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eISSN 2317-6377
O bruxo e o Maestro:
a colaboração musical entre Carlos Barbosa-Lima & Tom Jobim
The witch and the Maestro:
the musical collaboration between Carlos Barbosa-Lima & Tom Jobim
Ines Loureiro
Escola de Música da UFMG, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil
inesbiancaloureiro@gmail.com
Flavio Terrigno Barbeitas
Escola de Música da UFMG, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil
ARTIGO CIENTÍFICO
Editor de Seção Editor: Fernandp Chaib
Editor de Layout: Fernando Chaib
Licença: "CC by 4.0"
Data de submissão date: 10 jan 2024
Data final de aprovação: 07 abr 2024
Data de publicação: 08 mai 2024
DOI: https://doi.org/10.35699/2317-6377.2024.49464
RESUMO: O objetivo do artigo é descrever os principais marcos da relação entre o violonista Carlos Barbosa-Lima e o compositor
Antonio Carlos Jobim. Ao longo de mais de uma década os dois cultivaram uma profícua colaboração musical alimentada pela
mútua admiração. A partir do trabalho conjunto em torno dos arranjos para violão solo das músicas de Jobim, estabeleceu-se uma
amizade que teve reflexos positivos sobre a trajetória de ambos: pelas mãos de Barbosa-Lima, Jobim foi definitivamente
incorporado ao repertório do violão de concerto; por meio de Jobim, Barbosa-Lima obteve maior projeção entre o público de jazz
e música popular, inclusive no Brasil. Desta cooperação nasceu o projeto de compor um “Concerto para violão e orquestra” que,
embora não concretizado, mostra quão estimulante foi a ligação entre o brujo do violão e o Maestro soberano.
PALAVRAS-CHAVE: Violão solo; Arranjos para violão; Antonio Carlos Jobim; Carlos Barbosa-Lima; Música Popular Brasileira.
ABSTRACT: The aim of this article is to describe the milestones in the relationship between guitarist Carlos Barbosa-Lima and
composer Antonio Carlos Jobim. Over more than a decade, the two cultivated a fruitful musical collaboration fueled by mutual
admiration. Starting with their joint work on solo guitar arrangements of Jobim's songs, a friendship was established and it had
positive impacts on both of their trajectories: through Barbosa-Lima's hands, Jobim was definitively incorporated into the classical
guitar repertoire, and through Jobim, Barbosa-Lima gained greater visibility among jazz and popular music audiences, including in
Brazil. From this collaboration emerged the project to compose a "Concerto for guitar and orchestra," which, although not realized,
demonstrates how stimulating the connection between the guitar brujo and the Sovereign Maestro was.
KEYWORDS: Solo guitar; Arrangements for guitar; Antonio Carlos Jobim; Carlos Barbosa-Lima, Brazilian Popular Music.
Per Musi | Belo Horizonte | v.25| General Topics | e242512 | 2024
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Loureiro, Inês; Barbeitas, Flávio Terrigno. O bruxo e o Maestro: a colaboração musical entre Carlos Barbosa-Lima & Tom Jobim
Introdução
Nova York, primavera de 1982: duas grandes personalidades musicais brasileiras o violonista Antonio
Carlos Barbosa-Lima (1944 -fev.2022) e Antonio Carlos Jobim (1927-dez.1994) encontram-se pela primeira
vez. Meses mais tarde, em agosto, Barbosa-Lima grava em San Francisco o álbum Carlos Barbosa-Lima plays
the Music of Antonio Carlos Jobim & George Gershwin (Concord Concerto, 1982), primeiro e principal fruto
da colaboração entre ambos. A partir de então, os “xarás”, como Jobim assinala amistosamente na
contracapa, cultivariam uma rica afinidade pessoal e musical até o falecimento do Maestro.
No que se segue, contaremos a história dessa relação e dos possíveis significados para a carreira dos dois
artistas. De imediato, convém assinalar que o trabalho não possui um viés analítico, de modo que não se
debruça pormenorizadamente sobre as obras e os arranjos mencionados. A intenção é, antes, construir um
relato detalhado desse intercâmbio musical a partir de dados disponíveis, mas até aqui esparsos e de difícil
acesso (matérias em revistas norte-americanas da década de 1980 não digitalizadas, por exemplo). Narrativa
de cunho histórico, o artigo pretende contribuir para os numerosos estudos sobre Jobim realizados no Brasil
e no exterior, colocando, porém, a figura de Barbosa-Lima em primeiro plano, dada a escassez de pesquisas
acadêmicas sobre ele. Decerto é em relação ao violonista que uma eventual contribuição deste texto será
mais expressiva, na medida em que aborda importante capítulo de sua trajetória.
O artigo acompanha aproximadamente a cronologia dos eventos: o contexto do encontro; o processo de
trabalho que resultou no disco de 1982; o episódio da série A música segundo Tom Jobim que traz Barbosa-
Lima como convidado especial (TV Manchete, 1984); os novos arranjos para o duo de violões registrados
com Sharon Isbin em Brazil, with love (Concord Picante, 1987); as referências ao plano de compor um
concerto para violão. Os dados aqui utilizados são provenientes de fontes variadas, como encartes de LPs,
entrevistas, críticas musicais, registros audiovisuais, álbum de partituras e correspondência pessoal.
1. Os personagens no contexto do encontro
Em 1981, Barbosa-Lima mudou-se para Nova York onde, a convite de Sharon Isbin, passaria a lecionar na
Manhattan School of Music. Até então professor do Carnegie Mellon Institute (Pittsburgh), era na ocasião
um concertista já bastante conhecido e com longo histórico de gravações lançara seu primeiro disco, Dez
dedos mágicos num violão de ouro (Chantecler, 1958), aos 14 anos.
Nesses primeiros registros, até 1961, o garoto-prodígio exibe um grande e eclético repertório de autores,
que abrangia de Bach, Beethoven e Chopin a nomes centrais do cânone violonístico (Sor, Tárrega,
Castelnuovo-Tedesco), incluindo compositores latino-americanos (Barrios, Antonio Lauro) e brasileiros
(Camargo-Guarnieri e Villa-Lobos)
1
.
A década de 1960 testemunha o interesse de Barbosa-Lima pelo cancioneiro popular, como atesta o LP
Imortal Catullo (Chantecler, 1964) dedicado a Catulo da Paixão Cearense, e o Álbum de modinhas
(Chantecler, 1966). Tal versatilidade pode ser ao menos em parte creditada à formação feita com Isaias Savio
(1900-1977). O mestre uruguaio era um produtivo didata que se dedicava à transcrição de compositores
europeus como Brahms e Mendelssohn mas também a arranjos de Pixinguinha, por exemplo. Compositor
1
Essas gravações juvenis foram reunidas e relançadas pela Zoho Music em 2015 e 2016 com o tulo The
Chantecler Sessions vol. 1 (1958-1959) e vol. 2 (1960-1961).
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Loureiro, Inês; Barbeitas, Flávio Terrigno. O bruxo e o Maestro: a colaboração musical entre Carlos Barbosa-Lima & Tom Jobim
prolífico, Savio escreveu muitas peças inspiradas em motivos populares, como “Pó de mico” e “Batucada”.
Teve entre seus alunos expoentes do violão nacional, vários dos quais enveredaram por caminhos musicais
híbridos, como Luiz Bonfá, Paulo Bellinati e Marco Pereira. Barbosa-Lima ressaltou mais de uma vez que a
flexibilidade estética de Savio foi uma influência decisiva para que ele pudesse transitar livremente entre os
universos da música erudita e popular (Barbosa-Lima 2009, 25).
Nos anos 1970, o violonista atrai a atenção da crítica internacional com suas transcrições de sonatas de
Scarlatti (ABC Records, 1970). Outro destaque de sua discografia nesta fase é Barbosa-Lima interpreta os ‘12
estudos para violão’ de Francisco Mignone (Philips, 1978), escritos a partir de sugestão do próprio Barbosa-
Lima. O “Concerto para violão e orquestra” (1977), de Mignone, foi dedicado ao violonista. Data da mesma
época (1976) a célebre “Sonata for Guitar, op. 47”, do argentino Alberto Ginastera, composta com a ativa
colaboração de Barbosa-Lima e a ele também dedicada
2
.
A temporada de estudos com Segovia em Madrid, em 1968, teria encorajado o pupilo brasileiro a investir
em projetos mais pessoais, como este de abordar, valendo-se da técnica clássica, o mundo do jazz e do pop
3
.
O propósito era o de trazer para o violão solo aquilo que Barbosa-Lima chamava, nas entrevistas, de música
popular “de alto nível”, “de qualidade” ou de “boa música popular”. O violonista sempre se dedicara a tais
arranjos e transcrições, mas os reservava para uso próprio, inserindo-os, por vezes, em programas de
concertos. Fato é que até os anos 1980 este era um veio secundário em suas atividades: o reconhecimento
internacional fora obtido no âmbito do violão clássico como transcritor e intérprete do repertório
tradicional e era com este interesse que as gravadoras o procuravam.
Cabe um comentário acerca da sempre tão discutível distinção, que por vezes beira o antagonismo, entre
música clássica, erudita ou de concerto, de um lado, e música popular, de outro. Sem entrar mérito das
extensas discussões a respeito, está claro que tais categorias se encontram presentes e bem demarcadas no
pensamento de Barbosa-Lima. No material consultado, no entanto, não encontramos, da parte dele,
definições precisas ou mesmo aproximada desses termos. Os critérios que embasam seus juízos de valor no
terreno da música popular são ainda mais subjetivos; afinal, o que caracteriza uma produção “boa”, “de
qualidade” ou “de alto nível” nesta seara? Em ambos os casos, nos cabe cogitar quais seriam esses
parâmetros implícitos no discurso do violonista a partir das únicas evidências de que dispomos: sua formação
pessoal e o repertório que escolheu para arranjar/gravar. Grosso modo, o universo da sica erudita
parece abranger as composições escritas em partitura, muitas vezes destinadas a um instrumento solista ou
a conjuntos orquestrais, em diálogo com aquilo que historicamente se estabeleceu como cânone da música
ocidental e que requerem um mínimo de apuro técnico do(s) executante(s), inclusive no que diz respeito às
nuances interpretativas. É um pouco do que se depreende, por exemplo, dos fatos até aqui mencionados
peças gravadas quando adolescente, anos de aprendizagem com Savio, transcrições de Scarlatti, intercâmbio
com artistas como Mignone, Ginastera e Segovia. No que se refere à música popular de “alto nível”, a
listagem das gravações e a entrevista concedida a Paul Magnussen em 1984 contêm algumas pistas.
Primeiramente, são obras extraídas do cancioneiro lírico brasileiro, anterior e contemporâneo a Barbosa-
Lima: às modinhas tradicionais e criações de Catulo da Paixão Cearense, viriam se somar as canções de Jobim
2
Um extenso comentário sobre esta peça sua história, intenções e influências pode ser encontrado na
terceira parte da entrevista concedida por Barbosa-Lima a Fabio Zanon (Barbosa-Lima 1999/2000).
3
Cf. obituário assinado por Matt Schudel no The Washington Post (26/2/22) cuja principal fonte foi Larry del
Casale violonista com quem Barbosa-Lima trabalhou em duo entre 2003 e 2015.
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Loureiro, Inês; Barbeitas, Flávio Terrigno. O bruxo e o Maestro: a colaboração musical entre Carlos Barbosa-Lima & Tom Jobim
e Bonfá (futuramente gravaria também Noel Rosa e Ary Barroso). Também no choro e na música
instrumental brasileira Barbosa-Lima identifica qualidades são vertentes ricas em ideias contrapontísticas
e incorporam elementos de música afro. Ernesto Nazareth, Pixinguinha, Garoto, Baden Powell, Laurindo
Almeida e até Egberto Gismonti são lembrados como nomes significativos
4
. O trabalho com a tradição afro
também caracteriza aqueles que Barbosa designa como “giants of American music”, Scott Joplin (a cujos
ragtimes dedicou um álbum inteiro), Duke Ellington, George Gershwin, Cole Porter, Richard Rodgers e
Stephen Sondheim. Dentre esses grandes nomes da canção americana, notam-se alguns de grande sucesso
em musicais da Broadway e trilhas de cinema. Posteriormente, Barbosa-Lima aproximou-se dos ritmos
latino-americanos (salsas, merengues) e gravou várias obras do violonista cubano Leo Brouwer (inclusive
seus célebres arranjos de músicas dos Beatles). Em suma, o leque de referências daquilo que seria a “boa
música popular” é demasiado amplo e variado para que se possa deduzir, afinal, quais os critérios que
norteiam esta seleção. Um detalhe adicional: Barbosa-Lima afirma a Paul Magnussen que nesses arranjos
ele se permite certa espontaneidade, algum grau de improviso (não comparável aos músicos de jazz, ele faz
questão de frisar!), o que talvez aponte para um traço distintivo entre a música erudita e a popular. Fato é
que, embora opere com tais categorias, Barbosa as considera muito relativas; como veremos adiante, ele
afirma que não vê sentido nesse tipo de rotulação tão estrita (Barbosa-Lima 1993).
A ambição de enriquecer o violão de concerto com peças populares encontrou condições favoráveis de
desenvolvimento no começo da década de 1980, quando Barbosa-Lima mostrou alguns de seus arranjos
para o amigo e guitarrista Charlie Byrd. Impressionado, Byrd apresentou-o a Carl Jefferson, dono da Concord
Records, uma gravadora consolidada no mercado de jazz (Barbosa-Lima 1984). Exatamente nesta época,
a companhia estava lançando um novo selo o Concord Concerto voltado ao público de música clássica. A
proposta e o perfil de Barbosa-Lima encaixaram-se à perfeição nos planos da gravadora: o disco Jobim-
Gershwin inaugurou uma parceria entre o violonista e a Concord que renderia mais de quinze álbuns (solo,
duo e outras formações) e duraria até quase os anos 2000.
Além de encontrar um selo disposto a endossar o projeto, Barbosa-Lima ponderou que enfim chegara o
momento artístico de concretizá-lo, convencido de que seus arranjos haviam passado por um
"amadurecimento", já estavam fluindo melhor (Barbosa-Lima 1983, 48) e com a marca de seu próprio estilo:
De fato, eu estava esperando. Queria fazer isso [arranjos para música popular] desde o
começo dos anos 70, mas de algum modo pensei que, com mais experiência, o momento
certo chegaria. Sabe, tenho uma filosofia definida da harmonização, gosto das ideias
contrapontísticas que são muito presentes na música brasileira, especialmente na prática
instrumental. [...]. Porém, essa ideia ficou muito clara nos últimos três anos: eu queria
incorporar essas peças ao meu repertório, mas com um toque próprio, pessoal (Barbosa-
Lima, 1984).
Dada a projeção alcançada por Barbosa-Lima no âmbito dos arranjos
5
, vale sintetizar algumas de suas
posições sobre o assunto. Quando se iniciou na arte de transcrever, na época em que era aluno do maestro
Theodoro Nogueira, aprofundou-se na análise das transcrições feitas por Segovia, Tárrega e Llobet,
4
Radamés Gnattali, João Pernambuco e Paulo Bellinati estão dentre os compositores da música instrumental
brasileira gravados a partir de final dos anos 1980.
5
Em suas manifestações, tanto Barbosa-Lima quanto Jobim empregam os termos “transcrição” e “arranjo
de modo genérico e intercambiável.
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Loureiro, Inês; Barbeitas, Flávio Terrigno. O bruxo e o Maestro: a colaboração musical entre Carlos Barbosa-Lima & Tom Jobim
cotejando-as com os originais. Ao conceber um arranjo, procura escutar várias versões de uma mesma obra.
Parte do básico melodia, acordes e baixo para então desenvolver o raciocínio polifônico (Barbosa-Lima
2009, 24). A abordagem é aparentemente simples: “Pela combinação entre a linha de contraponto horizontal
com a harmonia vertical, dou ao arranjo aquilo que ele precisa para se tornar uma peça de concerto
interessante” (Barbosa-Lima 1983, 49).
Contudo, a criação de diferentes vozes simultâneas gera desafios técnicos, principalmente para a mão
esquerda, cuja capacidade de abertura/extensão é considerada uma “chave para se aventurar numa
polifonia mais complexa” (Barbosa-Lima 1983, 49). Ele esclarece: “A dificuldade está em ir conduzindo as
vozes, não na velocidade. Algumas posições podem parecer pouco ortodoxas, mas quero que as pessoas
sejam pouco ortodoxas quando tocam” (idem).
O objetivo estético das transcrições e arranjos é inequívoco: a peça deve soar como se tivesse sido escrita
para violão (Barbosa-Lima 2009, 14). Por vezes ele é ainda mais enfático, como se depreende desta sua fala,
resgatada por Small: “Concordo com Segovia e outros quando dizem que o arranjo de violão deve soar ao
menos tão bem quanto o original. Mas eu iria além dizendo que o arranjo deve ser criativo e novo, levando
o ouvinte a sentir que ele soa melhor no violão” (Small 2018).
Há muito Barbosa-Lima tinha essa visão consolidada:
A arte da transcrição é trazer uma peça para um novo meio e uma nova vida, luz ou frescor.
Trazer uma nova dimensão. Isso depende muito da inteligência e imaginação do
arranjador. Você tem que realmente saber o que está fazendo em termos de estilo. O som,
a sonoridade, é muito importante. Tenho visto algumas transcrições que são tecnicamente
honestas, mas cujo resultado não é bom porque o soa bem. O violão é um instrumento
difícil para transcrever. Você não pode transcrever as notas é preciso escutar o
resultado (Barbosa-Lima 1983, 49).
Uma síntese mais recente dessas ideias (Small 2018) ressalta a semelhança entre o arranjo e a tradução de
uma língua para outra: no entender de Barbosa-Lima, as mudanças são necessárias e desejáveis versões
literais tendem a não funcionar. A meta seria recriar a composição original a partir do estilo pessoal do
arranjador. Uma dessas marcas pessoais, nas palavras de Barbosa-Lima reproduzidas por Small (2018):
“Gosto de mover a melodia para o registro baixo ou médio, com a harmonia acima ou abaixo. É um conceito
de orquestração”. Em suma, o violonista acredita que a concepção polifônica articulada com a exploração
da riqueza timbrística do instrumento devem proporcionar a quem ouve a ilusão de escutar uma orquestra.
Um olhar atento para as mãos de Barbosa-Lima revela que ele soube tirar proveito de sua conformação
anatômica para alcançar esse efeito orquestral: na mão esquerda, um dedo mínimo (dedo 4) grande e com
uma abertura excepcional em relação ao dedo 3 (anular) favorecia suas tão peculiares digitações; na mão
direita, o ângulo bastante aberto entre o polegar e os demais dedos (IMA) permitia ao polegar (utilizado com
pouca unha) tocar numa região mais próxima ao braço, extraindo daí um timbre mais aveludado e distinto
dos outros dedos, resultando numa sonoridade geral rica em nuances, propícia à polifonia. Na busca de
maior densidade harmônica, o emprego do dedo mínimo da o direita também era um recurso técnico
usado pelo violonista.
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Loureiro, Inês; Barbeitas, Flávio Terrigno. O bruxo e o Maestro: a colaboração musical entre Carlos Barbosa-Lima & Tom Jobim
Vale abrir um parêntese. A metáfora do violão como uma pequena orquestra é antiga: a grande extensão, a
diversidade de timbres e a possibilidade de executar várias vozes simultâneas vêm tempos embasando
esta comparação (apesar do pouco volume e projeção do instrumento). O método para violão de Fernando
Sor (1830) ressalta a possibilidade de imitação de outros instrumentos, enquanto o tratado de orquestração
de Hector Berlioz (1844) sublinha a sutileza dos efeitos que dele podem ser extraídos por instrumentistas
habilidosos
6
. Em Segóvia, essa ideia se encontra explícita e comprovada tal como se vê em trecho do filme
Segovia at Los Olivos, dirigido por Christopher Nupen (1967)
7
, no qual, em poucos minutos, ele demonstra
como obter das cordas um impressionante colorido. Enquanto toca, vai explicando: “Por exemplo, [o violão]
é como uma orquestra para o qual nós olhamos com o lado inverso de um binoculo. Quero dizer com isso
que todas as coisas todos os instrumentos da orquestra estão dentro do violão, mas em um volume
sonoro menor. Ele tem muitas cores diferentes, muitos timbres diferentes, e é necessário desenvolver estas
qualidades do instrumento” (Motta 2012, 31).
Posteriormente, Marcelo Kayath (2009) retomou a metáfora para delinear o contraste entre duas
concepções de violão, que resultam em estilos distintos de performance: a tradição Segovia/Julian Bream
estaria na origem do “violão pequena-orquestra”, enquanto John Williams (e, a seguir, Manuel Barrueco e
David Russel) desenvolveram o “violão grand-piano”, caracterizado pelo forte volume, velocidade, notas
homogêneas e, sobretudo, pouca variedade timbrística.
Pois bem, não apenas Barbosa-Lima encampa essa visão do violão como pequena orquestra, como sem
dúvida pode ser considerado um expoente dessa abordagem do instrumento, tendo conseguido divulgá-la
para além dos círculos do violão erudito. E é exatamente assim que Tom abre a contracapa do disco de
1982: “Nas mãos de Carlos Barbosa-Lima o violão se torna uma orquestra” (Jobim 1982). Fecha parêntese.
Nesta época, Jobim já era um nome mais do que consagrado internacionalmente. Lembre-se que antes
mesmo de sua chegada aos EUA, em novembro de 1962, por ocasião do show da Bossa Nova no Carnegie
Hall, o new brazilian beat estourara por lá. O sucesso do álbum Jazz Samba, de Stan Getz e Charlie Byrd
(Verve, 1962) abriu os caminhos para aqueles que permaneceram no país após o show, como Milton Banana,
João Gilberto e o próprio Jobim.
O sucesso norte-americano de Tom durante os anos 1960 pode ser atestado por suas apresentações em
shows de TV de grande audiência e pela gravação de dois LPs com Sinatra (1967; 1969/1971). Pode-se
afirmar que tal prestígio é, em grande medida, tributário da estreita associação de seu nome com o
movimento da Bossa Nova. Mesmo quando, a partir de 1970, o maestro segue gravando nos EUA projetos
em que gradativamente se afastava da estética bossanovista, como Stone Flower (1970), Matita Perê (1973)
e Urubu (1976), eram os antigos hits que continuavam a bater recordes de execução em diferentes
regravações. Em outras palavras, Jobim passara a explorar novos caminhos estéticos, nos quais a veia
orquestral, os motivos ecológicos/literários e os ritmos nordestinos ganham proeminência; porém, os vários
prêmios Broadcast Music Inc. (BMI) “Great National Popularity” conquistados na década de 70 foram
atribuídos a “Garota de Ipanema”, “Meditação”, “Desafinado” e “Wave”.
Junto à crítica especializada e aos músicos sua reputação continuava em alta: ao final da gravação da peça
instrumental “Saudade do Brasil” Jobim foi aplaudido de pé pelos membros da Orquestra Sinfônica de Nova
6
Cf. capítulo 2 da dissertação de Daniel Motta (2012).
7
Cf. disponível em: https://youtu.be/V2zZl7Vifzw
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Loureiro, Inês; Barbeitas, Flávio Terrigno. O bruxo e o Maestro: a colaboração musical entre Carlos Barbosa-Lima & Tom Jobim
York que ele arregimentara para o disco Urubu. Em abril de 1980, o lançamento simultâneo no Brasil e nos
EUA do LP duplo Terra Brasilis uma espécie de revisitação da obra jobiniana, agora em nova roupagem
modelada por Claus Ogerman
8
mostra que Tom continuava a marcar presença no mercado fonográfico
norte-americano. E assim seria até o final da vida, quando seu último álbum, Antonio Brasileiro (1994), foi
contemplado com o Grammy.
Tudo isso indica que, no início dos anos 1980, nada mais natural do que a escolha do repertório de Jobim
para lançar internacionalmente um violonista brasileiro no terreno de arranjos para música popular. A
vinculação com o aclamado nome de Gershwin (que Tom considerava seu “irmão mais velho espiritual”)
poderia impulsionar o projeto. Se considerarmos o conjunto de elementos então reunidos o selo híbrido,
os anseios do intérprete, as características composicionais e trajetórias artísticas dos dois célebres
songwriters fica evidente que compartilham uma mesma atitude: a disposição para franquear as (sempre
discutíveis) fronteiras que separam a canção da música instrumental, o clássico do popular, o regional do
restante do mundo...
9
2. Aproximação e o processo de trabalho
Foram muitas as circunstâncias em que Barbosa-Lima relatou seu encontro com Jobim. Na entrevista a Brian
Hodel
10
, logo após o lançamento do disco, a descrição é sóbria:
Tive com ele um encontro estimulante. Sempre fui um grande admirador de sua música e
penso que ele é um dos maiores compositores do mundo. Eu já tinha feito várias partituras
e transcrições de gravações de suas peças para meu próprio uso. Quando Jobim estava em
Nova York na primavera passada [1982] procurei-o e ele me convidou para ir ao seu hotel.
Toquei meus arranjos e ele sugeriu uma colaboração (Barbosa-Lima 1983, 48).
Cerca de quinze anos depois, o diálogo com Fábio Zanon é mais descontraído:
Na virada da década de 80, fui ao Brasil e consegui umas partituras do Jobim: estavam
horríveis, com harmonias erradas, etc. Escutei os discos, com aquelas harmonias incríveis,
Urubu, etc. Eu disse ‘isso aqui não é bossa nova, é música de câmara’. Larguei as
partituras e comecei a fazer os arranjos de ouvido, e depois tirei algumas coisas do livro do
Eumir Deodato, lá por 81, 82. Então eu procurei o Tom Jobim. Foi uma sorte, me disseram
8
O alemão Claus Ogerman (1930-2016) foi o maestro que mais trabalhou com Jobim, tendo sido o
responsável pelos arranjos de sete discos entre 1963 e 1980. Compositor e pianista, Tom o descreve em
carta ao filho Paulo (outubro de 1975): “Claus toca jazz no piano paca, tem bossa paca, (...). Claus é o Rei do
Swing, só você vendo, não pra acreditar! É um Donato alemão”(Augusto 2002, 122). Para um estudo
detalhado da relação Ogerman/Jobim, ver Luiz Duarte (2010).
9
A propósito das afinidades entre Jobim e Gershwin, cf. Castro 2017.
10
Vale uma nota sobre este articulista que conheceu e se correspondeu com Jobim, e que tentamos (sem
sucesso) localizar. Nascido em 1948, Brian Hodel tornou-se especialista em música brasileira e latino-
americana para violão. Foi compositor, arranjador, violonista e professor (Univ. de Washington).
Colaborador assíduo de revistas especializadas, Hodel publicou pelo menos 16 artigos sobre violão brasileiro
na década de 1980 (Castagna e Schwarz 1993). Editou também dois álbuns de partituras com seus arranjos
para violão solo: The Brazilian Masters: the Music of Jobim, Bonfá and Baden Powell arranged for Solo Guitar
(1981) e The Brazilian Guitar (1983).
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Loureiro, Inês; Barbeitas, Flávio Terrigno. O bruxo e o Maestro: a colaboração musical entre Carlos Barbosa-Lima & Tom Jobim
que ele estava no Hotel Adams. Um dia criei coragem, liguei e ele mesmo atendeu, até
assustei. Ele estava numa fase intermediária, não estava tocando muito em público, meio
escondido. Ele disse que estava muito honrado, perguntou ‘você não quer vir aqui
amanhã?’. Claro que eu fui. Ele falou pra eu nem levar as partituras, até brincou: ‘pode
deixar que eu sei ler música’ (...) Eu mostrei as coisas, falei ‘aqui pra fazer um
contraponto’, ele disse ‘vamos trabalhar nisso, eu estou o mês todo aqui’ (Barbosa-Lima
1999/2000, 24-25).
Tom, por sua vez, resume na contracapa: Trabalhamos juntos durante uma primavera em Nova York. Ao
longo dos dias discutimos ritmo, harmonia, contraponto e intenção” (Jobim 1982). Um relato sucinto que
naturalmente nos desperta curiosidade: como teria sido o método de trabalho adotado nesses encontros?
Na mesma entrevista a Brian Hodel, Barbosa-Lima revela: “Nossas sessões de arranjos foram uma
experiência maravilhosa, iluminadora. Por vezes Jobim usava o violão, mas geralmente ele tocava piano.
Frequentemente usamos dois violões para conseguir o efeito que queríamos, e depois eu arranjava isso para
um violão (Barbosa-Lima 1983, 49). Na conversa com Zanon surge mais um detalhe: “O Juan Orozco
[luthier, ligado às cordas Aranjuez e dono de uma loja de violões em Nova York] arrumou um violão Di Giorgio
que acabou ficando pra ele, muitas vezes ele tocava de violão para violão” (Barbosa-Lima 1999/2000, 25).
O que nos chama a atenção nesse ponto é justamente o uso do violão por Jobim durante o processo. Se
fosse apenas o caso de “dar as harmonias corretas” (Barbosa-Lima 2012), o piano teria sido suficiente. Mas
apesar de não se considerar violonista, Tom trabalhou efetivamente no instrumento de modo a intervir nos
arranjos a partir de dentro, por assim dizer, do próprio universo sonoro de Barbosa-Lima. “De violão para
violão”: trocas feitas na mesma linguagem em prol, tudo indica, da otimização dos recursos e idiomatismos
do instrumento.
Vejamos o testemunho de Brian Hodel, que chegou a presenciar algumas dessas sessões de trabalho por ele
consideradas “empolgantes”:
[...] Uma vez tive o prazer de assisti-lo [Jobim] arranjar algumas de suas obras para solo e
duo de violão em colaboração com Carlos Barbosa-Lima. Jobim conduzia Barbosa-Lima
para uma voz harmônica ou linha de contraponto que ele queria para o arranjo cantando-
as ou tocando-as em outro violão. As ideias frequentemente complexas de Jobim vinham
rápida e precisamente, sem que ficasse caçando’ as notas (Hodel 1985).
Logo adiante, o mesmo texto reproduz uma fala de Barbosa-Lima:
Arranjar a música de Jobim para violão não é apenas transcrever as mãos direita e esquerda
do piano. Jobim tem um profundo entendimento do violão, e trabalhamos juntos
desenvolvendo as ideias que vão para os arranjos. As melhores ideias surgem muito
rapidamente, vêm direto nas nossas cabeças. Em alguns momentos, eu realmente me
sentia transportado para outro lugar. (Hodel 1985).
Assim, além da participação intensiva de Tom na concepção dos arranjos, tais relatos mostram que este foi
um momento especial de seu envolvimento com o violão, seja como instrumentista, seja como apreciador
do violão solo. Luiz Bonfá havia sido até então o virtuose com quem Tom tivera mais intimidade
compuseram juntos várias canções (e até um tema instrumental), além de ativa participação de Bonfá no
teatro e nas gravações de Orfeu da Conceição (1956). Com Raphael Rabello (1962-1995) não se pode dizer
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Loureiro, Inês; Barbeitas, Flávio Terrigno. O bruxo e o Maestro: a colaboração musical entre Carlos Barbosa-Lima & Tom Jobim
que houve um intercâmbio propriamente violonístico. Eles se conheceram em 1979, apresentados por
Radamés Gnattali cerca de três anos antes do primeiro encontro com Barbosa-Lima. O primeiro disco do
violonista carioca, Rafael Sete Cordas (Polygram, 1982), traz um arranjo para violão solo da peça “Garoto”,
que Tom gravara em Stone Flower (1970) com o título “Choro”. Tal arranjo foi feito com base em uma
partitura cedida por Jobim e, devido às longas estadias deste no exterior, discutido com o filho Paulo Jobim.
Dez anos depois, Raphael
11
dedica um disco inteiro ao repertório de Jobim Todos os Tons (BMG Ariola,
1992) com participação de Tom e de Paulo na elaboração dos arranjos (e com o piano de Tom em uma das
faixas).
12
Baden Powell e Rosinha de Valença são outros solistas que Tom conheceu de perto. É possível que
o apuro do “ouvido violonístico” de Jobim fosse também tributário de sua experiência como maestro e
arranjador; mas é igualmente certo que pela primeira vez testemunhava e participava, com violão em punho,
da gestação de arranjos para violão solo, descrevendo com precisão a sonoridade final:
(...) Como que por encanto, explodem ali [no violão de Carlos] todas as dimensões da
música o baixo, o registro médio dos acordes, a melodia, o ritmo, a harmonia e o
contraponto. Tudo soa correto e claro. Tudo cai no lugar certo, com a medida certa de
importância. Graça, delicadeza, leveza, força, ímpeto, vigor, independência, equilíbrio. Está
tudo lá, como que por mágica, nos dedos desse verdadeiro brujo do violão. (...). Às vezes é
possível ouvir até quatro linhas [diferentes], cada uma com seu toque distinto (Jobim
1982).
Adiante retomaremos este ponto: como o contato com o bruxo Barbosa-Lima pode ter propiciado a Jobim
uma nova experiência com o violão, instrumento que usava desde sua juventude para compor ou na função
de (auto)acompanhamento.
3. O álbum CBL Plays ACJ & GG
A edição original do álbum de 1982 traz seis obras de Jobim dispostas na seguinte ordem: “Caminho de
pedra”, “Desafinado”, “Estrada branca”, “Stone Flower” (“Quebra-pedra”), “Corcovado” e “Amparo”.
Note-se a inclusão de dois carros-chefes da Bossa Nova já amplamente conhecidos nos EUA como “Off key”
(ou “Out of Tune”) e “Quiet nights of quiet stars”, assim como a toada “Estrada branca” (“This happy
madness”), difundida na versão “abossanovada” de Frank Sinatra. Das demais composições, “Amparo”
(“Olha Maria”) e “Stone Flower” (um misto de baião com maracatu) haviam sido gravadas por Jobim no disco
homônimo de 1970. A faixa menos conhecida era “Caminho de pedra”, parceria com Vinícius datada de
1958, e que Tom só registrara ao acompanhar Elizeth Cardoso em Canção de amor demais.
11
Registrado como Rafael, a partir de 1991 Rabello passa a assinar Raphael. Talvez para atender ao desejo
original de sua mãe, talvez por ser uma grafia mais compatível com o mercado internacional, fato é que o
“ph” tornou-se definitivo (Nobile 2018, 222).
12
Os elogios mútuos são reproduzidos no livro de Sergio Cabral. Para Raphael, “a música de Tom é popular
na forma, mas a técnica de composição e harmonização é erudita. Tom é um arquiteto musical”. Segundo
Tom, “tudo que Rafael faz é sensacional. Ele é um nio do violão, um cometa musical, desses que aparecem
uma vez a cada século” (Cabral 1997, 421). Para detalhes da relação entre eles, ver Lucas Nobile (2018),
especialmente capítulo 10.
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Loureiro, Inês; Barbeitas, Flávio Terrigno. O bruxo e o Maestro: a colaboração musical entre Carlos Barbosa-Lima & Tom Jobim
Polifonia, contrapontos, variedade timbrística (com destaque para o abundante uso dos harmônicos):
Barbosa-Lima não abriu mão desses pilares nem sob o risco de comprometer a fluência rítmica (como em
“Desafinado”) ou mesmo alterar a levada de um clássico como “Corcovado”, aqui em versão distanciada da
bossa-nova. “Caminho de pedra” e “Amparo” (onde Barbosa-Lima traços de Chopin e Debussy), assim
com “Estrada branca”, permitiram a livre expressão de sua imaginação contrapontística; e, apesar de
complexidade técnica, todas elas soam com naturalidade e extremo lirismo. O comentário de Jobim sobre
as quatro vozes independentes, cada qual com sua peculiaridade, encontra nessas faixas uma perfeita
ilustração.
Porém, o arranjo mais desafiador foi aquele que também mais teria agradado a Jobim: “Quebra-pedra”,
onde o intérprete identifica influências como Stravinsky e Bartok (Barbosa-Lima 1993, 5). Nas palavras de
Barbosa-Lima:
No caso de uma peça escrita para orquestra como a Stone Flower (Quebra-pedra) do Tom
Jobim, eu busquei partir do próprio ambiente orquestral e o Tom Jobim me disse que nunca
imaginou ouvir aquilo no violão, mas acabou sendo a sua peça favorita, que ele sempre me
pedia pra tocar. É uma peça complexa, com muita polifonia, mas ficou tudo na mão, é
preciso a pessoa desenvolver uma técnica polifônica pra isso, onde as vozes são escutadas
com clareza, mas o espírito da obra continua ali (Barbosa-Lima 2009, 24).
A admiração do Maestro por este arranjo transparece no especial da TV Manchete (1984), que
comentaremos adiante. Nos diálogos gravados para o episódio, Tom diz que gosta muito dessa composição
inspirada em motivos nordestinos e que Carlos conseguiu transpor para o violão a versão original, concebida
com Eumir Deodato e orquestra. “O Carlos tem tudo isso no violão, num arranjo muito criativo, muito
pessoal, uma coisa danada, vocês vão ouvir”. Barbosa-Lima executa a peça ritmicamente a mais intrincada
do disco sob o olhar atento de Tom, que comenta: “É uma coisa incrível, esse arranjo seu é uma coisa
maravilhosa com essa polifonia, com essas vozes, os harmônicos, tudo, todos os recursos, né?”. Barbosa-
Lima acrescenta que essa peça especialmente foi considerada pela crítica americana como uma grande
contribuição para o repertório violonístico: “Não nada parecido. É uma síntese. O violão às vezes pode
ser uma síntese da ideia orquestral (...)”. Neste caso, o arranjo sintetiza também alguns dos ingredientes
característicos da obra, que seriam, ainda nas palavras de Carlos, o dramatismo da cultura nordestina, o
lirismo, a polifonia e os ritmos simultâneos.
Ainda a propósito deste arranjo de “Quebra-pedra”, Jobim conclui a conversa no programa de TV
incrementando um elogio expresso anteriormente: “Realmente, o violão, como disseram, é uma
pequena orquestra. Que no seu caso [de Carlos] não é uma pequena orquestra, é uma grande orquestra,
né?”
A boa repercussão do álbum levou, oito anos mais tarde, à sua reedição. Para esta nova versão de CBL Plays
ACJ & GG (1990), foram acrescentados três arranjos inéditos: “Samba de uma nota só”, “Modinha” e “Canta
Mais”. -se novamente a estratégia de juntar um emblema da bossa nova com, desta feita, duas das
composições mais “villalobianas” de Jobim. E, uma vez mais, nota-se que as canções de câmara acolhem
melhor a exuberância polifônica de Barbosa-Lima. Estas faixas foram gravadas na Califórnia em julho de
1989; sabe-se por uma carta do violonista para Jobim qual nos referiremos adiante) que eles se
encontraram em janeiro de 1989, de modo que é possível que tenham acertado os últimos retoques dos
arranjos nesta ocasião.
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Loureiro, Inês; Barbeitas, Flávio Terrigno. O bruxo e o Maestro: a colaboração musical entre Carlos Barbosa-Lima & Tom Jobim
O conjunto de nove peças foi enfim publicado, na forma de partituras e tablaturas, um ano antes da morte
de Tom (Barbosa-Lima 1993). O álbum Antonio Carlos Jobim 9 pieces arranged for solo guitar by Carlos
Barbosa-Lima, editado pela Guitar Solo Publications (GSP), inclui um pequeno texto introdutório, outro na
contracapa e breves notas do intérprete sobre cada uma das músicas.
Alguns aspectos das partituras chamam nossa atenção. Primeiramente, a nítida preferência pelo recurso da
scordatura oito dos nove arranjos trazem a sexta corda afinada em (apenas “Amparo” com afinação
padrão). A profusão de harmônicos, em linhas melódicas e contrapontos, fica ainda mais evidente na
representação visual. Destaque também para a grande quantidade de indicações de andamento e intenção
(ex: “repeat three times changing color each time, from dark towards bright”). Por fim, nota-se a
meticulosidade na escrita das tablaturas, cujas convenções são esmiuçadas em um guia final.
13
Na contracapa, Barbosa-Lima louva a saudável atitude de integrar a tradição do violão clássico com os
criativos e complexos estilos desenvolvidos em culturas impregnadas pela herança africana e nas quais o
violão é proeminente, como América Latina, Caribe e Estados Unidos. Segundo ele, é preciso evitar o falso
elitismo: “Quando se considera a música neste contexto mais amplo, ‘clássico’ e ‘popular’ são rótulos sem
sentido” (Barbosa-Lima 1993). Diversidade atestada pela coleção The Music of the America series, que reúne
alguns dos álbuns arranjados e editados por ele na mesma GSP, trazendo repertório de nomes como Dave
Brubeck, Francisco Mignone e Pixinguinha.
4. As cooperações posteriores
Em 1984, a TV Manchete veiculou a série A música segundo Tom Jobim, dirigida pelo cineasta Nelson Pereira
dos Santos.
14
Os quatro episódios trouxeram convidados recebidos com informalidade na casa de Jobim da
rua Peri. Entre conversas e números musicais, acompanhamos algumas preferências do Maestro: Villa-Lobos
(abordado em um episódio com a presença do violonista Turíbio Santos e da cantora Olivia Hime), Ary
Barroso, Noel Rosa, Custódio Mesquita, Dorival Caymmi que participou do programa juntamente com os
filhos, aos quais se juntaram Chico Buarque e Gal Costa. Radamés Gnatalli compareceu tocando peças dele
próprio e de Ernesto Nazareth. Enfim, a série retratou “a música segundo Tom Jobim” como uma
descontraída confraternização musical
15
.
Barbosa-Lima foi o foco de um dos episódios. A edição do material produzido na ocasião ao menos a versão
que está disponível atualmente soma cerca de 20 minutos. Não se sabe ao certo quantas e quais peças
foram gravadas, mas são apenas quatro as que restaram: o “Prelúdio 2” de Villa-Lobos; “Batucada” e
“Caixinha de música”, de Isaias Savio, e “Quebra-pedra”, de Jobim.
O clima é bastante cordial Tom se mostra orgulhoso da colaboração entre ambos e satisfeito por
apresentar ao público o talento de Carlos, cuja timidez em nada prejudica as performances. Além das
menções ao trabalho conjunto nos EUA e à boa acolhida pelo disco junto ao público e crítica, a conversa gira
13
Vale a pena examinar o conjunto dessas partituras; o álbum integral, em formato PDF, encontra-se
disponível em sites da internet.
14
O mesmo diretor reaproveitou esse título para batizar seu documentário, de 2012, sobre a obra de Jobim.
15
Está disponível no site do IACJ uma edição com 2:47:47 de duração:
https://www.jobim.org/jobim/handle/2010/8248. O episódio com Barbosa-Lima tem início em 2:05:43.
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Loureiro, Inês; Barbeitas, Flávio Terrigno. O bruxo e o Maestro: a colaboração musical entre Carlos Barbosa-Lima & Tom Jobim
em torno de Villa-Lobos, da formação de Carlos com Isaias Savio (recomendado por Luiz Bonfá ao pai do
então garoto-prodígio), de características das peças ali executadas e das peculiaridades do violão.
Dois momentos do encontro nos parecem particularmente relevantes. O primeiro, claro, é o número
“Quebra-pedra” (2:23:23 2:24:46), comentado acima. O segundo ocorre quando Tom pede a Barbosa-
Lima que toque “Caixinha de música” (2:15:54 2:19:30). Essa “pequena joia”, inteiramente composta em
harmônicos, suscita o olhar admirado de Tom e algumas observações de ambos sobre este recurso
violonístico. Os harmônicos possibilitam aumentar o âmbito do instrumento (distância entre grave e agudo)
e ainda gerar o efeito de um registro médio, produzido por aqueles obtidos no baixo. Jobim conclui: “Quer
dizer, você escuta até o que não está sendo tocado, você escuta...”.
Isso nos mostra mais uma vez a sensibilidade do pianista para um idiomatismo do violão e seu apreço pelos
atributos próprios ao instrumento. É uma cena especial na medida em que nos permite testemunhar algo já
apontado: o contato com Barbosa-Lima teria permitido a Jobim uma imersão e uma intimidade inéditas com
o universo violonístico, apesar de ter convivido com outros grandes nomes do instrumento.
O episódio também atesta um dos proveitos que a relação com Jobim teria rendido a Barbosa-Lima: a
divulgação de seu trabalho em território nacional. Em entrevista muitos anos mais tarde, o violonista
recorda:
Tom Jobim (...) uma vez me apresentou ao público brasileiro, já na década de 80, eu estava
meio afastado, mas muita gente se lembra daquele programa, eu havia gravado o disco
com obras do Tom e do Gershwin. Na plateia estavam o Radamés Gnattali, o Francisco
Mignone e também o recém ganhador do concurso de Paris e de Toronto, o Marcelo
Kayath, foi uma coincidência ver diferentes gerações, onde o Tom era o cicerone (Barbosa-
Lima 2009, 23, grifos nossos).
O marco seguinte da colaboração musical entre Jobim e Barbosa-Lima materializa-se nas faixas no disco que
Carlos lançou em parceria com a colega Sharon Isbin
16
. Intitulado Brazil, with love (Concord Picante, 1987)
17
,
o álbum foi gravado em novembro de 1986.
No repertório de quatorze músicas, Jobim encontra-se ladeado por Pixinguinha e Ernesto Nazareth, ali
representados com quatro peças cada um. Tom comparece com seis obras, agora arranjadas para duo de
violões: “Luiza”, “Felicidade”, “Chovendo na roseira”, “Garoto”, “Estrada do sol”, “Gabriella” (sic). Desta
feita, os créditos do disco atribuem oficialmente ao Maestro a coautoria dos arranjos. Vale notar que uma
partitura para violão solo de “’Gabriella’ Love theme”, “transcribed by Carlos Barbosa-Lima”
18
, já havia sido
16
Sharon Isbin (1956 -), célebre violonista americana, transita com igual desenvoltura entre a música clássica
e a popular. Aluna de Segovia, fundadora do Departamento de violão da Julliard School, ganhadora de vários
Grammys, apresenta-se com as principais orquestras do mundo e lançou mais de trinta e cinco álbuns com
todo tipo de repertório. Com Barbosa-Lima gravou ainda Rhapsody in Blue/West Side Story (Concord
Concerto, 1988).
17
Este outro selo da Concord, criado em 1980, destinava-se a abrigar o melhor do Latin jazz rótulo que
agrupa os mais diversos ritmos afro-caribenhos e brasileiros.
18
Mais uma amostra da oscilação na nomenclatura transcrição/arranjo.
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Loureiro, Inês; Barbeitas, Flávio Terrigno. O bruxo e o Maestro: a colaboração musical entre Carlos Barbosa-Lima & Tom Jobim
publicada na Guitar Review em 1983, como apêndice de uma extensa matéria sobre Jobim feita pelo longevo
editor da revista, Vladimir Bobri.
19
Embora todos os arranjos transmitam o perfeito entendimento entre os solistas, é forçoso reconhecer que
causam menos impacto no ouvinte do que aqueles para violão solo gravados em 1982. De fato, agora é mais
frequente o recurso à melodia acompanhada (Barbosa-Lima e Isbin se alternam na função de
“acompanhamento”) e as complexas polifonias encontram-se desdobradas nos dois instrumentos. O
resultado é primoroso, mas menos impressionante no que se refere ao virtuosismo exigido dos intérpretes.
Lembremos que Barbosa-Lima retoma a gravação dos arranjos solo dois anos depois, em 1989, por ocasião
da reedição de CBL Plays ACJ & GG: voltaria a enfrentar sozinho os intrincados desafios em que transformava
os temas de Jobim.
Para o disco com Isbin, Tom redige outra contracapa elogiosa, datada de março de 1987, louvando as magic
hands desses dois mestres do violão. Novamente refere-se, em espanhol, a Barbosa-Lima como brujo do
instrumento, agora em pas de deux com a feiticeira (sorceress) Sharon Isbin (termos empregados por ele). A
performance é descrita com fartos adjetivos: limpa, clara, melodiosa, harmoniosa, viva e rítmica. “É tão
bonito que me dá arrepios”, confidencia, emendando a seguir:
Trabalhar com Carlos e Sharon nos arranjos para dois violões foi muito gratificante. O
violão é um dos instrumentos mais completos. Imaginem dois, em perfeita harmonia. É
como uma orquestra de câmara, onde nada se perde. Uma maravilhosa e rica combinação
de diferentes timbres, que surpreendem e excitam o ouvido, uma grande alegria para o
coração. Faz bem pra a alma (Jobim 1987).
Barbosa-Lima relata com orgulho que por duas vezes abriu os shows de Tom Jobim com a Banda Nova no
Avery Fisher Hall, célebre sala de concertos situada no Lincoln Center (Nova York). A primeira delas foi
justamente em duo com Sharon Isbin em 8/12/1985 (o que nos leva a crer que os arranjos gravados em
novembro de 1986 já estivessem prontos um ano antes). na noite de 23/11/1987 é ele sozinho quem se
encarrega da abertura do espetáculo, que conta também com a participação de Gal Costa e Oscar Castro-
Neves (Cabral 1997, 392 e 400). Entusiasmado, lembra em entrevista registrada em vídeo: “Foi uma
maravilha o violão acústico tocando para 3000 pessoas... foi um arrebatamento total” (Barbosa-Lima
2012).
5. Um projeto não realizado
A colaboração musical prosseguiu até o final da década de 1980. Uma carta de Barbosa-Lima datada de
5/02/1989 menciona o encontro de ambos ocorrido em janeiro, quando aproveitaram para corrigir a
harmonia de “Saudade do Brasil” peça na qual Carlos estava trabalhando. “Estou enviando a você cópia do
arranjo que eu preparei da sua obra ‘Saudade do Brasil’ em redução para violão e piano do que se
transformará para violão e orquestra de câmara. Corrigi aquelas notas e acordes que você me mostrou
quando nos encontramos duas semanas”. No P.S. da carta, um pedido: “Procure pensar na
instrumentação de ‘Saudade do Brasil’”.
19
Nessa época Barbosa-Lima integrava o conselho editorial da Guitar Review, para a qual contribuía
assiduamente como crítico de violão, resenhando concertos e lançamentos fonográficos.
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Loureiro, Inês; Barbeitas, Flávio Terrigno. O bruxo e o Maestro: a colaboração musical entre Carlos Barbosa-Lima & Tom Jobim
No site do Instituto Antonio Carlos Jobim (IACJ) estão disponíveis dois manuscritos autógrafos de Barbosa-
Lima para esta peça. O primeiro corresponde exatamente à descrição acima uma redução para violão e
piano, de um arranjo destinado para violão e orquestra de câmara, com 15 folhas. O segundo manuscrito,
com 6 folhas e data de 1988, é apenas a parte de violão do que seria um arranjo para este instrumento e
orquestra de cordas, contendo poucas e preliminares indicações para a futura instrumentação
20
. Como de
praxe, indicam a 6ª corda afinada em Ré.
Outros dois documentos à disposição no site indicam que o arranjo acabou por ser discutido com Paulo
Jobim, filho do Maestro: um bilhete de Barbosa-Lima dirigido a Paulo solicitando as modificações que este
teria introduzido na partitura e um segundo, intitulado “Sugestões de mudanças no arranjo da sica
‘Saudade do Brasil’”
21
. A indexação de ambos informa que “este arranjo de Saudade do Brasil foi feito em
1991 por Paulo Jobim e Carlos Barbosa-Lima”. Em suma, tudo leva a crer que nesse caso foi Paulo quem
assumiu a interlocução com o violonista, levando a cabo a incumbência de trabalhar na instrumentação da
peça.
Até onde foi possível averiguar na discografia de Barbosa-Lima, esse arranjo não chegou a ser gravado,
apesar do violonista ter prosseguido na trilha da obra jobiniana até seus últimos álbuns Delicado (Zoho,
2019) e El Manisero (GLM Music, 2021).
Todavia, o mais ambicioso projeto cogitado pelos dois artistas a ideia de compor um concerto para violão
e orquestra infelizmente não se concretizou. As notícias sobre tal projeto nos chegam de modo
fragmentário, por meio de alusões em entrevistas e cartas.
A primeira delas aparece em 1983 uma rápida menção ao fato de que os dois estão planejando um
concerto para violão (Bobri 1983, 4). Mais ou menos na mesma época, o jornalista Paul Magnussen pergunta
quais os planos de Barbosa-Lima para o futuro próximo: “Estarei colaborando com Jobim. Estamos no
processo de encomenda de uma obra para violão e orquestra, temos um patrocinador nos Estados Unidos".
(Barbosa-Lima 1984). O artigo de Hodel tampouco avança detalhes:
É certo que o próximo projeto de Jobim para violão está destinado a despertar grande
interesse entre os entusiastas do violão. Ele es considerando seriamente escrever um
concerto para violão e orquestra. ‘Carlos sugeriu isto’, diz ele [Jobim]. ‘É uma ideia
perigosa, é um desafio, muito tentador. Em termos de realização de minhas antigas
aspirações na música clássica, é um dos meus desejos mais autênticos do fundo da alma.
Carlos seria o intérprete ideal’ (Hodel 1985).
O artigo se encerra com os simpáticos votos que certamente seriam endossados pelos leitores da revista:
“Vamos torcer para que o disco Carlos Barbosa-Lima toca ‘Primeiro Concerto para Violão e Orquestra’, de
Jobim esteja em breve disponível nas lojas” (Hodel 1985).
20
Respectivamente indexados como jobim.org/jobim/handle/2010/4458 e
jobim.org/jobim/handle/2010/4459.
21
Respectivamente indexados como jobim.org/jobim/handle/2010/4414 e
jobim.org/jobim/handle/2010/8000.
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Loureiro, Inês; Barbeitas, Flávio Terrigno. O bruxo e o Maestro: a colaboração musical entre Carlos Barbosa-Lima & Tom Jobim
As duas cartas de Barbosa-Lima para Tom que constam do acervo do Instituto Antonio Carlos Jobim (IACJ)
contêm referências ao concerto
22
. Na primeira delas, datada de 17/09/1983, o violonista explicita: Agora
estou entusiasmado com o projeto para você compor o Concerto para Violão e Orquestra, que tenho a
certeza será de grande impacto no mundo musical”. Comenta a seguir o encontro com um amigo de Nova
Jersey que, também entusiasmado, “(...) estabeleceu o plano da ‘comission’”. Fica evidente aqui a
expectativa de Carlos, que já tomava as primeiras providências rumo à realização do projeto.
Mais de cinco anos depois, em missiva de 05/02/1989, Barbosa-Lima insiste na tentativa de animar o
parceiro. Diz que essaindo para uma viagem de duas semanas e que teria gostado de conversar por
telefone antes disso, “(...) pois estarei me encontrando com o Maestro Lorin Maazel em Pittsburgh e com os
diretores da Pittsburgh Symphony esta semana, que estão interessados no projeto de estrear a sua futura
obra para violão e orquestra”. Como se vê, Carlos não apenas continuava motivado com a ideia, como
também chegou a acionar membros do “primeiro time” da música sinfônica americana para participar da
empreitada.
Não há indícios do que Jobim pensava a este respeito nem das respostas que deu a Carlos, nem das razões
que dava a si mesmo para protelar ou desistir do projeto. Conversamos com alguns dos maiores
conhecedores da obra e do acervo de Tom, como Paulo Jobim, Mario Adnet e Aluísio Didier: nenhum deles
conhece ou ouviu falar de algum esboço ou fragmento dessa peça.
Um possível motivo para o adiamento e/ou abandono da proposta: na mesma época em que conheceu
Barbosa-Lima, Jobim envolveu-se profissional e afetivamente com a montagem da Banda Nova, formada por
amigos e familiares. Tendo estreado oficialmente em 1984, em seus dez anos de existência a Banda cumpriu
uma intensíssima agenda de gravações, shows e tournées internacionais Tom jamais viajara com tal
frequência e recebera tantas homenagens mundo afora. Uma fase produtiva e prazerosa em virtude do clima
de descontração que predominava no grupo (como atestam os registros audiovisuais dos animados ensaios
caseiros). Ora, a escrita de um concerto é tarefa árdua exige um tempo e uma concentração que o Maestro
pode ter preferido dedicar às composições, sempre ao piano, de canções e curtas peças instrumentais que
alimentaram o repertório da banda.
6. Conclusão: os mútuos benefícios de uma colaboração
A amizade entre os dois artistas permaneceu intacta; sabe-se que Barbosa-Lima almoçou com Tom e família
em setembro de 1994 (Bellinati 1996), pouco antes da morte do Maestro, e manteve os laços afetivos com
a família Jobim (Barbosa-Lima 2012). É de se lamentar que muito material importante para documentar esta
relação tenha se perdido e/ou se encontre indisponível os bastidores da gravação e a íntegra do programa
da TV Manchete, por exemplo, ou os arquivos de Barbosa-Lima, dos quais, por enquanto, pouco se sabe.
23
22
Agradeço ao Instituto Antonio Carlos Jobim e a Jobim Music a permissão para acessar este material;
agradeço também o acolhimento gentil e prestativo por parte de todos aqueles que trabalham no IACJ.
23
Uma rara referência aparece quando perguntado sobre publicações: “Eu sempre deixo tudo prontinho, já
escrito, precisando de um mínimo de revisão. Eu tenho um amigo chamado Geof Foote que quer criar uma
biblioteca com todo o material que eu escrevi, digitalizado (...). Muito desse material esem Porto Rico
[então sua residência] guardado em envelopes, mas nos últimos anos eu comecei a espalhar muita coisa
com os amigos (...)” (Barbosa-Lima 2009, 26).
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Loureiro, Inês; Barbeitas, Flávio Terrigno. O bruxo e o Maestro: a colaboração musical entre Carlos Barbosa-Lima & Tom Jobim
O que se pode depreender da trajetória aqui reconstituída é que a colaboração entre Barbosa-Lima e Jobim
foi benéfica para ambos em várias dimensões profissional, artística e pessoal.
O violonista erudito conquistou espaço entre o público de jazz e música popular. Desde seu lançamento, o
álbum CBL plays ACJ & GG foi bem sucedido. “O disco chegou às rádios de jazz e eles começaram a tocar
foi uma loucura. Pegou os dois mundos” (Barbosa-Lima 1999/2000, 26). Também chamou a atenção da
crítica, sendo alvo de resenhas elogiosas (Bobri 1983) no episódio da TV Manchete Jobim se refere à “pilha
de recortes” que Carlos juntou com as muitas matérias publicadas na imprensa norte-americana. O LP
sedimentou a atuação de Carlos no terreno desse repertório híbrido ao qual se dedicou com afinco a partir
de então. As gravações imediatamente posteriores (com obras de Luiz Bonfá & Cole Porter e Scott Joplin),
bem como as demais de sua exitosa carreira, misturam temas da Broadway, Beatles e música caribenha com
Ginastera e impressionistas europeus. O álbum O Boto - Works for Solo Guitar and Guitar & Orchestra
(Concord Concerto, 1997) é um ótimo exemplo da versatilidade do violonista; contém obras de Haendel,
Emilio Pujol, Castelnuovo-Tedesco, do porto-riquenho Ernesto Cordero e, com destaque no título, de Jobim.
Ao lado de Tom, Barbosa-Lima também teve oportunidade de tocar para grandes plateias (shows da Banda
Nova em Nova York) e de ter seu trabalho divulgado para a audiência brasileira (programa da TV Manchete).
A convivência próxima com aquele que considerava um dos grandes compositores mundiais transformou-se
numa amizade da qual se envaidecia. Sem hesitação, afirma sobre seu encontro com Jobim: “Foi uma das
experiências que eu reputo das mais importantes da minha vida” (Barbosa-Lima 2012).
Para Jobim, o álbum de 1982 reforçou sua circulação nas rádios e imprensa americanas, agora sob nova e
sofisticada roupagem instrumental. Barbosa-Lima também ampliou a penetração do compositor junto ao
público erudito, bem como deu forte impulso à incorporação de suas peças ao repertório do violão de
concerto
24
.
Além disso, ao nosso ver, a relação com o brujo promoveu um ganho lateral: o convívio estreito e o trabalho
minucioso com um virtuose proporcionaram a Jobim uma experiência inédita com o violão. Barbosa-Lima
era dono de um estilo solidamente fundamentado na técnica clássica e na abordagem polifônica do violão
solo, uma combinação incomum nos círculos violonísticos que Tom frequentara. O mergulho conjunto nos
arranjos com a exploração dos idiomatismos, das variedades timbrísticas, das possibilidades e limites
quanto ao desenvolvimento polifônico, das particularidades em relação ao piano... tudo isso talvez tenha
descortinado, para o maestro, novas dimensões do violão instrumental.
Em outras palavras, o encontro com Barbosa-Lima teria levado Jobim a refletir sobre este mundo sonoro tão
singular, do qual sempre esteve, paradoxalmente, próximo e distante: próximo, porque desde cedo usou o
instrumento para compor e se acompanhar; distante, porque nunca se considerou um violonista e foi ao
piano que se notabilizou. Imagens sugestivas surgiram nesse contexto:
Adoro os horizontes do violão, a beleza panorâmica de suas criações. Felizmente,
porém, não preciso ser o virtuoso que deve executar aquelas passagens intrincadas que
fazem a música do violão voar alto. Sou, vamos dizer, um ornitólogo amador no que diz
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Paulo Bellinati é outro grande violonista a incorporar a obra de Jobim ao violão de concerto, tendo gravado
e publicado numerosos arranjos. Em 2022, lançou, em parceria com Daniel Murray, uma versão de Sinfonia
da Alvorada para duo de violões.
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Loureiro, Inês; Barbeitas, Flávio Terrigno. O bruxo e o Maestro: a colaboração musical entre Carlos Barbosa-Lima & Tom Jobim
respeito ao violão. Adoro contemplar as diferentes espécies de canto dentro do mundo
deste pequeno instrumento. No entanto, prefiro observar a criação de longe, com
binóculos, por assim dizer, quando ela está alçando vôo (Bobri 1983, 4).
Se lembrarmos da paixão de Jobim pelas aves, a metáfora se torna ainda mais significativa. Os sons emitidos
por um violão virtuoso são como pássaros subindo aos céus: poesia do Maestro, ofício do bruxo.
7. Referências
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Janeiro: Jobim Music.
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Disponível em: http://www.paulmagnussen.com/carlos-barbosa-lima-interview.html Acesso em:
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Barbosa-Lima, Carlos. 1993. Antonio Carlos Jobim 9 pieces arranged for solo guitar by Carlos Barbosa-Lima.
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jan/fev. 2000 (parte II); n. 40. Ano VII [sic], 21-26, mar/abr. 2000 (parte III).
Barbosa-Lima, Carlos. 2009. “Carlos Barbosa-Lima”. Entrevista concedida a Eugênio Reis. Revista Digital BGM
(Brazilian Guitar Magazine), n. 8, 20-28, maio 2009.
Barbosa-Lima, Carlos. 2012. “O violão no Brasil. The Guitar in Brazil”. Entrevista concedida ao Movimento
Violão. Gravada em 24/04/2012. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=tYw7AJA-_yY
Acesso em: 19/03/2023.
Bellinati, Paulo. 1996. “Spider Monkeys”. Entrevista concedida a Luiz Roberto Oliveira. Disponível em:
https://web.archive.org/web/20011205094127/http:/jobim.com.br/entrevistas/bellinati.html Acesso
em: 25/05/2023.
Bobri, Vladimir. 1983. “Spotlight on Antonio Carlos Jobim”. Guitar Review, New York, n. 55, 1-4, fall 1983.
Cabral, Sergio. 1997. Antônio Carlos Jobim uma biografia. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumiar editora.
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