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eISSN 2317-6377
Decifrando o violão de João Gilberto em seu arranjo de Desde
que o samba é samba (2000)
Deciphering the guitar of João Gilberto in his arrangement of Desde que o
samba é samba (2000)
Guilherme Silva Espindola
Pesquisador independente
guilherme.ese1@gmail.com
Bruno Madeira
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil
SCIENTIFIC ARTICLE
Section Editor: Fernando Chaib
Layout Editor: Edinaldo Medina
License: "CC by 4.0"
Submitted date: 16 jan 2023
Final approval date: 05 may 2023
Publication date: 29 jun 2023
DOI: https://doi.org/10.35699/2317-6377.2023.42503
RESUMO: Ao se falar em João Gilberto, surgem temas como arranjo, versão, gravação e resgate de diversas canções que foram
gravadas ao longo de sua carreira, sendo elas, majoritariamente, de autoria de outros músicos. O presente artigo apresenta uma
investigação com foco na harmonia posta pelo músico em sua gravação de Desde que o samba é samba. Esse trabalho foi
desenvolvido através da audição, transcrição e comparação do violão de João Gilberto com a primeira gravação da música em
questão. A audição nos permitiu os primeiros passos no trabalho, a transcrição nos trouxe em detalhe cada nota tocada em seu
violão, e a comparação foi então a etapa onde duas gravações são colocadas lado a lado, permitindo uma exploração das ideias
impostas por João sobre a canção, levantando assim questões sobre seus conceitos musicais. Tais etapas praticadas nos
permitem falar um pouco de seu estilo de interpretação e arranjo.
PALAVRAS-CHAVE: João Gilberto; violão; arranjo; Desde que o samba é samba; Caetano Veloso.
ABSTRACT: When we talk about João Gilberto we talk about arrangement, versions, recording, revisiting and a refreshing of
many songs that were recorded during his career, songs that in most cases are not his original compositions. This paper presents
an investigat        Desde que o samba é samba. This work was made possible
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key to identify aspects of his ideas, the transcription brought us, with detail, each note played by him, and finally, the
comparison, being the raw material for the paper, allowed the detailed exploration on the musical ideas behind the recording,
bringing theories about Jo
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KEYWORDS: João Gilberto; guitar; arrangement; Desde que o samba é samba; Caetano Veloso.
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Espindola, Guilherme Silva; Madeira, Bruno Decifrando o violão de João Gilberto em seu arranjo de Desde que o samba é samba (2000)
1. Introdução
João Gilberto, além de compositor, foi intérprete de canções de outros músicos desde o início de sua
carreira. Na sua sutileza de seu violão, estava uma nova maneira de sincopar o samba e uma capacidade de
sublimar canções, o que segundo Mello (2001, 57), 
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marchas dos conjuntos vocais, inteiramente recompostos na sonoridade voz-e-violão, as assim chamadas
interpretações joão-          João Voz e Violão (Gilberto
2000), no qual o músico apresenta 10 composições de diferentes autores, trazendo para elas sua própria
interpretação, seu jeito de tocar o que neste trabalho chamamos de arranjo. Considerando que o senso
comum que o termo carrega muitas vezes não representa suficientemente todo o âmbito da palavra, cabe
aqui trazer para ele uma breve contextualização de seu uso, a partir de duas definições:
Arranjo ou transcrição. Adaptação de uma peça para um meio musical diferente daquele
para que tinha sido originalmente comp. [...] por vezes usa-se o termo arranjo para um
tratamento livre do material e o termo transcrição para um tratamento mais fiel
(Kennedy 1994)
Arranjo. A reelaboração ou adaptação de uma composição, normalmente para uma
combinação sonora diferente do original (Sadie 1994)
João frequentemente altera instrumentos, forma, harmonia e melodia das canções que interpreta,
conforme frequentemente visto na prática da música popular. Faz sua versão ao se acompanhar apenas
        co, uma
                  
cantando três ou quatro vezes a forma da canção, apresenta ao ouvinte algo diferente da memória que se
tinha da canção.
Ouvir depois de João as versões originais é uma surpreendente experiência, pois fica mais
clara a carga de informação acrescentada. Ele decompõe a canção pedaço por pedaço,
frase por frase, acorde por acorde, e a reconstrói como um artesão, sob a forma unívoca
de um som de voz e violão, acrescida do caráter de um esteta. (Mello 2001, 58)
Para Szendy (apud Bessa 2010), esse tipo de reconstrução caracteriza um arranjo, que é visto pelo autor
como um ato intimamente relacionado com a escuta:
Com efeito, existem, na história da música, ouvintes que escreveram sua escuta. São os
chamados arranjadores, que me fascinam muito, muito tempo. O tema de um
arranjado no estilo de outro [...] O arranjador (que pode, aliás, ser autor nas horas vagas)
não é somente um virtuoso dos estilos: é um músico que sabe escrever uma escuta [...]
(Szendy apud Bessa 2010, 183)
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Espindola, Guilherme Silva; Madeira, Bruno Decifrando o violão de João Gilberto em seu arranjo de Desde que o samba é samba (2000)
Apesar de Bessa estar se referindo à escuta da música popular no Brasil nos anos de 1920 e 1930, algumas
e de soluções criativas [...]
         
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Partindo então das definições e comentários postos, podemos considerar João um arranjador. O músico
adapta canções escolhidas para um meio musical diferente daquele originalmente composto, trazendo um
diferente resultado de combinações sonoras, no caso voz e violão, para seu álbum epônimo João Voz e
Violão (Gilberto 2000). Para o profissional da área, tal ferramenta, o arranjo, servirá para gravações de
discos, apresentações e adaptações para diferentes formações instrumentais. Através do arranjo a canção
será reinventada. Dessa forma, um arranjador também é um compositor, por vezes um coautor, ao
produzir novamente uma canção, sendo para uma outra ou mesma faixa de público, sendo em uma versão
com maior ou menor número de instrumentos em relação àquela primeira gravação lançada da canção, ou
sendo ainda em uma mesma formação de uma gravação original, que pode ser feito um trabalho
totalmente diferente. A aceitação de tal arranjo refletirá um conjunto de interesses, tendo esse sido aberto
a alterações em âmbitos melódicos, harmônicos e rítmicos, podendo ter sido elaborado com acscimos,
supressões ou alterações (Nascimento 2011, 30).
              
desenvolver e registrar por escrito suas ideias integralmente, sua obra permanece um tanto potencial,

campo complexo. Nem sempre a canção terá um registro em partitura com orientações específicas do
compositor a respeito de como a obra deve ser tocada, estando aberta para interpretações e releituras.
Leiamos uma passagem de Aragão sobre a instância de representação do original na música popular:
 
é certamente bem mais difícil. O que poderia defini-la? Uma partitura? A primeira
gravação de uma obra? A versão apresentada em uma primeira execução? Mais do que
         
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que a música popular comercial tem na melodia um elemento considerado como
constituinte do original na maior parte das vezes. Para além da melodia, porém, a análise
se torna ainda mais difícil: que outros elementos poderiam fazer parte do original? Uma

Além da canção Desde que o samba é samba não ter sido lançada com uma partitura com indicações
diversas sobre como deve ser a performance do músico que a , Caetano Veloso, compositor da obra e
produtor do álbum João Voz e Violão, afirma em entrevista que, de certa forma esperava um futuro
ão chegou,
 Ainda comenta sobre a gravação de João Gilberto:
[...] quando o João se aproximou do samba, se aproximou por um caminho enviesado, ele
parece que nunca tinha ouvido, mas aquilo não era propriamente verdade, ele
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Espindola, Guilherme Silva; Madeira, Bruno Decifrando o violão de João Gilberto em seu arranjo de Desde que o samba é samba (2000)
fisicamente talvez tivesse ouvido. [...] Ele ficou procurando alguma coisa nesse samba e
me apareceu com aquilo e o samba ficou salvo, valeu. [...] E isso pra mim, assim, é um
presente inestimável. E ele fez uma coisa divina. E esse samba ficou sendo isso mesmo
que as pessoas diziam que parecia uma ideia cafona de que é um clássico, ele ficou
mesmo sendo, depois que o João gravou (Veloso 2003, n/p)
Ao ouvir a gravação de João Gilberto para a canção Desde que o samba é samba, o ouvinte perceberá que
o músico trabalha com a alteração de diversos desses elementos que poderiam constituir um original.
A           Tropicália 2 (Veloso, Gil 1993), o
músico altera também a melodia cantada. Mello (2001) comenta brevemente sobre essa característica das
gravações de João, que acontece desde seus primeiros álbuns de sucesso:
reside um dos mais fascinantes atrativos do canto de João Gilberto, a expectativa,
sempre contemplada, de como ele irá desenvolver as frases de uma música já cantada ou
gravada. É que João, como Orlando Silva, introduz elementos de elasticidade e
flexibilidade vocais através de rubatos (ritardandos e accelerandos) ou de suspensões.
Retardandolabas ou frases, ele deixa o violão seguir adiante para alcançá-lo mais tarde,
apressando-se ou encurtando o que ainda falta; outras vezes, antecipa-se, emendando
versos um no outro, fora do lugar em que deveriam estar, e fica aguardando a chegada
do violão para seguirem juntos novamente (Mello 2001, 45)
João, com suas alterações na harmonia e na voz, cria então uma identidade para suas interpretações e
canções. O ouvinte ao iniciar a audição, principalmente de seus discos onde ouve-se exclusivamente a voz
        -
(2001, 57), mas o elemento surpresa será: o que ele irá alterar? Mesmo no caso da canção que mais
gravou, Desafinado de Tom Jobim e Newton Mendonça, é possível para cada versão esperar uma

No presente trabalho comentaremos sobre a harmonia posta por João Gilberto na canção Desde que o
samba é samba, para o disco João Voz e Violão. Consideraremos a primeira gravação da mesma, por
Caetano Veloso e Gilberto Gil no disco Tropicália 2 (Veloso, Gil 1993) como a instância de representação do
original. Tratá-la de tal maneira nos permite utilizá-la como um gabarito, no qual poderemos colocar o
arranjo e harmonização de João ao lado para comparação, evidenciando então as características de seu
estilo.
Traremos então os acordes do arranjo de João Gilberto transcritos e discorreremos sobre as diferenças em
relação à gravação de Caetano Veloso. Esse estudo nos permitirá um aprofundamento no estilo de arranjo
de João Gilberto, nos direcionando a conclusões e especulações sobre sua forma de pensar e tratar
aspectos de harmonia, que aqui está em foco, mas também de melodia, forma, ritmo e acompanhamento.
A investigação aqui proposta busca também, através dos meios expostos, levantar uma discussão sobre o
grau de predeterminação do arranjo, isto é, quanta margem para improviso ou adições de elementos há na
performance violonística de João. A partir do comportamento de João, citado por Caetano em sua
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Espindola, Guilherme Silva; Madeira, Bruno Decifrando o violão de João Gilberto em seu arranjo de Desde que o samba é samba (2000)
entrevista, podemos imaginar o músico agindo de forma imprevista com o possível arranjo da canção, uma
v
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esse e aspectos rítmicos e harmônicos de seu acompanhamento, poderemos nos atrelar a uma hipótese
sobre o grau de predeterminação desse arranjo e defendê-la.
O arranjo de João Gilberto conta com acréscimos, alterações e supressões. João tira, põe e altera acordes
da harmonia da canção, reestrutura a forma, reduz a instrumentação para voz e violão, encurta a duração
da música e equilibra suas repetições. Ao acessarmos as gravações disponíveis no YouTube
1
das duas
versões em questão da canção, podemos notar rapidamente a diferença de mais de um minuto de
duração. A gravação de João é mais curta, repetindo menos trechos e somando 3'54'', enquanto a de
Caetano chega a 5'11''. A investigação sobre os elementos que as diferenciam colaborará para a
compreensão do estilo de interpretação e de arranjo de João nessa canção, ao mesmo tempo que
fornecerá informações que permitem esboçar características de sua visão artística de forma geral.
Com foco na harmonia do violão, o presente trabalho apresentará todo o arranjo de João Gilberto
transcrito em partituras cifradas durante o corpo do texto. Em anexo ao artigo, será apresentada também
uma cifra com tablatura da música transcrita, que permitirá que o leitor rapidamente siga padrões de
acordes e os acordes como na gravação. Tal tablatura, porém, o necessariamente corresponde à
digitação utilizada por João, visto que, no instrumento, um mesmo acorde pode ser tocado de diversas
maneiras e esse não é o foco da pesquisa. Não contendo a levada do instrumento nos compassos, as
partituras apresentadas indicarão, em ambos os casos, apenas os acordes em figuras de mínima, semínima
e em algumas situações, colcheia. Para isso, deve-se levar em conta que as antecipações (síncopes) das
levadas de João, apesar de frequentes, o aparecerão escritas, salvo momento reservado a um
comentário. Sabendo que o samba em questão será escrito em 2/4, quando a figura presente no compasso
for uma mínima, quer dizer que naquele momento João toca apenas um acorde. Quando as figuras forem
semínimas, João toca dois acordes e assim por diante. Ao não apresentarmos a levada do violão, podemos
trazer ao leitor uma partitura mais limpa, mantendo o destaque na harmonia e condução de vozes do
violão, pontos que seriam dificultados caso a levada estivesse presente.
O acompanhamento de João Gilberto ao violão caracteriza fortemente sua música. O músico toca com o
polegar nas cordas 4, 5 e 6 o baixo de seus acordes, que soa especialmente mais suave, grave e abafado
que as outras cordas por não utilizar a unha nesse dedo e posicioná-lo próximo ao braço do instrumento.
Nas cordas restantes, o músico completa seus acordes, tocando então, ainda na mão direita, com uma

som de violão, com ritmo e harmonia, era metade do som que João buscava. Para ser uma entidade,
               
suavidade, cantando quase que sussurrando, inclusive iniciando a gravação de Desde que o samba é samba
com uma melodia introdutória em murmúrios.
1
Disponíveis em: https://youtu.be/BDILqAPZieU e https://youtu.be/MB-iGuBVclo. Acesso em 17 de abril
de 2022.
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Espindola, Guilherme Silva; Madeira, Bruno Decifrando o violão de João Gilberto em seu arranjo de Desde que o samba é samba (2000)
As partituras apresentadas também contarão com a cifra dos acordes tocados da gravação de 1993, para
comparação. Para auxiliar-nos na análise, as cifras da versão de Caetano, originalmente em Ré maior, serão
apresentadas transpostas para Lá maior, tom em que João Gilberto toca seu arranjo.
2. Análise formal
Antes de mergulharmos mais profundamente na harmonia posta por João Gilberto, comentaremos nos
próximos parágrafos os esquemas de estrutura e forma da canção (Figura 1), segundo cada uma das duas
gravações que serão aqui comentadas.
A Figura 1 ilustra a diferença do pensamento entre Caetano e João sobre as repetições. Nela, à esquerda,
vemos a forma de uma canção onde a seção A, inicialmente, é tocada duas vezes consecutivas, e em boa
parte com os mesmos acordes, conforme poderá ser visto mais à frente no texto. Essa repetição permite
que, na gravação de 1993, Caetano Veloso e Gilberto Gil tenham, cada um, uma seção inteira para
evidenciar suas características como cantores antes de se juntarem nos As que estão por vir. Pelas
diferenças pequenas entre tais seções da gravação de 1993, na qual os acordes de violão serão tocados
quase sempre na mesma disposição de vozes e teremos a mesma letra cantada por diferentes músicos,
coda ao final. Os restantes versos seguem
nomeados como A e restantes refrãos como B.
Ainda na Figura 1, temos a formatação do arranjo de João Gilberto: dois As consecutivos não ocorrem,
existindo sempre uma alternância com a parte B. Para esse caso, a necessidade de apontar a diferença
               
significativas entre si. Essas diferenças dão corpo a este trabalho, pois com elas conseguimos visualizar o


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Espindola, Guilherme Silva; Madeira, Bruno Decifrando o violão de João Gilberto em seu arranjo de Desde que o samba é samba (2000)
Para a gravação de João Gilberto, trataremos tais seções comentadas também com algumas divisões
internas. Ela
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Figura 1 Letra e divisão em seções de Desde que o samba é samba, de Caetano Veloso, conforme cantado pelo próprio
na gravação de 1993 (à esquerda) e por João Gilberto em 2000 direita)
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Essas divisões internas são aqui apresentadas por João tratar partes da música como um material aberto
para mudanças. Mello (2001) comenta sobre cada repetição em um arranjo de João Gilberto:
Caso o ouvinte o esteja inteiramente concentrado em cada uma das três vezes que
João costuma interpretar uma canção, suas preciosas e sutis criações não serão
percebidas, dando a falsa impressão de que interpretou a música sempre da mesma
maneira (Mello 2001, 46)
Como exemplo, analisemos a seção A por Caetano e João. Durante o trecho em 


lado, João aproveita a mudança de letra para trazer também novos acordes ou aberturas de acordes. Essas
variações serão comentadas no decorrer do seguinte tópico.
3. Comparação
O tom escolhido por João para seu arranjo de Desde que o samba é samba permite que o músico utilize
cordas soltas do violão em seu arranjo: a nota Mi da sexta corda para fundamental do acorde de
dominante, Lá da quinta corda para a fundamental dos acordes de primeiro grau e Ré da quarta corda para
os acordes subdominantes, para trazer alguns exemplos. A corda solta Si estará presente nas passagens de
quarto grau da harmonia, nos acordes de Ré com sexta e Ré menor com sexta, além de outros.
O arranjo proposto por João traz uma introdução original. Com uma melodia que não faz parte da gravação
de 1993, João se acompanha apresentando algumas sequências de acordes similares às que o músico
tocará ao longo do samba, e dessa forma, certas expectativas para o arranjo são aferidas. Em oito
compassos podemos ouvir, por exemplo, uma dominante disfarçada (Gm6 no compasso 6) e inversões que
podem deixar certos acordes ambíguos (compassos 3 e 4):
Figura 2 Divisão da forma da canção, na versão de João Gilberto, em seções e trechos
Figura 3 Introdução de João Gilberto para a canção (c. 1-8)
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Espindola, Guilherme Silva; Madeira, Bruno Decifrando o violão de João Gilberto em seu arranjo de Desde que o samba é samba (2000)
Logo no compasso 2 João toca um acorde diminuto, um diminuto de passagem sem função dominante.
             
s notas da tétrade
                   
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descendente, respeitando o movimento de baixo citado por Chediak. Considerando que a seta ()
     Bm7,        
acorde cuja fundamental é B, um semitom abaixo de C. Com as inversões de ambos os acordes postas por
João Gilberto, a sequência torna o clichê harmônico menos explícito.
O               
posicionamento do acorde no lugar de uma função dominante, pode ser interpretado como uma
preparação do quinto grau que es por vir no compasso 4. Por relações de quinta e pelas diferentes
possibilidades de resolução dos trítonos presentes em um acorde diminuto, é sabido que ele é utilizado na
preparação de acordes meio tom acima, um tom abaixo, uma quarta abaixo e uma terça maior acima.
 resolve em um acorde de E, no caso E(9, 13)/D, ou ainda, a partir das equivalências do
E(9, 13)/D, onde a progressão, antes de alcançar a resolução no acorde de E,
ainda é interpolada por Bm7/F.
Esse acorde de quinto grau (E(9, 13)/D) é um caso em que vale um comentário adicional, pois aparecerá
mais vezes no arranjo. A opção por cifrá-lo como E(9, 13)/D nesse momento privilegiou as relações de quinta
da sequência em que aparece, Bm7/FE(9, 13)/DA, que pode ser analisada como uma sequência
V , considerando as possíveis resoluções do
diminuto comentadas. João Gilberto também utilizará esse acorde como uma abertura de vozes de E(13),
que contém, enarmonicamente, not e E(9, 13)/D.
Para o caso dos compassos 6 e 7, temos uma preparação e lugar de chegada sem interrupção, rmula
exposta como Gm6Bm7/F, onde Gm6 pode ser apontado como resultante do uso da escala alterada
junto da tentativa de disfarçá-
            
alterada, para o acorde de dominante, que aqui seria F7, traz uma paleta de tensões que comporta as
notas
2
F, G, A, B, C, D, e E. A partir dessas notas, novos acordes podem ser empregados, de forma que há

comum nos arranjos de João, bem como muito presente no repertório da bossa-nova de sua discografia.
Através do uso da escala citada, o músico aponta para o campo harmônico da menor melódica, de onde,
ao partirmos de seu sétimo grau, encontramos o modo superlócrio (Figura 4):
2
Apesar de a terça maior de F ser A, nesse exemplo escrevemos como o enarmônico B para ilustrar o
pensamento em Gm6 que é apresentado na figura subsequente.
Per Musi | Belo Horizonte | v.24 | General Topics | e232409 | 2023
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Espindola, Guilherme Silva; Madeira, Bruno Decifrando o violão de João Gilberto em seu arranjo de Desde que o samba é samba (2000)
O popularizado uso dessa escala traz um recurso prático para improvisadores e arranjadores, ao permitir
que facilmente acessem uma sonoridade repleta de tensões, bastando 
Dessa forma, chega-se então na possibilidade
de montagem do acorde de Gm6 
menor com sexta, possível a partir das notas da menor melódica (1, 2, 3, 4, 5, 6, 7), escala que mantém o
trítono (B-E, enarmônico de A#-E) que irá preparar o acorde de Bm.
Cabe 7
o acorde que apontamos anteriormente como Gm6. O compasso 6 da Figura 3 mostra um acorde de
preparação para Bm7/F. Para esse caso, uma outra possível cifragem desse acorde de preparação é
C7(9)/G. João, à sua maneira, disfarça tal acorde ao tocá-lo em segunda inversão, tornando-o um acorde
menor com sexta a partir de seu novo baixo. Para esse caso de subV7, C7(9)/GBm7/F, ainda estamos
tratando da escala menor melódica, ao vermos que C7(9) é um possível acorde dentro do campo harmônico
apresentado (Figura 4), onde encontramos também o F7alt, quinto grau do acorde de B. Assim, entre
C7(9)/G e F7alt7
Figura 4 Esquema com os modos a partir do campo harmônico da escala menor melódica,
com destaque na harmonização da escala alterada
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Espindola, Guilherme Silva; Madeira, Bruno Decifrando o violão de João Gilberto em seu arranjo de Desde que o samba é samba (2000)
Enquanto Caetano inicia sua canção logo após preparar o primeiro grau, tocando a dominante e seguindo
com a letra no compasso seguinte, João, ainda após sua introdução, toca dois acordes do primeiro grau do
tom de seu arranjo, confirmando para o ouvinte o Lá maior já trazido em sua introdução (compassos 9 e 10
da Figura 5):
Nesse momento, percebemos uma diferença de função entre acordes escolhidos para o início do verso
da canção: com a versão de Caetano temos uma figura de preparação (E7, compasso 10 na Figura 5), e para
João temos uma figura de relaxamento (A6), um acorde de primeiro grau com sua tensão vinda do
compasso anterior abaixada de sétima maior (nota G♯, compasso 9) para a sexta maior no compasso 10
(nota F                
acordes de A e A6 serviram para que o músico estabelecesse o tom. Dessa forma, o diminuto
apresentado no primeiro compasso que acompanha letra de música (compasso 11) não traz ambiguidades
para o ouvinte com suas múltiplas possíveis resoluções.
Nos compassos seguintes do arranjo João segue apresentando troca de funções e interpolações. Caetano
inicia sua canção logo após preparar o primeiro grau. Toca a dominante e segue com a letra no compasso
seguinte (E7A6). João Gilberto toca um acorde diminuto logo no início do primeiro verso cantado do
samba, assim expandindo progressão que originalmente, por Caetano, fora apresentada como
VIVI (compassos 10-13 da figura 5), para uma progressão que apresenta o tom (Lá maior) e depois
tensiona, interpolando com Bø, para então alcançar a resolução em A(compassos 9-13 da figura 5).
 conforme mostra a Figura 6, faz parte de um movimento descendente cromático de vozes.
Terças menores paralelas descem com as notas E e G para D e F e dessas para C e E (Figura 6):
Esse efeito descendente para o arranjo de João parece ser uma das razões para a escolha destes acordes.
Além das terças descerem, com os acordes escolhidos temos também movimento descendente paralelo
entre as vozes restantes, com a exceção das notas B♭♭ e A entre os compassos 11-12.
Figura 6 Terças menores descendentes na versão de João Gilberto (c. 11-13)
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Espindola, Guilherme Silva; Madeira, Bruno Decifrando o violão de João Gilberto em seu arranjo de Desde que o samba é samba (2000)
A progressão onde o acorde de A, contendo o acorde de Bø interpolado entre eles, pode ser
vista de forma que o diminuto apresentado seja uma apojatura para o acorde de primeiro grau. Tendo em
consideração as equivalências de terças para o acorde diminuto apresentadas na página 9 podemos
A A, ou seja, uma apojatura para o
acorde de primeiro grau, onde o baixo pode se manter e as restantes notas do acorde de primeiro grau são
alcançadas por um pequeno movimento interno entre as vozes. Almada (2009) comenta sobre esse caso:
Diminutos sem função dominante: um dos mais típicos poderíamos, sem dúvida, assim
dizer ornamentos harmônicos do samba é o diminuto com função auxiliar sobre o I
grau. O efeito é de um acorde-bordadura, recurso que permite um enriquecimento
colorístico, sem que se deixe a função tônica (Almada 2009, 232)
O violão de João, em suas terças descendentes conforme apontado na Figura 6, contrapõe a melodia da
voz que ascende da nota E até C♯, com uma pequena quebra de direção para tomada de impulso com a
nota Lá no compasso 12 (Figura 7):
Nos próximos compassos transcritos que serão apresentados (Figura 8), João toca uma quantidade de
acordes consideravelmente maior que Caetano, às vezes adicionando diferentes funções na sequência
original, às vezes adicionando extensões aos acordes apresentados. No compasso 19, temos a adição de
uma dominante da dominante, B7/F, que resolveria em E7, acorde que João imediatamente tensiona
tocando Em/E:
No compasso 20 da Figura 8, vemos o caso da equivalência apresentada no comentário da Figura 3, onde o
 ou E(9, 13)/D. Nesse trecho, optamos
por manter a cifra de E
que acontece imediatamente no compasso seguinte. Com as notas D-G-C-E no segundo tempo do
compasso 20, ainda temos um acorde de E13 (C).
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Espindola, Guilherme Silva; Madeira, Bruno Decifrando o violão de João Gilberto em seu arranjo de Desde que o samba é samba (2000)
Nos compassos 23 e 24, observamos a dominante da dominante (B7) com tensões adicionadas por João,
trazendo inclusive um movimento cromático descendente com os acordes B7(13), B7(13) e B7/D, nas notas
G, G e F respectivamente. Mesmo nesses casos de maior quantidade de acordes por compasso, João
continua antecipando os acordes, mantendo o baixo regular nos tempos 1 e 2. A antecipação nesse trecho
não acontece quando João toca por dois compassos o mesmo acorde com a mesma distribuição de
vozes, Fm/E (Figura 9):
João aproveita a mudança da letra da canção, que na forma apresentada (Figura 2) chamamos de a2, para
trazer novos acordes em seu acompanhamento, enquanto na gravação de 1993 ouvimos essencialmente a
repetição da harmonia apresentada. No início de a2 (Figura 10), João se acompanha tocando logo uma
preparação para o IV grau, seguido da resolução que é apresentada como subdominante com a sétima
adicionada em segunda inversão, voltando em seguida para o primeiro grau do tom (compassos 27-29). Ou
seja, preservando o mesmo baixo (nota Lá), temos a sequência V7(13)/IVIV7(9)I. Entre os compassos 28
e 29, que fazem parte da sequência comentada, percebemos uma diferença no uso de funções entre
Caetano e João. Na versão de Caetano, o acorde de primeiro grau é alcançado por um movimento
dominante tônica (E7A69), enquanto na de João, ele é alcançado por subdominante tônica (D7(9)/A
A):
Na figura 10, é possível notar o cuidado de João Gilberto com os baixos utilizados para os acordes. Nos
compassos iniciais da figura acima, o músico, mesmo tocando acordes que exercem diferentes funções,
mantém um baixo pedal na nota (compassos 27-30), o que se fez possível com o acorde de IV grau
tocado em segunda inversão (compasso 28). Em contrapartida, podemos dizer, ao desconsiderarmos uma
análise da linha do baixo elétrico presente na gravação, que Caetano traz seus acordes dessa sequência em
posição fundamental, mantendo um movimento de baixo IVI entre os compassos 27-29. O baixo
pedal, enquanto se altera a função do acorde, o acorde ou as tensões do acorde, será um recurso
observado em todo o arranjo de João Gilberto para o samba.
Figura 9 Trecho com mais acordes por compasso, com antecipação (c. 19-26)
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Ao entrar pela primeira vez na parte B, João ainda toca mais acordes quando posto em comparação com
Caetano, porém, em grande parte, suas funções são mantidas (Figura 11):
Nos primeiros dois compassos da Figura 11 é possível perceber na linha de Caetano Veloso uma sequência
que prepara Fm7 em cadência de engano, com os acordes Bm7 e E7. Para essa pequena progressão temos
7/vibVII7/vivi7armonicamente a sequência, mais uma
vez tocando dois acordes por compasso, agora sendo eles também com diferentes funções. Em uma
análise funcional da sequência posta por João, temos
7/viiiø/viV7(sus9,5)/visubV7(sus9,11)/vivi7   diferentes dos acordes de Caetano,
João expande um acorde da dominante para diversos outros, tocando tanto a própria, com as aberturas de
G  (sus9,5), como a substituição de trítono para o quinto grau (G7(sus9,11)) até finalmente encontrar
Fm7.
Conforme João alcança o trecho b2, novamente observamos as diferenças de abordagens de repetições
entre ele e Caetano. Ao compararmos os compassos 43-47 da Figura 12 com os 51-55 da mesma figura, é
possível perceber que Caetano utiliza os mesmos acordes para tais compassos, enquanto João, apesar de
não necessariamente alterar funções, modifica o caráter de seu acompanhamento com novos acordes,
extensões tocadas, condução de vozes, interpolação de sequências e atrasos de lugares de chegada. Ao
invés da tradic7V7i7-45), João toca, num primeiro momento desse
øi7-53), diferentes acordes onde para Caetano pode ser
øV7(sus9,♯11) i7(9)
ao trazer a quinta como diminuta para o acorde (Figura 12).
Figura 11 Harmonização de João Gilberto para a parte B (c. 35-42)
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Espindola, Guilherme Silva; Madeira, Bruno Decifrando o violão de João Gilberto em seu arranjo de Desde que o samba é samba (2000)
Para a 
tocada em a1 ou a2, 
-
que contém um movimento convergente de vozes (Figura 14):
Em trechos como esse fica perceptível com o cuidado de João com a condução das vozes no violão, que
não costuma tocar apenas grandes blocos de acordes paralelos. Na Figura 15, que contém os 16
sos 76-80. João dispõe os acordes de D e Cm7 em movimento
Figura 13 Harmonização de João Gilberto para o trecho a’1 (c. 59-74)
Figura 14 Vozes convergindo a alcançar o acorde de Dm6, no início do trecho a1 (c. 59-60)
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divergente, de expansão, até um ápice em Em7 cujo menor intervalo entre notas consecutivas desse
acorde é de quinta justa, e com uma abertura de vozes internas que extrapola duas oitavas de distância
entre as notas dos extremos (agudo e grave). A partir desse ápice, o músico toca os acordes seguintes com
suas notas em movimento convergente, aproximando-as cada vez mais até alcançar o acorde de Dm6,
onde suas notas consecutivas não passam da distância de uma terça maior entre elas, e as notas dos dois
extremos contêm o intervalo de sexta maior, pequeno quando comparado com Em7 (compasso 78), cuja
distância dos dois extremos é de duas oitavas e uma quarta justa.
Na Figura 15, pudemos notar como João não toca frequentemente o acorde de primeiro grau (Lá maior, no
caso com sétima maior ou com sexta) em seu acompanhamento, escolha do músico que se difere à de
Caetano, que afirma Lá maior como tom tocando os compassos iniciais (75-s graus
IVIV/IVIViv6, passando mais de uma vez pelo primeiro grau. João toca uma harmonia que inicia
no quarto grau, maior, utilizando desde o primeiro compasso do trecho o acorde de A7, com função
dominante. Ao apresentarmos a sequência de acordes de João para os compassos 75-80 como graus,
temos a seguinte disposição: V7(9,13)/IVV7(13)/IVIV9)iii7ii7/IVV7(9)/IVIV6. O acorde de
maior como primeiro grau (com sétima maior ou sexta) é apresentado apenas no compasso 89, no fim do
trecho.

com seu arranjo:
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Espindola, Guilherme Silva; Madeira, Bruno Decifrando o violão de João Gilberto em seu arranjo de Desde que o samba é samba (2000)
 posição especial para João Gilberto, uma vez que as diferenças entre elas
           
será visto subsequentemente na Figura 19. Durante as pesquisas, leituras e audições para o artigo,
questões sobre a predeterminação do arranjo frequentemente surgiam. Será que João gravou a canção
lendo uma partitura, uma grade de cifras, ou de improviso, tocando de memória? Será que escolheu a
dedo os acordes que viriam ou apenas tinha noção do contorno harmônico que gostaria de fazer e na hora
improvisou as disposições de nota dos acordes? A Figura 17 a seguir nos trará um esquema visual que
mostra onde João mantém exatamente os mesmos acordes entre as seções e onde há alguma mudança:
Com a Figura 17 e materiais como a entrevista de Caetano Veloso para a Rádio Batuta no especial Nu com
a minha sica, no qual ele comenta também sobre o comportamento de João no estúdio, podemos
melhor apresentar algumas possibilidades sobre a performance do artista nessa canção, ou seja, se a
gravação é o resultado de um arranjo instantâneo, aberto ou determinado, categorias de classificação
propostas por Nascimento (2011).
Figura 17 Harmonização de João Gilberto para as seções B e B’ postas lado a lado
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Espindola, Guilherme Silva; Madeira, Bruno Decifrando o violão de João Gilberto em seu arranjo de Desde que o samba é samba (2000)
O arranjo instantâneo diz respeito àquele que é realizado no momento da performance. A partir do
comportamento de João, citado por Caetano em sua entrevista, podemos imaginar o músico agindo dessa


arranjo aberto possui certas partes indeterminadas, diferentemente do instantâneo, e que dependem da
criação dos músicos participantes, que para João, por exemplo, poderia funcionar como um esboço próprio
de seus caminhos harmônicos, onde as aberturas de vozes dos acordes viriam de forma improvisada. A
terceira possibilidade seria a de que o arranjo para essa gravação de 2000 foi totalmente determinado,
com todos os elementos cordais e rítmicos do violão pré-concebidos antes da gravação, dependendo
apenas de que o músico sente e toque. As colocações a seguir nos ajudarão a desenvolver percepções
sobre o assunto. Retomemos aqui um trecho da fala de Caetano sobre João:
Aquele disco que disseram que eu produzi dele, eu nunca produzi nada, eu ficava indo
com ele pro estúdio no dia que ele ia, e depois ninguém produz João, entendeu? João
ele... Ele na hora que ele chega o que ele quer cantar ele canta, depois muda. E não canta
umas coisas que a gente pede que ele diz que vai depois não vai, depois... Enfim, mas ele
é doce no estúdio, ele é engraçado e depois ele é complicado porque ele fica agoniado
porque ele gravou e ele tem medo de como vai ser mixado e ele não quer que fique
pronto, é uma coisa muito complexa. (Veloso 2003, n/p)
Essa citação nos a entender que João toca o que tem vontade quando está no estúdio, o que pode
implicar em uma o predeterminação de seus arranjos, e sim em uma noção harmônica prévia das
canções de seu repertório, caracterizando assim o arranjo aberto.
João, apesar das colocações de Caetano sobre seu comportamento no estúdio, possui um certo nível de
predeterminação de seu arranjo, como é visível na figura acima. Ele pode decidir em cima da hora o
repertório que vai fazer, mas a transcrição feita nos mostra que uma grande quantidade de acordes
tocados é idêntica em duas seções. Assim podemos concluir que o músico havia pensado em toda a
estrutura da música, inclusive em acordes específicos, suas disposições de vozes, notas de tensão e
condução. O que acontece é que ele pode ter reservado locais específicos para acordes intercambiáveis,

Sobre os acordes quase majoritariamente idênticos, em verde na Figura 17, vale comentar aqui os
des que se diferem em apenas em uma nota: na
seção B, o acorde não possui a quinta, o que nos dificulta sua classificação como Gm6    
olharmos para o trecho por inteiro. Ao checarmos o compasso 104 ainda na Figura 18, é perceptível a
disposição do acorde diminuto completo, em um trecho onde o ritmo harmônico é de dois acordes por

porém errou na digitação ao tocar a nota D ou simplesmente a omitiu para um diferente movimento de
vozes superiores. Posteriormente, com os acordes de E(13)  nos compassos 58 e 106 da Figura 17,
temos o caso no qual ambos os acordes podem ser interpretados como aberturas de um mesmo, conforme
comentários feitos sobre as Figuras 3 e 12, estando em uma posição de preparação para um acorde da
or vir.
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Espindola, Guilherme Silva; Madeira, Bruno Decifrando o violão de João Gilberto em seu arranjo de Desde que o samba é samba (2000)
Na seção 
Figura 18, é possível perceber uma delas no compasso 107, A7(13):
A
ao começar a reduzir o ritmo harmônico dos acordes. Além de ser menor a presença das figuras de
semínima e colcheia na transcrição a partir do compasso 111, temos a aparição, depois de muito tempo,
de repetições de acordes por dois compassos consecutivos, sendo o caso de Fm7 e Fm6 nos compassos
117-118 e 119-120. Os acordes de Fm, sejam menores com sexta, menores com sétima ou invertidos, são
os únicos que o músico toca de forma idêntica por dois compassos consecutivos na música inteira. Essa
repetição idêntica acontece também nos compassos 21-22 (Figura 8) e 69-70 (Figura 13). Exemplos de
repetições nas quais a nota fundamental do acorde é mantida, mas é feita uma alteração das demais notas
podem ser observados ao longo de todo o arranjo, como por exemplo no compasso 108 da Figura 18, onde
João toca Dm6 após D6, e também nos comp.

difere tais trechos um do outro, mesmo possuindo gravação de João,

tocou o trecho a1. Comparemos rapidamente aqui os três trechos para visualizarmos a diferença entre os
três.
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Espindola, Guilherme Silva; Madeira, Bruno Decifrando o violão de João Gilberto em seu arranjo de Desde que o samba é samba (2000)
Essas diferenças, além de se caracterizarem por maiores e/ou menores quantidades de acordes em
diferentes momentos, contemplam substituição de acordes por outros de função similar ou não. A imagem
apresentada permite que o leitor veja como um mesmo trecho a1 em uma harmonia que para Caetano
               
personalidade do arranjador.
Ainda  17 compassos do fim do arranjo, João toca mais um
acorde ainda não apresentado anteriormente, como pode ser conferido no compasso 129 da Figura 20:
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Espindola, Guilherme Silva; Madeira, Bruno Decifrando o violão de João Gilberto em seu arranjo de Desde que o samba é samba (2000)
Esse acorde, G7(11), será tocado novamente antes de F7 no compasso 141, acorde que prepara a última
6 e então, finalmente, apenas as notas A e G, como
um acorde de A com terça e quinta omitidas (Figura 21):
Apesar da tensão desse intervalo final de sétima maior tocado por João, com as notas A e G, o efeito
ainda é de conclusão e de acorde de primeiro grau, pelo fato de o músico ter apresentado logo antes a
tríade maior com sexta adicionada (c. 145), confirmando a tônica.
4. Considerações Finais
João Gilberto arranjou o samba trabalhando sempre com tétrades, alterando o ritmo harmônico,
antecipando baixos, invertendo acordes e conduzindo aberturas com tensões em movimentos fluidos.
Esses pontos, somados a outros que não foram o foco do artigo, como a antecipação, o atraso da melodia,
a utilização de cordas soltas no violão e a alteração da forma constituem algumas das características
trazidas por João Gilberto para seu arranjo da canção.
Para acompanharmos a condução harmônica de João Gilberto para a canção, foi apresentada a transcrição
dos acordes tocados pelo músico, em comparação à harmonia da versão de Caetano Veloso, músico que já
compôs o samba majoritariamente com o uso de tétrades em seu violão. Quando a canção chega às mãos
de João, vemos muitas adições de tensões acordes de subdominante, de dominante e também de tônica
Figura 20 Harmonização de João Gilberto para trecho a’2 (c. 123-138)
Figura 21 Harmonização de João Gilberto para compassos finais da canção, trecho a’’3 (c. 139-146)
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Espindola, Guilherme Silva; Madeira, Bruno Decifrando o violão de João Gilberto em seu arranjo de Desde que o samba é samba (2000)
recebem tais notas. Ou seja, observamos o músico construindo um novo arranjo para a canção. Uma
orquestra em seis cordas é montada e o músico apresenta essas tensões adicionadas com o cuidado de
movimentá-las muitas vezes em graus conjuntos mesmo dentro de seus blocos de quatro notas. Esse
cuidado com a condução das vozes é observado por Mello (2001), quando contrapõe a realização arpejada
à em bloco:
João abominava tocar os acordes em arpejo, isto é, uma corda depois da outra. As notas
eram feridas todas ao mesmo tempo, num bloco, e dessa maneira o violão soava como o
acompanhamento completo, a orquestra de um violão, com quatro notas de cada vez,
emitidas pelo dedo polegar, pelo indicador, pelo médio e pelo anular (Mello 2001, 39)
Mesmo com maior quantidade de notas de tensão, os acordes sempre possuem no máximo quatro notas,
o que faz parte de sua técnica tradicional do violão, correspondendo assim ao uso do polegar para os
baixos nas cordas 4, 5 e 6 e os dedos i, m, e a para as notas restantes que completam o acorde.
Em certos casos, acordes foram substituídos, como um novo recurso além da adição de tensões. João
manteve, em grande parte, resoluções da versão original nas sequências harmônicas presentes, alterando
então o caminho de preparação, apresentando ao ouvinte novos elementos no baixo, no movimento
interno de vozes e na própria harmonia, com novos acordes, não se limitando a apenas um desses
elementos.
Com a harmonia escolhida, o músico ao mesmo tempo que tensiona adicionando notas aos acordes,
também afirma sua identidade no uso de clichês harmônicos do samba, seguindo tradições. Além deles, a
levada carregada pelo violão também é um dos elementos que faz essa importante relação com a tradição.
A parte rítmica do instrumento frequentemente apresenta uma clave que remete ao samba através de sua
síncope. Somando isso com a presença de poucas variações da levada, o ouvinte pode reconhecer o ritmo
do samba com maior facilidade. Enquanto a música segue repleta de alterações de harmonia e melodia,
principalmente quando se percebe o deslocamento rítmico, no acompanhamento é mantido firme a levada
de referência do samba. A Figura 9, por exemplo, nos mostrou um trecho onde João, com o violão,
mantém nos mesmos lugares a antecipação da nota do baixo e as notas restantes do acorde, em um
trecho de ritmo harmônico dobrado. Ou seja, apesar de João entrar em uma breve parte com mais acordes
e uma nova levada, ela é apresentada de forma consistente e de rápida assimilação para o ouvinte do
samba. Para esse caso, esse novo padrão rítmico é interrompido rapidamente durante a passagem pelo
acorde de Fm7/E, tétrade sem tensões adicionadas e que se repete por dois compassos consecutivos.
Ao selecionar um dos arranjos de João Gilberto e colocá-lo lado a lado com a versão originalmente lançada,
foi possível perceber elementos que caracterizam seu estilo interpretativo e de arranjo. Para além dos
pontos levantados nesse trabalho, destacamos também como constituintes da identidade musical de João
seu trato da melodia (síncopes, atrasos, antecipações e utilização da voz como elemento complementar
para alguns acordes) e seu acompanhamento rítmico ao violão (variações rítmicas, antecipações), temas
que podem ser abordados em futuras pesquisas e que colaborarão para uma compreensão ainda mais
completa do seu fazer musical.
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5. Referências
Almada, Carlos. 2012. Harmonia Funcional. Segunda edição. Campinas: Editora Unicamp.
       
submetida ao Programa de Pós- Graduação em Música do Centro de Letras e Artes da UNIRIO, como
requisito parcial para obtenção do grau de Mestre. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro.
Bessa, Virgínia de Almeida. 2010. A escuta singular de Pixinguinha: História e música popular no Brasil dos
anos 1920 e 1930. Primeira edição. São Paulo: Alameda Editorial.
Chediak, Almir. 1986. Harmonia & Improvisação. Sétima edição. Rio de Janeiro: Lumiar Editora.

Kennedy, Michael. 1994. Dicionário Oxford de Música. Lisboa, Portugal: Publicações Dom Quixote.
Mello, Zuza Homem de. 2001. João Gilberto. Primeira edição. São Paulo: Publifolha.
             
UNICAMP para obteno do ttulo
de Doutor em Msica, na rea de Etnomusicologia. Campinas: Universidade Estadual de Campinas.
Sadie, Stanley. 1994. Dicionário Grove de Música. Edição Concisa. Primeira edição. Rio de Janeiro: Zahar
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Veloso, Cae
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Rio de Janeiro: Rádio Batuta, Instituto Moreira Sales (IMS).