caracterização do trabalho de Duprat numa perspectiva ampla e bem integrada aos arranjos que foram
analisados, além de terem capacitado o autor a dar os devidos contornos do rico quadro cultural em que o
tropicalismo floresceu.
Refiro-me inicialmente ao conceito de círculo colaborativo, que Lana toma de Michael Farrell e com o qual
consegue evidenciar as particularidades tanto do grupo Música Nova – do qual Duprat fazia parte, tendo
sido inclusive, segundo os colegas, o principal responsável pelo texto do manifesto de 1963 – quanto dos
outros dois grupos fundamentais no cenário de então: os concretistas e os tropicalistas. Para Farrell, os
círculos colaborativos são marcados por valores afetivos e interesses compartilhados, bem como por
afinidades estéticas e políticas geralmente em antagonismo com a posição hegemônica no campo
profissional em que atua o grupo. Com base nesse autor, Lana consegue não só traçar muito bem o perfil
de cada um desses grupos, como também flagrar as razões da colaboração entre eles.
Já o outro conceito a que aludi é mais conhecido dos músicos, principalmente dos familiarizados com a
literatura etnomusicológica. Trata-se de musicking, presente no livro homônimo de Christopher Small e
que Lana diligentemente propõe traduzir com o neologismo "musicação". Com ele, como se sabe, Small
procurou retirar o acento da música do âmbito idealista e abstrato das obras para colocá-lo na ação de
musicar, evidenciando que, uma vez que esta se apresenta em meio às relações humanas, é precisamente
o conjunto de todas elas (expostas de forma não hierárquica) que vai criar e transformar os significados da
música. Aproximando Small de John Cage e da influência deste sobre Duprat, Lana dá um passo decisivo
para compreender o cenário no qual enxerga a vida e a obra desse grande músico: Duprat, a seu modo,
teria se deslocado do papel inicial para o qual se formara, de compositor ou intérprete, para assumir como
estranho o que era inicialmente familiar, primeiro passo para incorporar as dobras, os resíduos, o
descartado, o entorno da "música", tornando tudo isso musicável e funcional para o uso em seus arranjos.
Após a apresentação desse aparato teórico, colocado em frutífero confronto com a experiência concreta
dos percursos dupratianos, ocorre uma suave focalização no livro em favor do trabalho com o tropicalismo,
os arranjos e as gravações. Insisto no caráter suave porque não há mesmo nenhum corte brusco aqui, nada
que nem de longe se assemelhe a um procedimento do tipo "agora que terminei de tratar da vida, começo
a análise da obra", fórmula mais do que comum em trabalhos acadêmicos convencionais. Pelo contrário,
toda a trama que enreda os aspectos musicais, biográficos, históricos e socioculturais do objeto está muito
bem urdida no livro e é a todo momento recuperada pela escrita elegante, pelo trato rigoroso e pela
disposição dos vários tópicos, sempre dialogantes entre si.
Ressalte-se, contudo, que é principalmente nesse aprofundamento tropicalista que vai se adensando outra
grande contribuição de Lana para os estudos de música popular brasileira. São as entrevistas que o autor
conseguiu realizar com personagens fundamentais de toda essa história: desde Régis Duprat, irmão de
Rogério, e Lali , sua viúva, passando por Rafael Menezes Bastos, antropólogo e ex-aluno de Duprat na UnB,
Júlio Medaglia e Sandino Hohagen, seus companheiros de Música Nova, até pessoas mais diretamente
ligadas ao universo tropicalista e à produção das gravações: os técnicos Johann Gunther Kibelkstis, Stelio
Carlini e Manoel Barenbein, o luthier e inventor de equipamentos Cláudio Dias Baptista, além do próprio
Gilberto Gil.