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eISSN 2317-6377
Análise da ampliação de possibilidades tímbricas no Concerto
para tímpanos e orquestra de Mauricio Kagel
Analyzing the expansion of timbric possibilities in the Concert
piece for timpani and orchestra by Mauricio Kagel
Matheus Augusto Ribeiro
Universidade de Brasília, Programa de Pós-Graduação em Música, Brasília, DF, Brasil
quixoote@gmail.com
Antenor Ferreira Corrêa
Universidade de Brasília, Departamento de Música, Brasília, DF, Brasil
SCIENTIFIC ARTICLE
Section Editor: Fernando Chaib
Layout Editor: Edinaldo Medina
License: "CC by 4.0"
Submitted date: 12 dec 2022
Final approval date: 03 jan 2023
Publication date: 28 mar 2023
DOI: https://doi.org/10.35699/2317-6377.2023.42088
RESUMO: O objetivo deste artigo é apontar alguns efeitos que ampliam possibilidades tímbricas para uso dos tímpanos. Para
tanto, se utilizado como exemplo a obra Konzertstück fur Pauken und Orchester, de Mauricio Kagel. Essa obra tem sido
comentada, sobretudo, levando-se em conta seus aspectos cênicos, que Kagel adquiriu notoriedade no estilo conhecido por
teatro musical. Entretanto, ao lado desses aspectos determinados para a performance, o Concerto para Tímpanos e Orquestra
apresenta procedimentos inovadores relativos à exploração tímbrica nos tímpanos. Esses procedimentos, além de expandirem o
arcabouço de possibilidades especificados nos manuais e tratados de orquestração, também apresentam desafios à técnica de
execução no instrumento. Neste sentido, este artigo considera as inovações criadas pelo compositor e propõe ampliar o escopo
dos procedimentos prescritos na literatura sobre escrita para tímpanos.
PALAVRAS-CHAVE: Timbre; orquestração; instrumentação; tímpanos; Maurício Kagel.
ABSTRACT: The goal of this article is to pinpoint some effects that expand timbric possibilities for the use of timpani. For this
purpose, the work Konzertstück fur Pauken und Orchester, by Mauricio Kagel, will be used as an example. This concert has been
commented, above all, taking into account its scenic aspects, since Kagel acquired notoriety in the style known as musical
theater. However, alongside these aspects determined for performance, the Concert Piece for Timpani and Orchestra presents
innovative procedures related to timbric exploration on the timpani. These procedures, in addition to expanding the repertoire
of possibilities specified in manuals and orchestration treatises, also present challenges to the instrument's performance
technique. In this sense, this article considers the innovations created by the composer and proposes to expand the scope of
procedures prescribed in the literature on writing for timpani.
KEYWORDS: Timbre; orchestration; instrumentation; timpani; Mauricio Kagel.
Per Musi | Belo Horizonte | v.24 | Sessão Temática RePercussões | e232402 | 2023
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tímbricas no Concerto para tímpanos e orquestra de Mauricio Kagel
1. Introdução
Na área de música, a literatura dedicada ao ensino da escrita para orquestra é bem diversa e diversificada.
Essa afirmação pode ser atestada na expressiva bibliografia existente sob os títulos “orquestração”,
“instrumentação” e “arranjo”. uma longa tradição de tratados e manuais objetivados a ensinar como
escrever corretamente para instrumentos musicais de forma solista ou em distintas combinações. Compõe
essa literatura pedagogias consagradas direcionadas à orquestração “tradicional” (por exemplo, Rimsky-
Korsakov, 1891/1964/2010; Piston, 1955/1969; Adler, 1982/2002) e trabalhos mais recentes almejando
uma espécie de atualização desses tratados, bibliografia esta que, normalmente, apresenta títulos como
“orquestração contemporânea” ou “moderna orquestração” (Miller 2015; Casella & Mortari 1948/2004;
Kennan & Grantham 1962/2001). Há ainda textos mais reflexivos sobre o ofício do arranjador e outros que
intentam analisar orquestrações de compositores específicos ou distintos estilos de orquestração, assim
atribuindo diversidade ao pensamento orquestral (Perone 1996; Black & Gerou 1998, por exemplo).
Não obstante a relevância e eficácia dessa literatura, nota-se que esta não consegue acompanhar par e
passo as inovações propostas pelos compositores em suas obras. Inúmeros e interessantes artifícios para
produção e combinação sonora têm sido introduzidos ao repertório musical, artifícios estes que, em sua
maioria, ainda não fazem parte dos tratados e manuais de orquestração. Obviamente, a ausência destes
novos procedimentos na bibliografia é totalmente compreensível e justificável. que a publicação de
livros se dá em velocidade menor que as inovações criadas pelos compositores, cabe às revistas científicas,
de publicação mais recorrente, sanarem esse descompasso e darem visibilidade às novas propostas que
surgem da pesquisa e da prática dos compositores.
No que se refere especificamente à escrita para instrumentos de percussão, os manuais publicados mais
recentemente apresentam alguns recursos não convencionais de instrumentação. Todavia, a orientação
na escrita para tímpanos ainda está baseada em procedimentos mais tradicionais, que se trata de um
membranófono de alturas definidas, nada mais natural que explorar essa possibilidade e centrar foco nas
notas que esse instrumento produz, deixando efeitos menos usuais (sem necessidade de afinação
específica) para os outros tambores. Por conta disso, é comum nos métodos de orquestração instruírem
sobre a tessitura dos distintos tímpanos de modo a obter a melhor sonoridade do instrumento tendo-se
em conta a tensão produzida na pele nas regiões extremas de afinação. Robert Miller, por exemplo,
precisamente adverte que:
O erro mais grave que os orquestradores cometem ao escreverem para tímpanos é
presumir que toda a extensão de um determinado tímpano produz um som completo e
característico. [….]. Na tessitura padrão, a tensão na pele é moderada e a ressonância do
instrumento é ótima. De uma perspectiva prática, deve-se restringir a escrita à tessitura
padrão, abrangendo, aproximadamente, uma quinta justa para cada tímpano
1
(Miller
2015, 253).
1
No original: The most grievous error orchestrators make when scoring for timpani is to assume the entire
range of a given timpano yields a full and characteristic sound. [….]. In the standard range the tension on
the head is moderate and the instrument resonance is optimum. From a practical perspective, one should
restrict one’s writing to the standard range, spanning approximately a perfect 5th, for each timpano.
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tímbricas no Concerto para tímpanos e orquestra de Mauricio Kagel
Alguns autores apresentam de maneira bem geral algumas possíveis combinações de sonoridade, tal como
Samuel Adler ao informar que:
Atualmente, alguns compositores têm pedido para posicionar pratos, pandeiros, maracas
e outros instrumentos de percussão sobre a pele, deixando-os soar por simpatia quando
o tambor é percutido. O lado do tímpano, chamado de corpo, bem como os aros dos
tambores, é algumas vezes percutido com baquetas de madeira como se fora um
idiófono de altura indeterminada. (Adler 2002, 446)
2
.
Não obstante esse tipo de informação sobre o instrumento, artifícios mais atuais que têm por objetivo
expandir o rol de possibilidades tímbricas dos tímpanos ainda o raros na literatura. Em vista dessa
situação, o propósito deste artigo é apresentar algumas possibilidades de ampliação do uso do tímpano
não encontradas, comumente, nos manuais e métodos de orquestração. Para tanto, faremos uso do
Concerto para tímpanos e orquestra (1990-1992) de Maurício Kagel (1931-2008), pois esta obra apresenta
aspectos inovadores na escrita para tímpanos que, por sua vez, engendram texturas interessantes para
todo o efetivo orquestral e aporte de renovadas possibilidades tímbricas para os tímpanos.
Duas das principais fontes de referência histórica sobre Mauricio Kagel são Paul Attinello e Bjorn Heile.
Attinello é professor da Universidade de Newcastle, autor do verbete “Mauricio Kagel” para o Grove Music
Dictionary e consultor do documentário sobre Kagel produzido pela BBC. Bjorn Heile é pesquisador e
professor da Universidade de Glasgow. No ano de 2000 Heile, à época professor na Universidade de Sussex
(Inglaterra) recebeu bolsa do Leverhulme Trust para pesquisar sobre Kagel. Com esse apoio financeiro ele
dispendeu dois anos na Suiça pesquisando nos arquivos da Fundação Paul Sacher, onde obteve acesso a
rascunhos e manuscritos originais do compositor, documentos estes que formaram a base para o livro The
Music of Mauricio Kagel, lançado em 2006. Além desse material, Heile realizou diversas entrevistas com o
próprio compositor (Heile, 2006, vii). Desses dois autores e da nota de programa inserida na partitura do
Konzertstück fur Pauken und Orchester (Edition Peters) podem ser aferidos alguns dados históricos sobre a
obra que, por sua vez, nos auxiliam nas considerações analíticas aqui apresentadas.
Um dos primeiros aspectos a se observar é que o Concerto para tímpanos e orquestra (em diante referido
como Konzertstück) não é uma obra 100% original. O procedimento criativo de Kagel foi tomar uma obra já
composta, seu Opus 1.991, e adicionar uma parte solista. É por essa razão que o Konzertstück é informado
com duas datas, 1990 e 1992, respectivamente, a data de conclusão do Opus 1.991 que, de acordo com
Heile (2006, 160) estava pronto em dezembro de 1990, e da parte de tímpanos do Konzertstück,
finalizada em 1992. Essa apropriação do próprio material composicional, antes de constituir espécie de
autoplágio, pode ser pensada no âmbito do conceito de obra “apócrifa”. Neste sentido, o Konzertstück
estaria inserido em uma fase criativa mais atual de Kagel, posterior à sua predileção pelo teatro musical,
no rol de suas “preocupações pelas ideias de 'original' e 'falso', 'autêntico' e 'artificial', 'real' e 'imaginário',
2
No original: Today, some composers have asked timpanists do place cymbals, tambourines, maracas, and
other percussion instruments on the head, letting them ring sympathetically when the drum is struck. The
side of the drum, called the bowl, as well as the rim of the drum, is sometimes played with wooden sticks
as a nonpitched percussion instrument. (Adler 2002, 446).
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Ribeiro, Matheus Augusto; Corrêa, Antenor Ferreira. 2023. Análise da ampliação de possibilidades
tímbricas no Concerto para tímpanos e orquestra de Mauricio Kagel
bem como as suas intrínsecas afirmações de valor” (Heile 2006, 141)
3
. E é justamente pelo fato de a parte
solista ter sido acrescentada posteriormente, é que uma interrupção na numeração de compassos,
preservando a numeração original do Opus 1.991. Assim, cada vez que uma Kadenza do tímpano foi
adicionada ao Opus 1.991, a numeração da parte solista recomeça como se fosse o compasso número 1.
Quando a cadência solista termina, a contagem de compassos retoma a numeração onde havia sido
interrompida.
Não obstante o uso do material composicional existente, fica evidente, na análise da parte de tímpanos,
o extensivo estudo realizado por Kagel para compor essas partes, uma vez que é consenso entre os
timpanistas que se trata de uma parte muito bem escrita. uma grande diversidade de procedimentos
que desafiam a técnica do instrumento, além das inovações analisadas adiante no que diz respeito à
ampliação das possibilidades de instrumentação. Sobre os aspectos da escrita da obra, o
internacionalmente consagrado compositor e percussionista brasileiro Ney Rosauro afirma que “é uma
peça contemporânea, super bem escrita. Mauricio Kagel é absolutamente específico e em cada ponto a
gente que ele conhece o tímpano, trabalhou a fundo, talvez com algum outro timpanista, criando uma
obra muito bem escrita, com uma linguagem bem contemporânea”
4
.
A possibilidade de Kagel ter consultado um timpanista durante seus estudos para a composição da obra é
sustentada pela notória parceria que ele estabeleceu com o percussionista francês Jean-Pierre Drouet
5
.
Drouet colaborou com Kagel e fez a estreia de algumas de suas obras. Dada essa atestada relação, não é
estranho supor que Kagel tenha consultado Drouet sobre as especificidades do mpano e da escrita
moderna para esse instrumento, uma vez que Drouet havia adquirido relevância como timpanista pela
sua gravação da Sonata para dois pianos e percussão de Bella Bartók, obra esta que requer extrema
proficiência técnica da parte do timpanista.
Sobre a participação de Drouet como espécie de consultor de Kagel durante a composição da obra,
também a informação em uma nota de programa da Casa da Música (Porto, Portugal) onde João Silva
afirma que “a peça resultou de uma encomenda da Orquestra Sinfónica “Arturo Toscanini” da Emília-
Romanha, que a estreou em Reggio Emilia a 17 de outubro de 1992, com Jean-Pierre Drouet como solista e
Fabrice Bollon como chefe de orquestra” (Silva 2017, s.p.).
Ao lado dessas informações, Björn Heile também informa:
Kagel tomou grande cuidado em compor a parte de solo, não somente lendo toda a
literatura do instrumento, mas esboços sugerem que ele fez muitas práticas
experimentais no conservatório. De maneira peculiar, ele sistematicamente coletou todas
3
No original: A preoccupation with the ideas of 'original' and 'fake', 'authentic' and 'artificial', 'real' and
'imaginary', as well as with their attendant claims of value.
4
Entrevista concedida ao autor.
5
Sobre a biografia de Jean-Pierre Drouet e sua colaboração com Kagel ver:
http://www.cdmc.asso.fr/fr/ressources/compositeurs/biographies/drouet-jean-pierre-1935
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tímbricas no Concerto para tímpanos e orquestra de Mauricio Kagel
as técnicas e depois as derivou, resultando em um número muito grande de novas
técnicas, muitas utilizadas na composição da obra (Heile 2006, 161)
6
.
Por conta dessas inovações, Konzertstück adquire especial relevância para o repertório solista para
tímpanos e, paralelamente, torna-se uma obra de referência para a escrita e para o estudo da ampliação
das possibilidades tímbricas nesse instrumento. Essas inovações, por sua vez, contribuem para uma
atualização do rol de procedimentos encontrados nos manuais de instrumentação e orquestração.
Konzertstück explora, também, a denominada “Percussão Teatral”, onde o conceito de representação
cênica torna-se um aspecto importante, trazendo, assim, para o primeiro plano as características visuais da
performance. Na percussão teatral, ocorre uma junção entre aspectos cênicos e musicais onde é possível
reivindicar ao músico uma espécie de atuação enquanto ator.
Esse apelo cênico (sobretudo os de caráter humorístico), somado a procedimentos composicionais de
indeterminação (vide adiante) e à pesquisa por novos timbres permitem caracterizar Konzertstück como
uma peça pós-moderna. A exposição e análise dessas inovações e da riqueza de sonoridades conseguidas
por Kagel formam o objeto de estudo desse texto, procedimentos estes considerados a seguir.
2. Aspectos visuais e percussão teatral: disposição dos tímpanos no palco
A obra possui evidentes aspectos cênicos relacionados à Percussão Teatral. Constata-se, nas orientações
contidas na partitura do solista que os tímpanos devem estar dispostos de uma forma apropriadamente
mais destacada, à direita do regente, conforme orienta o compositor: “os tímpanos devem estar
ligeiramente elevados em uma tribuna de aproximadamente 15 a 20 cm de altura, preferivelmente
localizados no canto direito frontal do palco de concerto
7
”. Ainda, quanto à posição da tribuna, o
compositor orienta que: “se condições de espaço permitirem (por exemplo, em um palco de concerto com
níveis extremamente inclinados), e a linha de visão dos músicos sentados atrás não estiver impedida, será
possível aproximar a tribuna do regente
8
”. Essa disposição requisitada por Kagel tem por função tornar o
timpanista o mais visível possível para a audiência, justamente pelo fato de os aspectos visuais formarem
parte significativa da obra e, portanto, devem ser sempre observados pelo público sem obstrução.
Ao lado dessa prescrição, o compositor apresenta também a descrição das formas de disposição dos
tímpanos em formatos denominados sets A e B para as disposições dos tímpanos. O set A tem os tímpanos
maiores à direita do timpanista e o set B com os tímpanos maiores à esquerda do timpanista. O modo de
6
No original: Kagel took great care in composing the solo part. Not only did he read the available literature
on the instrument, but the sketches suggest that he also made extensive practical experiments in the
conservatoire. In his usual manner, he systematically collected all the playing techniques thus derived,
resulting in a staggering number, many of which are used in the score.
7
No original: the timpani are slightly elevated on a low rostrum (15-20cm) high, preferably located at the
front right corner of the concert stage.
8
No original: If the spatial conditions permit it (e. g. on a concert stage with skarply raked levels), and the
sight-lines of the musicians sitting behind are not impeded, it would be possible to set up the rostrum
closer to the conductor.
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tímbricas no Concerto para tímpanos e orquestra de Mauricio Kagel
se dispor os tímpanos no palco segue as convenções históricas de cada país. Essas duas formas distintas de
posicionamento, consideradas no sentido horário, do grave ao agudo (chamado estilo internacional), ou do
agudo ao grave (nos países de língua alemã), possuem algumas justificativas (baseadas na tradição da
cavalaria, em critério acústico ou ainda em analogia com as cordas do contrabaixo), porém, esse aspecto
não será objeto de discussão neste texto. De todo modo, esse fato indica que Kagel conhecia esses dois
aspectos específicos de posicionamento dos tímpanos. Entretanto, o compositor ressalta que,
independentemente da disposição dos tímpanos nos modos A ou B, o tímpano com membrana de papel,
denominado “sham timpani”, deve estar sempre na posição em que o público possa visualizá-lo com
clareza. Essa criteriosa escolha para a posição do solista no palco mostra a preocupação do compositor
para os aspectos visuais da performance da obra.
2.1. O tímpano de papel: “sham timpani”
Uma das inovações cênicas e tímbricas trazidas por Kagel para esse concerto foi o uso de um tímpano com
uma membrana de papel (substituindo a pele sintética ou animal comuns nesses instrumentos). O
compositor determina na partitura o uso de um sham timpani (ou seja, tímpano falso), sendo este o
tímpano com a membrana de papel (pauken mit papiermembran). O compositor apresenta orientações
específicas quanto à performance nesse instrumento: “ataque com força máxima a membrana de papel do
tímpano falso, desaparecendo até a cintura do corpo no instrumento, em seguida, ficar imóvel,
congelado”
9
. Caso o timpanista não queira utilizar tímpano, ou seja, impossibilitado por questões
relacionadas à segurança do percussionista
10
, o tímpano falso pode ser substituído por um bumbo
sinfônico, também com pele de papel. Um aspecto curioso do uso desse tímpano falso está associado ao
aspecto humorístico causado pela ação cênica do timpanista, que deve “mergulhar” para dentro do
tímpano. Alguns percussionistas e compositores tem a impressão de que essa obra de Kagel possui uma
aura soturna e misteriosa. Essa percepção pode advir justamente do Opus 1.991 que foi caracterizada pelo
próprio Kagel no âmbito do conceito hegeliano de subjetividade abstrata (Heile 2006, 160)
11
. Entretanto, a
ação cênica com o tímpano falso acaba por minimizar essa aura austera e, geralmente, provoca risos na
plateia.
9
No original: strike with the utmost force on the paper membrane of the timpani in process disappearing
down to the waist in the body of the instrument. Freeze.
10
Há tímpanos que possuem mecanismos internos nos tambores (longos parafusos e cabos de aço) e que
poderiam causar danos físicos ao timpanista.
11
Heile (opus cit.) escreve que “Opus 1.991 is clearly symphonic in character; in his programme note Kagel
cites Hegel's concept of 'abstract subjectivity' to characterize the piece.
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3. Seção I (1 51)
De saída é importante informar ao leitor que as seções aqui descritas não se configuram como seções
formais da obra. Utiliza-se a denominação seção sem a intenção de um rigor formal, mas somente para
facilitar o acompanhamento das partes em análise. Todavia, a divisão aqui proposta, embora baseada em
critérios tímbricos, por vezes pode coincidir com as Seções formais da obra, uma vez que, quase sempre,
trazem implícito mudanças de andamento e de afinação associadas às novas sonoridades desenvolvidas.
Conforme explicitado na partitura, a obra deve ser iniciada sem qualquer sinal do maestro. Ou seja, é o
timpanista quem inicia a performance. de saída o compositor apresenta um efeito sonoro inusitado:
pede que o timpanista use sua mão esquerda para pressionar o cabo da baqueta contra a pele do
instrumento. Ao mesmo tempo, ele deve percutir a cabeça da baqueta com a mão direita
12
. Essa descrição
não é totalmente clara e, por conta disso, causa dúvidas que resultam em interpretações diferentes por
parte dos solistas dessa obra. Primeiramente, o compositor mostra conhecer a organologia do instrumento
ao requerer que a nota de início (Dó#) desse efeito seja executada no tímpano III que, normalmente,
possuí diâmetro de 26 polegadas e, assim, permitirá melhor sonoridade para o “glissando” prescrito na
partitura (vide Figura 2). Ao lado desse detalhe, a ambiguidade surge com a especificação “pinçando a
cabeça da baqueta” (plucking the head of the beater). A figura inserida na partitura (Figura 2, adiante)
mostra claramente que somente o cabo da baqueta na mão esquerda deve pressionar a pele. Assim surge
a dúvida sobre que “cabeça da baqueta” é essa que deve ser percutida com a mão direita. Ainda, essa
terminologia não é precisa, uma vez que os termos zupfen e pluck (alemão e inglês, respectivamente) são
sinônimos de pinça (ou seja, plucking the head of the beater, literalmente, seria pinçando a cabeça da
baqueta). Por conta dessa obscuridade, parece que aquilo que o compositor propõe é um efeito
semelhante a um pizzicato Bartók executado com um golpe da baqueta da mão direita na pele seguido de
uma movimentação da baqueta da mão esquerda que pressiona a pele. Essa movimentação se daria em
direção ao centro do tímpano e resultaria um glissando. Assim, seria possível também compreender o
próprio sinal de glissando sobre a nota C#: uma vez que se trata de uma única nota longa sob fermata, o
sinal de glissando implicaria, em princípio, no uso de pedal do tímpano. Porém, o compositor é claro “sem
tímpano glissando!” (no timp. glissando!), donde seria óbvio questionar o porquê do uso do sinal de
glissando se o compositor não quer essa sonoridade. Trata-se, muito provavelmente, de uma maneira
equivocada de indicar que não se deve usar o pedal do tímpano para realizar esse efeito, mas sim a
baqueta da mão esquerda que está pressionando a pele.
Por conta dessa descrição imprecisa, alguns solistas optam por produzir um efeito do tipo “ping-pong”
golpeando a pele várias vezes diminuindo a intensidade à cada golpe; fazendo somente o ataque da nota;
ou então realizar um rulo pressionado (buzz roll) da borda para o centro do tímpano. Porém, essas
alternativas não levam em consideração aquilo que é específico na determinação da partitura, a saber, o
posicionamento da baqueta da mão esquerda contra a pele do tímpano. Dessa maneira, pode-se concluir
que muitas das performances não realizam a sonoridade desejada pelo compositor.
12
Como a determinação descrita na partitura causa confusão, escrevemos aqui as versões em alemão e
inglês respectivamente: “Schlegelstiel mit der linken Hand auf das Fell pressen und mit der rechten Hand
am Schlegelkopf zupfen” e “Press the beater handle against the skin with the left hand, plucking the head
of the beater with the right hand”.
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Apesar da ambiguidade da descrição, esse efeito tímbrico conseguido com a pressão e movimentação da
baqueta sobre a pele já mostra uma ampliação da possibilidade de recursos do tímpano. O compositor cria
uma sonoridade não convencional, pois um acréscimo de harmônicos superiores, resultando em um
timbre mais “metálico”. Esses ataques com a baqueta pressionando a pele e executando o glissando
seguem a o compasso 33. No compasso 35, ao efeito de glissando com a baqueta, é adicionado o
glissando convencional realizado com o pedal do tímpano, alternando-se, portanto, um compasso com o
efeito inicial e outro com o glissando de pedal, enfatizando-se, então, a diferença entre essas sonoridades.
Esse procedimento segue até o compasso 50, onde tem início uma nova seção da peça.
4. Seção II (51 87)
Do compasso 51 ao 58 a nova sonoridade trazida por Kagel é uma sequência de rulos nos diversos
tímpanos; porém, estes são realizados com baquetas duras, o que resulta em um som de textura mais
granular (Schaeffer 1966) do que legato (sonoridade convencional de rulos nos tímpanos quando
realizados com baquetas macias de feltro). a especificação pelo compositor de que o solista deve
utilizar o modelo de baqueta T4, isto é, típica para o som ultra staccato. Percebe-se que a intenção é obter
um timbre bem penetrante, uma vez que a baqueta T4, embora não seja uma baqueta de caixa clara, tem
a cabeça extremamente dura, resultando em uma textura granular. Esse som granular é também realçado
pela solicitação do compositor em executar os rulos com técnica de caixa-clara, o que diminui
consideravelmente o resultado legato sem ataques perceptíveis e enfatiza as articulações entre os golpes.
5. Cadência 1
A cadência é marcada com a introdução de nova sonoridade nos tímpanos. Conforme as instruções
contidas na partitura e uma figura apresentando o posicionamento de mãos e baqueta, o compositor faz
uma detalhada explicação: “com a mão esquerda, posicione uma baqueta de caixa clara na pele de forma
que a ponta e a base da baqueta toquem o aro de cobre. Pressione. Quando a membrana é percutida com
uma segunda baqueta de caixa clara, resultará uma nota muito aguda”. A baqueta que pressiona a pele do
tímpano deve deslizar sobre a sua superfície. Desse modo, o efeito sonoro resultante é como se o tímpano
se tivesse convertido em um tambor militar. A pressão exercida nas proximidades do aro do instrumento
cria um som mais metálico, como um rimshot
13
, que associado ao glissando de pedal, produz um timbre
13
Rimshot é uma técnica típica de tambores militares, incorporada posteriormente à técnica de bateristas,
que consiste em percutir simultaneamente o aro e a pele do tambor. Esse ataque produz uma mescla
Figura 2 Kagel, Konzertstück (início). Figura ilustrativa do posicionamento da baqueta
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inusitado. Essa Cadência é marcada, então, por essa sonoridade mais rítmica e com um certo caráter
militar (intensificado pelo vasto uso de apojaturas características desse estilo), contrastando aos ataques
esparsos da Seção I e a textura granular da Seção II.
A partir do terceiro compasso da cadenza, o compositor solicita que a baqueta de caixa clara da mão
esquerda seja movimentada devagar pela pele do timpano juntamente com o glissando de pedal que
deve ser executado em movimento vagaroso, evitando trocas abruptas ou rápidas mudanças de afinação.
A intenção dessa sonoridade é também representada pictoricamente por ondas pontilhadas desenhadas
sobre o pentagrama. Essa sonoridade vai ser acrescida de um outro som não convencional nos tímpanos:
trata-se da percussão de baqueta contra baqueta, pontuando, assim, com um novo timbre o caráter
marcial dessa cadência. A cadência finaliza, então, no compasso 87 e a partir do compasso 88 há a inserção
de um novo timbre.
6. Seção III (88 103)
Essa seção marca o retorno da orquestra e apresenta uma nova sonoridade nos tímpanos. Kagel solicita
que os tímpanos sejam tocados com uma das mãos e que um dedo da outra mão seja posicionado na
borda (vide Figura 3) executando um rimshot gentil. Trata-se, assim, de um rimshot distinto daquele
executado durante a introdução e na cadência. No entanto, essa sonoridade acaba por permanecer no
plano das ideias composicionais, uma vez que por conta do andamento rápido (Presto, 144 bpm) a
realização dessa passagem é praticamente inexequível. Constata-se, a esse respeito, que nas performances
analisadas em vídeos no Youtube, alguns timpanistas substituem essa sonoridade de rimshots por
baquetas duras, sem utilizar os dedos. No entanto, mesmo tendo em conta a dificuldade (ou
impossibilidade) técnica dessa passagem, há a criação de um novo timbre gerado pela junção de rimshots
produzidos com o dedo e a baqueta que percute o instrumento de modo convencional.
7. Seção IV (103 123)
Essa seção é marcada pela mudança de andamento, afinação e com a inserção de uma nova sonoridade
nos tímpanos. Trata-se, nesse momento, do uso de vassourinhas (jazz brushes). A utilização de
vassourinhas não é, de fato, uma novidade no repertório timpanístico, sendo esse recurso, inclusive,
mencionado em manuais de orquestração. Todavia, no que se refere à utilização de vassourinhas nesta
sonora de maior intensidade e com mais harmônicos agudos, produzindo um timbre de qualidade metálica
justamente pelo golpe no aro do instrumento.
Figura 3 Orientações do compositor referentes à execução de rimshots: “com dedo na borda, como um gentil rimshot (até o compasso 93)”
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peça, a inovação tímbrica trazida pelo compositor é a soma dessa sonoridade com o som de aro e de
rebotes. Desse modo, o som da vassourinha na pele mesclado com o som da vassourinha percutida
contra o aro. O golpe no aro possui ainda a resultante aleatória pelo fato de não se medir o número de
rebotes produzidos.
8. Seção V (124 147)
A partir do compasso 131, ao invés de baquetas convencionais de tímpano, são utilizadas maracas na
exploração de novas sonoridades. O uso de tímpanos percutidos com maracas não é uma inovação de
Kagel, podendo ser remontada a pelo menos 1957 na obra West Side Story de Leonard Bernstein. O
compositor norte Americano Michael Daugherty também se valeu desse efeito em seu concerto para
tímpanos Raise the Roof (2003), entretanto, a obra de Kagel é anterior (1992). Ainda, ao passo que
Bernstein e Daugherty usam as maracas substituindo as baquetas, conseguindo assim dois sons distintos
simultâneos (o da pele percutida e o da maraca), o efeito na peça de Kagel é um pouco distinto. O
compositor pede que a pele seja percutida com a maraca que, após o golpe, deve deslizar sobre a pele do
tímpano ao mesmo tempo em que é rotacionada de modo a conseguir, assim, a sonoridade característica
da maraca. Desse modo, a separação dos dois sons (pele que vibra e a fricção das sementes dentro das
maracas). A utilização das maracas na exploração da sonoridade vai até o compasso 144.
9. Seção VI (148 181)
A partir do compasso 148, tem-se a utilização de claves na exploração de novas sonoridades. Esse
resultado sonoro é assim atingido por meio da seguinte descrição para o solista: “pressione uma clave
contra a pele com a mão esquerda e golpeie esta clave com a clave da mão direita. Imediatamente após
isso, a mão esquerda deve mudar para outra região de toque”. Esse artifício de percutir a clave que
pressiona a pele do instrumento produz uma resultante sonora com um timbre “metálico”. Isso se dá pelo
fato de o abafamento da pele com a clave diminuir a ressonância grave natural do instrumente e viabilizar
a presença dos harmônicos agudos. Essa sonoridade vem adicionada ao uso de glissando (realizados com o
pedal). Esse procedimento é realizado em três tímpanos que, por conta de suas dimensões distintas,
produzem sonoridades também distintas, ou seja, os harmônicos agudos viabilizados pela pressão na pele
e abafamento da pele são cada vez mais audíveis.
A utilização de claves substituindo baquetas de tímpano não é uma inovação de Kagel, uma vez que esse
procedimento pode ser encontrado em manuais de orquestração. Todavia, o compositor utiliza claves em
conjunto com a técnica de glissando, aspecto este ainda não observado no repertório orquestral. Neste
sentido, o timbre formado pela junção do som da madeira percutida, a pele abafada, harmônicos agudos
projetados e glissando pode ser considerado como novo.
10. Seção VII (182 205)
A Seção VII faz uso, basicamente, de sonoridade convencional do instrumento. Todavia, o foco não está na
busca de um novo timbre, mas sim explorar o potencial dinâmico dos tímpanos. Dessa maneira, essa seção
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apresenta variadas mudanças de intensidades, do pianíssimo ao fortíssimo, com intensa figuração rítmica
que atribui à seção um caráter agitado.
Entretanto, em meio a esse uso mais convencional dos tímpanos, Kagel apresenta diferenciação tímbrica
valendo-se de um recurso, de certa forma, inusitado. Ele pede que os tímpanos I e II sejam afinados com a
mesma nota (G). Dessa maneira, ao executar a célula rítmica em dois tambores diferentes, a sonoridade
resultante é distinta do som convencional caso este ritmo fosse executado em um único tímpano (Figura
5). Essa diferença sonora se dá pelo fato de o tímpano I estar com a pele mais tensionada que o tímpano II.
Esse recurso é conhecido dos instrumentistas de corda, para os quais alguns compositores exploraram a
diferença de sonoridade entre uma mesma nota tocada em corda solta ou em corda presa, por exemplo.
11. Seção VIII (206 225)
A partir do compasso 206 o compositor pede que se utilizem as pontas dos dedos na execução dos ritmos.
Ainda, solicita que as regiões de percussão sejam variadas a critério do timpanista. Assim, os toques
podem ser feitos próximos ao aro, no centro da pele, na região intermediária entre aro e centro, no
próprio aro do instrumento. Kagel adiciona ainda toques que descreve como “staccatos antecipados
abafados com as bolas das mãos”
14
. Essa prescrição leva a entender que a nota em stacatto deve soar
como uma apojatura, ornamentando assim a nota principal. Essa apojatura abafada executada com a mão
em concha vale-se de uma técnica comum aos tocadores de conga, djembê e atabaque chamada de slap.
Com isso, Kagel introduz a nova sonoridade com a mistura de técnicas entre instrumentos distintos (conga
e tímpano).
12. Seção IX (226 297)
Essa seção agrega aqui diversas partes menores que também poderiam ser tratadas formalmente como
seções em si mesmas. Todavia, como o objetivo deste artigo é analisar os efeitos tímbricos inovadores
criados por Kagel, essas partes menores serão consideradas na íntegra, ou seja, serão descritas como uma
única seção que vai do compasso 226 até o 297. Esse procedimento tem somente a intenção de facilitar a
leitura, uma vez que tais efeitos tímbricos foram considerados anteriormente. Todavia, vale ressaltar
que há divisões formais nessa grande seção, divisões estas evidenciadas por mudança de andamento,
afinação dos tímpanos e diversidade de timbres.
14
No original: “Stacatti: mit Handballen vordämpfen”; “Damp stacatti in advance with ball of the hands”
Figura 4 recurso de diferenciação tímbrica pelo uso da mesma nota em dois tímpanos
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Nesta seção o compositor faz uma espécie de resgate dos efeitos explorados anteriormente. Do compasso
228 ao 237 são utilizadas baquetas de caixa clara. nesse ponto uma espécie de retomada do caráter
aleatório dos golpes, uma vez que o compositor indica que os rebotes da baqueta percutida no aro devem
ser deixados para soarem livremente, ou seja, sem mensuração rítmica. também nessa parte o ataque
na pele com as duas baquetas simultaneamente, o que confere uma sonoridade agressiva aos rulos. A
seguir, o retorno dos toques executados com vassourinhas (241-263), seguidos de uma parte tocada
com baquetas de tímpano duras (264-281).
No que segue, Kagel adiciona o som do toque no corpo do instrumento, ou seja, na estrutura ressonante
de cobre. O cobre é o metal mais comum para construção dos tímpanos. No entanto, outros materiais
que o podem substituir, com a intenção de minimizar o preço do instrumento. Em vista disso, no Brasil, por
exemplo, são comuns orquestras e escolas terem o tímpano construído com fibra de vidro. A questão é
que se esses tímpanos forem utilizados na performance da obra, o timbre resultante não será o mesmo
idealizado pelo compositor, que tinha em mente uma sonoridade metálica obtida com a percussão sobre o
metal cobre. Mais relevante aqui, todavia, é observar a intenção em agregar um novo timbre ao repertório
de recursos sonoros desse instrumento. Nota-se que a maior parte dos manuais de orquestração
raramente indica a sonoridade da percussão na estrutura do instrumento, uma vez que organologicamente
o tímpano foi projetado para ser tocado na membrana. Tendo isso em consideração, é possível observar
como Kagel amplia a possibilidade de recursos sonoros dos tímpanos ao incorporar esses timbres não
convencionais, de certa forma, alheios à organologia do instrumento.
Dos compassos 288 a 297 há, também, o resgate da sonoridade dos tímpanos tocados com os dedos (com
a inovação de que o instrumento deve ser percutido com 3 dedos), abafando simultaneamente,
retomando assim a técnica do slap usada nas congas e encerrando essa Seção.
13. Cadência 2
A segunda cadência explora, majoritariamente, a sonoridade das vassourinhas construindo, porém, um
longo crescendo em intensidade e andamento. A cadência possui 45 compassos. Destes, os 20 primeiros
iniciam em piano e andamento lento para atingirem a dinâmica fortíssimo em andamento Presto. A partir
do compasso 21 dessa cadência, segue-se o inverso, diminuições graduais em intensidade com rallentando
no andamento até atingir a dinâmica pianíssimo que é tocada no aro do tímpano, o que contribui para
diminuir ainda mais a percepção de intensidade. Os dois últimos compassos da cadência são tocados na
pele, porém com a mão realizando um abafamento para não deixar a pele vibrar. Segue-se, em Attaca a
nova seção.
14. Seção X (299 323)
A modificação da sonoridade nesta seção se dá com a utilização de baquetas de xilofone, as quais possuem
cabeças de borracha e, assim, realizam uma sonoridade distinta das que haviam sido exploradas nas seções
anteriores. Adicionalmente, essas baquetas são invertidas, usando-se, portanto, a parte de madeira para
realização de células rítmicas no corpo metálico dos tímpanos. A partir do compasso 316 as baquetas de
xilofone são substituídas pelo toque com as mãos. De certa forma, há também a construção de um novo
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timbre, uma vez que o toque na pele é realizado simultaneamente com um toque no aro, produzindo um
rimshot. assim uma sonoridade mista consistindo do som metálico do rimshot abafado com o som da
pele que é deixada vibrar.
15. Seção XI (324 340)
A partir do compasso 325 segue-se uma nova troca de afinação e mudança de andamento. A inovação
nesta seção é a utilização de uma cobertura de madeira sobre a pele do tímpano. Obviamente, o uso
dessa pequena placa de madeira sobre a pele acaba por abafar e, consequentemente, impedir que a pele
vibre em sua totalidade. Assim, a criação de duas sonoridades, a da pele abafada e o próprio som da
madeira.
Se em alguns momentos a descrição dos modos de execução foi um pouco ambígua, nesta parte o
compositor é bem específico quanto àquilo que deseja. São informados o diâmetro ideal da placa de
madeira e os materiais para forrar a base dessa placa. Além disso, o detalhamento dos golpes e regiões
do tímpano a serem exploradas, utilizando-se, basicamente, três técnicas: 1) abafar com a palma da mão
antes do ataque (ad. libitum no aro, ponto de toque, meio); 2) tocar com baquetas de “tam tam” nos
dedos de uma mão aberta (simulando o som de bater em alguém pelas costas) e 3) atacar na cobertura de
madeira. Configura-se, assim, uma textura rica, com timbres ressonantes bem perceptíveis devido ao
andamento lento.
A utilização de materiais posicionados sobre os tímpanos não é uma novidade. Outros compositores (como
Ney Rosauro e John Cage, por exemplo) exploraram essas possibilidades pedindo aos percussionistas
que posicionassem pratos e ou gongos sobre os tímpanos. No entanto, a utilização em uma obra de
concerto de uma baqueta de “tam tam” em conjunto com uma cobertura de madeira pode ser
considerada uma inovação de Kagel. Enfatiza-se, todavia, que esses recursos são típicos de obras
contemporâneas, nas quais os compositores apresentam o objetivo explícito de ampliarem as
possibilidades sonoras do instrumento. Essa constatação não tem por objetivo lançar uma crítica aos
tratados de orquestração, mas antes, leva a compreender os motivos da ausência de procedimentos
similares nestes manuais de instrumentação mais tradicionais. Esta literatura tem por interesse informar
sobre o que é convencional e de atestada eficácia no uso dos instrumentos.
Figura 5 mescla do som de rimshot com o som convencional da pele do tímpano. O texto informa que os golpes são realizados com a mão
próxima à borda (indicada pelo losango branco) e mão aberta (notação convencional acrescida de ligadura)
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16. Cadência 3
Os compassos 339 e 340 marcam uma espécie de elisão entre a Seção X e a Cadencia 3. A grande diferença
da cadência 3 em relação ao restante da obra é a utilização de um megafone. Embora o uso do megafone
tenha uma intenção muito mais cênica, acaba também por incorporar novas sonoridades ao repertório
timpanístico, na medida em que os ataques nas peles são executados em simultâneo com notas cantadas
pelo timpanista no megafone. Como o megafone, por requisição do compositor, deve sempre apontar para
a pele do tímpano, as ondas sonoras do canto acabam por encontrarem ressonância na estrutura do
instrumento, e um timbre distinto é formado. Nos primeiros três compassos, a partir de 341, o solista deve
utilizar o megafone sem encostá-lo nas peles. A partir do compasso 342, contudo, deverá aplicar o mesmo
procedimento, mas encostando o megafone na pele do tímpano.
O caráter aleatório de algumas passagens mencionadas é retomado. Isso se por conta do artifício de
notação adotado pelo compositor nessa passagem. A notação do que se deve cantar no megafone é
precisa, porém, a notação das notas a serem tocadas no tímpano não é, pois o compositor anota somente
o ritmo, deixando a cargo do solista que nota tocar. Assim, não existirão, em tese, duas execuções
idênticas dessa obra, já que cada solista tem liberdade de escolher que nota tocar.
17. Cadência Final
A Cadenza final é iniciada com uma sequência de rulos executados com baqueta dura. Desse modo, a
textura granular da Seção II é recapitulada. também a retomada dos efeitos de glissando da Seção
inicial, valendo-se de praticamente toda a tessitura do instrumento, chegando ao extremo agudo.
O concerto é encerrado com um efeito nico, cômico, fazendo, finalmente, o uso do tímpano falso.
Conforme determinado na partitura, o solista deve tocar a última “nota” da obra projetando seu corpo
para dentro do tambor falso que foi previamente adaptado com a membrana de papel. Ao sofrer o golpe
em dinâmica fortíssimo (fff) a pele, obviamente, se romperá ao mesmo tempo que o timpanista
“mergulha” para o interior do instrumento, desaparecendo até a cintura e permanecendo imóvel após o
ataque (Figura 1).
18. Considerações
Após esses comentários analíticos, percebe-se que Konzertstück possui material vasto e muito diversificado
no que se relaciona à exploração tímbrica do tímpano. Esses procedimentos inovadores poderiam ser
sumarizados em:
Uso de distintos tipos de baquetas de modo a gerar timbres e texturas variadas;
Uso das mãos substituindo as baquetas;
Uso de outros instrumentos (claves e maracas) à guisa de baqueta;
Uso de megafone de modo a modificar a ressonância da membrana do tímpano e para criar um
timbre composto (canto e som da pele do tímpano);
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Percussão em partes não convencionais do instrumento (corpo metálico, aro, diferentes regiões da
pele);
Uso de golpes simultâneos no aro e pele (rimshot) de modo a produzir sonoridade metálica e com
ênfase em harmônicos superiores;
Uso no tímpano de golpes e técnicas típicas de outros instrumentos de percussão (congas e tambor
militar, por exemplo);
Uso de notas iguais, mesma afinação, distribuídas em tímpanos de diâmetro diferente de modo a
enfatizar a diferença tímbrica causada pelas distintas tensões de peles;
Uso de materiais ou outros instrumentos colocados sobre a pele do tímpano;
Modificação da sonoridade do instrumento por meio da pressão exercida sobre a pele do tímpano
com madeira (cabo da baqueta, clave ou baqueta de caixa). Essa pressão sobre a pele engendra um
som mais metálico e enfatiza harmônicos superiores;
Uso de glissando executado com a baqueta que pressiona, simultaneamente, a pele e o aro do
instrumento.
Alguns desses procedimentos são mencionados em tratados de orquestração. A colocação de outros
instrumentos sobre a pele do tímpano, por exemplo, é descrita na passagem dedicada a “efeitos especiais”
para os instrumentos de percussão por Black & Gerou (1998, 200): “colocando-se um pandeiro (pele para
cima) sobre um tímpano e golpeando-se a pele do tímpano um efeito colorido é produzido pelas platinelas
do pandeiro”. Todavia, esses autores estão referindo-se ao pandeiro e não a efeitos específicos para os
tímpanos. Os mesmos autores, não obstante, descrevem a criação de uma nova sonoridade conseguida
pela junção do glissando de pedal do tímpano com um rulo executado em um gongo ou um prato colocado
sobre a pele do instrumento (ver: Black & Gerou 1998, 233).
O artifício do glissando é também apresentado em outros tratados. Robert Miller, por exemplo, explica a
execução desse efeito e esclarece que o êxito sonoro dependerá da afinação do instrumento (uma vez que
isso implicará diretamente na tensão da pele) e no sentido que o glissando é realizado, pois “um glissando
ascendente possui uma duração ligeiramente maior do que o glissando descendente (pois a distensão da
pele tende a suprimir as vibrações)” (Miller, 2015, 255). Curiosamente, Miller também ressalva que o
efeito glissando, embora interessante sonoramente, não deve ser utilizado em demasia pois está associado
aos desenhos animados e, assim, “a percepção pela audiência de uma intenção artística do glissando no
tímpano será influenciada por sua exposição a esse uso excessivo” (idem, ibidem). Vale observar que em
Konzertstück, o massivo uso das várias formas de combinações de glissandos não provoca risos na
audiência.
Mesmo que existam descrições de procedimentos não tradicionais de escrita para tímpanos em alguns
manuais, a maior parte destes centra-se na explicação da tessitura de cada tambor, na forma de
funcionamento dos pedais de afinação e nos fatores que concorrem para a boa sonoridade do
instrumento. Neste intuito, Black & Gerou, por exemplo, oferecem informações precisas sobre os fatores
que contribuem para a produção de uma melhor sonoridade, considerando, entre outros, afinação, região
de toque, tipos de baquetas e uso de abafador sobre a pele. A apresentação de formas distintas ou
inovadoras do uso do tímpano, quando aparece, é bem sucinta, como por exemplo, quando os autores
escrevem que os golpes no centro-morto da pele, próximo ao aro, sobre o aro ou no corpo de cobre,
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Ribeiro, Matheus Augusto; Corrêa, Antenor Ferreira. 2023. Análise da ampliação de possibilidades
tímbricas no Concerto para tímpanos e orquestra de Mauricio Kagel
produzem todos uma variedade de timbres diferentes; entretanto, a altura é afetada
15
(Black & Gerou
1998, 231).
Observamos que Kagel (assim como outros compositores contemporâneos, como Elliot Carter, por
exemplo), não faz apenas o uso dos procedimentos convencionais descritos nos manuais de
instrumentação, mas vai além destes, pois, além de valer-se desses recursos convencionais, inova na
exploração de sonoridades e inscreve Konzertstück como um exemplo prático de suas inovações tímbricas.
Em vista das considerações apresentas, podemos afirmar que Konzertstück de Mauricio Kagel configura-se
como uma obra de referência no que se refere ao uso expandido das possibilidades tímbricas para os
tímpanos, servindo para ampliar o escopo de procedimentos mais convencionais observados nos manuais
de instrumentação e orquestração.
19. Referências
Adler, Samuel. 2002. The Study of Orchestration (3ª Ed). New York/London: W.W. Norton & Company.
Attinello, Paul. Mauricio Kagel. 2001. In: Grove Music Online. Acessado em 25/10/2022.
Black, Dave; Gerou, Tom. 1998. Essential Dictionary of orchestration. Los Angeles: Alfred Publishing Co.
Casella, Alfredo; Mortari, Virgilio. 2004. The Technique of contemporary orchestration. Ricordi.
Heile, Björn. 2016. The Music of Mauricio Kagel. New York: Routledge.
Kennan, Wheeler K. & Grantham, Donald. 2001. The Technique of Orchestration ( Ed.). London/New
York: Pearson.
Miller, Robert J. 2015. Contemporary Orchestration: A Practical Guide to Instruments, Ensembles, and
Musicians. New York: Routledge.
Piston, Walter. 1969. Orchestration (5a.Ed.). London: Victor Gollancz Ltd.
Perone, James E. 1996. Orchestration Theory: a bibliography. Westport: Greenwood Publishing Group.
Rimsky-Korsakov, Nikolay. 2010. Principles of Orchestration - With musical examples drawn from his own
Works. Maximilian Steinberg Ed. (gutenberg.org).
Schaeffer, Pierre. 1966. Traité des Objets Musicaux: Essai Interdisciplines. Éditions Du Seuil. Paris.
Silva, João. 2017. Peça de Concerto para Tímpanos e Orquestra (nota de programa). Disponível em:
https://www.casadamusica.com/artistas-e-obras/obras/p/peca-de-concerto-para-timpanos-e-
orquestra-mauricio-kagel/#tab=0 Acesso 09/11/2022.
15
No original: Striking the head dead-center, near the rim, on the rim or on the copper bowl all produce a
variety of different tone colors. Pitch, however, is affected.