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eISSN 2317-6377
Dos objetos, coisas, atos e ares:
uma visão (auto)crítica de obras e conceitos percussivos
About objects, things, acts and air:
a (self)critical view of percussive works and concepts
Carlos Stasi
Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Departamento de Música, São Paulo, SP, Brasil
carlos.stasi@unesp.br
SCIENTIFIC ARTICLE
Section Editor: Ronan Gil de Morais e Luís Bittencourt
Layout Editor: Edinaldo Medina
License: CC by 4.0
Submitted date: 13 oct 2023
Final approval date: 21 nov 2023
Publication date: 08 dec 2023
DOI: 10.35699/2317-6377.2023.48392
RESUMO: Após 42 anos de carreira, composição e performance, o autor discute alguns conceitos específicos que
permearam seu trabalho com percussão. Ele se baseia aqui em algumas propostas composicionais em particular para
retratar contextos, conceitos e princípios em sua produção. Apresenta-se então um panorama inicial de suas peças,
assim como informações de base e conceitos fundamentais que possibilitam compreender o panorama conceitual e
artístico que as fundamentaram. Os elementos selecionados para a discussão e que abordam obras distintas são: a)
timbre (contrapondo percussão múltipla e uso de um único instrumento), b) notação (oferecendo apenas dois
exemplos distintos que permitem observar alguns dos principais conceitos sobre), c) questionamento da obra musical
e do papel do próprio performer e d) fisicalidade e uso de outros sentidos nas obras musicais. O artigo possibilita então
uma compreensão mais abrangente sobre a produção do autor, partindo-se do olhar, das experiências, experimentos
e do relato do próprio compositor/performer/percussionista, evidenciando, em diferentes níveis, como tal produção
traz questionamentos voltados para vários paradigmas artísticos e percussivos.
PALAVRAS-CHAVE: Percussão; Composição; Repertório; Carlos Stasi.
ABSTRACT: After 42 years of career, composition and performance, the author discusses some specific concepts that have
permeated his work with percussion. Here he draws on some particular compositional proposals to portray contexts, concepts
and principles in his production. An initial overview of his pieces is then presented, as well as background information and
fundamental concepts that make it possible to understand the conceptual and artistic panorama that underpinned them. The
elements selected for discussion and which address different works are: a) timbre (contrasting multiple percussion and the use of
a single instrument), b) notation (offering just two different examples that allow us to observe some of the main concepts), c)
questioning the musical work and the role of the performer, d) physicality and the use of other senses in musical works. The article
then provides a more comprehensive understanding of the authors production, based on the gaze, experiences, experiments and
reports of the composer/performer/percussionist himself, showing, at different levels, how this production raises questions about
various artistic and percussive paradigms.
KEYWORDS: Percussion; Composition; Repertoire; Carlos Stasi.
Per Musi | Belo Horizonte | v.24 | Section RePercussions | e232423 | 2023
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Stasi, Carlos. Dos objetos, coisas, atos e ares: uma visão (auto)crítica de obras e conceitos percussivos
1. Introdução: uma visão geral das obras
O presente texto, acima de tudo, procura evidenciar conceitos e maneiras distintas de se pensar e viver a
percussão. Apesar de isso ser feito através do uso de várias obras originais compostas, o valor atribuído a
cada uma delas está intrinsicamente relacionado àquilo que elas questionam e representam, muito mais do
que aquilo que elas possam significar sob um ponto de vista mais tradicional: o que é obra, o que é repertório
ou quais são os principais referenciais para se criar, tocar ou mesmo lecionar. Naturalmente, em vários
níveis, coloca-se em questão também a ideia de reprodutividade, que as obras nascem de experiências
individuais internas que chegam inclusive a anular a possibilidade de uma segunda execução delas. Neste
sentido, elas funcionam mais como momentos e experiências descritas numa espécie de diário (que seria o
próprio tempo), sugerindo, por vezes, que mesmo reinterpretá-las ou revivê-las (como normalmente fazem
os músicos) pode gerar algo caricato e um tanto quanto inferior à experiência única das pessoas.
Evidentemente, cada execução poderia ser considerada como uma nova experiência ou uma nova porta que
se abre para um mundo diferente, como bem afirmou Tatsumura (1991, 526). No entanto, apesar de
considerar carinhosamente as palavras desta autora (tanto que uma parte do artigo é dedicada ao seu texto),
sempre houve enorme dificuldade pessoal na compreensão de seus conceitos de maneira a anular, ou
mesmo questionar, uma visão tão particular da performance que diminui, ou mesmo anula, a possibilidade
de reprodução da obra. Neste sentido também, em mais de 35 anos de ensino, nunca formalizei (de maneira
contundente) o trabalho e o estudo de minhas principais áreas de atuação na percussão múltipla e reco-
reco às dezenas de alunos/as que passaram pelo curso onde leciono. Por outro lado, vários desses
conceitos e considerações transparecem em outros formatos, de maneira mais ordenada: textos, artigos,
livro, palestras, aulas e similares. De certo modo, isso também relativiza a obra, assim como o performer,
mas representa um material até certo ponto sólido em relação a vários desses questionamentos.
Após 42 anos de relação com a percussão (conflituosa em sua maior parte), hoje fica fácil identificar que tais
ideias tiveram como gênese o próprio fato de me iniciar nela por acaso (sem qualquer gosto ou atração, ou
mesmo qualquer capacidade básica). Se por um lado isso gerou vários constrangimentos, representou
também a possibilidade de escolhas e caminhos que, apesar de certa localização dentro de paradigmas da
música de concerto, flertam com certos questionamentos, tanto naquilo que se refere à formação e aos
estudos, como às várias atividades de pesquisa, ensino e performance.
De forma a contextualizar o/a leitor/a, a lista abaixo (Tab. 1) descreve grande parte dessas obras compostas.
Estão excluídas desta tabela várias peças não finalizadas, como é o caso de sus manos (2004), e seus olhos
[voz e clarone] de 2019. Do mesmo modo, não são listadas as improvisações gravadas no CD SOLo en el
manantial negra, danza de la redención, más suave e descarga (Stasi 2003), assim como alguns outros
estudos de reco-reco, caixa e outros instrumentos. O objetivo é então oferecer aqui um panorama geral
para, na seção seguinte, utilizar principalmente peças específicas dessa lista que possibilitam uma mais
ampla discussão dos principais conceitos e ideias gerais do trabalho do autor.
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Stasi, Carlos. Dos objetos, coisas, atos e ares: uma visão (auto)crítica de obras e conceitos percussivos
Tabela 1 Lista de obras compostas por Carlos Stasi. Com exceção de algumas peças inacabadas e improvisações não indicadas, a lista
referencia cronologicamente as obras com respectiva formação para a qual foi composta e instrumentação associada.
Título (ano de composição)
Instrumentação
Estudos Quatro pequenas peças para reco-reco solo (1983)
solo
reco-reco
Canto (1983-1984)
solo
berimbau
1o estudo para metais (1984)
solo
brake drums, tampas e outros metais
IO (1985-1986)
trio
tímpanos, tabla e congas
Mapselpha 4r (1987)
solo
xilofone
33 Samra Zabobra (1987)
sexteto ou
septeto
reco-recos, matraca, triângulo, congas, tubo,
metais com arco
Ilusão Tetralogia do Sacrifício, Parte 1 (1986-1988)
solo
múltipla
Barú (1988)
duo
bongo, recos e berimbau de boca
Estudo para a mão esquerda (1989)
solo
reco-reco
Ário estudo para as duas mãos (1989)
solo
reco-reco
Estudo I para 3 reco-recos (1989)
trio
reco-recos
Elegia (1989)
solo
marimba
Estudos de um homem coxo (1989)
solo
tímpanos
Fogo (1989)
solo
vibrafone
Haneman (1989)
duo
reco-reco e vários outros instrumentos
Imagem Tetralogia do Sacrifício, Parte 2 (1988-1990)
solo
múltipla
Música para o Olfato (1990)
solo
corpo
poeta (1990 e 2003)
solo
voz falada e voz cantada
Canção Simples de Tambor (1990)
solo
caixa clara
Retorno (1990)
solo
voz e tamtam
Vento (1990)
solo
bongo, surdo e 2 toms
Estudo para 5 reco-recos (1990)
quinteto
reco-recos
Uma parte do vento (1990)
trio
reco-recos, instrumentos de percussão e sopro
Dimensões (1991)
trio
toms, blocos de madeira, surdo e caixa
Nada - Música para a paixão, desespero e serenidade (1991)
solo
múltipla
Música para o Olfato II (1991)
duo
corpo
Palm tree (1991)
solo
campana de vento e caixa
(com galho e folhas de árvore)
Duo para Surdo e Clave (1991)
duo
surdo e clave
Retornar (1991)
trio
percussão e sopros
San (1991)
solo
steel drum
5 Estudos para reco-reco solo (1991)
solo
reco-reco
Música para o Tato (s.d.)
solo
corpo
Música para a Visão (s.d.)
solo
corpo
Vortex (1992)
solo
marimba
Elegia (1992)
solo
baixo e crotales
A Harley Davidson Surrounding the Rain Forest (1994)
solo
bongo e reco-reco
Xavier Guello (1994-1995)
solo
reco-reco de mola
Tambora (1995)
solo
3 tambores agudos
Exbert (1997)
solo
indeterminada
May (1999)
duo
duerbak e djembé
Estudo II para 3 reco-recos (1999)
trio
reco-recos
Santos (1999-2000)
duo
güira e cajón
viagem (2000) versão de Xavier Guello
duo
reco-reco de molas, berimbau e spring drum
ello (2000)
duo
2 pandeiros
Onze hands in (2000)
duo ou
quarteto
tabla, ghaval, sogo, frame drum, gongos
peça (2001)
duo
instrumentos indeterminados
Sapus columbus (2001)
solo
narrador/performer
textos para lilian poesia insiste em expressar o inefável (2001)
solo
marimba e texto
a moment (2001-2002)
duo
gongos e frigideiras
ela (1993 e 2001-2002)
duo
2 pandeiros, kalimba, caxixis, vaso, chocalhos,
frame drum com bolinha de pingue-pongue
Por mais de cinco horas (2002)
quarteto
8 congas e bougarabou
Revenge (2002)
octeto
2 marimbas, vibrafone, tambores e blocos de
madeira
Corra e fique cansado (2004)
solo
corpo
De mapas, miniaturas e monstros Tetralogia do Sacrifício, Parte 3 (2004)
solo
múltipla
Jegolino (2006)
duo
tamborins, pandereco, zabumba
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Stasi, Carlos. Dos objetos, coisas, atos e ares: uma visão (auto)crítica de obras e conceitos percussivos
Tab. 1 (Cont.)
Frigi (2008)
duo
gongos, frigideiras, tamborito, triângulo, reco
de mola, sinos, prato, pandeiro
Ripa (2008)
duo
repiniques, agogôs
O Jardim das Margaridas Amarelas (2008-2009)
duo
vibrafone
Fronteras (2011)
quinteto
maraca solo e quarteto de percussão
O Jardim das Margaridas Amarelas - Cena 2 (2012-2013)
duo
vibrafone
mensagem (2010 e 2013)
solo com
assistente
marimba
triplun a 2 (2015)
trio
voz/texto e interlúdio com pequenos tambores
Névoa amarelada (2014-2015)
solo
eufônio
Elric (2016) - versão da obra Névoa Amarelada
solo
clarone
en fin et 5 pequenas peças para eufônio solo (2016)
solo
eufônio
desvil (2017-2018)
duo
berimbaus, tamtam, gongos e outros
hexium (2017-2018)
solo
eufônio
Li Sin Tetralogia do Sacrifício, Parte 4 (2017-2018)
solo
múltipla
ebroz (2021)
quarteto
bongôs e reco-recos
Algumas obras tomam como base características mais tradicionais de um gênero ou instrumento e procuram
ampliar alguns horizontes especificamente, mesmo que em formatos e durações muito mais comuns no
repertório para percussão solo. É o caso de Estudos de um Homem Coxo (1989), para tímpanos,
Vortex (1992), para marimba, Mapselpha 4r (1987), para xilofone, Vento (1990) e Tambora (1995), ambas
para tomtons, Fogo (1989), para vibrafone e San (1991), para stell drums. Outras apresentam novas formas
de execução e modos mais inusitados de tratar o material sonoro em obras para solista, provocando o
ouvinte e levantando questões mais profundas sobre o que é musical ou não, como em Estudos Quatro
pequenas peças para reco-reco solo de 1983 (primeira obra solo composta para este instrumento); Canção
Simples de Tambor (1990) para caixa clara, cujas técnicas envolvem uma bola de pingue-pongue girando
circularmente sobre a pele (possibilitando um som contínuo) ou o uso de uma vara de pescar (possibilitando
sons descontínuos e irregulares) e A Harley Davidson Surrounding the Rain Forest (1994), para bongo e reco-
reco, para a qual uma nova técnica específica foi criada (raspar e bater o reco-reco em conjunto com os sons
da pele do bongo).
As obras para duo, principal formação com composições depois dos solos, também apresentam enorme
necessidade de se criar técnicas de execução para diferentes tipos de instrumentação. É o caso de
Barú (1988), para bongo, recos e berimbau de boca, Haneman (1989), para recos e vários outros
instrumentos, a moment (2001-2002), para gongos, ela (1993 e 2001-2002), para pandeiros, Jegolino (2006),
para dois tamborins, zabumba e pandereco
1
e viagem (2000), para reco-reco de metal com molas e
berimbau.
As obras para três ou mais integrantes, por vezes, ampliam o material inicialmente trabalhado em
composições para duo, como p. ex. através de: a) construção de frases/melodias utilizando notas individuais
de cada músico ou b) sobreposição de diferentes camadas melódicas tímbricamente diferentes (centro e
borda da pele, diferentes cabeças de baquetas feltro, madeira e outras). É o caso de Dimensões (1991),
trio para tambores e blocos de madeira, Revenge (2002), octeto para duas marimbas, vibrafone, tomtons e
blocos de madeira e Por mais de cinco horas (2002), quarteto para oito congas.
O uso da voz, palavras e textos, sempre pareceu limitado a obras como Barú (1988), Sapus columbus (2001),
poeta (1990 e 2003), textos para lilian poesia insiste em expressar o inefável (2001) e triplum a 2 (2015).
1
Técnica criada para se executar o pandeiro e o reco-reco ao mesmo tempo.
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Stasi, Carlos. Dos objetos, coisas, atos e ares: uma visão (auto)crítica de obras e conceitos percussivos
No entanto, durante a pesquisa para o presente trabalho, isto mostrou-se mais expressivo do que
inicialmente considerado. Eu mesmo não tinha noção do nível de importância do uso do texto, que chega a
assumir, em muitos aspectos, um papel mais predominante do que a própria performance. Este aspecto que
agora parece fundamental será abordado especificamente em uma publicação futura.
Aquilo que é normalmente chamado de percussão cênica ou música-teatro é praticamente inexistente na
produção, havendo completa subordinação de qualquer elemento dito cênico (como o movimento) ao som.
Apesar disso, Canção Simples de Tambor (1990) foi incluída em uma dissertação de mestrado sobre essa
temática
2
. A única exceção real seria a peça Sapus columbus (2001) para narrador/performer.
O conceito de que as obras refletem determinado momento pessoal e histórico, e de que a reprodução delas
seria no mínimo algo caricato, embasou a prática pessoal de se executar algumas peças somente uma vez
na íntegra, caso de todas as ltiplas da Tetralogia do Sacrifício (1988, 1990, 2004 e 2018). Neste caso
específico, observa-se completo distanciamento das maneiras comuns de se criar e executar obras,
geralmente concebidas para serem reproduzidas e reinterpretadas o maior número de vezes possível. Por
conta também dos questionamentos pessoais e recorrentes sobre a necessidade real de se compor e de se
tocar música para percussão, não houve a execução de várias obras ou houve ainda seu abandono no
decorrer mesmo do processo de criação. São dezenas de peças que se encaixam nestas situações assaz
constantes.
As obras que escrevi para percussão foram, em sua maioria, compostas como objeto de estudo técnico e
performático. O autodidatismo possibilitou abordagens específicas que se utilizaram de ferramentas e
maneiras próprias de se lidar com uma problemática em particular. Contrário ao senso comum, que
estabelece que determinado nível técnico ou de performance pode ser alcançado após a execução de
obras referenciais do repertório (ou mesmo métodos e estudos), esta produção aponta, no mínimo, para
uma relativização deste tipo de pensamento. Com relação à produção para percussão múltipla, p. ex., que
se resume nas quatro obras pertencentes à chamada Tetralogia do Sacrifício (1988, 1990, 2004 e 2018) e
Nada Música para a paixão, desespero e serenidade (1991), evidencia-se o fato de que, somente a primeira
parte da Tetralogia Ilusão, uma obra de uma hora e vinte minutos, equivale, ou mesmo supera no
sentido técnico e performático grande parte do repertório criado até o momento da produção do presente
texto. Uma característica marcante nessa obra, como observa Appezzato (2004), é a chamada melodia de
timbres, que consiste em frases monódicas com vários timbres diferentes. Todo o processo de criação desse
tipo de melodia, através de vários exercícios, possibilidades de montagem e desenvolvimento de técnicas de
execução, se tornaria a base para que eu pudesse lecionar este tipo de prática na universidade, criando
inclusive a disciplina Tópicos em Percussão, cujo conteúdo programático apresentava várias atividades afins.
Sendo assim, todas as técnicas desenvolvidas fundamentam-se, em essência, nas obras originalmente
compostas com esta finalidade e que acabaram então por gerar também uma maneira de se lecionar.
Produção e transmissão de conhecimentos são então elementos diretamente relacionados aos desafios no
ato de compor/performar ou performar/compor e de se confrontar com as práticas performativas pessoais
e os conceitos sobre música os mais profundos.
2
No trabalho intitulado Performance no Teatro Instrumental: O repertório brasileiro para um percussionista
(Serale 2011).
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Stasi, Carlos. Dos objetos, coisas, atos e ares: uma visão (auto)crítica de obras e conceitos percussivos
2. Obras selecionadas: considerações sobre problemáticas e questionamentos
Dentre as obras listadas na seção anterior, foram selecionadas aquelas que permitem discutir alguns
conceitos e ideias que, de forma mais sintética, poderiam ser agrupadas nos tópicos:
a. exploração de timbre (incluindo melodias de timbre),
b. desenvolvimento de sistemas notacionais,
c. contraposição entre montagens com dezenas de instrumentos (conceito do ilimitado no ilimitado) e
solos com apenas um único instrumento (conceito do ilimitado no limitado),
d. problematização da [in]existência da obra/performer/compositor,
e. criação de técnicas de execução,
f. procura e uso de várias sonoridades, mesmo em instrumentos vistos como limitados,
g. uso de diferentes materiais para a produção sonora (além das baquetas e mãos),
h. conceituação de fisicalidade (de modo a incluir também o uso da respiração e do olfato enquanto material
primordial) e
i. a música do/a Outro/a, a música como Outro/a.
Essas várias questões não são discutidas em seções individuais. Na seção 3 (O trabalho com timbres), eu
discuto primeiramente a tendência em usar uma miríade de instrumentos como fontes sonoras individuais.
Inicialmente, isso é feito focando a percussão múltipla (3.1 Percussão múltipla e grandes montagens do
ilimitado no ilimitado). Em seguida, procuro contrapor este procedimento discutindo o trabalho específico
de desenvolvimento de técnicas e novas sonoridades e materiais em instrumentos isolados (3.2
Contraposição através de solos num único instrumento simples do ilimitado no limitado).
Na primeira metade da seção 4 (Notação), eu foco no trabalho desenvolvido especificamente com o
pandeiro e que, nas últimas décadas, tem sido adotado por vários outros autores no Brasil e no exterior. Na
segunda metade, eu faço breves comentários a respeito da utilização de determinados conceitos e da
aplicação de notação originalmente proveniente de peças para percussão no contexto de instrumentos não-
percussivos, como em obras compostas para instrumentos de sopro (eufônio e clarone).
Na seção 5 (Dos múltiplos sentidos físicos do corpo), eu discorro sobre a importância do aspecto físico no
processo criativo, composicional e performático. Além disso, é discutido também como inclusive outros
sentidos principalmente o olfato, direcionam algumas peças específicas.
Na última seção (6. A música do/a Outro/a, a música como Outro/a), trago para o centro da discussão,
mais uma vez, a vivência da sica como Outro/a, algo inicialmente e tão bem descrito em textos de
Tatsumura (1991). Esta seção conclusiva procura colocar em evidência as metáforas individuais que
permitem o surgimento de novas percepções, relações e produtos termo que será aqui considerado em
uma acepção mais ampla, ou seja, da ânsia de procura pelo sentido de fazer surgir o novo.
3. O trabalho com timbres
3.1 Percussão múltipla e grandes montagens do ilimitado no ilimitado
Uma das tendências da percussão ltipla é o uso de muitos instrumentos como possibilidade de variedade
tímbrica. Em grande parte do repertório isto representa o uso de sonoridades específicas de determinado
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Stasi, Carlos. Dos objetos, coisas, atos e ares: uma visão (auto)crítica de obras e conceitos percussivos
instrumento (basicamente uma em cada instrumento), o que naturalmente resulta em grandes montagens.
Meu trabalho, desde o início, aproveitou-se disso, mas, ao mesmo tempo, sempre procurou incorporar a
ampliação de possibilidades dessas vozes únicas (com apenas um som) por meio de diferentes locais de
ataque e diferentes materiais num mesmo instrumento. Os exemplos abaixo (Fig. 1 e 2), dos solos Ilusão
(1986-1988) e Imagem (1988-1990), apontam para esta atenção e preocupação, tanto no que diz respeito
ao uso de diferentes partes das baquetas, mãos e dedos, quanto a diferentes locais num mesmo
instrumento, por mais que ele não pareça oferecer tal possibilidade (o que advém do seu uso comum e
generalizado).
a) b)
3.2 Contraposição através de solos num único instrumento simples do ilimitado no
limitado
Esse interesse específico por um objeto musical como fonte de várias sonoridades me levou ao uso de um
único instrumento apresentando a mais ampla variedade tímbrica possível. Essa situação tem como objetivo
a produção de obras de porte similar às múltiplas, mas sem adicionar-se outras vozes/instrumentos na
peça. Este contexto paradigmático resultou no desenvolvimento de várias técnicas de execução e numa
ampla e aprofundada procura de timbres no reco-reco de mola p. ex., o que pode ser observado claramente
Figura 1 Rascunho de Ilusão (1986-1988) e diferentes sonoridades num instrumento, apesar de vários outros usados nas duas grandes
montagens da peça: a) melodia com 5 timbres no triângulo e gongo thai, b) diferentes formas e locais de ataque em cada instrumento
Fonte: Arquivo pessoal do autor
Figura 2 Partitura de Imagem (1988-1990): indicações para ampliação de possibilidades sonoras advindas de uma fonte/instrumento
Fonte: Arquivo pessoal do autor
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Stasi, Carlos. Dos objetos, coisas, atos e ares: uma visão (auto)crítica de obras e conceitos percussivos
no solo para este instrumento de aproximadamente quinze minutos Xavier Guello (1984-1985)
3
.
Procedimento parecido é realizado também em Canção Simples de Tambor (1990), para caixa.
Apesar de grande parte do repertório para caixa apresentar possibilidades variadas de uso de timbre
4
,
considero que a questão de melodias de timbre foi trabalhada de maneira diferenciada e contundente em
Canção Simples de Tambor de 1990 (Fig. 3). Além disso, outros materiais para produção sonora são utilizados
de maneira coerente: uma bola de pingue-pongue e uma vara de pescar, p. ex. O uso de diferentes materiais
ocorre também na segunda obra para caixa intitulada Palm tree (1991), que usa folhas de uma árvore como
baquetas.
a) b)
c)
A exploração e ampliação detalhada de timbres, assim como a criação de técnicas de execução são
claramente observáveis no uso da matraca na obra Concerto para Matraca e Cordas A Song of Love (2004),
justamente num instrumento considerado bastante limitado (Fig. 4). Neste caso, p. ex., faz-se uso do
controle individual de cada uma das linguetas produtoras de sonoridades na coroa do instrumento, por meio
de uma técnica que havia sido apresentada no solo de matraca (solo rítmico com apenas uma das
linguetas) do sexteto/septeto 33 Samra Zabobra (1987).
3
A peça pode ser visualizada em: https://www.youtube.com/watch?v=NY-Ni6fGS-M
4
A edição de The Noble Snare Drum Compositions for Unaccompanied Snare Drum da Smith Publications
(Smith 1988), da qual eu não tinha conhecimento na época da composição de Canção Simples, indica um
ponto de mudança crucial no questionamento da caixa como instrumento militar nos Estados Unidos e
Europa.
Figura 3 Aspectos da partitura de Canção Simples de Tambor (1990): a) explicação sobre uso de bolinha de pingue-pongue (3o movimento),
b) indicações sobre o emprego de dedos na pele (3o movimento), c) indicações sobre o uso de vara de pescar (4o movimento)
Fonte: Arquivo pessoal do autor
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Stasi, Carlos. Dos objetos, coisas, atos e ares: uma visão (auto)crítica de obras e conceitos percussivos
Figura 4 Aspectos da exploração de timbres no Concerto para Matraca (2004): a) indicações sobre as partes do instrumento e dedos
específicos a serem considerados na interpretação da notação, b) figuras originais mostrando diferentes técnicas aplicadas no instrumento
Fonte: Arquivo pessoal do autor
a) b)
4. Notação
Esse trabalho de composição desenvolvido ao longo de décadas e específico para instrumentos de percussão
produziu diferentes sistemas notacionais. Assim, várias obras apresentam diferentes propostas de registro
musical escrito, objetivando uma maior clareza e compreensão com relação ao material a ser executado. No
entanto, isto não abarca todas as obras, que raramente se escreveu para que outras pessoas tocassem,
ou mesmo porque minha insatisfação em relação ao próprio material artístico peças e performance diluiu
a importância da escrita, cujo principal objetivo era, muitas vezes, apenas um registro básico que ajudasse
em eventuais performances de uma mesma peça. No entanto, mesmo que essas tendências tenham
dominado a produção, vários dos elementos desenvolvidos resultaram em sistemas notacionais
reconhecidos como bastante coerentes e que têm sido adaptados por vários outros profissionais em suas
próprias produções. É o caso da notação específica para pandeiro, que foi adaptada por diferentes autores
nos últimos 17 anos. Esse material tem sido analisado por alguns autores como Mendes (2010) e Gianesella
(2012). Como afirma Mendes (2010, 2), O objetivo deste trabalho é demonstrar a influência do sistema
notacional para pandeiro criado por Carlos Stasi, através da análise do referido sistema, bem como sua
difusão em métodos posteriores lançados nos últimos cinco anos. Gianesella (2012), no capítulo 5 de seu
livro, apresenta o mesmo sistema observando que vários métodos o adotaram, como Sampaio e Camargo
(2004), Lacerda (2007), Sampaio (2007) e Carvalho e Sampaio (2008). O autor ainda afirma que:
[O] sistema, desenvolvido pelo percussionista e compositor Carlos Stasi para notar suas
próprias peças, propõe uma grafia bastante sintética que facilita a leitura, ao mesmo
tempo que identifica todas as diferentes articulações propostas por ele, utilizando apenas
uma linha, na qual os sons graves (solto ou abafado) produzidos pelo polegar estão
grafados abaixo da linha, e os sons graves produzidos pelas pontas dos dedos (abafado e
solto) estão grafados acima da linha. E os sons das platinelas, sem o grave da pele,
produzidos tanto pela ponta dos dedos quanto pela base da mão utilizam hastes sem a
cabeça da nota, mas o primeiro está grafado acima da linha e o segundo tocando a linha...
Como para cada timbre, inclusive abafado ou solto, existe um sinal correspondente,
nesse sistema notacional não existe a necessidade de uma linha separada para anotar o
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Stasi, Carlos. Dos objetos, coisas, atos e ares: uma visão (auto)crítica de obras e conceitos percussivos
efeito do abafamento da mão esquerda, o que dinamiza bastante a leitura. (Gianesella
2012, 159)
Esse sistema, assim como vários outros, incorpora, de maneira simples, elementos já existentes em distintas
obras para percussão das décadas de 1970 e 1980, como o uso de linhas únicas ou suplementares, notas
com formatos de cabeças diferentes, notas sem cabeça (somente hastes) que funcionam bem para indicar
as chamadas notas-fantasma (do inglês ghost notes) ou as pontas dos dedos e o pulso no pandeiro , e o
símbolo X, funcionando perfeitamente para a execução básica de vários instrumentos apresentando sons
abertos e fechados. A reunião em um sistema único, coerente e mais claro visualmente para o pandeiro é
que representou um novo diferencial para o registro musical do instrumento. Essa notação é inclusive
aplicável em outros contextos instrumentais, funcionando perfeitamente para a execução básica de vários
instrumentos que apresentam sons abertos e fechados e que têm origem em contextos variados (como
congas, dumbek, tambora, surdos, repiniques, repiques de mão, entre muitos outros).
A ideia de sistema notacional aqui está completamente relacionada ao objetivo de oferecer o máximo de
elementos da execução numa grafia que seja fácil de ler (o que vai, em um certo sentido, na direção oposta
a uma boa parte da produção na música contemporânea), com a representação bastante aproximada de
todas as melodias produzidas através da articulação de vários timbres nos instrumentos (Fig. 5 e 6). Não foi
tão simples chegar a este resultado! Recordo que nas conversas com John Bergamo (meu orientador no
mestrado), ele ironizava o fato de compositores eruditos almejarem sempre uma escrita hermética e
complexa, resumindo isto na frase escrever difícil é fácil!. No sentido aqui analisado, cuja proposta é
justamente facilitar a compreensão da execução e das melodias criadas, muito trabalho é necessário para se
chegar a um sistema coerente e funcional. Mais do que isto, vários destes sistemas também consideram os
elementos técnicos da execução como essenciais para se alcançar tais resultados. Ou seja, trata-se
justamente do oposto: escrever de maneira a proporcionar um fácil entendimento, assim como uma
execução mais instantânea, é muito difícil!
Figura 5 Trecho original de ela (1993 e 2001-2002) para dois pandeiros (notação básica que seria refinada posteriormente)
Fonte: Arquivo pessoal do autor
a)
b)
c)
Figura 6 Notação para pandeiro de pesquisas do autor: a) bula expandida, b) e c) exemplos da notação mais refinada para pandeiro
Fonte: Lacerda (2014)
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No caso aqui analisado notação para pandeiro , a partitura na verdade espelha a própria posição de
segurar o instrumento, assim como os locais de articulação acima da linha, na própria linha e abaixo da
linha fazendo referência direta à maneira fundamental que o músico segura e executa o instrumento. Ou
seja, a partitura espelha o que o músico vê ao olhar para o próprio instrumento e sua mão direita (se destro),
o que facilita enormemente a leitura e compreensão, assim como a quase imediata execução.
Um princípio básico adotado nesse contexto é o da hierarquia de elementos. Ou seja, representar os vários
sons no instrumento de acordo com a sua importância dentro da proposta da obra, ou mesmo do idioma.
Assim, os principais sons do instrumento são representados através de um elemento socialmente
codificado notas com cabeça. O chamado tapa (som seco) é representado pelo X, o que ocasiona
imediata percepção entre esses dois timbres fundamentais e o uso deles nas melodias criadas. Já os sons do
pulso e das pontas dos dedos que fazem ressoar principalmente as platinelas é representado apenas
pelas hastes (sem cabeças de notas). Em outras obras, essas mesmas hastes servem para representar as
chamadas notas-fantasma, como no caso da escrita para congas.
Outro princípio usado em toda a produção é a não utilização de elementos fraseológicos para determinar
timbres (ex.: pontos de diminuição, ligaduras, acentos). Porém, no caso do pandeiro, pela primeira vez, isto
não foi aplicado. A razão é simples. O pandeiro não tem um som que se sustenta, possuindo sons, em geral,
secos. Neste sentido, não havia razão para seguir este princípio aqui colocado e, desta maneira, optou-se
por utilizar o ponto de diminuição staccato como símbolo do som do polegar fechado (som preso), o que
resultou numa partitura bastante limpa. Várias das discussões resultantes da adaptação feita por Sampaio e
Camargo (2004) e Sampaio (2007) relacionam-se com esta problemática. Sampaio mudou essa simbologia
em seus métodos, colocando um parêntesis ao redor da cabeça da nota. Como observa Gianesella (2012,
140):
É importante observar que os autores que se basearam no sistema notacional de Stasi
fizeram em seus métodos uma alteração de sua grafia original: em vez de utilizarem o sinal
de staccato para indicar as notas de polegar abafado e grave de ponta de dedos abafado,
eles modificaram a notação para essas articulações, utilizando o sinal de parênteses ( ) ao
redor da cabeça da nota. Mas em nossa opinião, assim como na opinião de Stasi, esse sinal,
além de não ser típico da escrita musical, ocupa espaço horizontal, o que pode ser dificultar
tanto a escrita quanto a leitura, principalmente em passagens mais complexas. Além disso,
a utilização das hastes indicativas dos sons de platinelas produzidos pela base da mão e da
ponta de dedos, por não utilizarem a cabeça da nota, já denotam uma função de marcação
de acompanhamento, tornando mais clara a visualização das articulações principais,
produzidas pelos sons graves da membrana solta ou abafada (de polegar ou ponta de
dedos), cujas notas representativas são escritas com cabeças... [O] sistema de Stasi pode
ser acrescido de outros sinais de acordo com a necessidade de suas próprias composições.
A hierarquia de elementos dentro da composição, ou do próprio idiomatismo do instrumento, responde
diretamente a esta questão e problemática. Afinal, elementos essenciais à linguagem nunca poderiam ser
colocados entre aspas ou entre parênteses numa partitura, já que servem (aspas e parênteses) justamente
para fazer referência àquilo que não é central a um texto, o que é justamente o contrário daquilo que
representa o som aberto na linguagem do pandeiro. Por conta disso também, Lacerda (2014) refez toda a
escrita de seus métodos, observando o equívoco provocado pela adaptação feita por Sampaio.
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Figura 8 Elementos de notação de Carlos Stasi: a) bula em Névoa Amarelada para eufônio, b) trecho de Névoa Amarelada,
c) mesmo trecho de Névoa Amarelada em Elric, adaptação para clarone transcrita por Sergio Albach
Fonte: Arquivo pessoal do autor
Santos (2015), em sua tese (cujo próprio título e pesquisa toma como referência, em vários níveis, meu
trabalho com instrumentos ditos marginais), observa que:
outros dois sistemas de notação para o pandeiro brasileiro que têm sido utilizados em
alguns métodos para pandeiro e na escrita de estudos e peças para este instrumento: o
sistema de Luiz DAnunciação e o de Carlos Stasi. Uma reflexão sobre as diferenças entre
estes dois sistemas de notação se encontra nos trabalhos Uso Idiomático dos Instrumentos
de Percussão Brasileiros: principais sistemas notacionais para o pandeiro brasileiro (2012)
de Gianesella; e A Funcionalidade do Sistema Notacional para Pandeiro de Carlos Stasi
(2010) de Mendes. (Santos 2015, 122)
Ao mesmo tempo, esse autor oferece exemplos do uso dos conceitos discutidos em transcrições para outros
instrumentos, como indicado na Fig. 7a. A Fig. 7 apresenta também outros trabalhos realizados com base
nos conceitos originais de notação aqui discutidos.
a) b)
Como segundo exemplo, cito a notação utilizada na obra Névoa Amarelada (2014-2015) que, apesar de ter
sido composta para um instrumento de sopro eufônio (com posterior adaptação para clarone), também
se utiliza dos mesmos princípios (Fig. 8).
a) b)
c)
Figura 7 Material decorrente de notação para pandeiro de Carlos Stasi: a) interpretação dos ritmos de candomblé agueré, ibi e alujá,
b) métodos para pandeiro que utilizam como base a notação do autor
Fonte: a) Santos (2015, 127), b) Sampaio e Camargo (2004), Lacerda (2007) e Carvalho e Sampaio (2008) respectivamente
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Trata-se, então, de um questionamento com relação aos sistemas tradicionais mais utilizados. No caso da
bateria, p. ex., utiliza-se normalmente um pentagrama que, a princípio, apresenta-se como bastante
incoerente e desnecessário para este instrumento. No meu entender ele só faz sentido por conta do fator
histórico e sua utilização durante décadas, mas não representa, em si, um sistema coerente, claro e limpo.
no caso do eufônio, apesar de ser um instrumento melódico que faz uso do pentagrama, adaptei o mesmo
para o sistema de apenas uma linha, visto que a peça utiliza apenas uma nota em quase toda sua totalidade.
Do mesmo modo, as outras três notas satélites são indicadas em relação à esta única linha principal.
Obviamente, assim como no caso da maioria de obras para percussão, basta uma bula para identificar as
poucas notas utilizadas, sem qualquer necessidade de uso contínuo de um excesso de linhas (pentagrama),
tornando a partitura mais limpa e clara com relação ao seu aspecto rítmico, que é bastante explorado.
Seguindo a proposta de organicidade e coerência com a relação física do ato de tocar, observa-se ainda que
as notas abaixo e acima da linha não exigem qualquer pressão dos pistos, enquanto aquelas que exigem
qualquer dedilhado são localizadas nas próprias linhas, o que facilita bastante a compreensão, como John
Cage propôs em sua escrita para 5 latas e 3 tomtons na obra Third Construction de 1941 (notas nos espaços
indicavam o centro desses instrumentos e notas nas linhas indicavam as bordas).
5. Dos múltiplos sentidos físicos do corpo
5.1. Percussão e fisicalidade
A fisicalidade é essencial na compreensão do processo de criação das obras. Ela se em pelo menos três
diferentes níveis:
a) na tradução metafórica de sensações físicas em arte, de situações cotidianas em musicais,
b) no fato de representar uma ferramenta para a memorização, principalmente nas longas peças de
percussão múltipla (de 40 a 80 minutos cada), o que é por vezes chamada de memória muscular
ou ainda memória cinética,
c) na sensação física (nos dedos, mãos e braços) de qualquer som imaginado sendo produzido com
determinado material. Neste último, independente da altura/nota do instrumento, é possível
sentir determinada baqueta (e suas diferentes regiões cabeça, pescoço e outras partes), seus
ângulos (reto ou diagonal e outros possíveis) em diferentes partes do instrumento (borda, centro
e cúpula de um prato, p. ex.), sem que haja necessidade de realmente se tocar.
Várias sensações diárias (apoiar a mão num balcão, p. ex.) podem ser naturalmente traduzidas em peças
musicais, indicando inclusive instrumentos mais apropriados para esta tradução. Num nível mais básico,
um balcão feito de madeira sugere diferentes percepções táteis/físicas em relação a outros feitos de metal,
fórmica ou pedra, sendo que os diferentes níveis de temperatura desses materiais entram também em jogo,
possibilitando pontes com diferentes superfícies e características dos próprios instrumentos, como
triângulo, pratos e agogôs (metais), blocos (madeira), entre outros. Mais do que isto, amplia-se esta
técnica também para a questão do olhar (ver com atenção uma parede de vidro, assim como seus
reflexos, p. ex., pode resultar diretamente na escolha de determinados instrumentos, assim como em ideias
e estruturas para uma peça). Por isso mesmo foram compostas obras intituladas Música para a Visão e
Música para o Tato. Neste sentido, todo o ambiente vivido em meio às montagens de percussão múltipla
nas décadas de 1980 e 1990 foi um verdadeiro arrebatamento. Eram ambientes naturalmente repletos de
cores, possibilidades e materiais. Esta experiência/vivência física/tátil era naturalmente ampliada para toda
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a sala de percussão, para tudo o que nela existia e, posteriormente, ao prédio e às ruas ao redor da sala de
percussão, ao menos no antigo prédio do Ipiranga (sede anterior do Instituto de Artes da Unesp em São
Paulo). Do mesmo modo, era frequente eu permanecer nesses locais 4 ou 5 dias consecutivos. no
mestrado (1994-1995), era natural permanecer produzindo durante 40 ou 56 horas seguidas.
Para poder percorrer esse caminho de descobertas o silêncio sempre foi essencial. Sem silêncio, p. ex., não
era possível perceber a mais tênue dinâmica, a respiração e outros elementos ínfimos (ínfimos em suas
nuances por vezes minúsculas, mas extremamente importantes em termos de constituição do processo). Em
determinados espaços, p. ex., era possível reconhecer os harmônicos das diferentes luzes fluorescentes
quando acesas (e de cada uma delas quando acesas separadamente). Esta experiência, assim como outras
(ficar em silêncio durante uma hora seguida, tendo direito a tocar somente uma nota nos 60 minutos, p. ex.),
eram conhecidas por alguns. Na época que recebi uma das homenagens mais significativas em minha vida
a composição O Instrumento do Diabo de Rael Gimenes Toffolo em junho de 2020
5
, em homenagem ao
contato que tivemos em nossas aulas, conversas, assim como a impressão que ele teve de meu CD SOLo en
el manantial e todo o material do meu primeiro livro , Toffolo relembrou o fato de que eu realmente
conhecia cada taco solto da sala de percussão, assim como a sonoridade peculiar de cada um. Naturalmente,
o estamos falando aqui somente do conhecimento de cada som da sala, mas sim da relação física com os
mais variados materiais, o que justifica o termo fisicalidade aqui discutido. Para além dos tacos e toda
estrutura física da sala e do prédio, eram necessárias sombras, muitas sombras para se dialogar com. Ou
seja, raramente tocar com luzes acesas, mas velas, o que tornava o ambiente numa mesma montagem, num
mesmo todo.
Uma expansão, deste sentido de fisicalidade (tato, visão) é a obra Corra e fique cansado apresentada numa
aula ministrada na Universidade Federal de Goiás em 2004 para mostrar meu desencantamento com a forma
pela qual os músicos não viviam a música, se atendo a instruções que, por vezes, os desviavam da própria
essência da obra (através do excesso de pensamento, estratégias e formas). Ou seja, foi apenas uma
demonstração de que para se ficar cansado, assim como para se viver a música contemporânea, não é
necessária muita elucubração. Para a performance então, foi planejado correr de outro prédio a centenas
de metros de distância. Dois alunos do curso estariam a postos (visíveis) para indicar a hora correta de
começar (com base na apresentação inicial da professora que organizou aquele curso/evento). Eu corri todo
o percurso e, naturalmente (como deve ser a música contemporânea, natural) cheguei sem fôlego ou ar. De
surpresa, sentei-me cansado no colo da professora que me convidou e esperei para que pudesse pronunciar
alguma palavra. Foi a maneira de mostrar a experiência direta com a música contemporânea e aquilo que
ela demanda, muitas vezes mais próxima de todos do que se imagina. Observando hoje, não há como negar
as influências do fato de, desde o início, não distinguir o que era musical ou não (ponto positivo em não ter
tido nenhuma prévia formação ao adentrar a universidade), assim como de participar de várias atividades
junto a John Boudler, no sentido da valorização deste tipo de abordagem. Esse foi o caso, p. ex., do Fluxus
Event(o) por ele idealizado, e cuja realização se deu em julho de 1990. Este evento, que incluía 32 peças e 6
instalações, com duração de 18 horas contínuas, mostrava, de uma certa forma, uma certa quebra da
separação entre música e vida, além dos limites físicos da música. Theater music, de Takehisa Kosugi, p. ex.,
indicava em sua partitura apenas a seguinte orientação: ande intencionalmente, bastante parecida com a
5
O Instrumento do Diabo (2020), para eletroacústica solo, de Rael B. Gimenes. Acessível em:
https://raelgimenes.com/2023/02/22/o-instrumento-do-diabo-2/
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Stasi, Carlos. Dos objetos, coisas, atos e ares: uma visão (auto)crítica de obras e conceitos percussivos
proposta de Corra e fique cansado (2004). Piano Piece for Terry Riley #1, de La Monte Young, indicava que
se devia empurrar um piano contra a parede, e se o piano a atravessasse, devia-se continuar até se encontrar
outro obstáculo. O fim da peça aconteceria quando os executantes se cansassem de empurrar. Ou seja, nota-
se uma concordância e confluência nos vários trabalhos e conceitos pessoais em relação a estas obras e
propostas de movimentos como este.
5.2. Respiração
No sentido aqui discutido, várias frases musicais executadas exigiam certo procedimento respiratório. Travar
a respiração e soltar em determinada nota, p. ex., era algo que parecia espelhar, de maneira direta,
determinada frase que pudesse resultar em um abafamento num prato ou gongo (suspender), com posterior
sequência de outros materiais (soltar).
Em um outro nível ocorreu o uso de exercícios respiratórios de yoga (praticado profundamente no período
de 1985 a 1990 aproximadamente) na execução do trio Retornar (1991), junto a Edson Gianesi (duo
experimental) e o instrumentista de sopros Wilson Neves. Neste caso, um trio, com manutenção de
determinadas sonoridades no momento da hiper oxigenação do cérebro e consequente desmaio, permitiu
este tipo de performance. Ou seja, como solista isso seria inadequado, mas com um duo acompanhando
havia espaço para tais experiências. Toda a dinâmica, turbulência e efeito do exercício respiratório específico
tinha uma base musical que podia ser mantida e, de forma literal, esta espécie de suspenção foi traduzida
para as frases do outro percussionista, nas quais as apojaturas (mais ou menos distantes da nota principal)
foram colocadas em evidência (mais fortes em instrumentos de maior potência sonora), ao mesmo tempo
que as notas mais estáveis que poderiam oferecer melhor percepção do tempo da música eram tocadas
em instrumentos e dinâmicas menos perceptíveis. Ou seja, havia uma certa suspensão do tempo em direta
relação com os aspectos da respiração trabalhada no trecho.
5.3. Música para o Olfato
Seguindo a ideia de ampliação das percepções e que tudo é som, e com base no fato que desde a infância
tinha a prática de cheirar as coisas, eu compus Música para o Olfato em 1990. Muitos anos antes eu dizia
para mim mesmo: um dia vou escrever uma peça com ou sobre o olfato, mas nada realmente ocorria de
maneira a concretizar tal ideia. Um dos poucos livros lidos na vida foi O Perfume: História de um Assassino
de Patrick Süskind (1986), no qual o personagem principal é virtuoso no sentido do olfato. Aquilo me
marcou e, pouco a pouco, foi se sobrepondo às práticas pessoais de cheirar coisas. A canela foi um dos
principais elementos, tanto que se tornou um segundo nome para a obra Cinnamon. Ocorreu então que,
numa das poucas performances nas quais tive tempo de ir para casa após o dia todo montando o palco, eu
já havia fechado a porta de casa e estava perto da saída para a rua. Algo então me disse: hoje é o dia de
você tocar Música para o Olfato. Mas então eu perguntei: como posso tocar algo que não existe?, pois
nunca havia realmente composto nenhuma peça nesse sentido... A resposta foi clara. É hoje e pronto! Eu
abri novamente a casa, voltei para a cozinha, abri o armário e comecei a pegar vidrinhos e potinhos cheios
de coisas. O primeiro, claro, foi o recipiente de canela. Fiquei estranhando e preocupado, porque
improvisação foi sempre algo que não gostei, a não ser que demandasse ensaios e determinadas práticas
específicas, no sentido de gerar certo discurso com base em alguns materiais conhecidos. Sair de casa
assim, sem saber realmente o que fazer, foi estarrecedor. Eu entrei no palco ainda com as cortinas fechadas.
Em frente à montagem enorme de percussão múltipla e outras coisas coloquei, na parte central, uma estante
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de partitura na horizontal. Sobre ela, uma toalha e os vários recipientes de cheiro. Voltei para o fundo.
Estava quase na hora de abrir as cortinas e eu ainda não sabia o que ia acontecer. Aquela voz veio de novo:
é hoje! E eu estava muito preocupado em não fazer um papel de tolo. Eu nunca tive chance com essas
vozes, pois muitas vezes eram elas que diziam para tirar ou deixar uma parte específica das múltiplas (mesmo
que eu, pessoalmente, gostasse ou não da parte, eu não tinha chances com elas). Quando abriu a cortina, a
única coisa que me restava era caminhar para tocar a primeira peça. Fiquei lá, frente àquela estante! A
peça veio naturalmente, sempre existiu, mesmo que eu não soubesse. Essa integridade com o processo
resultou em percepções das mais profundas por parte do público. Algumas pessoas achavam que a música
era o som de abrir ou fechar cada recipiente. Outras, pelo motivo que dispus os recipientes imitando um
teclado, conseguiram perceber e ouvir o direcionamento das notas/alturas naturais e/ou cromáticas.
Outras ainda, tiveram seus sentidos olfativos despertados e começaram a sentir vários odores na própria
plateia, inclusive das pessoas ao lado. Sucesso absoluto! Fiquei abismado.
Desnecessário dizer que este solo nunca mais foi executado pois representaria somente algo caricato da
obra original, que funcionou tão somente pelo processo interno de anos seguidos de questionamento
sobre o que ele realmente seria e como realizá-lo
6
. Apenas apresentei outras versões de duo com meu
professor John Boudler e bem limitadas em termos quantitativos também.
Em 2003 a obra olfativa foi gravada no CD SOLo en el manantial, cujo texto do encarte é demonstrado abaixo:
A experiência de gravar com Bolivar Gómez se fez tão maravilhosa que depois disto fiquei
em silêncio no estúdio, com as luzes apagadas, e assim acabei fazendo uma performance
da obra música para o olfato I de 1990. Apesar de sua essência não sonora, decidi incluí-la
no CD, quase como uma desculpa para falar sobre ela, como peça conceitual que é, e
ilustrar assim um dos princípios básicos de toda minha produção. Aqui, a atenção e o
trabalho são dirigidos aos diferentes sentidos do corpo, principalmente aqueles
geralmente sufocados em nossa sociedade moderna. O percussionista cheira objetos e
substâncias, sugerindo e provocando múltiplas imagens no e para o público. Os sons de
abrir e fechar os pequenos volumes contendo substâncias dos mais variados odores fazem
o público imaginar e sentir outros. A intenção é sempre ampliar nossa sensibilidade em
diferentes níveis, insistindo assim em viver a música também com base em elementos não
percebidos como não musicais: a família da guira, os instrumentos menores, os solos
extensos, o chamado experimentalismo, as sombras, o silêncio, o tato, o odor, a dor, a
mulher, a separação, a morte. E os olhos fechados, oferecendo imagens mentais que
sustentam todas as execuções, o motor das mesmas. Escutar música não necessariamente
significa vivê-la! Por isso também a distância dos CDs, além do conhecido medo daquele
silêncio lindo, o silêncio infinito do estúdio, uma das mais profundas experiências naquele
momento, um novo cenário, uma nova etapa. (Stasi 2003)
6
Experiência mais radical ainda do processo é a existência da obra Exbert, que intencionava, durante
décadas, escrever para meu professor John Boudler. Em 1997 ela aparece num sonho na África do Sul.
Acordo, choro por mais de 5 horas e reconheço que aquela era realmente a peça tão sonhada. Dentre
outras cenas, destaca-se aquela na qual ele pegava minha mão (de criança) e me conduzia para dentro de
uma casinha (uma montagem de percussão múltipla).
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6. A música do/a outro/a, a música como outro/a
Para finalizar, da mesma maneira como termina o meu livro O Instrumento do Diabo (Stasi 2011), evidencio
aqui uma vez mais a vivência da música como outro/a’” tão bem explorada por Tatsumura (1991). Para ela,
além das metáforas culturais existem aquelas pessoais/individuais, que o presente artigo procura evidenciar
em todo seu percurso. São essas metáforas individuais que permitem o surgimento de novas percepções e
relações, ou mesmo produtos, como aqueles aqui considerados: obras, textos, livros, técnicas originais,
balcões, odores, tatos, visualidades e tantos outros, no sentido de fazer surgir o novo.
Para Tatsumura (1991), em sua análise e estudo da recepção intercultural da música, deveríamos dar mais
atenção ao indivíduo. A recepção da sica é vista como um ato de interpretação da música como
outro/a’” (music as other) pelo indivíduo, sendo que a sensibilidade de cada um é o elemento responsável
que assegura a alteridade da música (the otherness of music em inglês), a música à qual o individuo responde
como algo não realmente dele. Neste sentido, o indivíduo pode estranhar determinada música, reagindo de
forma a se distanciar dela, mas também de maneira a se interessar por ela: alguma coisa com a qual
comparta algum sentimento, algo que lhe comunique alguma coisa e o estimule a se aproximar da mesma.
As experiências do indivíduo são limitadas por seu pertencimento à determinada cultura. Neste contexto,
interpretar é então aproximar imediatamente duas coisas que o muito diferentes uma da outra, é
justamente o pertencimento cultural de cada indivíduo que determina a distância entre a música e as
experiências de cada individuo como base da interpretação. Porque as experiências e sentimentos do
indivíduo são completamente únicas, seu encontro com a música outra é também único. Tatsumura
(1991, 525) segue sua definição afirmando que:
a música impulsiona o indivíduo, inspirado pela tensão entre estranhamento e simpatia, a
experimentar uma nova consciência em sua vida... a ponto de ser entendida, com base
naquilo que ela define como uma metáfora viva a criação de um sentido novo às coisas
a partir da tensão existente entre duas palavras cujo sentidos, tradicionalmente, são muito
diferentes um do outro.
Ou seja, para ela, a metáfora viva traz uma similaridade entre duas palavras que nunca foram antes notadas
na consciência (Tatsumura 1991, 524). Em outras palavras, tanto a interpretação como a criação estão
envolvidas neste processo. A dinâmica da metáfora viva é quebrar com categorizações prévias e estabelecer
novos limites lógicos sobre as ruínas daquelas que as precedem. Neste sentido, um discurso que faz uso de
metáforas vivas tem o extraordinário poder de reescrever a realidade. Assim, para Tatsumura (1991), uma
metáfora viva, neste processo de entender a música como outro/a, consistiria no fato do som musical ser
entendido como sujeito, ao mesmo tempo que sua significação pelo recipiente como predicado... O ato de
entender music as other sica como outro/a é tanto uma interpretação como uma criação para o
indivíduo, uma interpretação da experiência de outros indivíduos e uma criação de um novo sentido um
novo significado através da ligação da sua própria experiência a ela.
Uma metáfora viva não pode ser entendida em termos do senso comum, ela é sempre
uma rebelião contra a vida cotidiana, e tem o poder de quebrar a ordem estabelecida da
realidade, de maneira a construir uma nova perspectiva numa nova realidade... E mais
significativo ainda, abrindo uma porta para um mundo diferente. (Tatsumura 1991, 526)
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Stasi, Carlos. Dos objetos, coisas, atos e ares: uma visão (auto)crítica de obras e conceitos percussivos
Infelizmente, como discutido, a ausência desta percepção no processo que relaciona emissor e receptor
(performer e público) nunca foi realmente compreendida ou aceita por mim. Ao mesmo tempo, a
performance das coisas aqui enumeradas, no meu entender, apresentam resultados claros. Creio que ela
antecede o pensamento mais lógico, o raciocínio e as doutrinas científico-acadêmicas. As pessoas reagem
com a mesma honestidade com a qual as coisas foram criadas e performadas. Os tacos soltos de uma sala
de percussão, o cheiro, as paredes, os vidros e tantos outros materiais, falam, significam e, por meio da
metáfora, nos fazem mergulhar em outros mundos, através de outras portas que se abrem, fazendo dos
sons, e da fisicalidade que os acompanha, matéria prima para a criação, que transcende qualquer teoria ou
pensamento lógico.
Fica clara a vivência de tais conceitos nas maneiras pelas quais, sem ter qualquer apreço pela percussão no
início de minha jornada, consegui estabelecer relações entre diferentes materiais e formas. Se por um lado
não houve uma formação mais adequada, não se possuía qualquer técnica para os mais diversos
instrumentos, ou mesmo não se compreendia nada daquele ambiente (técnicas, obras, partituras e
repertórios); por outro, aquele mundo percussivo então apresentado possibilitava caminhos alternativos
(brechas, portas). Ao mesmo tempo era fácil, por um certo poder de metáfora, criar e estabelecer relações
entre vários objetos/instrumentos, ou mesmo a chamada percussão múltipla, com várias outras coisas.
Um bloco de madeira nunca foi tão somente um objeto pois, de maneira instantânea, ele era isso e muito
mais. O espaço vazio em direção ao corpo interno dele, a partir da sua boca, representava infinitude.
Mais ainda, representava locais que não podiam ser acessados pelo ato de tocar nesses mundos
particulares. Decorria disso uma certa veneração por esses objetos individuais, assim como uma necessidade
de mitologizá-los. Naturalmente, a percussão múltipla elevava essa percepção à enésima. De forma
resumida, no meu entender, esses outros elementos, a princípio não musicais, são fundamentais em
processos de criação artístico-musical-performativa, sendo a essência do que objetivei discutir no presente
texto.
7. Considerações finais
O presente texto evidencia que a percussão é múltipla e diversa um campo de possibilidades infinitas. Este
é o caso ainda atualmente, mesmo quando notamos seu engessamento por conta de determinada
codificação e reprodutibilidade de saberes, obras, modos de tocar/ouvir/pensar/conceber/sentir,
instrumentos, conceitos, métodos e abordagens didático-pedagógicas, entre outros. No meu ponto de vista,
depois desses mais de 42 anos de trabalho, quanto mais legitimado é um determinado campo do
conhecimento, maior é a possibilidade de limitação e de afirmação de um pensamento mais hegemônico a
respeito de qualquer objeto ou área. Uma história bem estabelecida depende de determinados agentes
específicos performers, instrumentos, escolas, especialistas e obras referenciais. O presente texto trata
disso como uma ficção, que foi criticada e ironizada na única obra performática criada em todo o repertório
Sapus columbus (2001). De forma geral, penso que qualquer trabalho pode (por vezes até deve) servir
como determinado referencial para cada pessoa, mas nunca no sentido de um certo tipo de doutrinação,
tão peculiar ao nosso meio aqui considerado a academia e a música de concerto. Seria, mais uma vez,
outro exemplo de caricatura e, ao evitar a mesma, procurei caminhos outros como músico e docente, assim
como diretor do curso e do grupo de percussão da Unesp o Grupo PIAP.
Como exposto no início deste texto, as várias experiências com a percussão motivaram, de certa forma, o
encontro com maneiras particulares de agir, pensar, refletir, procurar e estabelecer sentidos na percussão.
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Se por um lado absorveu-se determinada tradição, por outro fomentaram-se experiências e escolhas que,
em vários níveis, questionam determinados paradigmas referentes ao fazer artístico. Na verdade, a própria
arte é colocada em questão, em função de uma visão que, em sua essência, tende a considerar muito mais
a experiência individual e interna, muitas vezes única e singular em relação ao momento e contexto em que
ocorre. Talvez passar dias seguidos numa sala com tais instrumentos/objetos, em seções que chegavam a
durar 40 ou 56 horas seguidas, possam ter afetado as maneiras mais comuns de se perceber o tempo,
inclusive o tempo limitado de uma obra ou concerto. Talvez isso também tenha corroborado com a ideia de
maior valorização do processo de criação e estudo do que aquele da performance de obras num formato
tradicional de concerto (apesar que este foi o formato mais utilizado para a apresentação de dezenas de
obras aqui mencionadas). Da mesma forma, o conceito de que altos níveis de performance podem ser
alcançados após a execução de obras referenciais do repertório (ou mesmo métodos e estudos) foi
completamente destruído com a composição da primeira peça para ltipla Ilusão (de 80 minutos de
duração e que apresenta técnicas com enormes níveis de complexidade e dificuldade). Vários elementos
forneceram uma base sólida para esse tipo de questionamento, apresentando soluções variadas como a
ampliação tímbrica num único instrumento, o questionamento do que seria baqueta e/ou instrumento e
tantos modos de produção sonora, como exemplificado nas duas peças de caixa e várias outras obras. Além
disso, o conceito de sistema notacional aqui apresentado diverge daquilo que normalmente se faz, que
notações mais complexas se apresentam como fetiches que acabam por justificar e legitimar a própria obra,
num sentido similar a muitas notas de programa que pouco ou quase nada transparecem na escuta.
Ao mesmo tempo, agora falando de elementos não necessariamente musicais, no sentido mais comum do
termo, aquele diálogo interno com as vozes que respondiam às minhas várias questões, ao ter que tocar
uma peça que ainda não existia (Música para o Olfato), ou que estabeleciam qual material deveria ser usado
(nas percussões múltiplas), independente do meu próprio julgamento, representavam uma espécie de
intuição, que respeitava, em sua própria essência, uma certa relação de integridade com o processo. Com
certeza isso colocava em questão o conceito de obra musical e de compositor. Do mesmo modo, o fato de
que a reprodução da música era por vezes vista como uma mera caricatura de algo considerado original me
parece também uma reflexão do quanto reproduzir regularmente as obras significaria deixar de seguir aquilo
que era visto como o que é aqui descrito como interno, em oposição a uma carreira profissional convencional
como músico. O poder da metáfora viva, que quebra com categorizações prévias e estabelece novos limites
lógicos sobre as ruínas daquelas que as precedem, possibilitando reescrever a realidade (Tatsumura 1991) é
o que parece ter sido naturalmente considerado nesse percurso.
Passadas essas mais de quatro décadas, me parece interessante e importante observar o quanto a
legitimação gradativa deste campo/área percussão afeta tais possibilidades de se reescrever nossas
realidades. Mais do que isto, observar o quanto tais mudanças afetam a criatividade, geram certa apatia ou
mesmo inibem novos caminhos e experiências. Pessoalmente, ao me perguntar sobre novos projetos e o
futuro eu vejo todo meu trabalho, ao menos no momento, em meio a uma espécie de névoa (similar àquela
que me levou a compor a peça homônima para eufônio Névoa Amarelada). Não consigo enxergar com
clareza e poucos referencias realmente sólidos. Por outro lado, já que enxergar remete mais ao sentido
da visão, creio ser necessário levar em conta alguns dos conceitos aqui descritos para, no mínimo, relativizar
tal percepção limitada de apenas um sentido. Eu respondo então que resta a intuição! Assim, meu
afastamento da percussão, principalmente nos quatro últimos anos, me parece uma maneira de, talvez um
dia, poder revisitá-la. A maneira pela qual isso vem ocorrendo, mais uma vez, sugere caminhos um tanto
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quanto não convencionais ou estabelecidos, já que nega o próprio retorno aos ambientes percussivos mais
familiares a composição, o Laboratório onde trabalho, os objetos/instrumentos individuais e a percussão
múltipla.
Algo tem me direcionado a um elemento específico ar , partindo de alguns momentos e fragmentos
distantes citados neste texto. Seis pontos específicos surgem como questionamentos que sugerem, ao
menos de maneira intuitiva, eventuais respostas: 1) o principal instrumento utilizado em todas as múltiplas
da Tetralogia foi a campana de vento, por conta da reflexão a respeito da falta de controle tão peculiar a
esse instrumento, o fato dele poder soar sozinho (sem interferência do músico) e outras características; 2) ao
mesmo tempo, as obras Uma parte do Vento (1990) e Retornar (1991) incluíam um instrumentista de sopro;
3) Música para o Olfato era uma outra maneira de refletir sobre o ar e o que ele contém, o que ele porta,
carrega e traz aos nossos sentidos; 4) paralelamente a isso, eu voltei a refletir sobre o incômodo que sempre
tive por nunca poder realmente sentir acessar um bloco de madeira (wood block) de maneira completa o
espaço vazio que se abre desde sua boca, em direção ao corpo do instrumento foi algo que sempre me
intrigou; 5) além disso, por mais que tenha tido êxito em várias experiências com as múltiplas, este tipo de
percepção me levou a considerar também os espaços vazios que existiam entre um objeto e outro, entre um
instrumento e outro, 6) esses são os mesmos espaços vazios que me intrigavam entre um dente e outro da
superfície de um reco-reco. Surgiu então uma pergunta básica: não seria o ar o elemento que poderia
permitir tal acesso interno, tal preenchimento, tal sentimento de completude, de maneira a perceber a
percussão de uma outra maneira? Apesar de me encontrar quatro anos distante da sala de percussão é
muito provável que algumas respostas possam ser encontradas ali. Porém, algo me leva a esta reflexão sobre
o vento e o ar (simbolizados por vários instrumentos de sopro), para que as encontre eventualmente. Neste
caso, assim como naquele das vozes nas múltiplas, não creio ter qualquer poder de escolha. Negar isso seria
negar a integridade e todos os processos em grande parte menos convencionais , que nortearam as
experiências e vivências aqui relatadas com a percussão.
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Osamu Yamaguti, Tuneko Tukitani, Akiko Takamatsu e Mari Shimosako, 522-527.
Young, La Monte. 1960. Piano Piece for Terry Riley #1. Original do compositor mimeografado.