Infelizmente, como já discutido, a ausência desta percepção no processo que relaciona emissor e receptor
(performer e público) nunca foi realmente compreendida ou aceita por mim. Ao mesmo tempo, a
performance das “coisas” aqui enumeradas, no meu entender, apresentam resultados claros. Creio que ela
antecede o pensamento mais lógico, o raciocínio e as doutrinas científico-acadêmicas. As pessoas reagem
com a mesma honestidade com a qual as “coisas” foram criadas e performadas. Os tacos soltos de uma sala
de percussão, o cheiro, as paredes, os vidros e tantos outros materiais, falam, significam e, por meio da
metáfora, nos fazem mergulhar em outros mundos, através de outras portas que se abrem, fazendo dos
sons, e da fisicalidade que os acompanha, matéria prima para a criação, que transcende qualquer teoria ou
pensamento lógico.
Fica clara a vivência de tais conceitos nas maneiras pelas quais, sem ter qualquer apreço pela percussão no
início de minha jornada, consegui estabelecer relações entre diferentes materiais e formas. Se por um lado
não houve uma formação mais adequada, não se possuía qualquer técnica para os mais diversos
instrumentos, ou mesmo não se compreendia nada daquele ambiente (técnicas, obras, partituras e
repertórios); por outro, aquele mundo percussivo então apresentado possibilitava caminhos alternativos
(brechas, portas). Ao mesmo tempo era fácil, por um certo poder de metáfora, criar e estabelecer relações
entre vários objetos/instrumentos, ou mesmo a chamada percussão múltipla, com várias outras coisas.
Um bloco de madeira nunca foi tão somente um objeto pois, de maneira instantânea, ele era isso e muito
mais. O espaço vazio em direção ao corpo interno dele, a partir da sua “boca”, já representava infinitude.
Mais ainda, representava locais que não podiam ser acessados pelo ato de “tocar” nesses mundos
particulares. Decorria disso uma certa veneração por esses objetos individuais, assim como uma necessidade
de mitologizá-los. Naturalmente, a percussão múltipla elevava essa percepção à enésima. De forma
resumida, no meu entender, esses outros elementos, a princípio não musicais, são fundamentais em
processos de criação artístico-musical-performativa, sendo a essência do que objetivei discutir no presente
texto.
7. Considerações finais
O presente texto evidencia que a percussão é múltipla e diversa – um campo de possibilidades infinitas. Este
é o caso ainda atualmente, mesmo quando notamos seu engessamento por conta de determinada
codificação e reprodutibilidade de saberes, obras, modos de tocar/ouvir/pensar/conceber/sentir,
instrumentos, conceitos, métodos e abordagens didático-pedagógicas, entre outros. No meu ponto de vista,
depois desses mais de 42 anos de trabalho, quanto mais legitimado é um determinado campo do
conhecimento, maior é a possibilidade de limitação e de afirmação de um pensamento mais hegemônico a
respeito de qualquer objeto ou área. Uma história bem estabelecida depende de determinados agentes
específicos – performers, instrumentos, escolas, especialistas e obras referenciais. O presente texto trata
disso como uma ficção, que foi criticada e ironizada na única obra performática criada em todo o repertório
– Sapus columbus (2001). De forma geral, penso que qualquer trabalho pode (por vezes até deve) servir
como determinado referencial para cada pessoa, mas nunca no sentido de um certo tipo de doutrinação,
tão peculiar ao nosso meio aqui considerado – a academia e a música de concerto. Seria, mais uma vez,
outro exemplo de caricatura e, ao evitar a mesma, procurei caminhos outros como músico e docente, assim
como diretor do curso e do grupo de percussão da Unesp – o Grupo PIAP.
Como exposto no início deste texto, as várias experiências com a percussão motivaram, de certa forma, o
encontro com maneiras particulares de agir, pensar, refletir, procurar e estabelecer sentidos na percussão.