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eISSN 2317-6377
José Siqueira e Mstislav Rostropovich: um encontro possível
José Siqueira and Mstislav Rostropovich: a plausible meeting
Marcelo Moreno da Silva
Universidade Federal do Piauí UPFI, Curso de Música, Teresina, Piauí, Brasil
marcellusmoreno84@gmail.com
Felipe Avellar de Aquino
Universidade Federal da Paraíba UFPB, Programa de Pós-Graduação em Música, João Pessoa, Paraíba, Brasil
ARTIGO CIENTÍFICO
Editor de Seção Editor: Fernandp Chaib
Editor de Layout: Fernando Chaib
Licença: "CC by 4.0"
Data de submissão: 07 fev 2024
Data final de aprovação: 23 abr 2024
Data de publicação: 14 mai 2024
DOI: https://doi.org/10.35699/2317-6377.2024.51180
RESUMO: Este trabalho propõe demonstrar a relação entre o compositor José Siqueira e o violoncelista russo Mstislav
Rostropovich através de elementos musicais presentes na II Sonata para Violoncelo e Piano (1972). Assim, exploramos a literatura
do violoncelo daquele período, bem como elementos que influenciaram Siqueira em seu processo composicional. A partir de
Siqueira (1981), Aquino (2006), Santos (2016) e Silva (2023), sugerimos a presença de sonoridades similares a gestos da Primeira
e Terceira Suítes para Violoncelo Solo de Benjamin Britten, contemporâneo de Siqueira e amigo pessoal de Rostropovich. Desta
forma, através do processo comparativo de excertos, percebem-se outros importantes traços composicionais em Siqueira, além
das manifestações culturais da música do Nordeste brasileiro. Ademais, constamos um dualismo entre o regionalismo e elementos
da música europeia de concerto na obra do compositor paraibano. Deste modo, apresentamos uma perspectiva abrangente de
seu estilo composicional, ao mesmo tempo em que se demonstra que a ligação entre Siqueira e Rostropovich vai muito além da
dedicatória.
PALAVRAS-CHAVE: José Siqueira; II Sonata para violoncelo e piano; Mstislav Rostropovich; Performance; Música brasileira.
ABSTRACT: This article proposes to reveal a connection between José Siqueira and the Russian cellist Mstislav Rostropovich
through musical elements present in the II Sonata for Cello and Piano (1972). We’ve explored the cello literature from that period,
as well as elements that came to influence Siqueira in his compositional process. Based on Siqueira (1981), Aquino (2006), Santos
(2016), and Silva (2023), we suggest the presence of sonorities that are similar to musical gestures from Britten’s First and Third
Solo Suites Siqueira’s contemporary and Rostropovich’s personal friend. Through a comparative study of excerpts, it is possible
to perceive important compositional traits in Siqueira’s output, in addition to those from the cultural manifestations of the music
of the Brazilian Northeast, as a dualism between regionalism and elements from the European concert music. Thus, we present a
more comprehensive perspective of Siqueira’s compositional style, denoting that the connection between Siqueira and
Rostropovich goes beyond a dedicatory.
KEYWORDS. José Siqueira; II Sonata for cello and piano; Mstislav Rostropovich; Performance; Brazilian music.
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Silva, Marcelo Moreno da; Aquino, Felipe Avellar de. “José Siqueira e Mstislav Rostropovich: um encontro possível”.
1. Introdução
A II Sonata para Violoncelo e Piano do compositor paraibano José Siqueira (1907-1985) foi escrita na cidade
do Rio de Janeiro, no período de 27 de maio a 3 de junho de 1972, e foi dedicada ao violoncelista russo
Mstislav Rostropovich (1927-2007), considerado um dos maiores instrumentistas do século XX.
1
Desta
forma, procuramos explorar elementos estruturantes característicos da literatura do violoncelo, composta
naquele período, bem como os aspectos que vieram influenciar Siqueira em seu processo composicional.
Nesta investigação, buscamos demonstrar, a partir de elementos musicais presentes na obra, que a ligação
entre Siqueira e Rostropovich vai muito além da simples dedicatória inserida no manuscrito. Assim,
vislumbramos que a origem da homenagem a Rostropovich está em referências ao compositor britânico
Benjamin Britten (1913-1976), salientando que este era um dos compositores mais próximos de
Rostropovich naquele momento. De fato, em pontos específicos da Sonata, percebemos referências que nos
remetem às sonoridades brittenianas, notadamente quanto ao seu repertório para o violoncelo, que foi
integralmente dedicado a Rostropovich.
Ademais, sabe-se que o violoncelista soviético foi, definitivamente, o maior responsável pela expansão do
repertório violoncelístico ao longo de todo o século XX, ao realizar mais de mais de 100 estreias mundiais de
obras para violoncelo. Ao mesmo tempo, devemos considerar que Siqueira nutria estreita relação com a
antiga União Soviética (URSS), com visitas periódicas para reger e apresentar suas composições. Fato que,
inclusive, resultou em obras suas editadas em Moscou. Por outro lado, esta relação profissional com os
soviéticos levou o compositor a ser perseguido pelo regime militar brasileiro, o que resultou em sua
aposentadoria compulsória em 1968 (Antunes 2007, 39-40).
Neste estudo, para compreendermos a Sonata de Siqueira, procuramos discernir que, além do compositor
ter empregado elementos provenientes das manifestações culturais vernaculares, como ponto central de
boa parte de seu repertório, está também presente a influência de compositores europeus. Assim, no intuito
de melhor compreender sua obra, lançamos um olhar mais abrangente sobre as fontes composicionais de
Siqueira.
A obra está estruturada em quatro movimentos: Introdução, Allegro, Aboio e Samba de Engrenagem;
contendo fortes alusões à cultura do Nordeste do Brasil, ao empregar o Sistema Trimodal como principal
recurso composicional. Este princípio é baseado nos modos eclesiásticos presentes na música das
manifestações culturais do Nordeste brasileiro, sistematizado a partir de pesquisas realizadas por Siqueira
nesta região (Vieira 2006, 32). Estas referências estão notoriamente inseridas nos dois últimos movimentos
1
Este artigo é um extrato de pesquisa de mestrado desenvolvida na Universidade Federal da Paraíba,
defendida em 2023, cujo título é “Universalidade e regionalismo na obra de José Siqueira: construção das
edições crítica e de performance da II Sonata para Violoncelo e Piano”. O trabalho busca oferecer
contribuição para uma melhor compreensão da obra de José Siqueira, enfatizando sua importância para a
música brasileira de concerto, mais especificamente, para a literatura do violoncelo. Como um dos
resultados, foi disponibilizada uma edição crítica, como também uma edição de performance da Sonata,
baseadas nos manuscritos de Siqueira e de seu copista, F. Paes de Oliveira. Apesar de ter sido composta em
1972, esta Sonata foi estreada, muito provavelmente, apenas em 2022 ou seja, 50 anos após a data de sua
composição pelo violoncelista Marcelo Moreno, um dos autores do presente trabalho, ao lado do pianista
Lucas Bojikian. A performance integral da obra es disponível através do link na plataforma YouTube:
https://www.youtube.com/watch?v=ZKB0OUDrQJo
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Silva, Marcelo Moreno da; Aquino, Felipe Avellar de. “José Siqueira e Mstislav Rostropovich: um encontro possível”.
da Sonata, já a partir de seus respectivos títulos. Neste caso, o quarto movimento faz menção ao samba do
recôncavo baiano, enquanto o Aboio se refere a um canto dos vaqueiros nordestinos. Entretanto, nos dois
primeiros movimentos, Introdução e Allegro, Siqueira praticamente se distancia da linguagem e sonoridade
da cultura musical do Nordeste do Brasil, embora ainda empregue elementos do Sistema Trimodal.
Coincidentemente, as Três Suítes para Violoncelo Solo, Opp. 72, 80 e 87 do britânico Benjamin Britten, foram
escritas entre 1964 e 1971, ou seja, período cronológico próximo e anterior ao da composição da Sonata de
Siqueira. Aliás, a terceira e última Suíte de Britten traz referências à cultura musical russa, no intuito de
homenagear seu amigo e violoncelista Mstislav Rostropovitch (Aquino, 2006). Assim como Siqueira, Britten
também fez constantes viagens à Rússia naquele mesmo ínterim, a fim de reger suas próprias obras.
Inclusive, uma dessas viagens foi organizada pelo próprio Rostropovich, que recebeu Britten e seu
companheiro, o tenor Peter Pears, em sua residência (Pyke, 2011). Desta forma, vemos neste momento de
constantes visitas à Rússia uma possibilidade de troca cultural entre Britten, Rostropovich e Siqueira, aspecto
que se mostra relevante na estruturação da Sonata do compositor brasileiro.
2. Recursos composicionais de Siqueira: Sistemas Pentatônico e Trimodal
Podemos considerar que a influência das manifestações culturais do Nordeste do Brasil vem a ser uma das
principais características composicionais de José Siqueira, elemento que está fortemente presente em boa
parte de suas obras. Desta forma, a Sonata em estudo é marcada pelo emprego dos Sistemas Trimodal e
Pentatônico, largamente utilizados por Siqueira em sua produção. As explanações destes sistemas
composicionais estão registradas pelo compositor nos livros O Sistema Modal na Música Folclórica do Brasil
(1981a), bem como no Sistema Pentatônico Brasileiro (1981b). Ambos publicados sob encomenda da
Secretaria da Educação e Cultura e Diretoria Geral de Cultura do Estado da Paraíba.
2.1. O Sistema Pentatônico
Fruto de pesquisas sobre as manifestações de matrizes africanas na região do recôncavo baiano, a
estruturação do Sistema Pentatônico Brasileiro é resultado de observações do compositor sobre os rituais
de candomblé. Nessa região, Siqueira constata a presença de escalas pentatônicas nas melodias aplicadas a
estes rituais (Siqueira 1981b, 01). Ainda ressalta que estas escalas estão imbuídas na música de países como
China e Japão, mas também na música proveniente do continente africano. Basicamente, Siqueira (1981b,
02) afirma que a melodia pentatônica não admite modulação nem cromatismo. Ainda esclarece que a escala
pentatônica é composta por um conjunto de cinco notas, que podem possuir intervalos diatônicos, mas
nunca cromáticos. O Exemplo 1a abaixo demonstra uma escala pentatônica, segundo Siqueira (1981b).
Exemplo 1a Escala pentatônica, a partir da concepção de Siqueira
Fonte: Siqueira 1981b, 02
Acordes pentatônicos ou pentamodalismo (Siqueira 1981b, 03) diz respeito a uma harmonia constituída de
três formas distintas. Na primeira, ao ser construído um acorde maior, é incluído um intervalo de quinta
justa, sempre que esse intervalo forme, com a fundamental e a quinta do acorde, segundas maiores
ascendentes. na segunda forma, ao ser constituído um acorde menor, é incluído um intervalo de quinta
justa, sempre que esse intervalo forme, com a fundamental e a quinta do acorde, segundas maiores
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descendentes, como demonstrado no Exemplo 1b. Outra forma de criar um acorde pentatônico seria a
transformação da própria escala pentatônica em um acorde.
Exemplo 1b Acordes pentatônicos, a partir da concepção de Siqueira
Fonte: Siqueira 1981b, 03
O Exemplo 1c demonstra o emprego de acordes pentatônicos nos comps. 20-22 da Introdução da Sonata de
Siqueira. No comp. 21, na mão direita do piano, há apenas quatro notas [Fá#, Si, Ré, Mi]. Entretanto, na mão
esquerda, a nota Lá do conjunto de notas [Ré, , Ré] completa o acorde pentatônico do referido compasso.
Exemplo 1c Comps. 20-23 da Introdução da Sonata de Siqueira
Fonte: Autores
2.2. O Sistema Trimodal
Para Siqueira (1981a, 01), apenas elementos como ritmos e temas melódicos das manifestações culturais
brasileiras e seus processos contrapontísticos, a utilização de instrumentos ditos nacionais e textos nos
idiomas indígenas ou africanos na música vocal o são suficientes para caracterizar uma música como
brasileira. Por esta razão, Siqueira acaba notando a necessidade de uma abordagem mais aprofundada da
música de nosso país, com vistas à formação de uma estética composicional focada na cultura da música
nordestina. Para isso, o compositor lança o trabalho intitulado O Sistema Trimodal na sica Folclórica do
Brasil, fruto de pesquisas composicionais desenvolvidas no Nordeste brasileiro (Vieira 2006, 32). Este
sistema se baseia em três modos presentes na música nordestina, seus respectivos derivados, como também
na superposição de acordes com intervalos de segundas, quartas e quintas. Os modos são divididos em três
e correspondem aos modos eclesiásticos. Para cada modo, existe um modo derivado, conforme dispostos
na Tabela 1 e no Exemplo 2a:
Tab. 1 Modos do Sistema Trimodal e seus correspondentes. Fonte: Tabela dos autores, a partir de Siqueira (1981a, 03-06)
Modos eclesiásticos correspondestes
Mixolídio
Frígio
Lídio
Dório
Modo misto, formado pela alteração do 4° grau do modo Mixolídio
2
Não possui correspondente
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Ou rebaixamento do grau VII do modo Lídio (II Modo Real).
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Exemplo 2a Modos do Sistema Trimodal
Fonte: Siqueira (1981a, 03-06)
No movimento Aboio da Sonata, podemos perceber a utilização do III Modo Derivado (Exemplo 2b) como
também o emprego da polarização em torno da nota Si na parte do violoncelo, inclusive na mão esquerda
da parte do piano (Exemplo 2c).
Exemplo 2b III Modo Derivado com centro em Sol#
Fonte: Autores
Exemplo 2c Comps. 04-06 do Aboio da Sonata de Siqueira. Pedal da nota Si com escala descendente no III Modo Derivado,
com centro em Sol#
Podemos constatar que todos os modos derivados apresentados são, na verdade, rotações dos modos reais,
a partir do grau VI de cada escala. Embora o compositor tenha racionalizado este sistema, não é sua intenção
a criação de algo novo, mas apenas ordenar estes modos que estão presentes na música do Nordeste do
Brasil, contribuindo para a formação e teorização da música brasileira (Siqueira 1981a, 02). Pelo fato de
Siqueira afirmar não ter encontrado correspondente histórico ao III Modo Real, assim como o III Modo
Derivado, o compositor os considera como modos autenticamente brasileiros, e os classifica como Modos
Nacionais (Siqueira 1981a, 06-07). Assim, podemos aferir que o compositor não encontrou aplicação destes
modos em outras composições anteriores às suas, na música de concerto, apesar de estarem presente nas
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práticas musicais oriundas das manifestações culturais do Nordeste. Alvarenga (2000, 193), por sua vez,
confirma que este modo misto é, de fato, característico da música do Nordeste do Brasil, elemento inclusive
empregado no 2º Concerto para Violino e Orquestra (1953) de Camargo Guarnieri.
Entretanto, constatamos em trabalhos recentes voltados para a pesquisa e análise de obras de José Siqueira
(Peixoto, 2021; Ramalho, 2022), que o III Modo Real é, na verdade, uma escala já empregada por
compositores europeus do século XX anteriores a Siqueira, como o húngaro Béla Bartók (1881-1945) e o
francês Maurice Ravel (1975-1937). Segundo Lendvai (1971, 67-69), esta escala é conhecida pela combinação
de quarta aumentada com sétima menor, sendo chamada de Escala Acústica, pois deriva da série
harmônica.
3
O autor ainda ressalta que esta escala vem a ser “a forma mais característica do sistema
diatônico de Bartók”
4
(Lendvai 1971, 67). De fato, ela espresente em obras de Bartók, como no quarto
movimento do Quarteto de Cordas4 (1928), Cantata Profana (1930) e na Música para Cordas, Percussão
e Celesta (1937). Da mesma forma, está presente em obras como L’Isle Joyeuse (1904) e La Mer (1905) de
Claude Debussy, como também em Petrouchka de Igor Stravinsky (Tymoczko, 2004).
3. Siqueira e Rostropovich: Elementos de um possível encontro
Segundo a Fundação Mstislav Rostropovich, a partitura da II Sonata de José Siqueira encontra-se nos
arquivos deixados por Rostropovich, tendo sido entregue para o violoncelista em algum momento entre os
anos de 1972 e 1974, embora nunca a tenha apresentado em público.
5
Na verdade, estes foram os anos mais
decisivos na vida do instrumentista, que resultaram em sua saída definitiva daquele país, ocorrida em 26 de
maio de 1974 (Ivashkin e Oehrlein 1997, 110). Assim, naquele ano, Rostropovich deixou a União Soviética,
dando início ao seu exílio, por defender e abrigar, em 1970, o escritor Aleksandr Solzhenitsyn perseguido
político por críticas ao regime soviético (Aquino 2006). Desta forma, a partitura da II Sonata possivelmente
permaneceu na União Soviética, enquanto Rostropovich deixava o país sem conseguir levar todos os seus
pertences. Fato que provavelmente veio a impedir qualquer oportunidade da obra ser executada pelo seu
homenageado.
Naquela mesma década, Rostropovich chegou a vir ao Brasil ao menos duas vezes. Em 1974, na cidade de
São Paulo, fez o seu primeiro recital com sua filha Elena como pianista após o exílio (Ivashkin e Oehrlein,
1997). em julho de 1978, na cidade do Rio de Janeiro, realizou uma série de quatro apresentações, que
contaram com a participação de sua esposa, a soprano Galina Vishnevskaya, além da pianista Martha
Argerich. Entretanto, o encontramos registros nem relatos de um encontro entre Rostropovich e Siqueira
que pudesse resultar em uma performance, ainda que informal, da referida obra. Inclusive, verificamos que
no ano de 1994 foi concedido o título de Doutor Honoris Causa ao violoncelista, pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ), embora a cerimônia de entrega desta honraria nunca tenha acontecido.
6
Contudo,
pelas constantes visitas de Siqueira à Rússia, e pelo fato de ter dedicado sua II Sonata a Rostropovich assim
como o II Concerto ‘Painel Sonoro’ para Violoncelo, orquestra de sopros, harpa, piano e percussão (1972) ,
cogitamos que o violoncelista russo tenha, de fato, chegado a realizar um encontro com o compositor
paraibano, no qual tenha apresentado a Terceira Suíte para Violoncelo Solo de Benjamin Britten, a fim de
3
Acoustic Scale ou Overtone Scale.
4
“The most characteristic form of Bartók’s ‘diatonic’ System(Lendvai 1971, 67).
5
Informação fornecida pela instituição via e-mail.
6
Informação obtida por e-mail junto à Secretaria dos Órgãos Colegiados da Reitoria da UFRJ.
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mostrar a nova obra e, sobretudo, demonstrar as possibilidades do instrumento. Aspecto marcante na
própria II Sonata que, da mesma forma que a Suíte do compositor britânico, alia o virtuosismo técnico-
instrumental ao elemento vernacular.
O próprio Siqueira relata viagens à União Soviética para reger suas obras entre 1955 e 1975 (Siqueira, 1981).
Da mesma forma, entre 1963 e 1971, Britten realizou inúmeras visitas à União Soviética (Pyke, 2011), o que
se caracterizou por um período de forte aproximação com Rostropovich. Neste caso, a relação entre Britten
e Rostropovich deixou um legado relevante para a literatura do violoncelo, uma vez que resultou na
composição das Três Suítes para Violoncelo Solo, a Sonata para Violoncelo e Piano, como também a Sinfonia
para Violoncelo e Orquestra, Op. 68 (Cello Symphony). Desta feita, estas obras retratam o virtuosismo de
Rostropovich, assim como elementos idiomáticos do violoncelo, tendo sido integralmente dedicadas e
estreadas pelo violoncelista.
Vemos na coincidência das visitas à Rússia pelos dois compositores como uma possibilidade, mesmo que
indireta, de uma influência composicional entre Britten e Siqueira. Elemento que se mostra relevante na
estruturação da Sonata, objeto do presente estudo. A Terceira Suíte para Violoncelo, Op. 87 (1971) é uma
obra singular, uma vez que Britten utiliza referências da cultura musical russa para homenagear
Rostropovich, aspecto aliado a um forte conteúdo virtuosístico (Aquino, 2006). É possível que Britten a tenha
mostrado a Siqueira, ou mesmo que Rostropovich tenha tocado a obra para o compositor brasileiro, se
considerarmos que a Sonata em questão somente veio a ser escrita em 1972. Neste ano, segundo os arquivos
da instituição Britten Pears Arts, Benjamin Britten já havia publicado as notas de programa sobre a Terceira
Suíte para o Festival de Aldeburgh de 1972. Contudo, a estreia da obra foi cancelada, tendo ocorrida apenas
em 21 de dezembro de 1974, quando foi interpretada por Rostropovich. Ademais, a primeira edição da
Terceira Suíte ocorreu somente em 1976, pela editora Faber Music. O que nos leva a supor que as referências
à Terceira Suíte de Britten presentes na Sonata de Siqueira se devem a um provável encontro entre
Rostropovich e Siqueira, uma vez que, como descrito, a Suíte ainda não havia sido estreada nem muito
menos publicada.
Da mesma forma que a Terceira Suíte de Britten, a II Sonata de Siqueira foi composta com a intenção de
expressar a cultura de um povo. No caso da Sonata, retrata expressões culturais do Nordeste do Brasil. Já na
Terceira Suíte, Britten explora expressões da cultura musical russa como um meio para homenagear
Rostropovich em um dos períodos mais críticos de sua vida (Aquino, 2006). O que, ao mesmo tempo, atesta
a importância das expressões musicais populares na construção de uma estética modernista na música de
concerto.
Outrossim, percebemos na Sonata de Siqueira a intenção de captar a identidade artística de Rostropovich.
Neste sentido, verificam-se a presença de passagens virtuosísticas que o violoncelista poderia executar com
agilidade, precisão e intensidade. De fato, Rostropovich não foi reconhecido por suas habilidades
artísticas, mas também por ser um dos maiores ícones da história do instrumento. Destacado pelo seu
grande virtuosismo, intensidade expressiva, ao mesmo tempo em que era um instigador de novas obras para
o violoncelo. Aspectos que contribuíram efetivamente para a ampliação do repertório do instrumento ao
longo do século XX.
Inflexões e sonoridades brittenianas estão claramente presentes na Sonata de Siqueira. Estas são oriundas
notadamente da Terceira Suíte (1971), mas também da Primeira Suíte escrita por Britten em 1964.
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Coincidentemente, um ano marcante para a história política do Brasil, com a implantação da ditadura militar.
Como podemos observar nos exemplos abaixo, há uma forte semelhança tanto em relação ao gesto
melódico quanto ao aspecto rítmico, entre os comps. 74-75 da parte do violoncelo da Sonata de Siqueira
(Exemplo 3a) e os comps. 20-26 do Moto Perpetuo da Primeira Suíte de Britten (Exemplo 3b). Observamos,
nestes trechos, uma relação intervalar de sétima, associada a um padrão rítmico similar, de semicolcheias,
em ambas as obras, além das sequências de segundas, que aparecem invertidas na comparação entre os
dois exemplos.
Exemplo 3a Comps. 71-75 do Allegro da Sonata de Siqueira
Fonte: Autores
Exemplo 3b Comps. 19-26 do Moto Perpetuo e Canto Quarto da Primeira Suíte, de Britten
Fonte: Editora Faber Music
Da mesma forma, podemos constatar um paralelo entre os comps. 80-82 da Sonata de Siqueira (Exemplo
4a) e os comps. 18-19 do Bordone da Primeira Suíte de Britten (Exemplo 4b). Ambos apresentam uma linha
melódica sobre uma longa nota pedal de Ré, realizada em corda solta. Na obra de Siqueira, constatamos um
gesto em 3/4, ao mesmo tempo em que na obra de Britten, a melodia superior tem como gesto equivalente
a uma figuração rítmica de compasso composto, mais precisamente 9/8. Os dois excertos são caracterizados
pelo emprego da semínima ligada à uma colcheia.
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Silva, Marcelo Moreno da; Aquino, Felipe Avellar de. “José Siqueira e Mstislav Rostropovich: um encontro possível”.
Exemplo 4a Comps. 80-85 do Allegro da Sonata de Siqueira
Fonte: Autores.
Exemplo 4b Comps. 18-19 do Bordone Primeira Suíte de Britten
Fonte: Editora Faber Music.
Aspectos da Terceira Suíte de Britten também estão presentes na Sonata de Siqueira. Neste sentido, se
atentarmos para o fato de que esta Suíte ainda não havia sido estreada, nos leva a questionar como inflexões
tão similares estão presentes em obras de diferentes compositores, dedicadas ao mesmo violoncelista.
Elemento que nos induz a intuir que a aproximação entre Siqueira e Rostropovich vai muito além de uma
mera dedicatória na partitura da II Sonata. Possivelmente, um encontro entre os dois, ocasião na qual
Rostropovich deve ter apresentado as Suítes solo de Britten um dos compositores mais próximos do
violoncelista naquele determinado período.
Neste caso, verificamos que os dois compositores se utilizam de células rítmicas semelhantes em tercinas de
semicolcheias, caracterizadas por um impulso a cada três notas (Exemplo 5a, comp. 155; Exemplo 5b, comps.
1 e 4). No comp. 155 do Allegro da Sonata, Siqueira emprega uma inversão do que está escrito nos comps.
1 e 4 do Presto da Terceira Suíte de Britten. Nestes respectivos movimentos, a presença de gestual
cromático similar entre a parte do piano da Sonata e a linha do violoncelo da Suíte (Exemplo 5a, comps. 153-
154; Exemplo 5b, comp. 2-3). Ao mesmo tempo, constatamos semelhança neste mesmo gestual do Presto
da Terceira Suíte de Britten (Exemplo 5b, comps. 1 e 4) e a parte do violoncelo do Allegro da Sonata de
Siqueira (Exemplo 5c, comps. 137-138).
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Exemplo 5a Comps. 152-155 do Allegro da Sonata de Siqueira
Fonte: Autores.
Exemplo 5b Comps. 1-4 do Presto (Molto Perpetuo) da Terceira Suíte de Britten.
Fonte: Editora Faber Music.
Exemplo 5c Comps. 135-138 do Allegro da Sonata de Siqueira
Fonte: Autores.
Assim como Britten, Siqueira também explora o caráter vocal do violoncelo através do recurso de repetição
constante de notas, em referência à cultura vernacular (Exemplos 6a e 6b), aspecto claramente ligado à
questão da oralidade. Britten, por sua vez, na Terceira Suíte, grafa a indicação parlando, atrelada ao
elemento do caráter vocal oriundo dos temas russos empregados na Suíte três canções folclóricas que
foram arranjadas para canto e piano por Tchaikovsky, além de um hino para coro masculino da Igreja
Ortodoxa Russa (Aquino, 2006). Siqueira, a fim de estabelecer o caráter vernacular no movimento
intitulado Aboio, explora a repetição de notas que está associada à sonoridade da linguagem oral. Neste
sentido, o compositor escreve, em nota de rodapé na partitura, que o aboio se refere a um “canto plangente
com que os vaqueiros guiam suas boiadas” (Siqueira, 1972). Neste caso, este elemento é enfatizado pela
escrita vocal/falada presente em uma obra essencialmente instrumental.
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Exemplo 6a Comps. 1-6 da Introduzione da Terceira Suíte de Britten
Fonte: Editora Faber Music
Exemplo 6b Comps. 13-16 do Aboio da Sonata de Siqueira
Fonte: Autores
As duas obras aqui comparadas são caracterizadas pela exploração do material das expressões vernaculares,
desenvolvida concomitante à exploração do virtuosismo instrumental. Em sua Terceira Suíte, Britten conclui
a obra com a apresentação dos quatro temas russos. Já na Sonata, como movimento final, Siqueira emprega
a sonoridade rústica de um material característico do samba do recôncavo baiano, com clara referência às
sonoridades dos instrumentos regionais, notadamente a rabeca.
4. Dualismo na obra de José Siqueira
Reconhecemos que Siqueira foi fortemente influenciado pelas manifestações culturais do Nordeste
brasileiro, elemento explorado em suas obras de caráter regionalista. Contudo, através de sua atuação como
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regente e professor, podemos constatar um considerável conhecimento sobre a música de concerto
europeia, notadamente de compositores como Beethoven, Brahms, Bartók e Debussy. Um repertório que
ele costumava reger tanto no Brasil quanto no exterior, à frente de importantes orquestras. Percebe-se que
esta bagagem musical está nitidamente presente em sua produção composicional. Em entrevista, Ricardo
Tacuchian (2022), discípulo do compositor, nos revela que Siqueira abordava consideravelmente a música
de Béla Bártok em sala de aula. Ao mesmo tempo, afirma que parte dos compositores brasileiros da geração
de Siqueira, de fato, recebeu influência de Claude Debussy. o violoncelista Márcio Malard (2022), amigo
e colaborador de Siqueira, afirma que a obra Crepúsculo (1939) para orquestra de cordas do compositor
possui claros traços da música de Debussy. De fato, em 1949, Siqueira escreveu uma canção intitulada
Debussy (Figuras 1a e 1b), para voz e piano, conforme registrado no Catálogo de Obras de José Siqueira
(1980), compilado pelo Ministério das Relações Exteriores. Embora tenha sido composta sobre letra do
poema honimo de Manuel Bandeira, verificamos que a canção apresenta similaridade quanto ao gestual
melódico de La fille aux cheveux de lin oitava peça do livro de Prelúdios de Claude Debussy (Figuras 1c e
1d). Assim, consideramos que Siqueira buscou captar elementos da música do compositor francês no
processo de elaboração da obra em questão.
Figura 1a Excerto da canção Debussy, de José Siqueira
Fonte: Arquivo pessoal do violoncelista Raïff Dantas Barreto
Figura 1b Link via QR CODE da gravação de Debussy, de José Siqueira
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=BED80QbAzJU
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Silva, Marcelo Moreno da; Aquino, Felipe Avellar de. “José Siqueira e Mstislav Rostropovich: um encontro possível”.
Figura 1c Trecho de La fille aux cheveux de lin, de Claude Debussy
Fonte: https://s9.imslp.org/files/imglnks/usimg/0/0c/IMSLP521885-PMLP2394-Debussy_Claude-
Pr%C3%A9ludes_1er_Livre_Durand_7687_scan.pdf
Figura 1d Link via QR CODE da obra La fille aux cheveux de lin, de Claude Debussy
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=KYLjHziapRs
Tacuchian (2022) reafirma a liderança da França como importante polo cultural no século XX, cuja influência
extrapolava as fronteiras da Europa. Ao mesmo tempo, Siqueira considerava a relevância musical francesa,
a ponto de ter estudado musicologia na Universidade de Sorbonne (Vieira 2005, 26). Desta forma, Siqueira
passou a empregar procedimentos composicionais como o uso de intervalos quartais, escalas pentatônicas,
além do emprego de escalas modais em sua obra (Santos 2016, 07). Contudo, o compositor manteve
inspiração nas expressões culturais do Nordeste do Brasil, mesclando estes elementos a fim de criar uma
sonoridade característica e própria. A exemplo disso, no mesmo ano de 1949, compôs a Suíte Sertaneja para
Violoncelo e Piano, obra essencialmente regionalista e que traz fortes referências às manifestações culturais
citadas, sobretudo pela estruturação de um aboio e de um coco entre seus movimentos. O que evidencia a
presença de um dualismo na obra do paraibano, ao mesclar o elemento nacionalista com referências à
música europeia em sua produção.
Na obra Recitativo, Ária e Fuga (1972) para violoncelo e orquestra de cordas,
7
Santos (2016, 37) constata
gestual similar quanto ao contorno melódico apresentado pelo violoncelo solista, no início da Ária, e o tema
do segundo movimento do Concerto para Violino e Orquestra de Johannes Brahms (1822-1897) que é
apresentado inicialmente pelo oboé. Isto reforça a ideia do quanto Siqueira deixava-se influenciar pelas
importantes obras orquestrais que conhecia e costumava reger. Podemos constatar isso através do link de
QR CODE, na Figura 2a, contendo a gravação da Ária da referida obra de Siqueira pela Camerata Fukuda, sob
regência de Celso Antunes, com o violoncelista Fábio Presgrave (minutagem: 36’24’’); como também do link
7
Obra dedicada ao violoncelista Márcio Malard.
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Silva, Marcelo Moreno da; Aquino, Felipe Avellar de. “José Siqueira e Mstislav Rostropovich: um encontro possível”.
de QR CODE, na Figura 2b, da gravação da obra de Brahms pela Frankfurt Radio Symphony, com o maestro
Paavo Järvi e a violinista Hilary Hahn (minutagem: 24’10’’).
Figura 2a Link via QR CODE com a gravação do Recitativo, Ária e Fuga de José Siqueira
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=-Tp2gE_Qwi0
Figura 2b Link via QR CODE da gravação do Concerto para Violino e Orquestra, de Johannes Brahms
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=UFl9xuYP5T8&t=2284s
De fato, ainda em referência à canção Debussy, Siqueira não é o único compositor nacionalista brasileiro a
escrever obra que faz menção explícita a um compositor europeu. No mesmo ano de 1949, Heitor Villa-
Lobos (1887-1959) compôs, em Paris, a obra intitulada Hommage à Chopin (Figura 3) para piano solo. Na
qual demonstra a sua admiração à linguagem musical do compositor polonês, a partir da textura,
estruturação melódica, conteúdo harmônico e gestos musicais (Hoefs, 2020, 173-174).
Figura 3 Hommage à Chopin, de Villa-Lobos
Fonte: Editora Max Eschig, Paris, 1955
Na verdade, o próprio Villa-Lobos compôs suas Bachianas Brasileiras inspirado no contraponto de Johann
Sebastian Bach (1685-1750), aliado ao elemento nacionalista de sua obra (Aquino, 2021). Afinal, o emprego
de material de outro compositor não é objeto exclusivo da música de concerto do século XX.
Assim, de acordo com Mitschka (1961, 248, apud Cosgrove 1995, 27-28; Kendall 1941), no 1° movimento da
Sonata em Mi Menor para Violoncelo e Piano Op. 38, Johannes Brahms faz referência à Arte da Fuga de J. S.
Bach. Neste caso, Brahms utilizou o motivo do Contrapunctus 4 para compor os três primeiros compassos
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Silva, Marcelo Moreno da; Aquino, Felipe Avellar de. “José Siqueira e Mstislav Rostropovich: um encontro possível”.
de sua Sonata (Exemplo 7a). Da mesma forma, percebe-se um gestual similar, com relação ao contorno
rítmico e melódico, entre o Contrapunctus 13 de A Arte da Fuga de Bach e o motivo do sujeito da fuga que
abre o movimento da mesma Sonata de Brahms. Ambos possuem um intervalo descendente de oitava,
seguido de uma sequência ascendentes em tercinas, interpolado por semínimas ligadas à primeira colcheia
da quiáltera (Exemplo 7b).
Exemplo 7a Abertura da parte do violoncelo do 1º movimento da Sonata em Mi Menor para Violoncelo e Piano de Brahms e motivo do
Contrapunctus 4 de A Arte da Fuga de Bach
Fonte: Cosgrove 1995, 28
Exemplo 7b Motivo da parte do violoncelo do 3º movimento da Sonata em Mi Menor para Violoncelo e Piano de Brahms e motivo do
Contrapunctus 13 de A Arte da Fuga de Bach
Fonte: Autores.
Ainda na mesma Sonata, nos comps. 53-54 do 3º movimento, constatamos referência aos primeiros
compassos do Prelúdio da Suíte em Sol Maior para Violoncelo Solo, BWV 1007 de Bach, com a devida
alteração rítmica. Desta forma, verificamos similaridade no gestual musical (Exemplos 8a e 8b) com relação
à sequência de arpejos. Benjamin Britten, por sua vez, também se inspira na mesma Suíte de Bach para
compor a Barcarola, quarto movimento da Terceira Suíte para Violoncelo Solo op. 87 (Exemplo 8c) obra
referenciada por Siqueira em sua Sonata.
Exemplo 8a Comps. 53-56 da parte do violoncelo do 3º movimento da Sonata em Mi Menor para Violoncelo e Piano, op. 38 de J. Brahms
Fonte: G. Schirmer, 1921
Exemplo 8b Comps. 1-4 do Prelúdio da Suíte em Sol Maior para Violoncelo Solo, BWV 1007 de Bach
Fonte: Edição Pierre Fournier. International Music Company, 1972
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Silva, Marcelo Moreno da; Aquino, Felipe Avellar de. “José Siqueira e Mstislav Rostropovich: um encontro possível”.
Exemplo 8c Comps. 1-4 do Lento da Terceira Suíte para Violoncelo de Benjamin Britten
Fonte: Editora Faber Music
Desta forma, é evidente que a utilização de referenciais composicionais vem a ser uma prática consciente
ao longo da história da música. No caso de Siqueira, o emprego de referências da música europeia ocidental
concomitante ao emprego de elementos e temas das manifestações culturais do Nordeste brasileiro resulta
em obras com forte dualismo composicional. Este aspecto também está visivelmente presente na Sonata
em estudo, que pode ser observado a partir da divisão dos movimentos e suas respectivas marcas de
expressão. Nos dois primeiros movimentos I. Introdução; e II. Allegro , Siqueira não emprega
explicitamente as sonoridades inspiradas nas manifestações culturais, demonstrando a criatividade do
compositor através do Sistema Trimodal. os dois últimos movimentos III. Aboio; e IV. Samba de
Engrenagem , além da aplicação deste sistema composicional, verificam-se aspectos da cultura do Nordeste
brasileiro, explícitos não apenas nos títulos dos movimentos, mas, sobretudo, no material musical
empregado. Tacuchian (2022) confirma este dualismo nas composições de Siqueira, com a presença de
títulos e indicações de movimentos a exemplo do Aboio, Coco, Canto de Cego, dentre outros. Entretanto,
segundo o entrevistado, o compositor conduz suas ideias musicais a partir de uma técnica de escrita
europeia, e para instrumentos europeus como o violoncelo; com vistas à música de concerto. Ademais,
Tacuchian ressalta o aspecto de obras de Siqueira que muito bem “poderiam ter sido compostas por um
compositor europeu [...] e outras obras que só poderiam ser compostas por um compositor do Nordeste”
do Brasil (Tacuchian, 2022). Desta forma, afirma Tacuchian:
O conceito de sonata é uma espécie de dualidade [...]. Eu até costumo falar que o que
caracteriza a sonata é o drama [...]. O drama é introduzido através do contraste [...]. O
primeiro tema da exposição geralmente é muito rítmico e o segundo tema é mais melódico.
Essa diferença de caráter cria um drama [...]. O conceito de sonata foi evoluindo. Hoje não
está mais ligado àquela coisa de exposição, desenvolvimento e reexposição, mas, na
realidade, é um dualismo, é uma luta entre ideias opostas [...]. Assim como Mendelssohn,
que escreveu Canções sem Palavras, que são pequenas peças de caráter lírico e romântico,
eu diria que a sonata é um teatro sem palavras [...]. E a dramaticidade você consegue
através de contraste de ideias. Então, deve ser o caso dessa sonata. O primeiro movimento
Siqueira possivelmente resolveu carimbar a Sonata com um carácter dramático [...].
Depois, os outros movimentos ele coloca coisa da tradição folclórica. (Tacuchian 2022).
Apesar de Tacuchian não ter tido contato com a Sonata em questão, apenas através de seu conhecimento
sobre a música de Siqueira, conseguiu captar elementos importantes da obra. No caso, o dualismo estrutural
entre movimentos e temas. De fato, na Breve Análise, trecho que faz parte da partitura manuscrita da
Sonata, o próprio Siqueira aponta este contraste, ao destacar que o Tema A possui caráter rítmico, enquanto
o Tema B possui caráter melódico (Siqueira 1972, 22), o que vai ao encontro da afirmativa de Tacuchian.
Interessante ressaltar que, na década de 1970, Siqueira escrevia obras em que não se inspirava
expressamente nas manifestações regionais, aspecto que o compositor chamava de Nacionalismo Essencial
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Silva, Marcelo Moreno da; Aquino, Felipe Avellar de. “José Siqueira e Mstislav Rostropovich: um encontro possível”.
(Siqueira, 1981a). Obviamente, neste período, os elementos da cultura brasileira estariam enraizados em
sua prática composicional. Assim, em 1972, Siqueira compõe o mencionado Recitativo, Ária e Fuga para
Violoncelo e Orquestra de Câmara, obra que possui características neoclássicas aliada ao emprego das
escalas modais (Santos, 2013). Outra produção que se distancia da influência da música nordestina e que
também utiliza escalas modais é o Concertino para Violoncelo e Orquestra (1971). Por outro lado, a Sonata
objeto deste estudo, escrita no mesmo período composicional, faz claras referências às expressões culturais
do Nordeste, conforme visto, com a presença de um aboio e de um samba, além do emprego de escalas
modais e sonoridades nordestinas. O que demonstra que Siqueira possuía uma facilidade em compor,
simultaneamente, obras de estilos e origens contrastantes. Seja baseado em estéticas europeias, como
também nas manifestações culturais brasileiras.
5. Considerações finais
José Siqueira deixa em sua obra um importante registro da cultura de nosso país, cujas características
certamente devem ser estudadas e preservadas. Notamos, na II Sonata, um considerável conhecimento do
compositor sobre as manifestações culturais do Nordeste, associado a uma técnica composicional refinada
e própria do compositor. Assim, podemos constatar que Siqueira também se utilizava de fontes consistentes,
ao fazer referência a obras de importantes compositores do século XX, resultando em obras relevantes para
a expansão da literatura musical brasileira. Como é o caso da presente Sonata, através da qual Siqueira tem
a intensão de homenagear o maior violoncelista do século XX. No entanto, a despeito de empregar
sonoridades brittenianas, o compositor não perde a sua individualidade enquanto artista, sendo capaz de
unir elementos da música de concerto europeia com as expressões populares de seu país natal. Aspecto
através do qual deixou importante contribuição ao movimento modernista brasileiro.
A partir desta pesquisa, passamos a compreender que seria complexo encapsular JoSiqueira em meras
fases composicionais, que o compositor apresenta pluralidade e flexibilidade em suas obras para
violoncelo. Ou seja, Siqueira demonstra facilidade para escrever em estilos distintos, quase que
simultaneamente. O que vai ao encontro do pensamento expresso por Tacuchian (2022), em relação ao
dualismo presente na obra do compositor, conforme apontado neste artigo. Desta forma, uma mera divisão
em fases composicionais não seria suficientemente capaz de explicar como obras de estilos tão distintos
foram compostas em um mesmo período cronológico. Ademais, Tacuchian, ao realizar uma comparação
entre Siqueira e Villa-Lobos, afirma que ambos os compositores podem ser considerados nacionalistas,
entretanto, suas estéticas composicionais são completamente distintas. Assim, buscamos aqui uma
compreensão da música de Siqueira de forma mais aprofundada, ao levar em conta os aspectos mais amplos,
como também a individualidade do processo criativo do compositor.
A pesquisa documental e as entrevistas realizadas, até o momento, não comprovam se Britten e Siqueira se
encontraram em algum momento de suas trajetórias, nem qual foi o aprofundamento da relação entre
Siqueira e Rostropovich. Entretanto, as duas obras aqui abordadas apontam que os ideais destas duas
mentes criativas, de fato, se entrelaçaram. Podendo, em uma suposta reunião, estar presente a figura
catalisadora de Mstislav Rostropovich. Devemos considerar que a década de 1970, período de composição
da II Sonata de Siqueira e da Terceira Suíte de Britten, foi marcada pelo ápice da Guerra Fria, ocasião em que
dados documentais da extinta União Soviética, como atas de reuniões e encontros oficiais, por exemplo,
eram tratados como confidenciais. Ao mesmo tempo, esta época também foi marcada pelo período mais
crítico da ditadura militar no Brasil, que tratava qualquer um que demonstrasse interesse pela cultura
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Silva, Marcelo Moreno da; Aquino, Felipe Avellar de. “José Siqueira e Mstislav Rostropovich: um encontro possível”.
soviética como inimigo da nação brasileira. O que acabou levando Siqueira a ser aposentado
compulsoriamente pela ditadura, numa tentativa em vão de calar o artista paraibano.
Da mesma forma que Benjamin Britten empregou quatro temas russos para homenagear Rostropovich em
sua Terceira Suíte, concluímos que os aspectos musicais contidos na II Sonata indicam que Siqueira se utilizou
de artifícios presentes na obra de Britten para violoncelo como uma forma de reverenciar este mesmo
músico. Sem, no entanto, se distanciar do regionalismo musical brasileiro como elemento característico de
sua obra, de maneira que é fascinante visualizar como ele foi capaz de traçar este paralelo com Britten, sem,
no entanto, se afastar de suas próprias raízes.
Certamente, a localização de futuros documentos e registros poderão esclarecer como se deu a relação
musical entre Siqueira e Rostropovich. Da mesma forma, qual foi a efetiva participação de Benjamin Britten,
que resultou na apontada influência na construção da Sonata objeto deste estudo. Outrossim, acreditamos
que estamos diante de uma das mais relevantes sonatas brasileiras para esta formação, conforme outras
performances da obra poderão também demonstrar.
6. Referências
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Ivashkin, Alexander, e Oehrlein, Josef. 1997. Rostrospektive zum Leben und Werk von Mstislav
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Malard, Marcio. 2022. Entrevista concedida a Marcelo Moreno. Videoconferência. Rio de Janeiro.
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Silva, Marcelo Moreno da; Aquino, Felipe Avellar de. “José Siqueira e Mstislav Rostropovich: um encontro possível”.
Migliavacca, Ariede Maria. 1980. Compositores Brasileiros: Catálogo de Obras. Série Compositores: José
Siqueira. Ministério das Relações Exteriores: Departamento de Cooperação Cultural, Científica e
Tecnológica.
Mstislav Rostropovich Foundation. 2021. [Mensagem pessoal]. Mensagem recebida por Marcelo Moreno.
Peixoto, Fabio Silva. 2021. “José Siqueira and the Concertino for Violin and Chamber Orchestra (1972)
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Dissertação de doutorado. Boston: College of Fine Arts, Boston University.
Pyke, Cameron. 2011. “Benjamin Britten’s creative relationship with Russia”. Tese de doutorado. Londres:
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