos. Logo apontei no item 1), Ação Artística, da folha de registro do segundo ciclo:
“Observação, comparação (com o I ciclo) do Prelúdio I Batuque”. No tem 2), Descrição da tarefa,
basicamente observo os mesmos itens. O item 4), Resultado técnico, mostra que obtive respostas
satisfatórias, que foram levantadas na ficha de registro do Primeiro Ciclo, como a evocação da viola caipira
nos compassos iniciais (Pizz. inicial será mais “duro”, som mais agressivo e sonoro), sobre arcadas e
dedilhados (“Arcadas e dedilhados escolhidos foram satisfatórios para manter o som limpo e articulado”) e
a aprovação na maneira de estudar um trecho de dificuldade técnica (“Sautillé em 3 cordas e um trabalho
específico ajudou estudar em cordas soltas. Funciona na metade superior”).
No item 5), Resultado musical, aponto para uma conclusão nas escolhas de arcos e dedilhados. A gravação
de Valle tocando seus próprios Prelúdios
15
constituiu uma fonte de informações, de critérios técnicos e
estéticos nas decisões interpretativas. No item 6), Observações, aponto sobre como minha reação de
ansiedade em frente à câmera foi minimizada ao longo do processo. No item 7), Pensamentos associados à
ação, exponho aspectos que julgo importantes nessa obra, como o realce de aspectos musicais, de ritmos e
contornos melódicos através de dedilhados e arcadas (“Realçar ritmos e contornos melódicos através de
arcadas e dedilhados”) e o realce de aspectos evocativos, nesse caso “através de pizz. sonoro e ricos em
harmônicos” (evocação da viola em pizzicato - introdução). Esse fato se deu devido à importância que as
noções de evocação e imitação adquiriam ao longo da pesquisa. E por fim, uma novidade em relação a ficha
de registro do primeiro ciclo foi a inclusão do item 8), Emoções associadas à ação, na ficha de Registro. No
exemplo dessa coleta aponto para sensações e posicionamentos abstratos como confiança e satisfação.
15
Valle interpretando seus Prelúdios (Prelúdio I Batuque e Prelúdio VIII Repente):
https://www.youtube.com/watch?v=q-9QYIMzGHE
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Para além da coleta das duas Fichas de Registro de Sessão analisadas acima, a fim de complementar com
informações mais técnicas, houve a coleta no diário. As informações no diário seguem as ideias das Fichas
de Registros, porém com mais detalhes, às vezes pontuando por compassos cada possibilidade, discutindo
e levantando opções interpretativas. Mostrarei aqui alguns exemplos.
Na coleta no Diário de Prelúdio I - Batuque no Primeiro ciclo (I Diário Reflexivo, 77) eu aponto considerações
sobre o trecho inicial (c.1 a 4) no qual evoca a viola caipira: “Trecho em pizzicato inicial evoca a viola caipira.
Enfatizar a cabeça de compasso e mostrar o caráter anacrústico. Como realçar a evocação da viola (pizz.):
com o dedo mais ‘duro’ ou ‘mole’?”. Essa resposta vem tanto na ficha de Registro de Sessão quanto na
escrita no II Diário Reflexivo (139-144): Ficha de Sessão: Pizzicato inicial será mais “duro” (som mais
agressivo e sonoro); Diário: “C. 1 ao 4- (pizzicato evocando viola caipira). Sentido de pizzicato proposto para
valorizar os primeiros tempos (c.1, 2, 3 e 4). Ter um cuidado especial na formação do acorde Sol-Mib-Dó#-
Lá# (c.1 e 3), pensar em ser sonoro”. A atenção por arcadas e dedilhados que destacassem o estilo popular
de um batuque é observada em escolha valorizassem as ligaduras no sentido de arco para baixo e de
dedilhados em primeira posição para o uso de cordas soltas.
Em resumo, a característica mais marcante do primeiro ciclo foi o levantamento hipóteses e caminhos
possíveis. Ao longo dessas primeiras foi necessário um período de adaptação, tanto por estar diante de uma
câmera realizando um experimento quanto devido ao uso de protocolos. No segundo ciclo, com
característica principal de afunilar ideias, a tentativa de responder às hipóteses levantadas no primeiro ciclo
e de tomar uma decisão interpretativa e performática, o ajuste foi mais rápido e sem grandes dificuldades.
Atribuo parte desse entendimento do conceito do segundo ciclo à coleta de momentos livres (entre ciclos)
na qual pude refletir e registrar no diário o direcionamento que daria ao segundo ciclo.
Esse processo e seu funcionamento integrado certamente colaboraram para um aumento organizacional,
de objetividade e de retenção informações, pois envolve diversos momentos reflexivos (a escrita, a gravação,
a comparação entre os ciclos e entre os ciclos e as coletas em momentos livres). O processo de
aprofundamento no entendimento de um estudo aplicado na construção de uma interpretação, que nesse
caso teve a duração de aproximadamente quatro anos, constitui um sistema que é válido, cuja necessidade
de transformar em um conceito com pilares principais será proposto a seguir. Prevê-se aplicação em
qualquer instrumento, aplicável em qualquer repertório e adaptável dentro do tempo disponível de
preparação para a performance pretendida.
4. Proposta de um método replicável de Investigação artística: Ciclo Artístico-
Reflexivo de Dupla Checagem (CARDC)
As etapas percorridas na pesquisa e apresentadas neste artigo permitiram ganho significativo de poder
reflexivo e, consequentemente, o aprofundamento e a ampliação de discussões relacionadas à música.
Proponho uma sistematização do conceito de estudo/construção de repertório baseada na reflexão,
associando Diário Reflexivo, gravação em vídeo e análise autoetnográfica aplicados a momentos de coletas
livres e em ciclos de coletas de dados. Ressalto que a sistematização desse processo teve como foco um
conjunto de obras e uso específico de um instrumento (o violino), com as suas características inerentes e
idiossincráticas, mas essa proposta é referente a um âmbito geral, que pode ser aplicada a qualquer obra e
em qualquer instrumento com suas devidas adaptações. Ao aplicar o mesmo conceito na preparação de
repertório em período menor, limitado a dias ou semanas, acredita-se que seja possível gerar o mesmo
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ganho reflexivo, bastando relativizar o conceito na aplicação, levando em consideração o tempo de preparo
para a performance e a complexidade da obra.
Esta proposta de sistematização não pretende esgotar o tema, mas fornecer um arcabouço teórico-
metodógico de acordo com o conceito dos pilares do modelo aplicado aqui. É importante realçar, nesse tipo
de ciclo de estudo reflexivo, que a qualidade dos resultados tem íntima relação com know how do
artista/pesquisador, e ter o domínio musical-técnico associado à autocrítica ao longo do processo torna essa
metodologia eficaz.
1. Planejamento
Quadro 1: Proposta de uma sistematização de estudo - planejamento
Planejamento (CARDC)
Característica desse período:
característica reflexiva sobre planejamento de estudo, meta final, interpretação pretendida
Escolha da obra
Estudo preliminar para identificar critérios / questões / estratégias a serem observados
Estudo teórico (estudo harmônico-freseológico, biográfico, contextualização e outros materiais que tenham
potencial para serem codificados em informações que possam acrescentar musicalmente)
Busca por conteúdo extramusical que possa colaborar com informações musicais
Definição de dois ciclos de coletas de dados, levando em conta a complexidade da obra e a proximidade da
performance final
Tomar notas no Diário Reflexivo
2. Execução
Quadro 2: Proposta de uma sistematização de estudo - Execução
Execução (CARDC)
Características desse período: coleta de característica reflexiva sobre diversos aspectos do estudo, observações,
hipóteses levantadas no primeiro ciclo e a busca por respostas e posicionamentos no segundo ciclo.
Primeiro ciclo
Características desse período: coleta de característica reflexiva sobre diversos aspectos do estudo, observações e
hipóteses levantadas nas sessões. Podem ser várias sessões, cada uma testando um ou mais
critérios/questões/estratégias a serem observados. o uso do diário reflexivo, ficha de registro
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e registro em
vídeo
- sessões de estudo que se caracterizam pela seleção de critérios/questões/estratégias a serem observados antes
do início da coleta
- aplicar os critérios/questões/estratégias a serem observados em sessões gravadas.
- assistir ao vídeo
- tomar nota no diário Reflexivo das hipóteses levantadas
Entre ciclos - Coleta de dados/sessões de experimentações em momentos livres
Características desse período: coleta de característica reflexiva sobre diversos aspectos do estudo, hipóteses que
foram levantadas no primeiro ciclo e planejamento para o segundo ciclo. Sem registro em vídeo e sem rigor de
coleta, fica a critério do artista quando coletar, quando sentir necessidade de registrar uma ideia, insight ou
reflexão do passado ou planejamento para um segundo ciclo
Importância de manter o hábito de refletir no diário sobre aspectos da prática
Segundo ciclo
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16
Utilizar o modelo ficha de registro de Sessão López-Cano e San Cristóbal (2014) citado anteriormente,
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No meu processo, como analisado anteriormente nesse artigo, eu inseri um momento de coletas de dados
em momentos livres após a realização do segundo ciclo de coletas de dados. Esse período não estava
previsto no projeto inicial e foi anexado por surgir a oportunidade de tocar em uma série de recitais, não
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Feichas, Leonardo Vieira. 2022. “Ciclo Artístico-Reflexivo de Dupla Checagem (CARDC): A proposição de uma ferramenta metodológica no campo da
Investigação Artística” Per Musi no. 42, General Topics: 1-24. e224218. DOI 10.35699/2317-6377.2022.39994
Características desse período: coleta de característica reflexiva e comparativa sobre diversos aspectos do estudo
com confirmação de hipóteses levantadas no primeiro ciclo. Pode ser em várias sessões, cada uma validando ou
não um ou mais critérios/questões/estratégias a serem observados. Há o uso do diário reflexivo, ficha de registro
e registro em vídeo.
- sessões de estudo que se caracterizam pela seleção de critérios/questões/estratégias a serem observados antes
do início das coletas, que geralmente foram as mesmas do primeiro ciclo para fins de comparação;
- Aplicar os critérios/questões/estratégias a serem observados em sessões gravadas;
- Assistir ao vídeo;
- tomar nota no diário Reflexivo das hipóteses levantadas, confirmadas ou não.
3. Autoavaliação
Quadro 3: Proposta de uma sistematização de estudo Autoavaliação
Autoavaliação (CARDC)
Características desse período: Análise e discussão de todo o percurso
Reflexão autoetnográfica sobre as hipóteses e escolhas realizadas (coletas em momentos livres e dois ciclos de
coleta) no diário associado à gravação de vídeos de dois ciclos
Busca por associar os aspectos extramusicais identificados as decisões interpretativas
Amadurecimento das opções interpretativas e performáticas escolhidas
Em determinada altura da construção de interpretação de uma obra, encoraja-se a exposição em PSE
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, em que
possa ter feedbacks especializados que colaborarem para o amadurecimento da obra ou em situações que “o peso
social” da performance seja consideravelmente menor que a performance final objetivada
4. Interpretação
Quadro 4: Proposta de uma sistematização de estudo - Interpretação
Interpretação
Uma interpretação fruto de um processo reflexivo com registro de aspectos do processo de construção da
interpretação.
Interpretação fruto de um ciclo de processos reflexivos sistematizado com recurso ao Diário Reflexivo e posterior
análise Autoetnográfica
5. Conclusão
O conceito principal da investigação exposta neste artigo, no qual o performer/artista e investigador são
conectados, mostrou-se inicialmente desafiador no sentido de se manter um rigor acadêmico,
principalmente na concepção do percurso e sua análise posterior, de forma que fossem capazes de
evidenciar o processo de transformação do objeto artístico. Os moldes desta investigação exigem do
performer/investigador não proficiência artística/instrumental como também a proficiência como
pesquisador no momento da análise autoetnográfica. Essas dificuldades e preocupações, bem como o
entendimento real das particularidades e autorregulação do projeto proposto, foram sanados
paulatinamente, conforme o progresso da investigação, cumprindo todas as etapas do experimento e
ampliando sua compreensão de forma progressiva. O uso do conjunto de metodologias escolhidas e a
maneira que essas foram estruturadas nesta pesquisa contribuíram para entendimento do processo de
construção, mostrando a sua transformação gradual, com ênfase em aspectos que incluem reflexões sobre
levada em conta quando fiz o projeto, e da qual poderia surgir questões importantes, e de fato surgiram. Eu
encaro como opcional ter essa coleta após o segundo ciclo.
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Performance em Situação Experimental
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Feichas, Leonardo Vieira. 2022. “Ciclo Artístico-Reflexivo de Dupla Checagem (CARDC): A proposição de uma ferramenta metodológica no campo da
Investigação Artística” Per Musi no. 42, General Topics: 1-24. e224218. DOI 10.35699/2317-6377.2022.39994
elementos extramusicais na obra de Valle, assim como elementos frutos de hipóteses e escolhas do processo
proposto.
O uso dessas metodologias permitiu o contato direto com a transformação da interpretação das obras
estudadas. Isso foi possível graças à ação e registro feitos pelo artista/performer e a análise e interpretação
do investigador daquele momento vivido. A análise e a consequente validação desse processo foi se
tornando mais evidente e clara quando, após realizado todo o processo, pude perceber sutilezas na
transformação do objeto. Essa observação, a análise e as conclusões do processo vivenciado, dentro de
perspectivas temporais distintas (análise imediatamente após o fim do experimento e um olhar dessa análise
realizada após determinado período) revelam discussões e sutilezas adicionais, o que vem a evidenciar que,
em diferentes níveis de maturação, o experimento possa incorporar novas particularidades,
aprimoramentos e aplicações.
Os dois ciclos de coletas protocolados e com coletas em momentos livres mostraram-se como pontos de
fundamental importância para o ganho autorreflexivo. A intenção inicial era de não deixar a coleta
totalmente livre e, assim, dentro do experimento, ter um sistema com dupla rodada protocolada para criar
referências e possibilidades de comparação, tornando parte da coleta mais objetiva. Foram pensados os dois
ciclos, que, embora teoricamente idênticos no que se refere a protocolos adotados, na prática mostraram
diferenças: o primeiro apresentou características de levantamento de hipóteses/problemática e o segundo,
características de apontar para escolhas e apresentar soluções em constante comparação e diálogo com o
primeiro ciclo. Esse processo colaborou para reflexões distintas: no momento em que se comparam os dois
ciclos entre si e no momento em que se comparam os ciclos aos momentos de coletas livres.
Ao analisar a relação entre cada um dos dois ciclos associados às coletas em momentos livres, notei que
foram períodos de estímulos reflexivos referentes ao desenvolvimento interpretativos/performático e
metodológico, que se mostraram complementares, cada período com suas particularidades:
1) O primeiro período de momento de coletas livres mostrou-se com uma característica reflexiva
estruturante, com foco nas hipóteses de interpretação buscadas e na concepção do percurso (definição do
percurso e metodologia aplicada);
2) No segundo momento de coleta em momentos livres (entre os ciclos) se observa maior poder reflexivo
sobre aspectos da interpretação e performáticos. As considerações do processo/experimento nesse
momento tiveram um caráter de ajuste, de reflexões do passado (primeiro momento de coletas livres e
primeiro ciclo) e de reflexões para o segundo ciclo.
3) O terceiro momento de coleta em momentos livres (após o segundo ciclo), que não estava previsto
inicialmente no projeto inicial, veio a confirmar aumento reflexivo, mas agora focado em aspectos da
interpretação e performance. Esse momento mostrou-se necessário pela oportunidade de realização de uma
série de recitais com o próprio violino de Valle, com a possibilidade pôr em prática todas as decisões
interpretativas e performáticas que estavam sendo processadas e incorporadas. As anotações nesse terceiro
momento foram relativas apenas à preparação e ao feedback dessa experiência.
Identifiquei diferentes momentos autorreflexivos com características distintas:
- acerca da construção do processo (Primeira e Segunda coletas em momentos livres);
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Feichas, Leonardo Vieira. 2022. “Ciclo Artístico-Reflexivo de Dupla Checagem (CARDC): A proposição de uma ferramenta metodológica no campo da
Investigação Artística” Per Musi no. 42, General Topics: 1-24. e224218. DOI 10.35699/2317-6377.2022.39994
- sobre hipóteses e problemáticas musicais (Primeiro e Segundo ciclos);
- sobre os testes e escolhas justificadas das hipóteses musicais, também sobre o percurso percorrido e sobre
o restante do percurso (coletas em momentos livres);
- comparativa entre o primeiro e segundo ciclo; sobre tomadas de decisões no segundo ciclo realizadas a
partir de levantamentos hipotéticos, problemas musicais e caminhos interpretativos apontados no primeiro
ciclo. Este constituiu um momento importante de tomadas de decisões interpretativas/performáticas
baseadas em autorreflexão comparativa;
- com influência externa (feedbacks) e maturação da interpretação (coletas de dados em momentos livres).
O fato de nos ciclos de coleta haver o registro em vídeo, o rigor de protocolos de uso do diário, a ficha de
registro e um cronograma colaborou para gerar uma rotina que fez as reflexões do estudo serem constantes.
Para além disso, os critérios/questões/estratégias a serem observados, anotados nas fichas de registro de
sessões, colaboraram para orientação dos estudos de forma objetiva com otimização do tempo, funcionando
como um check list. O ato de filmar e se assistir em si constitui uma ferramenta importante de coleta de
dados, que contribui para o senso da realidade, e assim colabora para identificar possíveis falhas técnicas
(afinação, condução do arco), posturais (pontos de tensão física desnecessária) e de questões musicais e
performáticas que precisam ser mais evidenciadas na performance.
A coleta de dados no diário reflexivo também se mostrou uma ferramenta importante para aquisição de
informações e amplificou a capacidade reflexiva, proporcionando forma às problemáticas e hipóteses. A
combinação dessas ferramentas revelou-se uma metodologia satisfatória, principalmente para
instrumentistas que proponham a percorrer esse modelo de pesquisa (PaR) que tenham certo nível
artístico e acadêmico (know how), e que busquem o objetivo de identificar falhas e buscar soluções. Essa
associação aplicada aos ciclos de coletas mostrou-se adequada e relevante para captar momentos de
mutação do processo, proporcionando assim uma forma de estudo que propicia ao artista/performer maior
independência de feedback externo, podendo otimizar, assim, sua prática.
A sistematização aqui apresentada tem o objetivo de constituir uma maneira otimizada, objetiva, pragmática
e organizada de estudo, que proporciona mais independência e consciência do instrumentista no processo
de construção da interpretação. Ela pode propiciar que o músico adquira mais ferramentas para
autoavaliação com maior atenção, critério e rigor; com capacidade de gerar e interpretar dados. Constitui,
ainda, um sistema aplicado à realidade do artista, que objetiva oferecer um ganho de autoaprendizado e
autorreflexão. Espero, com isso, colaborar no campo de pesquisa da investigação arstica, na qual a pesquisa
reside na prática reflexiva do músico, buscando a expansão dos diálogos dentro da academia.
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