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eISSN 2317-6377
Práticas e estratégias dos/das vachayi va timbira em
Maputo (Moçambique) para a manutenção e
reinvenção de suas artes musicais
Practices and strategies of vachai va timbira in
Maputo (Mozambique) to maintain and reinvent their musical arts
Micas Orlando Silambo
Universidade Eduardo Mondlane, ECA-UEM, Maputo, Moçambique
yanikmicas@gmail.com
SCIENTIFIC ARTICLE
Section Editor: Ronan Gil de Morais e Luís Bittencourt
Layout Editor: Edinaldo Medina
License: "CC by 4.0"
Submitted date:18 sep 2023
Final approval date: 02 oct 2023
Publication date: 18 oct 2023
DOI: https://doi.org/10.35699/2317-6377.2023.48112
RESUMO: Esta pesquisa reflete sobre as práticas e estratégias aplicadas pelos vachayi va timbira em Maputo,
Moçambique, para a reinvenção e manutenção das suas artes musicais. A investigação é alicerçada no Campo
Empírico Gestual, Oral e Prático em diálogo com a Musicologia Africana e Etnomusicologia com destaque para Emily
Akuno, Kwabena Nketia, Luka Mukhavele, Madimabe Mapaya e Meki Nzewi. A etnografia enquanto base da
pesquisa foi materializada pela observação, entrevista, registro fotográfico e pesquisa bibliográfica. Através dessa
epistemologia e metodologia se destacam como práticas e estratégias: 1) Reaproveitamento de materiais
descartados para instrumentos musicais; 2) Troca de saberes de forma prática e aberta; 3) Treinamento autodidático
por meio de experimentos de erros e acertos; 4) Aprendizagem através de observação, audição e repetição;
5) Exploração de artes musicais do sudeste da África; 6) Introdução de instrumentos musicais em diversos espaços;
7) Valorização do trabalho manual; 8) Desenvolvimento de atividades multidisciplinares.
PALAVRAS-CHAVE: Vachayi va timbira; Mbira; Práticas musicais e reinvenção; Maputo; Moçambique.
ABSTRACT: This research reflects on the practices and strategies applied by the vachayi va timbira in Maputo,
Mozambique, to reinvent and maintain their musical arts. The research is based on the Gestural, Oral and Practical
Empirical Field in dialogue with African Musicology and Ethnomusicology with emphasis on Emily Akuno, Kwabena
Nketia, Luka Mukhavele, Madimabe Mapaya and Meki Nzewi. Ethnography as the basis of research was materialized
through observation, interviews, photographs, and bibliographical research. Through this epistemology and
methodology, practices and strategies stand out: 1) Reusing of discarded materials for musical instruments;
2) Exchange of knowledge in a practical and open way; 3) Self-taught training through trial and error experiments;
4) Learning through observation, listening and repetition; 5) Exploration of musical arts from southeast Africa;
6) Introduction of musical instruments in different spaces; 7) Valuing manual work; 8) Development of
multidisciplinary activities.
KEYWORDS: Vachayi va timbira; Mbira; Musical practices and reinvention; Maputo; Mozambique.
Per Musi | Belo Horizonte | v.24 | Section RePercussions | e232418 | 2023
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Silambo, Micas Orlando. “Práticas e estratégias dos/das vachayi va timbira em Maputo (Moçambique) para
a manutenção e reinvenção de suas artes musicais”
1. Introdução
1
A manutenção e revigoração da educação cultural africana, principalmente ao sul do deserto do Sahara,
passam pela compreensão de aspectos específicos desenvolvidos por pessoas locais que se inspiram na sua
ancestralidade. Alguns desses aspectos podem ser encontrados na música de mbira (Fig. 1).
Figura 1 Mbira Nyunganyunga
2
Fonte: Arquivo pessoal do autor
Kubik (1998) pontua que a invenção da mbira com lamelas de palmeira de fia/bambu data de 3000 anos
atrás no Centro-Oeste de África, tendo-se disseminado pelo continente. Com o desenvolvimento da
tecnologia de ferro as lamelas vegetais foram permutadas pelo metal no Vale do Zambeze
3
há,
aproximadamente, 1300 anos atrás
4
(Fig. 2).
a) b)
Figura 2 Instrumentos africanos com lamelas: a) Mbira com lamelas de bambu, b) Mbira com lamelas de metal
Fonte: Kubik (1998)
1
Este artigo é resultado de trabalho de doutoramento no PPGMUS-UFPB.
2
Esta mbira foi construída por Osvaldo Cavele, discípulo do mestre Ozias Macoo.
3
Esta região compreende a maior parte do que era Rodésia do Sul (Zimbábue), sul e centro de
Moçambique, sul e leste da Zâmbia, sul do Malawi e norte de Transvaal na África do Sul (Tracey 1972, 85).
4
The mbira appears to have been invented twice in Africa: a wood or bamboo-tined instrument appeared
on the west coast of Africa about 3,000 years ago, and metal-tined lamellophones appeared in the Zambezi
River valley around 1,300 years ago (Kubik 1998, 24).
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Silambo, Micas Orlando. “Práticas e estratégias dos/das vachayi va timbira em Maputo (Moçambique) para
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Berliner (1978, 18) aponta que a mbira “de metal” teve origem mais de 1500 anos na tribo Zezuru,
pertencente à etnia dos vaShona, grupo dos falantes de Bantu
5
, que vive entre rios Zambeze e Limpopo no
Zimbabwe e em uma parte de Moçambique e Zâmbia”. As evidências arqueológicas e históricas pontuam o
fato que a mbira era um instrumento antigo entre o povo vaShona, pois os arqueólogos descobriram vários
exemplos das partes de mbira nas ruínas de Inyanga e Niekerk no noroeste de Zimbabwe entre 1500-1800
(Berliner 1978, 28). Mas, também, existem evidências encontradas em diários de campo dos primeiros
europeus que o indicações da prática da música de mbira entre os vaShona antes do aparecimento do
material documentado sobre este instrumento.
Os diários dos primeiros europeus e aventureiros no Sul da África, explicitamente,
indicam que os vaShona tinham ferreiros, altamente, habilitados e que a mbira era
um instrumento musical bem estabelecido entre os vaShona pelo menos no século
XVI. Além disso, também é sabido que a mbira era um instrumento musical
importante entre os vaShona muito antes da primeira documentação impressa
6
.
(Berliner 1978, 02)
A mbira é, portanto, um instrumento musical africano constituído por lamelas (palhetas ou teclas)
metálicas ou vegetais. Em visão africana
7
, ela faz parte dos instrumentos melódicos arranhados de afinação
fixa. É melódico, porque produz alturas definidas. A mbira é um instrumento arranhado, pois o performer
através de dois ou três dedos arranha as respectivas lamelas como técnica específica de dedilhado. Este
instrumento é caracterizado por uma afinação fixa, pois é ajustado ao interesse da sua dona ou seu dono
durante a construção, não se podendo alterar a afinação durante a execução.
A performance da mbira é, tradicionalmente, integrada em rituais de nomeação de chefes locais após a
morte do antecessor, pedido de chuva, agradecimento aos ancestrais pela proteção e boa colheita, festas
de bebidas tradicionais para matar a sede dos ancestrais, iniciação ou possessão espiritual e para
propósitos de cura, boas-vindas ao espírito dos mortos após a morte de um idoso e outras práticas do dia a
dia
8
(Gumboreshumba 2009, 31; Matiure 2009, 29).
5
Termo próprio de língua africana que significa O Povo.
6
[…] the diaries of the first European missionaries and adventures in Southern Africa clearly indicate that
the shona were highly skilled blacksmiths and that the mbira was well-established musical instruments
among the shona at least by the sixteenth century. Moreover, it is most likely that the mbira was an
important musical instrument among the shona long before its first printed documentation (Berliner 1978,
29).
7
Sobre esta classificação, filosoficamente africana, Nzewi (2007, 161) revela que os instrumentos
melódicos produzem dois ou mais tons definidos por técnicas específicas de dedilhado e/ou embocadura.
Os instrumentos melorítmicos, continua o autor (Nzewi 2007, 81), produzem estruturas rítmicas,
melodicamente, implícitas. O seu caráter tonal é marcado por harmônicos brutos que tendem a mascarar
as alturas definidas que caracterizam os instrumentos melódicos, propriamente ditos. No entanto, a
fundamental dos harmônicos agrupados de cada nível de tom atinge a altura definida da fundamental
quando transferido para a voz humana, produzindo melodias cantáveis, principalmente, de forma silábica.
Os instrumentos percussivos, por sua vez, são usados como efeitos sonoros estéticos ou psicológicos
conforme as situações de performance.
8
Essas cerimônias são realizadas em qualquer mês, com exceção de novembro, pois, de acordo com as
crenças dos vaZezuru (parte dos vaShona), é um tabu fazer qualquer ritual neste mês, que ele é
dedicado ao descanso do espírito ancestral após ele ter trabalhado o ano todo (Matiure 2009, 28).
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Silambo, Micas Orlando. “Práticas e estratégias dos/das vachayi va timbira em Maputo (Moçambique) para
a manutenção e reinvenção de suas artes musicais”
Os estudos sobre a música de mbira no continente africano têm sido desenvolvidos por pesquisadores e
pesquisadoras do campo da Etnomusicologia desde a segunda metade do século XX. Blacking (1961)
introduz, em seu texto, a música dos vaNsenga de Rodésia do Norte (Zâmbia) usada nos rituais da
puberdade. Andrew Tracey (1961) descreve as músicas que lhe foram ensinadas por Tapera. Nos artigos
The Original African Mbira (Tracey 1972) e The Family of the Mbira (Tracey 1974) ele apresenta algumas
evidências de diferentes tipos de afinações da mbira para mostrar ao leitor que os diferentes tipos de
mbira descendem da kalimba “africana” de seis notas. No The System of the mbira (Tracey 1989), ele
defende que o fato de existir um som, uma cnica, um sistema que as pessoas tocadoras de mbira
reconhecem e cujas fronteiras geográficas podem ser traçadas coloca em foco uma área de África “pura”
que compartilha um sistema de música definível. Entretanto, Hugh Tracey (1969) problematiza o sistema
de afinação da mbira, demonstrando que um mesmo tipo de mbira pode apresentar diferentes frequências
sonoras em sua estrutura de afinação.
Em sua contribuição, Berliner (1978) apresenta a classificação, construção, técnica de execução,
ocorrência, relação executante-instrumento, e, faz uma análise e apresentação de cinco tablaturas do
repertório clássico da mbira. No seu catálogo Duarte (1980) retoma a classificação, construção, cnica de
execução, ocorrência e o enquadramento contextual da mbira. Estes aspectos são desenvolvidos em Dias
(1986). Mais adiante, Maraire (1991) discute questões sociais e espirituais da mbira, as versões da mbira,
as teclas, as notas, o dedilhado, a afinação e faz uma introdução da textura da música dos vaShona através
de alguns exercícios de aprendizagem da execução em tablatura.
No início do atual século, Kubik (2002) apresentou os conhecimentos sobre os instrumentos musicais da
classe dos idiofones (lamelofones) dedilhados, difundidos na África subsaariana, suas diversidades em
formas e tecnologias. Por sua vez, Ikeya (2006) caracteriza quatro versões de mbira usadas pelos vaSan do
centro de Botswana (Enate, Karanyane, Taon e Runba). Nessa linha pesquisa, Jahn (2007) discute sobre a
organologia da mbira (luliimba) destacando o nome, história e uso recente do instrumento, as suas partes
no idioma local, o esquema de afinação, a técnica de execução, os contextos e ocasiões da sua
performance, os músicos e o modo de transmissão do instrumento como herança cultural. Em sua
dissertação Matiure (2009) apresenta e analisa a relação entre os modos
9
e sistemas de afinação da mbira
dzaVadzimu, e a possessão do espírito Zezuru em uma performance encenada.
No desenvolvimento da pesquisa, Van Dijk (2010) discorre sobre as semelhanças e diferenças de dois tipos
de kalimba (kankobele e ndandi) dos vaLala de Zâmbia dando ênfase para o esquema de afinação,
processo de colocação e desvio das notas das teclas, as combinações sonoras das teclas, bem como as
categorias e características musicais, as estruturas tonais e melódicas. Recentemente, Macoo (2021)
refletiu sobre a mbira nyunganyunga inovada, consubstanciando, contemporaneamente, a preparação da
tábua harmônica, teclas, a incorporação dos sistemas de captação eletroacústicos e as formas de
conservação da mbira. Finalmente, Mukhavele (2022) propõe abordagens, métodos e técnicas inovadoras,
como soluções experimentais que desafiem o potencial dos instrumentos musicais tradicionais,
promovendo a sua revigoração e, consequentemente, produzir instrumentos e sicas que sejam
adequados/as e relevantes nos contextos contemporâneos locais e globais.
9
Peças caracterizadas por frases de estruturas rítmico-melódicas ou movimentos arranhados (dedilhados)
típicos da mbira.
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Silambo, Micas Orlando. “Práticas e estratégias dos/das vachayi va timbira em Maputo (Moçambique) para
a manutenção e reinvenção de suas artes musicais”
Não pretendo esgotar os textos que têm sido publicados sobre a mbira. No entanto, nas dezessete
pesquisas aqui apresentadas apenas as de Duarte, Dias, Macoo e Mukhavele tiveram foco para
Moçambique, sendo as duas últimas de pesquisadores moçambicanos. Por outro lado, não encontrei
nenhuma obra que mostra como os mestres e mestras da mbira têm se reinventado.
Portanto, esta pesquisa visa compreender as práticas e estratégias aplicadas pelos/as vachayi va timbira
em Maputo, Moçambique
10
(Fig. 3) para reinvenção e manutenção das suas artes musicais. As
racionalizações epistemológicas africanas originais apresentam as artes musicais como uma ciência
afetuosa que integra, conceitualmente, as expressões sônicas, coreográficas, dramáticas, gestuais e
materiais, desde a criatividade até a ação pública e a experiência”
11
, explica Nzewi (2019, 77). Akuno capta
isso ao observar que as artes musicais
[...] demonstram a conjunção das formas expressivas de arte em performances que
expressam momentos, culturalmente, significativos. Incorporando som (vocal e não
verbal), texto (verbal e o verbal), figurino (incluindo máscaras), decoração, movimento
corporal, drama e exibições teatrais relacionadas e artefatos materiais (incluindo
instrumentos musicais), essa expressão cultural não pode ser simplesmente chamada de
música devido à sua natureza multidimensional
12
. (Akuno 2019, 02)
Figura 3 Mapa de Moçambique (em vermelho) no continente africano
Fonte: Dreamstime
13
Esse é o pensamento que fundamenta a prática dos/das vachayi va timbira. A expressão vachayi va timbira
(singular muchayi wa mbira) é composta por três partes distintas encontradas em duas variantes da língua
10
Maputo é a Capital de Moçambique, país localizado no sudeste do Continente Africano.
11
Original African epistemological rationalisations present the musical arts as a soft science that
conceptually integrates the sonic, choreographic, dramatic, gestural and material expressions, from
creativity to public action and experiencing (Nzewi 2019, 77).
12
Musical arts, the term developed, demonstrates the marriage of the expressive art forms in
performances that express culturally significant moments. Incorporating sound (vocal and otherwise), text
(verbal and non-verbal), costume (including masks), décor, body moment, drama and related theatrical
displays and material artefacts (including music instruments), this cultural expression cannot be simply
called music because of its multidimensional nature (Akuno 2019, 02).
13
Disponível em: https://pt.dreamstime.com/mapa-de-moçambique-áfrica-image112748706 Acesso em:
03 mai 2023.
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Silambo, Micas Orlando. “Práticas e estratégias dos/das vachayi va timbira em Maputo (Moçambique) para
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xiTsonga, o xiDronga e xiChangana. Essas variantes linguísticas são, comumente, faladas na zona Sul de
Moçambique, sendo xiChangana recorrente na província de Gaza e xiDronga em Maputo.
As palavras vachayi ou vatovi (singular muchayi ou mutovi) provêm, etimologicamente, dos verbos tocar
(kuchaya ou kutova
14
). O verbo kuchaya, tal como kutova, é constituído por três partes: (i) prefixo ku-
(morfema que sempre antecede a raiz verbal para marcar o infinitivo, como acontece com “to” na língua
inglesa); (ii) raiz verbal -chay- ou -tov- (a própria ação - tocar); e (iii) a vogal final -a.
Os prefixos va- (singular mu-) que aparecem nas palavras vachayi ou vatovi e muchayi ou mutovi são
marcas de sujeito que desempenha a ação (profissão) de tocar e, geralmente, as profissões nesse grupo
linguístico apresentam a vogal final -i. Os morfemas va (singular wa) que se encontram entre as duas
palavras que constituem as expressões
15
desempenham a mesma função que a preposição “de” usada na
língua portuguesa.
O termo timbira (singular mbira) refere-se a mais de uma mbira. Note que o plural da classe dos objetos
ou dispositivos (instrumentos musicais) é marcado pelo morfema ti- (timbira) tendo uma marca de singular
ausente, ou seja, marcada simplesmente pelo nome próprio do instrumento (mbira). Logo, muchayi wa
mbira é uma designação usada para referir a uma pessoa tocadora de mbira, sendo vachayi va timbira, o
plural.
A pesquisa das práticas e estratégias dos/das vachayi va timbira exigiu um panorama, densamente,
contextuado no Campo Empírico Gestual, Oral e Prático em diálogo com os campos da Musicologia
Africana e Etnomusicologia com destaque para pesquisadores/as como Emily Akuno, Kwabena Nketia, Luka
Mukhavele, Madimabe Mapaya e Meki Nzewi. Entendo o campo empírico, nesta pesquisa, como um
espaço de vivência, absorção e argumentação prática do saber da música de mbira, especialmente, por
meio de experimentos e/ou observações que ocorrem num ambiente de relacionamento diário das
pessoas entre si, com a música e suas dimensões afins. O conhecimento é, nesse campo, construído por
meio de tentativas e erros do que se fala de boca a boca e/ou do que se faz de gesto a gesto, exercitando
de maneira concreta e espontânea o corpo para se processar a construção do instrumento, a partilha da
sabedoria, e a absorção dos multifacetados sistemas e repertórios. No próximo tópico buscarei evidenciar
como foi conduzida a pesquisa.
2. Contextos e caminhos metodológicos para a compreensão do processo de
reinvenção e manutenção da arte dos/das vachayi va timbira
Esta investigação foi orientada por meio de uma pesquisa etnográfica, consolidada em um trabalho de
campo que, entre os anos de 2019 e 2022, proporcionou uma interação com os/as vachayi va timbira em
Maputo (Moçambique), onde eu nasci (Fig. 4). Neste local desde, aproximadamente, o ano 2000 têm-se
realizado atividades para a revigoração da mbira, mas que carecem de registros formais para uma
compreensão científico-acadêmica.
Historicamente, durante a dominação colonial, KaMpfumo (Maputo) era conhecido como Lourenço
Marques. Este então, dito distrito de Portugal estava localizado dentro do Estado de Gaza que corresponde
14
No sentido de arranhar.
15
Vachayi/Vatovi va Timbira (singular Muchayi/Mutovi wa Mbira).
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ao que hoje em grosso modo são denominadas regiões sul e centro de Moçambique. O Estado de Gaza era
independente e representava uma barreira à afirmação portuguesa na região. Assim, na década de 1890,
teve uma campanha militar liderada por tropas portuguesas na região sul de Moçambique, terminando
com a derrota do exército de Gaza em 1895 (Liesegang 1996). Após a derrota, Lourenço Marques cresceu
que desse espaço se assegurava, através de uma linha-férrea, o escoamento dos bens das regiões
interiores da África do Sul (Meneses 2021).
Figura 4 Mapa de Maputo em Moçambique
Fonte: Wikipedia (modificações do autor)
16
Assim, intensificaram-se as dinâmicas no sul de Moçambique culminando com a criação do Concelho de
Lourenço Marques. A expansão e crescimento econômico desta região terão sido alguns dos elementos
que contribuíram para a transferência da capital da colônia da Ilha de Moçambique ao norte, para
Lourenço Marques ao sul em 1898. O desenvolvimento da nova capital promoveu (i) a construção de
infraestruturas (portos, caminhos de ferros, edicios e mais), (ii) a interação multicultural entre a
população negra nativa, os colonos brancos, os comerciantes árabes e mais, (iii) a segregação racial, (iv)
uma entrada massiva, também, de muitos moçambicanos incluindo músicos na nova capital
17
, assim
como (v) uma ocupação crescente das áreas habitadas pelas pessoas africanas por parte dos colonos. Os
primeiros projetos de ampliação urbana de Lourenço Marques, no final do séc. XIX pautou pelo
confinamento da população africana e a de origem asiática a áreas pré-definidas (Menezes 2021, 114).
Assim, surgia a cidade de caniço onde eram confinadas, em geral, as pessoas negras nativas e a cidade de
cimento ocupada por pessoas brancas.
“O funcionamento da cidade de cimento dependia da participação de uma enorme mole de trabalhadores
negros que habitavam nos bairros suburbanos do caniço” (Lage 2018). Neste contexto, as pessoas
africanas viviam, miseravelmente, em barracas e eram obrigadas a pagar renda pelo espaço que
ocupavam, que noutro tempo pertencia aos seus avós, mas que naquela altura era possuído a título
legítimo por europeus (Meneses 2021, 121).
Enfim, devido a intensificação multicultural influenciada pela nova capital, vários grupos socioculturais
moçambicanos como Makonde, Yao, vaNyanja, vaNsenga, vaShona, vaNyungwé, vaTsonga, vaNguni entre
outros, também, migravam para a capital, trazendo consigo os seus costumes culturais em termos de
comidas, bebidas, vestes, estilos, canções, danças, instrumentos musicais e mais impactando na
16
Disponível em: https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Maputo_(província) Acesso em: 03 mai 2023.
17
Cf. Silambo (2022, 04).
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Silambo, Micas Orlando. “Práticas e estratégias dos/das vachayi va timbira em Maputo (Moçambique) para
a manutenção e reinvenção de suas artes musicais”
diversidade cultural dos anos subsequentes e no tipo de informações conseguidas nessa e outras
pesquisas.
Nesse contexto, a minha imersão no universo investigativo da música de mbira vem desde 2008, numa
ocasião em que foi executada pelo Pedro Júlio Sitoe, atual professor de etnomusicologia e mbira da Escola
de Comunicação e Artes da Universidade Eduardo Mondlane (ECA-UEM). Por volta de 2010, 2011 e 2012
fui, no bairro de Costa de Sol
18
, aprender a construção e execução da mbira nyunganyunga na oficina da
Mukhambira sob orientação dos mestres Oziyas Makoo e Luka Mukhavele. Aos poucos fui conhecendo os
mestres Ivan Mucavel, Xitaro, May Mbira, Maneto Tefula, Xakada, Nharira, NBC Gás Butano, Nhacule entre
outros/as, não só nas suas oficinas, como também, nas jam sessions que eram realizadas, frequentemente,
na Associação dos Músicos Moçambicanos (AMM) em Maputo
19
.
Com a concepção da Festa da Mbira (FM) em 2017 passei a participar, ativamente, nas suas performances,
partilhando o que se comia, bebia, cantava e tocava. Acabei conhecendo outros/as mestres/as como
Alcides Pires, Beauty Sitoye, Cheny Wa Gune, Delta Cumbane, Eugénio Santana, Júlio Marquel, Pivi
Marquel, Roland Lamussene, Virgínia Uamusse, Zé Maria e outros/as. Estas performances se desdobravam
para as lareiras que aconteciam nas comunidades com enfoque para o evento Karingana wa Karingana
realizado em Marracuene, Matola, KaMpfumo e outros distritos. Para além desses contextos participo
continuamente no Festival Raiz Tradicional e nas oficinas
20
de revigoração da mbira (construção,
remodelação, execução e transmissão). Como muchayi wa mbira, durante a pesquisa, consolidei a minha
prática com o mestre Ivan principalmente da mbira dzaVadzimu, como também, aprimorei a absorção do
repertório da mbira nyunganyunga com os mestres Zande Mudolas e Maneto Tefula.
Portanto, o trabalho de campo etnográfico permitiu a minha imersão como um moçambicano no cerne
desta prática mediante uma significativa interação humana face a face com pessoas moçambicanas,
possibilitando a compreensão holística do modo como eu e elas nos relacionamos com as artes musicais da
mbira.
Devido a esse envolvimento, este foi um trabalho de campo em casa rico em oportunidades de cooperação
e de fácil imersão nos seus diferentes contextos o que possibilitou um engajamento em propósitos e
projetos não, necessariamente, vinculados à pesquisa
21
. Tornei-me membro integrante da Festa da Mbira,
não apenas para atuação em diferentes palcos, mas também para sensibilizar através de canais como a
televisão, Facebook, de boca a ouvido e outros as pessoas a participar, ativamente, neste evento e no
movimento da revigoração da música de mbira em Maputo. Em várias edições da Festa de Mbira e do
Festival Raiz Tradicional (FRT) trabalhei como painelista ou conferencista em temáticas ligadas à música
africana, em particular, a de mbira.
A minha imersão nestes cenários foi uma estratégia de pesquisa e de construção coletiva para o bem-estar
humano e cultural. Ela possibilitou minha participação no Fórum de Música Tradicional de Moçambique
(FOMUTRAMO), que elaborou o projeto inicial da candidatura de “Lamelofones” em Moçambique
18
Distrito Municipal KaMavota, província da Cidade de Maputo.
19
Antes da pandemia a AMM em Maputo era o maior espaço onde os/as mestres/as se encontram para
construir, comercializar, tocar e transmitir a mbira.
20
Principalmente na Mukhambira e na Modern Mbira.
21
Cf. Araújo (2006).
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Silambo, Micas Orlando. “Práticas e estratégias dos/das vachayi va timbira em Maputo (Moçambique) para
a manutenção e reinvenção de suas artes musicais”
Mbira/Santse/Kalimba/Chityatya a Património Intangível da Humanidade. A etnografia, concordando
assim com Ingold (2014, 393), se constituía de correspondências educacionais da vida real, onde a teoria,
por sua vez, era uma imaginação nutrida por seus compromissos observacionais com o mundo pesquisado.
A obtenção, organização e análise dos dados teve como base as seguintes técnicas: observação
participante, entrevista semi-estruturada, registro de fotografia e pesquisa bibliográfica.
A observação participante possibilitou a minha inserção e a consequente compreensão de particularidades
que aconteciam nos ensaios, apresentações, festas, oficinas e em outras atividades. Observar significou
prestar atenção, vigiar, ouvir e sentir o que estava acontecendo ao redor. Participar significou levar uma
vida ao lado e junto das pessoas e coisas que fazem parte do fenômeno musical, tal como prescreve
Ingold (2014). Assim, tornei-me sujeito da prática, sentindo o vivenciado e estabelecendo uma
participação, ativa e diretamente, conectada às pessoas estudadas, afetando o meio e vice-versa. Este
envolvimento incluiu conversar, experimentar, rir, cantar, tocar, dançar, comer e conviver com outras
pessoas envolvidas. A observação participante serviu para organizar, descrever e identificar o que acontece
na música de mbira. A sua análise trouxe à tona os processos e situações que definem a prática musical e
suas formas de transmissão.
As entrevistas semiestruturadas forneceram informações acerca da música de mbira, sua performance,
seus processos e situações de transmissão musical. Elas foram gravadas, mediante autorização prévia da
pessoa entrevistada, em gravadores digitais portáteis como câmera Handy Video Recorder Zoom Q4, Zoom
H2n e celular Samusung J5. A gravação permitiu a flexibilidade e economia de tempo tanto para o
pesquisador quanto para as pessoas pesquisadas. Estas entrevistas foram realizadas, transcritas e
organizadas de forma individual no caderno de entrevista com vista construir as percepções e nuances
particulares de cada interveniente. Na descrição textual usei nomes reais das pessoas pesquisadas de
acordo com autorizações dos/das vachayi va timbira. A análise das entrevistas elucidou as sutilezas
implícitas na subjetividade de algumas questões da pesquisa, permitindo compreender melhor as
principais práticas e estratégias de reinvenção e manutenção artística dos/das vachayi va timbira no
cenário contemporâneo. Os/As vachayi va timbira entrevistados/as incluem Ivan Mucavel, Xitaro, Xakada,
Maneto, Beauty, Ozias Macoo, NBC Gas Butano, Simão Nhacule, Virgínia Uamusse, Zande Mudolas, May
Mbira e Delta Cumbane.
O registro fotográfico ajudou-me na captação dos diferentes tipos de mbira. As fotos foram captadas com
um celular Samusung J5 e catalogadas na pesquisa, descrevendo o nome da mbira, grupo ou situação e
data da obtenção. Elas foram selecionadas, inseridas e analisadas junto ao texto, trazendo para a pesquisa
perspectivas visuais dos tipos de mbira.
A pesquisa bibliográfica foi realizada durante todo trabalho e configurou-se como uma técnica de obtenção
de documentos científicos, tais como: livros, periódicos, ensaios críticos, dicionários e artigos científicos
dos campos de Musicologia Africana, Etnomusicologia e afins. A partir da pesquisa bibliográfica aliada à
constante relação com a realidade pesquisada foi pensado o referencial teórico da investigação, buscando
compreender e analisar os conceitos centrais, bem como as bases epistemológicas e metodológicas da
pesquisa em manifestações africanas e moçambicanas.
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Silambo, Micas Orlando. “Práticas e estratégias dos/das vachayi va timbira em Maputo (Moçambique) para
a manutenção e reinvenção de suas artes musicais”
Os depoimentos desta pesquisa foram apresentados por meio de uma descrição densa crítica analítica
22
que entre várias qualidades permeia análises dos aspectos do cotidiano social por meio do contato direto
com a realidade. Tal descrição tomou forma de uma narrativa, maneira pela qual, habitualmente,
contamos a nós mesmos e aos outros sobre nossas experiências ligadas a pessoas que fazem música.
Assim, o registro das falas foi grafado na medida do possível preservando as particularidades da realidade
da música de mbira desde que tais sílabas, interjeições, palavras, frases, parágrafos, repetições e outros
não interferissem na apresentação da informação transcrita. Esta forma de escrita tem em vista, não
apenas enfatizar as pessoas pesquisadas, mas também envolver as pessoas leitoras com descrições
narradas ou análises que as aproximam de aspectos mais particulares, tanto do pesquisador quanto da
cultura estudada, diz Geertz (1973, 351). Uma vez compreendidos os aspectos metodológicos pretendo, a
seguir, discutir o processo de reinvenção e manutenção dos/das vachayi va timbira.
3. Como foi/é o processo de reinvenção e manutenção da arte dos/das
vachayi va timbira em Maputo?
Os depoimentos dos/das vachayi va timbira evidenciam que as famílias
23
foram as primeiras instituições
que deram suporte às habilidades musicais. O avô e tios de Macoo tocavam e construíam vários
instrumentos musicais africanos. Ivan foi despertado seu gosto pelo canto e dança através de seu tio Luka.
A relação de Ivan com a música, tal como Cumbane (2019), “[...] é algo que sinto mesmo desde bebê
[...]. Esta música me chamou, [...]”. Chamou igualmente May Mbira (Auro Meireles Dos Marquile), pois a
sua infância foi também bem criativa, cheia de jogos-canções e danças locais, “sempre tocando a música ali
dentro” (Dos Marquile 2022). “Então, nós como crianças, [...] víamos o nosso pai a tocar. Quando ele saísse
para machamba [campo de cultivo], nós, também, íamos brincar ali. Às vezes imitávamos as canções que
ele tocava” (Nhacule 2021). Tudo acontecia, diz Tefula (2019), “[...] naquela curiosidade [de aprender]
desde a infância, porque havia instrumento em casa”. Esta música chamou Beauty, Xakada, NBC, Zande
Mudolas, Virgínia, Xitaro, e por aí soou chamando Alcídio Pires, Careca, Chenjerai, Cheny Wa Gune, Genito
Santana, Jojo Mbalango, Júlio Marquel, Matchume Zango, Pivi Marquel, Rolando Lamussene, Maria e
outros/as.
Portanto, “a casa da família torna-se o primeiro ambiente de aprendizagem onde as crianças em seus anos
de formação são expostas aos princípios culturais básicos praticados por seus pais e familiares imediatos”
24
(Mapaya 2011, 67-68). Nesse contexto, as pessoas se inseriam no universo musical da mbira a partir da
reinvenção da “precariedade”, ou seja, transformando materiais descartáveis em instrumentos musicais,
reexistindo em meio às ausências do contexto pós-colonial e guerra civil. A opressão colonial portuguesa
obrigou a população moçambicana a pegar em armas e lutar pela independência que lhe foi negada por,
aproximadamente, cinco séculos. As bases opressivas do povo moçambicano, triste lembrança, podem ser
teorizadas a partir dos fins do século XV, quando Vasco da Gama, célebre navegador português, chegou à
ilha de Moçambique, nos princípios de março de 1498 (Mondlane 1969, 25). O movimento contra a
colonização foi dirigido pela Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), e iniciou-se em 25 de
22
Cf. Geertz (1973).
23
Mesmo que alguns dos seus familiares não estivessem a favor da música tradicional.
24
The family household becomes the first learning environment where children in their formative years are
exposed to the basic cultural tenets as practiced by their parents and immediate family members (Mapaya
2011, 67-68).
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Silambo, Micas Orlando. “Práticas e estratégias dos/das vachayi va timbira em Maputo (Moçambique) para
a manutenção e reinvenção de suas artes musicais”
setembro de 1964. O primeiro presidente da FRELIMO foi Eduardo Chivambo Mondlane, que após
assassinado em três de fevereiro de 1969, foi sucedido por Samora Machel que proclamou a
independência do país em 25 de junho de 1975.
O processo da reinvenção da precariedade” foi muito útil durante a guerra. Portanto, os moçambicanos
usavam saberes da geografia e natureza do local como técnicas de guerrilhas para atacar e esconder-se do
inimigo português. Com este conhecimento, Moçambique conquistou a independência e a FRELIMO
assumiu o poder do país.
Aliada a países do então “bloco socialista” a FRELIMO como Governo, introduziu um
sistema político de partido único. O regime não foi muito bem aceito pelos países
vizinhos segregacionistas na época como África do Sul e Rodésia, que então apoiaram
recolonizadores e guerrilhas internas (Lopes 2015, 61).
Assim, no início da década de 1980, Moçambique vivenciou uma guerra civil que só terminou em 1992.
Esta guerra foi dirigida pela Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO) que veio a tornar-se o principal
partido na oposição da FRELIMO. Destaca-se que, em 1994, Moçambique realizou suas primeiras eleições
multipartidárias, onde a vitória foi “conquistada” pela FRELIMO que voltou a “ganhar” as eleições
seguintes, em 1999, 2004, 2009, 2014 e 2019. Nesses anos, a situação política do país foi caracterizada por
tensões e agitações que dificultam o crescimento e afirmação do país econômica, social e culturalmente.
Nota-se que, na época da colonização e da guerra civil, vários moçambicanos foram obrigados a emigrar
para outros países, em particular, para trabalhar nas minas da África do Sul de modo a garantir o seu
sustento e satisfazer o sistema opressivo. Com essas transformações históricas, políticas e sociais, os
costumes, as canções, as danças, os instrumentos musicais e os saberes moçambicanos se modificaram (se
deterioraram) com o passar do tempo.
Mesmo contra o sistema, vários artistas produziram canções (letras), coreografias, poesias, artes visuais, e
outras manifestações artístico-culturais com intenção de depreciar e rebaixar os adversários (aqueles que
estavam contra a independência e paz em Moçambique e na África em geral). Obviamente, esses artistas
“insurgentes” não davam preferência à base espiritual e tradicional da cultura africana e seus
descendentes, em particular a da mbira, mas representavam suas próprias experiências contemporâneas.
Ainda assim, as normas coloniais vigentes silenciavam as expressões culturais e outros modos de vida
praticados pelos africanos e seus descendentes, principalmente, nos territórios ocupados pelos
portugueses. Por exemplo, as pessoas moçambicanas não tinham muito espaço de produção e divulgação
musical na, então, Rádio Clube de Moçambique (a emissora oficial do regime colonial), na altura,
comandada pela elite portuguesa da cidade de “cimento”. Dessa maneira, muitos músicos moçambicanos
Fany Mpfumo, Alexandre Langa, e outros que produziam em sua discografia algumas sicas de
repúdio ao sistema colonial viam suas músicas banidas na radiodifusão e seus nomes eram, facilmente,
integrados na lista negra da Polícia Internacional de Defesa do Estado
25
(PIDE). Da música de mbira e de
outros instrumentos musicais africanos nem podia se falar, pois ela era tocada de maneira esporádica na
emissora através de materiais captados, etnograficamente por alguns investigadores estrangeiros
corajosos nas comunidades que clandestina e insistentemente a praticavam, graças aos recursos
descartados e disponíveis.
25
Diga-se Polícia Secreta Colonial.
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Silambo, Micas Orlando. “Práticas e estratégias dos/das vachayi va timbira em Maputo (Moçambique) para
a manutenção e reinvenção de suas artes musicais”
Não muito tempo atrás, por volta de 2015 e 2016, por exemplo, assisti o mestre Oziyas num processo de
reaproveitamento de madeiras descartadas (deitadas) e que haviam se transformado em “lixo”. Oziyas
ficava muito satisfeito em fabricar uma mbira com este tipo de madeira, pois por um lado eliminava os
focos de lixo, mas por outro entendia que estas madeiras tiveram um bom processo e tempo suficiente de
secagem, e por isso proporcionam uma boa estabilidade na construção/afinação da mbira. Esta observação
se replicou nos meus olhos e ouvidos no ano 2021, em Marracuene, onde os membros da comunidade
jovem circunvizinha da Mukhambira, uma vez não tendo nenhuma utilidade com uma determinada
madeira em sua casa, encaminhava para o mestre Ivan a fim de ampliar a produção da sua série
diversificada de timbira. É comum, também, ouvir o Luka Mukhavele enfatizando a importância do uso do
material local e disponível para fabricar instrumentos musicais, justificando que esta ideia é
autossustentável para o país uma vez que não se gasta muito dinheiro para a aquisição da matéria prima e
garante-se a revigoração e reinvenção dos instrumentos musicais africanos no seu contexto local.
Não é por acaso que para fabricar as lamelas da mbira, disse Tefula (2019), “você tem que ir a lixeira, caçar
aqueles manos para [conseguir] o arame de aço que é um bom arame. Isso não é fácil [...]”. Portanto, essa
imersão extrapola as fronteiras familiares, pois é na comunidade onde eram buscadas as fontes sonoras
para a produção musical. É também na comunidade onde normalmente, diz Tefula (2019), “nós
brincávamos nas noites quando houvesse lua e as brincadeiras eram danças tradicionais da nossa
povoação. Foi nessa altura que eu aprendi a tocar batuques”. “O processo de aprendizagem aqui envolve a
criança anotando conscientemente itens de interesse enquanto segue o que está acontecendo nos
diferentes ambientes representados por seus pares”
26
(Mapaya 2011, 68-69). Nessa linha, Amisse (2019)
narra que “começo a aprender a sica tradicional com um amigo chamado Deuladeu de Pemba [...].
Começamos a aprender certos instrumentos como tambores e valimba [...]”. Os tambores, em outros
contextos, eram quaisquer objetos. “Foi no bairro da Mafalala, naqueles grupos de [dança e música]
xicuketa
27
onde tocávamos bidões”, revela Lisenga (2021). Assim, muito aprendizado ia acontecendo fora
da academia como experienciou Luka Mukhavele, Xakada, entre outras pessoas.
Nesses ambientes, fora da academia, vários convites eram feitos. Beauty Sitoe (2019) relata que “ele
[Xitaro] convidou-me para conhecer a sua oficina que na época [2008] encontrava-se no bairro de Laulane
[Maputo], então eu fui e tive o prazer de conhecer o instrumento e lembro-me que eu até participei na
construção da minha cabaça”. O convite da mestra para essa oficina não era ao acaso, pois como explica
Nketia (1974, 57) “em outros casos, no entanto, um músico terá que ser incentivado a se juntar ao grupo
pela admiração e respeito pela sua habilidade ou pela riqueza de seus talentos que partilhará ao grupo”
28
.
Com essas trocas de saberes, Beauty acabou tendo sua mbira, porém às vezes nem era preciso ter sua
própria mbira, pois havia um apoio mútuo. Nessa ótica, Tefula (2019) lembra que “o Nharira foi a primeira
pessoa a me emprestar a mbira, [numa ocasião em que] não nos conhecíamos [...]”, Nhacule (2021) narra
26
The learning process here involves the child consciously noting items of interest as it follows what is
happening in the differing environments as represented by its peers (Mapaya 2011, 68).
27
Lê-se xitchuketa.
28
In other cases, however, a musician of the highest caliber will have to be encouraged to join the group
through the admiration and respect that is shown for his ability, or through the size of his hare of gifts that
are given to the group (Nketia 1974, 57).
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Silambo, Micas Orlando. “Práticas e estratégias dos/das vachayi va timbira em Maputo (Moçambique) para
a manutenção e reinvenção de suas artes musicais”
que “eu os
29
apreciava [...] e, às vezes, tinha curiosidade de pedir emprestado, tentava mexer um pouco
[...]” e, assim, várias experiências práticas iam se dando.
Nessas experiências, avança Lisenga (2021), “um abre a mente do outro e, sucessivamente, vamo-nos
conectando para trazer o melhor”, elucidando que os menos experientes o são, simplesmente,
“enchidos”, mas sim “esculpidos e polidos” para a sua melhor integração na prática musical. Portanto,
nessa prática se estabelecia colaborações que fluíam entre as pessoas em performance através de relações
de confiança alicerçadas pelo estar junto, musical ou interpessoalmente. Em outras palavras, a troca de
saberes era feita de forma prática e aberta a experiências e habilidades individuais de cada pessoa. Todas
as pessoas foram aceitas independente do seu nível de talento. Nesse contexto, os exercícios de escuta
ativa e reflexiva, assim como os experimentos de erros e acertos pouco a pouco treinavam, também
autodidaticamente, as habilidades das pessoas participantes. “As pessoas aprendem observando, ouvindo,
repetindo aquilo que vou fazendo”, diz Vilanculos (2019).
Nessa prática são usados variados tipos de mbira: nyunganyunga, nsantse, chityatya, matepe,
nyonganyonga, njari, nyunganyunga plus, dzaVadzimu, dzaVadzimu plus, dazvaNdawu e outras. Os/as
vachayi apesar de tocarem outros tipos de mbira são unânimes em afirmar que a principal mbira utilizada
na contemporaneidade em Moçambique é a nyunganyunga.
No entanto, a música da mbira é articulada com experiências de outros instrumentos musicais africanos
como mbila (Fig. 5), nyakatangali, phiane, mutoriro (Fig. 6), xikhitsi, nyanga, xigoviya (Fig. 7), ndhondhoza,
ximbvokombvoko, xitende, valimba (Fig. 8), xipendani, xizambi, kankubwe (Fig. 9), ngoma (tambor), e
outros na maioria (re)inventados pelas pessoas praticantes.
Figura 5 Instrumentos musicais africanos usados em Moçambique: Mbila
Fonte: Arquivo pessoal de Simão Nhanombe
a) b) c)
Figura 6 Instrumentos musicais africanos usados em Moçambique: a) Nyakatangali, b) Phiane, c) Mutoriro
Fonte: Duarte (1980)
29
Referindo às pessoas tocadoras.
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a manutenção e reinvenção de suas artes musicais”
a) b) c)
Figura 7 Instrumentos musicais africanos usados em Moçambique: a) Xikhitsi, b) Nyanga, c) Xigoviya
Fonte: Arquivo pessoal do autor
a) b) c) d)
Figura 8 Instrumentos musicais moçambicanos: a) Ndhondhoza, b) Ximbvokombvoko, c) Xitende, c) Valimba em construção
Fonte: Arquivo pessoal do autor
a) b) c)
Figura 9 Instrumentos musicais africanos usados em Moçambique: a) Xipendani, b) Xizambi, c) Kankubwe
Fonte: Arquivo pessoal do autor
Em sua composição e performance os/as vachayi va timbira exploram estilos do sudeste da África com
enfoque para os de Moçambique. Dentre estes se destacam chiwere, kateko, kwaxala, machewona,
mafuwe, makhwayi, makotlo, mandowa, mapaza, mapiku, marrabenta, mutute, mucongoyo, ndjole,
niketche, nganda, nghalángha, nhambaro, ntokodo, nyanga, nyawu, utsi, timbila, xigubu, zorre e mais. Não
se excluem o chimurenga do Zimbabwe, o ximanjhemanjhe e a ximatsatsa da África do Sul, assim como o
blues, o fusion, o jazz, o reggae, o pop, o rock, a rumba, o rap e outros.
Os/as vachayi va timbira, fora da música, se dedicam a outras atividades artísticas. Lembrei-me do Tefula
(2019) quando descreve: “Eu sou artesão. Trabalho com cabedal. Trabalho com vidro. Faço papel reciclado.
Trabalho com palha. Fabrico instrumentos. Também, gosto de contar histórias tradicionais [...]”; ou do
Vilanculos (2019) quando conta que “[...] uma das questões importante, nesse giro [por onde andei com
meus pais], é o aprendizado de artesanato”. Também, veio-me à memória o fato de que foi por se envolver
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com música que Ivan aprendeu os processos de gravação com ajuda do seu tio. As experiências musicais
são aplicadas, no caso de May Mbira, em dança contemporânea, no teatro e no cinema. Este ativismo é
notável não na área de execução, mas também na construção, criação e revigoração dos instrumentos
musicais africanos com foco na mbira. Com essas atividades os/as vachayi va timbira garantem o seu
autossustento e contribuem para a revigoração da sua identidade musical e cultural. Assim, treina-se
música em conjunção com outras atividades sociais e formas de conhecimento.
Não à toa, a maior parte das pessoas estudadas, para além de executar e transmitir saberes, constroem a
mbira, lidam com as suas propriedades acústicas, técnicas, tecnologias de construção, proporcionalidades,
tamanhos, formas e timbres apropriados para uma determinada mbira (Fig. 10). O processo de construção
da mbira se resume em
[...] identificar o tipo de som que nós procuramos trazer. [...] Medir a madeira e cortar à
medida que achamos certa para o tipo de mbira que vamos fazer. Limpar a madeira,
escavar se for necessário. Polir bem e deixar a madeira bem organizada para que,
também, o som saia feliz [propaga-se de forma adequada]. [...] Furar a madeira em
devidas medidas através do berbequim. Montar os grampos [referindo-se aos ganchos], o
cavalete [e a barra]. Martelar tecla a tecla até apanhar o som com a frequência certa.
(Dos Marquile 2022)
Figura 10 Partes da mbira nyunganyunga
Fonte: Arquivo pessoal do autor
Essa compreensão, fundamenta Simango (2019), é um contributo, “[...], porque um instrumento bem
fabricado, [...] confortável e configurado pode influenciar na aprendizagem dos que vão pegando este para
executar”. O entendimento do processo de construção é importante,
porque além de tocar a mbira, eu precisava saber por que esta tecla tem este som. O que
faz com que tire esse som. Então, eu tinha que saber que é resultado de como vamos
espalmar, o comprimento e a afinação. Quando dás golpe [na extremidade suspensa da
tecla] mais para dentro, [o som] fica mais agudo, quando tiras, fica mais grave.
conheço a mbira, não toco. [...] Quando ouço um ruído estranho sei o que esa
causar este ruído estranho. (Amisse 2019)
Fora desse entendimento, a construção da mbira funciona como uma terapia. “Aqueles momentos de
martelar o varão, das mãos saem os calos, dói-me a o, mas agrada-me o espírito [...] quando fico muito
Legenda:
1. Tábua
2. Barra
3. Cavalete
4. Prego ponte paris
5. Gancho
6. Lamela
RG. Registro grave
RA. Registro agudo
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Silambo, Micas Orlando. “Práticas e estratégias dos/das vachayi va timbira em Maputo (Moçambique) para
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tempo sem fazer mbira, sinto que os meus músculos atrofiam, então, quando volto a fazer mbira, sinto
[um alívio]”, relata Mucavel (2019).
A parte da preparação da tábua harmônica, quando trabalho com goiva
30
, me traz um
sentimento e um alívio muito difícil de explicar, me traz um conforto [...]. Entendo,
também, que trabalhar com afinação da mbira, a formatação das teclas ou [os processos
de] espalmar [as lamelas], o que acontece ali é vibração e toda vibração tem um impacto
no nosso organismo, acho que isso é uma terapia, sinto que cura alguma coisa em mim.
(Macoo 2019)
Com a mbira, o May Mbira aprendeu a ter um controle emocional e espiritual mais profundo e a viver a
vida em meditação, “espírito de conexão com o corpo”, e, portanto, Tefula (2019) conclui que “eu consigo
relaxar quando toco o próprio instrumento”, pois tal como sente Cumbane (2021), o som da mbira [...]
transmite-me uma paz, uma tranquilidade [...]”. Mas para que se chegue a esse resultado, o meu
processo de construção pode ser um bocadinho mais longo do que muitos, porque eu tenho o cuidado,
primeiro, com a minha saúde, com meu estado físico e com a suavidade que o instrumento vai ter” (Dos
Marquile 2022).
Aliando ao cuidado na oficina de construção, falo da posição [...] correta quando estás sentado para bater
a tecla. exercícios que faço para abertura, por exemplo, do peito, da parte cervical” (Vilanculos 2019).
Ao martelar as lamelas “não [importa muito] a força, mas a técnica” empreendida no pulso, completa Dos
Marquile (2022). Assim, [...] tu tens que bater [o metal] com certa calma de modo a controlar a tecla ou
lamela que tu desejas” (Sitoe 2019).
Ao iniciar a formatação da lamela, afirma Tefula (2019), “eu utilizo um martelo com peso um pouco maior,
mas quando a tecla está achatada, utilizo um martelinho para apanhar a afinação certa ou laminar, na
totalidade, a tecla”. “Assim, o braço tem de acompanhar o movimento do martelo para evitar lesões”,
defende Tefula (2019). Para acautelar as prováveis dores de coluna,
Eu faço tecla por tecla. Martelo uma tecla, levanto e coloco a tecla na madeira [tábua
harmônica]. Levo o outro [pedaço de] arame [aço] bato, bato a outra tecla. Volto e
encaixo [novamente]. Então, esse processo obriga-me a não estar, por muito tempo, a
fazer a mesma coisa que pode vir a me prejudicar (Tefula 2019).
Entretanto, nos casos de ter muitas encomendas e não poder prevenir dores no corpo, elas podem ser
aliviadas “fazendo massagem em casa com água quente”, sugere Tefula (2019). Tudo isto deve ser
realizado com uma experiência suficiente no trabalho, pois, por exemplo, o cansaço e o trabalho sob
pressão podem causar lesões físicas, principalmente, ao martelar as teclas, podendo o martelo, por
exemplo, saltar ou escorregar e atingir uma parte da mão
31
. Mesmo experiente, “[...] também, temos de
ter a higiene e segurança no trabalho, [...] para não prejudicar a saúde” (Amisse 2019). Nessa preocupação,
em diálogo com Luka,
30
Goiva - nome dado a uma série de instrumentos cortantes utilizados para o entalhe em madeira. Com a
lâmina curta, é semelhante ao formão, porém em escala menor. Podem ter diferentes formatos, com a
lâmina reta, em meia-cana, com o corte do lado convexo, arredondado ou em formato de V.
31
Cf. Mukhavele (2022, 352).
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Silambo, Micas Orlando. “Práticas e estratégias dos/das vachayi va timbira em Maputo (Moçambique) para
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recomendo, vivamente, que a confecção de lamelofones e, principalmente, a martelagem
de teclas seja realizada em ambiente protegido: usar sempre protetores auriculares [...],
e fazer exames auditivos regularmente, para evitar danos graves, que possam prejudicar
ao construir/afinar os instrumentos e para se comunicar, suavemente, em geral.
32
(Mukhavele 2022, 366)
A partir dessas experiências, Beauty Sitoe (2019) reflete que “hoje eu sei valorizar todo trabalho manual
independentemente de ser um trabalho que eu perceba ou não, por saber que trabalhos manuais
requerem muita paciência e é um processo muito longo e exaustivo”. Além do referido, na sica de
mbira e seus produtos decorrentes,
a gente consegue perceber como outras pessoas vivem em suas sociedades e vamos
agregando valores [...]. Nós vamos ensinando e, também, vamos recebendo. Então, isso
deixa uma abertura [...], porque todas as culturas têm seus valores e nenhuma é superior
à outra apesar de ter certos hábitos difíceis de encaixar, então aqui chegamos num meio
termo. (Amisse 2019)
É por esse respeito, valorização e entendimento,
que temos que continuar a promover a própria mbira, não , em casas culturais, mas
também nas famílias. Nas escolas é [também] muito importante introduzir esse
instrumento e a partir daí se pode acelerar a massificação, porque as crianças gostam
deste tipo de instrumentos, então, só precisam ser encorajadas (Lisenga 2021).
O mestre Lisenga nos chama atenção para a promoção e introdução de instrumentos musicais como a
mbira nas famílias e nas escolas com vista reverter a situação atual do sistema de ensino e do mercado
musical moçambicano descrito por Mukhavele (2022, 06): “Os sistemas continuam expondo crianças em
idade escolar, aprendizes de música e o público em geral, quase que exclusivamente a instrumentos e
músicas ocidentais, em detrimento dos/das locais, que são mais acessíveis e baratos/as para eles”
33
.
A partir das narrativas elucida-se que os/as vachayi va timbira desempenham um forte protagonismo na
educação e mercado cultural da música em Moçambique e cabe a cada um/a transformar esta semente
em substância que a cada dia cresça e floresça. A mbira é de fato, remata Xitaro, “uma biblioteca com
vários livros dentro dela”. O desafio é estimular mais pessoas a praticarem a mbira, e que mais
pesquisadores/as desenvolvam este tipo de estudo para tornar público mais conhecimentos e
enfrentamentos contidos nos livros dessa biblioteca viva.
32
I would, strictly recommend lamellophone making, and specially, key hammering to be undertaken in
protected environment: to always wear hearing protection devices during this phase of the process, and to
regularly do hearing checkups, to avoid severe damages, that might impair them for making/tuning the
instruments, and for communicating smoothly in general.
33
The systems continue exposing school children, music learners, and the public in general, almost
exclusively to Western instruments and music, at the expense of local ones, which are more accessible to,
and affordable for them.
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Silambo, Micas Orlando. “Práticas e estratégias dos/das vachayi va timbira em Maputo (Moçambique) para
a manutenção e reinvenção de suas artes musicais”
4. Considerações finais
As principais práticas e estratégias aplicadas pelos vachayi va timbira em Maputo para reinventar e manter
a sua arte são: 1) reaproveitamento de materiais descartados para a construção (revigoração) dos
instrumentos musicais africanos no seu contexto local; 2) troca mútua de saberes de forma aberta a
experiências e habilidades individuais de cada pessoa; 3) treinamento autodidático por meio de exercícios
práticos de escuta ativa e reflexiva, assim como de experimentos de erros e acertos; 4) aprendizagem por
meio de observação, audição e repetição em ambientes diversos; 5) exploração de artes musicais (música,
instrumento, dança, indumentária, meio social e outras) do sudeste da África na composição e
performance; 6) promoção e introdução de instrumentos musicais, como a mbira, nas famílias, nas escolas
e toda sociedade; 7) valorização do trabalho manual e desenvolvimento de uma relação emocional e
espiritual com o instrumento; 8) desenvolvimento de atividades musicais inter, trans e multidisciplinar
(execução, transmissão, construção e outras).
Estas práticas e estratégias podem ser adaptadas em outros contextos (comunidades) para reinventar e
dar vida as suas culturas musicaisora estigmatizadas por diversos processos de poder que controlam as
culturas subalternizadas. Para que as práticas e estratégias, como as de vachayi va timbira, se ampliem é
preciso que sejam auxiliadas: 1) por políticas públicas para a revigoração de expressões culturais locais
inspiradas na ancestralidade; 2) pelo desenvolvimento de pesquisa que contemple artefatos em extinção e
não só; 3) pela valorização de atividades desenvolvidas pelos/as mestre/as da cultura local; 4) pela criação
de oportunidades para que os/as mestres/as possam compartilhar seus saberes dentro e fora da
academia; e 5) pelo desenvolvimento de projetos multidisciplinares sérios que possibilitem uma
participação ativa de crianças das comunidades na performance de artes musicais.
5. Referências bibliográficas
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