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eISSN 2317-6377
Imitação/evocação de sons da Natureza e o Catálogo de Imitações
de Flausino Valle: uma análise sob a Semiologia Tripartite Musical
Imitation/evocation of sounds of Nature and the imitation catalog by Flausino
Valle: an analysis under the Tripartite Musical Semiology
Leonardo Vieira Feichas
1
leonardofeichas@hotmail.com
Letícia Porto Ribeiro
2
1
Universidade Federal do Acre, Centro de Educação, Letras e Artes, Rio Branco, Acre, Brasil
2
Universidade Federal do Acre, Proex, Rio Branco, Acre, Brasil
ARTIGO CIENTÍFICO
Editor de Seção: Fernandp Chaib
Editor de Layout: Fernando Chaib
Licença: "CC by 4.0"
Data de submissão: 15 mar 2024
Data final de aprovação: 20 mai 2024
Data de publicação: 31 mai 2024
DOI: https://doi.org/10.35699/2317-6377.2024.51651
RESUMO: Neste artigo, focaremos em um dos aspectos que julgamos passível de interpretações em relação ao compositor
Flausino Valle (1894-1954), que seria o referente à sua linguagem musical, mais especificamente em características
onomatopaicas contidas nos Prelúdios. Essas características aparecem ora de forma evidente, como no título, ora de uma forma
menos explícita. Com isso, nosso objetivo foi analisar os Prelúdios sob o viés da Semiologia Tripartite Musical de Molino/Nattiez
com o apoio adicional da ideia dos “espaços associados” como entendido por Dominique Maingueneau. Como resultado,
chegamos à conclusão de que em alguns dos Prelúdios certas evocações exigem um conhecimento a respeito de Valle e/ou de seu
“Catálogo de Imitão de Vozes da Natureza” e um estudo mais detido para serem identificadas, pois não são evidentes. Chegamos
também à conclusão que, analisando dessa forma, as referências a outros instrumentos, mais especificamente a viola caipira,
podem ser considerados recorrentes.
PALAVRAS-CHAVE: Música; Flausino Valle; violino; Semiologia tripartite; Espaços associados.
ABSTRACT: In this article we will focus on one of the aspects that we deem open to interpretation regarding the composer Flausino
Valle (1894-1954), which would be referring to its musical language, more specifically in onomatopoeic characteristics contained
in the Preludes. These characteristics appear sometimes in an obvious way, as in the title, sometimes in a less explicit way. With
this, our objective was to analyze the Preludes under the bias of Molino/Nattiez's Tripartite Musical Semiology with the additional
support of the idea of the “associated spaces” by Dominique Maingueneau. As a result, we came to the conclusion that in some
of the Preludes certain evocations require knowledge about Valle and/or his “Catálogo de Imitação de Vozes da Natureza”
(“Catalog of Imitation of Voices of Nature”) and a closer study to be identified, as they are not evident. We also came to the
conclusion that, analyzing in this way, references to other instruments, more specifically the viola caipira, can be considered
recurrent.
KEYWORDS: Music; Flausino Valle; violin; Tripartite semiology; Associated spaces.
Per Musi | Belo Horizonte | v.25| General Topics | e242515| 2024
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Feichas, Leonardo Vieira; Ribeiro, Letícia Porto.
Imitação/evocação de sons da Natureza e o Catálogo de Imitações de Flausino Valle: uma análise sob a Semiologia Tripartite Musical
1. Introdução
O acesso a materiais escritos e manuscritos no acervo de Flausino Valle suscitou uma vasta gama de
questionamentos, possibilidades e interpretações que apresentamos neste trabalho. Para exemplificar um
desses documentos, elencamos o “Catálogo de Imitações de Vozes da Natureza” (CIVN) de Valle como uma
fonte fundamental para iniciar esta discussão e demonstrar sua importância na obra do compositor. Trata-
se de um catálogo manuscrito, no qual o compositor transcreve para o pentagrama a maneira como entende
as imitações/evocações dos sons ambientes ao seu redor. Nele, Valle escreve na partitura como executar ao
violino sons de animais como gato, seriema e galinha, ações como batuque, além de objetos como o carro
de boi e a porteira da fazenda.
Em adição ao que é exposto no CIVN, o conhecimento acerca da biografia do compositor, de sua infância no
interior mineiro e sua convivência com a viola caipira e os costumes rurais de Minas Gerais são importantes
para se ter um entendimento mais aprofundado da sua obra musical. Com relação a isso, percebemos como
uma série de textos que podemos relacionar à ideia de “espaços associados” (Maingueneau 2018) podem
auxiliar na explicação de como Valle se via como compositor e como pertencente/não pertencente ao campo
da composição musical.
Propomos aqui uma análise Imitação/evocação de sons da Natureza tendo como base teórica os conceitos
da “Semiologia Tripartite Musicalde Jean-Jacques Nattiez, com o auxílio de pesquisas a respeito de técnicas
expandidas e da Hibridização de Técnica Instrumental (HTI).
Analisaremos os seguintes Prelúdios:
Prelúdio 1
Prelúdio 5
Prelúdio 7
Prelúdio 8
Prelúdio 11
Prelúdio 12
Prelúdio 14
Prelúdio 15
Prelúdio 17
Prelúdio 18
Prelúdio 20
Prelúdio 24
Prelúdio 25
2. A Semiologia Tripartite de Análise Musical
Jean-Jacques Nattiez (1945-) desenvolveu, a partir da semiologia tripartite de Jean Molino, uma Semiologia
Musical. Para ele,
é possível, do ponto de vista do receptor, atribuir um sentido, e até mesmo mais de um,
aos enunciados produzidos. O sentido de um texto, ou mais exatamente, a constelação de
suas significações possíveis, não é, portanto, a transmissão por um emissor de uma
mensagem que seria em seguida decodificada por um ‘receptor’, e sim a atribuição
construtiva e esta palavra é capital de uma rede de interpretantes a uma mesma forma:
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Imitação/evocação de sons da Natureza e o Catálogo de Imitações de Flausino Valle: uma análise sob a Semiologia Tripartite Musical
por um emissor; por um ou vários ‘receptores’, ou pelos dois, não havendo, porém,
garantia de que as redes de interpretantes serão as mesmas a montante ou a jusante do
texto (Nattiez 2002, 14-15, grifos do autor).
Para Nattiez, portanto, uma mesma escrita musical pode ter múltiplas significações múltiplos sentidos,
sendo que a mensagem é construída tanto pelo artista/compositor quanto pelo público, não havendo
garantia alguma que a mensagem que o compositor quis passar será interpretada tal e qual pelo(s)
receptor(es).
Nattiez explica que, na Análise Tripartite, a forma simbólica é constituída por três níveis:
a) A dimensão poiética que, mesmo sem significação intencional, tem seu processo criador passível de
ser descrito ou reconstruído e cujas significações pertencem ao universo do emissor.
b) A dimensão estésica, que se constitui pelo processo pelos quais os receptores constroem a
significação da mensagem, via uma rede de significações;
c) O nível neutro, ao qual Nattiez se refere como “imanente” ou material”, que é a forma física da
forma simbólica, o “aspecto de um vestígio acessível à observação” (Nattiez 2002, 15. Grifo do autor). Sem
esse nível, as significações não poderiam existir, mesmo que ele em si mesmo não seja portador de
“significações imediatamente inteligíveis” (Nattiez 2002, 16). Um aspecto da importância da análise do nível
neutro se dá, afirma o autor, para evitar que o musicólogo acabe tendo sua percepção confundida com a
percepção natural de um ouvinte. Trata-se, também de uma análise descritiva, diferentemente da poiética,
que é interpretativa.
Enquanto a análise poiética e a análise estésica buscam os processos e os interpreta, a análise de nível neutro
descreve formas e estruturas mais ou menos regulares, como afirma Nattiez (2002). O autor, então propõe
seis configurações e seis situações analíticas (Figura 1).
Na análise de nível neutro (a) apenas as questões imanentes da obra são analisadas, ou seja, somente sua
estrutura, embora Nattiez afirme que há controvérsias, entre os estudiosos, na ação de separar a análise de
nível neutro das outras análises.
Na análise ‘poiética indutiva’ (b) induz-se (como o próprio nome revela) o que o compositor tenha podido
querer comunicar, devido a procedimentos recorrentes, exemplifica Nattiez. a análise ‘poiética externa’
(d) recorre a elementos que estão fora da obra em questão (no caso, nesta obra nos referimos aos diários,
livros, entrevistas com o filho de Valle) para interpretar as estruturas poiéticas. Nattiez ressalta que as
análises indutiva e externa dialogam entre si.
A análise ‘estésica indutiva’ (c) busca, por meio das referências da obra, construir hipóteses sobre como ela
é percebida, e a análise ‘estésica externa’ (e) colhe dos ouvintes informações para essa construção
1
. em
(f) o analista considera que a análise imanente, ou seja, a análise do nível neutro, é importante para os outros
dois tipos.
1
O artigo de Feichas e Silva (2015) intitulado Relations between title and musical discourse: preliminary
results of a study on music appreciation, trata-se de um exemplo de análise ‘estésica externa’ com resultados
preliminares.
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Figura 1: Configurações e situações analíticas de Nattiez. Referência: material dos autores com base em Nattiez (2002, 19)
Na presente análise, não separaremos de forma rigorosa os níveis sugeridos por Nattiez, mas nos
apoiaremos nessas divisões e nos referiremos a cada nível específico quando necessário. De pronto, já é
possível estabelecer que Valle, por meio do “Catálogo de imitação de vozes da natureza”, bem como por
meio dos títulos e dedicatórias de suas obras, estabelece algumas ferramentas para a interpretação de seus
efeitos. Ou seja, o compositor forneceu elementos para uma análise ‘poiética externa’ (catálogos) e ‘poiética
indutiva’ (dedicatórias).
3. As onomatopeias e as técnicas expandidas em Valle
Antes de iniciar as análises, cabe explanar um pouco a respeito da abordagem que realizamos das
onomatopeias. A característica onomatopaica da obra de Valle é gerada pelas combinações de várias
técnicas que, agrupadas, mostram-se originais por parte do compositor, que apresenta soluções
imaginativas com a junção das chamadas técnicas expandidas.
Tokeshi (2003, 53) define o contexto de técnica expandida (extended technique) como aquela que “abrange,
em seu significado, os recursos técnicos que não fazem parte do que usualmente se denomina técnica
tradicional do instrumento, isto é, o conjunto de recursos técnicos estabelecidos até o fim do século XIX”.
Assim, para a autora, dentro do âmbito desta técnica estão incluídos: tocar com pressão excessiva da crina
na corda; bem como recursos tradicionais como harmônicos, pizzicati ou vibrato quando usados de forma
não convencional. A mesma autora explica que as técnicas expandidas são, hoje, largamente utilizadas:
O violino, apesar de ser um instrumento convencional, fortemente ligado às tradições, teve
suas possibilidades técnicas experimentadas por vários compositores, que acabaram por
revelar, assim, recursos tímbricos e de dinâmicas até então pouco explorados. Essa nova
gama de meios passou a ser ampla e fortemente usada, a ponto de se tornar uma
idiossincrasia da música contemporânea. (Tokeshi 2003, 53)
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Esse enriquecimento ocorrido no idioma do instrumento resultou em novas possibilidades técnicas, como a
hibridização da técnica instrumental, que abordaremos mais adiante neste artigo. A questão da notação
também é abordada por Tokeshi como sendo objeto de diversas possibilidades de interpretação (mesmo
quando se trata de uma notação clara) e isso ocorre de forma ainda mais acentuada quando o compositor
cria novas formas de notação:
Outra dificuldade comum associada a performance em música contemporânea surge
quando compositores criam novas formas de notação, nem sempre acompanhadas de
bulas explicativas. Diante dessas situações, o violinista é impelido a participar, de certa
forma, do processo criativo da obra, sendo obrigado a tomar decisões baseadas em
critérios pessoais de coerência. (Tokeshi 2003, 53)
Dessa forma, cada instrumentista pode ter interpretações diferentes de uma mesma obra e de uma mesma
notação musical, o necessariamente coincidindo com o que o compositor possa ter pensado
originalmente.
Copetti e Tokeshi (2005, 319) propõem um estudo que pretende classificar e investigar a ocorrência de
técnicas expandidas em obras de compositores brasileiros a partir de 1950. As pesquisadoras citam alguns
exemplos das técnicas expandidas encontradas por elas: “[...] o recurso de produzir sons percussivos no
tampo do violino, de tocar com pouca pressão nos dedos da mão esquerda ou ainda mexer nas cravelhas
enquanto se fricciona as cordas com o arco”, além de recursos tradicionais do violino “como o sul ponticello,
harmônicos (naturais e artificiais), vibrato e glissando, quando utilizados de forma não tradicional”. Outras
técnicas elencadas pelas autoras estão: sul ponticello, sul tasto, glissando, harmônico, vibrato, variação de
pressão de arco, pizzicato Bartók, trinado trêmolo, ¼ de tom, col legno, percussão com o dedo na IV corda,
percussão no tampo do violino, bater com o arco sobre as cordas. As pesquisadoras também abordam a
questão da escrita musical:
Outro aspecto com o qual o instrumentista se depara é o fato de o sistema de notação
musical desses recursos, que ainda não estão padronizados, e a criação de novas formas
de notação darem margem a várias possibilidades de execução de um mesmo recurso
técnico. O instrumentista, assim, é obrigado a optar por uma entre duas ou mais
possibilidades em seu caminho de construção de uma interpretação da obra. A falta de
preparo dos msicos nessa área e a ausência de convenções na notação de certos efeitos
são fatores que podem dificultar a preparação de composições como as estudadas.
(Copetti e Tokeshi 2005, 320-321)
A notação, portanto, pode requisitar a pesquisa e criatividade do intérprete para buscar possibilidades
interpretativas. Como Tokeshi afirma no artigo “Técnica Expandida para Violino e as Variações Opcionais de
Guerra Peixe: reflexão sobre parmetros para interpretação musical”, a notação simples abre margem
para diversas interpretações diferentes por parte do músico e, quando o compositor busca inovar ou utilizar
recursos que “ainda não estão padronizados”, essa questão é potencializada.
Dentro dos conceitos das Técnicas Expandidas, essa combinação de técnicas existentes é definida por
Vasconcellos (2013, 41) como Hibridização da Técnica Instrumental (HTI), que traz diversos planejamentos
extras como a “realização espacial do gesto”, “realização temporal do gesto”, “planejamento espaço-
tempo”:
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Imitação/evocação de sons da Natureza e o Catálogo de Imitações de Flausino Valle: uma análise sob a Semiologia Tripartite Musical
Processo de transformação na evolução das técnicas instrumentais, caracterizando-se pela
mistura de duas técnicas distintas, resultando numa única técnica que guarda
características daquelas que a originaram. Temos que:
A hibridização de duas ou mais técnicas instrumentais implica na aplicação combinada
de tais técnicas num determinado espaço e num determinado tempo.
• À realização corpórea dos gestos em um determinado gesto numa determinada parte de
um instrumento denominaremos: realização espacial do gesto.
À realização de determinadas técnicas por um determinado tempo chamamos de
realização temporal do gesto.
A realização e o planejamento espaço-tempo no emprego integrado de diferentes
recursos técnicos em processo de hibridização. Portanto, a principal condição para que os
elementos se hibridizem é sua realização combinada e integrada na performance. Essa
realização hibridizada implica em fluência e domínio do espaço-tempo
A HTI, que no caso das obras de Valle apresenta-se para gerar imitações/evocações em uma performance
situada, leva o intérprete a pensar a transmissão do conteúdo musical com outros recursos, como por
exemplo um Gesto Físico que reforce determinada ideia. A esse respeito, Madeira (2017, 14) define “o gesto
corporal como qualquer movimento corporal, realizado consciente ou inconscientemente, que porta
significado, atribuído pelo transmissor ou receptor.” E a seguir completa a ideia (Madeira 2017, 14):
É importante destacar que um dado movimento pode ser considerado como sem
significado para um indivíduo em uma ocasião, mas o mesmo movimento pode ter
significado para o mesmo indivíduo em uma segunda ocasião. Para sua caracterização, o
gesto exige que pelo menos um indivíduo, em uma determinada situação, reconheça o
movimento como portador de significado.
Neste artigo, o gesto físico é encarado partindo desse recorte da HTI, aplicado de forma especial aos
momentos de evocação/imitação. Isso é feito para deixar evidente a hibridização, quando ela acontece, bem
como para ressaltar as características peculiares presentes em cada composição.
4. Os Espaços Associados na obra de Flausino Valle
Achamos interessante associarmos à obra de Valle a noção de “espaços associados”, conceito utilizado pelo
analista de discurso Dominique Maingueneau (2018) em relação à literatura, mas que acreditamos ser
aplicável para a obra de Valle, ainda mais porque este se dedicou também à tarefa de escritor. Em poucas
palavras, os espaços associados seriam aqueles nos quais o autor busca criar uma memória em relação à sua
obra (que, também de maneira simplificada, seria constituída pelo espaço canônico), constituindo-se em
textos como prefácios, dedicatórias, diários, entrevistas, entre outros. Assim, explica Maingueneau, “a
fronteira entre o interior e o exterior da obra ‘canônica’ não é definida de antemão, mas negociada a cada
obra” (Maingueneau 2018, 143).
Nesse sentido, haveria a dimensão chamada de figuração, ligada, grosso modo, à obra em si, e a dimensão
chamada de regulação, por meio da qual o autor “confere um estatuo às unidades que constituem a Opus
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(Mainguenau 2018, 143). Assim, o espaço associado e o espaço canônico atuam em planos diferentes,
embora sejam indissociáveis. Dessa forma, percebemos como “espaços associados” as dedicatórias, os
diários e também os comentários de Flausino Valle presentes em seu livro de poemas, Calidoscópio (1923),
nos quais, por diversas vezes, ele comenta sobre como percebe a arte da composição como algo além de
suas capacidades. Por exemplo, no Antelóquio, uma espécie de prefácio para o livro, Valle comenta:
Não cabe aqui mostrar o quanto a música paira acima de todas as artes, portanto, da poesia
e da linguagem; se não, eu tentaria provar que só ela é capaz de expressar o verdadeiro
sentimento; bem como de provocar estados d’alma nunca sentidos, e que, sem ela, não
seriam ao menos jamais sonhados. Porém, visto demandar a poesia muito menos aptidão
e estudo que a música, e como circunstâncias espaciais inibiram-me de estudar a parte
científica desta arte, imprescindível para ser-se um bom compositor, escrevo versos já que
me falece competência para produzir músicas. Entretanto, não deixo de aninhar no íntimo
uma tênue esperança de, talvez no ocaso da vida, poder modular os sons agora mal
articulados por mim, que retenho na métrica, às vezes claudicante, e enfeixa nas rimas, às
vezes absonas, destes meus desataviados versos. (Valle 1923, 03-04)
Nesse texto, portanto, o autor deixa uma memória de seu real desejo, tornar-se compositor, algo que não
faz por acreditar não possui o estudo necessário, não deixando de revelar a esperança de que isso fosse
possível com o passar dos anos, ao final de sua vida. Mais adiante, no mesmo livro, ao explicar o que chama
de “sonetos harmônicos”, que seriam constituídos pelos poemas A Tropa e A Cigarra, Valle mais uma vez
revela seu desejo de tornar-se compositor: “Mas eis que eu, um modesto rabequista destas paragens,
quando sinto o desejo de produzir uma música, como as vicissitudes da sorte não me permitiram estudasse
a parte científica desta arte, vejo-me obrigado a abordar audaciosamente a poesia” (Valle 1923, 28). É
interessante apontar que, antes mesmo da publicação de Calidoscópio, Valle escreveria seu primeiro
prelúdio, Batuque (1922).
Com esses escritos, percebemos que Valle se colocava em um local de certa forma “à margem” como
compositor por não ter os estudos que considerava necessários. No entanto, ainda assim, passou a se
dedicar a essa arte, e revelou o desejo de que fosse adotada em Conservatórios como estudos de técnica:
Quanto aos meus PRELÚDIOS continuo burilando-os. São 26. Meu máximo ideal é
conseguir sua publicação (...). Tenho certeza que o editor não perderá em nada; pois serão
procurados por todos os virtuoses e, certamente, serão adotados nos conservatórios como
estudos de técnica moderna sendo, ao mesmo tempo, concertantes. (Frésca 2008, 151,
destaques no original)
Talvez exatamente por sentir que não possuía o estudo “científico”, como ele mesmo definiu, Valle tenha
optado por se dedicar a temáticas próprias em seus prelúdios, bem como à associação de técnicas que
constituem hoje o que chamamos de HTI (Vasconcellos 2013).
A seguir, analisaremos efeitos evocativos/imitativos presentes na obra de Valle a partir da proposta
semiológica de Nattiez.
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5. Análise da imitação/evocação em Valle a partir da Semiologia de Nattiez
Para iniciar essa discussão, julgamos que cabe aqui apontar uma diferenciação entre os termos “imitar” e
“evocar” quando aplicado na obra de Valle. Segundo o dicionário Aurélio Ferreira (2010):
Imitar: 1. Reproduzir à semelhança de; copiar. 2. Ter por modelo ou norma. 3. Tentar
reproduzir a maneira, o estilo de. 4. Falsificar; contrafazer. 5. Ter falsa aparência”. (Ferreira
2010, 410)
Evocar: 1. Chamar de algum lugar. 2.Clamar por (almas do outro mundo, demônios),
mediante exorcismos ou invocações. 3. Trazer à lembrança. (Ferreira 2010, 327)
A partir dessas definições entenderemos que toda imitação na obra de Valle é uma evocação, mas que nem
toda evocação é, necessariamente, uma imitação. Chamaremos de imitação itens que aparecem no
“Catálogo de Imitações de Vozes da Natureza”, bem como alguns casos nos quais Valle imita a viola caipira
(quando utiliza a técnica a la guitarra), os outros serão tratados como evocação. No caso do Catálogo, seriam
apenas quatro imitações: porteira da fazenda, carro de boi, tambor e seriema.
A partir dessa diferenciação perguntas iniciais poderiam ser: por que imitar? Seria para ser didático? Seria
influência de alguns compositores contemporâneos? Ou seria para expressar saudades do passado, de sua
infância e juventude na cidade de Barbacena?
Todas essas possibilidades são factíveis. Valle concebeu os Prelúdios com objetivos didáticos, como
evidenciado na citação que colocamos acima e é perceptível uma linguagem musical de fácil entendimento
que se complementa com a característica imitativa/evocativa, que pode eventualmente constituir atrativo
para o estudo (Feichas 2016). a possibilidade de a imitação ter sido feita para adotar um estilo nacionalista
singular, que descreve sensações e que pode se relacionar com compositores de sua época que também o
fizeram, como Heitor Villa-Lobos (1887-1959) os ngaros Zoltán Kodály (1882-1967) e Béla Bartók (1881-
1945), o português Fernando Lopes-Graça (1906-1994), o tcheco Leoš Janáček (1854-1928), os franceses
Edgar Varèse (1883-1965) e Claude-Achille Debussy (1862-1918), entre outros.
Embora Valle nunca tenha saído do Brasil, e levando em consideração a maior dificuldade de conseguir
informações advindas do exterior naquela época, sua agenda demonstra seu envolvimento com questões
relacionadas ao conhecimento musical
2
. Nela, constam diversas anotações relacionadas à teoria musical,
história da música e formas musicais
3
, instrumentos musicais
4
, de compositores desde o barroco até seus
contemporâneos europeus
5
e brasileiros.
Por meio do Catálogo de Imitações de Vozes da Natureza percebe-se a importância que Valle dava a esses
aspectos, já que se deu ao trabalho de criar esse catálogo e algumas vezes utiliza as imitações ali presentes
nos Prelúdios. O Catálogo apresenta a representação gráfica em pentagrama de vários pássaros, carro de
2
Fala a respeito de intervalos, neumas, melismas, ponto de diminuição, ligadura, intervalos, sustenido.
3
Cantochão, Kyrie; 31 de janeiro de 1942: o primeiro a fazer sons hamônicos no violino. Modovile em 1739.
4
Biva: instrumento musical japonês de 4 cordas (12 de janeiro); história do metrônomo (14 de janeiro),
Aulo (flauta dos Gregos dia 16 de janeiro); tamborino, Khatsotsrath.
5
Malipieiro, Giovanni Casinni, Schoenberg; Rameau; Debussy, entre outros.
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Feichas, Leonardo Vieira; Ribeiro, Letícia Porto.
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boi, porteira da fazenda etc. Nota-se que nas imitações de sons de objetos de natureza inanimadas como a
porteira da fazenda, o tambor e carro de boi, Valle descreve por escrito (uma bula) como realizar a imitação.
Figura 2: Representação do Carro de Boi. Referência: edição do autor
Figura 3: Bula do Carro de Boi. Referência: edição do autor
Figura 4: Figura da Representação do Tambor e sua respectiva bula. Referência: edição do autor
A única exceção de bula explicando a execução de natureza animada acontece na imitação do pássaro
Seriema, porém sem a riqueza de detalhes nas indicações de imitações dos objetos de natureza inanimados,
como timbre específico, local correto de execução, maneira de colocar e tirar o arco:
Figura 5: Representação da seriema e sua bula. Referência: edição do autor
6. Análises
6.1. Prelúdio I - Batuque
O Preldio “Batuque” constitui um exemplo sui generis tanto na obra de Valle, como no repertório para
violino, pois ele descreve uma dança em suas várias seções. A descrição de Mário de Andrade (1989) do
batuque parece se encaixar com as seções do Prelúdio (Introdução, seção A e seção A'). Andrade afirma que
o batuque possui uma introdução (baixão), executada pelo violeiro, seguido por duas seções (que podemos
identificar como A e A’):
Formando o círculo, segundo uma descrição que temos presente, saltam para o meio dele
dois ou três pares, homens e mulheres e começa a diversão. A dança consiste num
bambolear sereno do corpo, acompanhado de um pequeno movimento dos pés, da cabeça
e dos braços. Esses movimentos aceleram-se, conforme a música se torna mais viva e
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Feichas, Leonardo Vieira; Ribeiro, Letícia Porto.
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arrebatada e em breve se admira um prodigioso saracotear de quadris que chega parecer
impossível poder-se executar sem que fiquem deslocados os que a eles se entregam.
(Andrade 1989, 53-54)
Os primeiros compassos do Prelúdio coincidem com a introdução. O primeiro momento consiste na seção A
e o segundo, A’, com o prestíssimo acompanhado pelos pizzicati de mão esquerda e ricochets. Portanto, a
partir de um ponto de vista poiético, é possível induzir que toda a obra descreve a dança, restando a essa
análise específica buscar analisar as intenções e percepções prováveis em pequenos trechos. É provável que
Valle ele próprio conhecesse o batuque, pois é autor do livro Elementos do Folk-lore Musical Brasileiro
(1936), no qual descreve diversas manifestações musicais brasileiras.
O primeiro momento da obra consiste na evocação da viola caipira como introdução do ritual batuque: a
evocação da viola é percebida não só pelo pizzicato, mas também pelo intervalo de sexta (re-si e si-sol bem
como dó-lá e ré-si.).
Figura 6: evocação da viola caipira como introdução do ritual batuque. Referência: Feichas, 2023
Mesmo com a utilização do arco, podemos inferir que Valle propunha continuar evocando a viola, dado os
intervalos de terça que se seguem:
Figura 7: figuras em semicolcheias que evocam os tambores. Referência: Feichas, 2023
O accelerando - Valle indica o prestíssimo na partitura - coincide com o movimento da dança da umbigada
6
descrita por Mário Andrade. Intervalos de terça mantêm a evocação da viola caipira, bem como os pizzicati
de mão esquerda. Ainda, pode-se considerar, sob o ponto de vista poiético, que as figuras em semicolcheias
evocam os tambores, dado o caráter percussivo do trecho, enfatizado pelos acentos (Figura 8).
Do ponto de vista de uma análise estésica, dado que na atualidade não familiaridade da maioria das
pessoas com as danças do batuque ou da umbigada, não se pode dizer que o público compreenderia as
evocações presentes na música, com exceção da evocação da viola caipira no início do Prelúdio. Talvez
pareça mais que a música acabe exemplificando ou explicando para o público em que consiste o batuque (já
6
“Pancada com o umbigo nas danças de roda, como um convite intimatório para substituir o dançarino
solista, tem a maior documentação para dizer-se de origem africana. (...) Freire registra-o em um batuque
em Minas Gerais em 1815: “Dançadores formam, e ao compasso de uma guitarra (viola), move-se o dançador
no centro, avança e bate na barriga de outro na roda, de ordinário pessoa de outro sexo” (Cascudo 2012,
705-706).
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que é o título do prelúdio) do que evocar o ritual por si só. Por isso entendemos também que o conceito da
Ancoragem Semântica Criativa (ASC)
7
se faz necessária em um momento de recital.
Figura 8: figuras em semicolcheias que evocam os tambores. Referência: Feichas, 2023
6.2. Prelúdio V Tico-Tico
Poieticamente pode-se perceber que o Prelúdio Tico-Tico carrega caraterística de evocação e de imitação.
No trabalho de Abreu (2015, 100) foi indicado que o movimento das arcadas arpejadas sobre as cordas
evoca o bater de asas do pássaro:
Esse Prelúdio provavelmente foi nomeado Tico-Tico em referência à imagem do
movimento feito pelo braço direito quando os acordes arpejados em ricochete são
realizados (que remete a um bater de asas) e ao resultado sonoro desse movimento. Dessa
forma, concluímos que Valle poderia ter dado ao prelúdio o nome de outros pássaros, mas
preferiu homenagear o tico-tico, e confirma essa escolha ao inserir, no fim da peça, um
trecho que imita o canto do pássaro. [...] A textura sonora dos acordes arpejados sobre
todas as cordas do instrumento sugerem o som do ar sendo chicoteado pelas asas de um
pássaro ou de vários pássaros em revoada. Ao mesmo tempo, a melodia expressa nas notas
mais agudas (quarta semicolcheia do primeiro e terceiro tempos e a primeira semicolcheia
do segundo e quarto tempos) sugere o som de pios e canto de pássaros perdidos em meio
ao ruído do rápido movimento do voo das aves.
Figura 9: O rápido movimento em fusas do trecho que sugere o “bater de asas” de um pássaro. Referência: Feichas, 2023
Podemos inferir, do ponto de vista poiético dessa forma (dado que os arpejos representam o voar e os
harmônicos o canto), que os pizzicati representem, como uma possível interpretação, o pouso e os passos
do tico-tico em solo. Estesicamente, acreditamos que, tendo o conhecimento do título, o público possa
7
Sobre a Ancoragem Semântica Criativa ver: https://proa.ua.pt/index.php/jdmi/article/view/3720
(Keller, Messina, Silva e Feichas 2020); https://direct.mit.edu/leon/article-
abstract/51/2/195/46425/Ecocompositional-and-Performative-Strategies-for?redirectedFrom=fulltext
(Keller e Feichas 2017). Acesso em 26 jan. 2023.
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inferir que os harmônicos representem o canto, e, talvez que os arpejos representem o voo, especialmente
se conhecerem o título da obra.
Figura 10: Imitação do tico-tico em harmônicos atificiais (compasso 27). Fonte: Feichas, 2023
Em relação aos espaços associados, cabe destacar que esse prelúdio é dedicado à Marcos Salles (1885-1965),
contemporâneo de Valle e também violinista e compositor. Jerzy Milewski, no encarte do álbum Prelúdios
Característicos e Concertantes para Violino Solo (1999), afirma que Salles era famoso por encontrar soluções
para problemas de arco dos violinistas. Essa dedicatória, portanto, carrega estreita relação com o conteúdo
do prelúdio, ele próprio um estudo de arcada.
6.3. Prelúdio VII - Sonhando
Poeticamente, tendo o conhecimento da familiaridade de Flausino Valle em relação a viola caipira e
analisando a partitura, podemos constatar que nesse prelúdio Valle tem, de fato, a intenção de imitar esse
instrumento: não o Prelúdio é tocado todo a la guitarra, como instruções de como tocá-lo (polegar,
dedo médio etc.) e intervalos de sexta, não só nas cordas duplas como também nos arpejos (Figura 11):
Figura 11: Prelúdio Sonhando, a imitação da viola caipira através da técnica a la guitarra e seus dedilhados específicos (ao lado do título).
Referência: Feichas, 2023
Do ponto de vista estésico indutivo, é difícil afirmar que o público identificaria uma imitação de viola caipira
nesse Prelúdio sem uma orientação a esse respeito pelo intérprete. O público pode simplesmente achar que
o fato de o violino ser tocado a la guitarra pode ser uma escolha do compositor, sem qualquer outra
intenção. Por outro lado, alguém com conhecimento acerca da técnica do violão ou da viola caipira poderia
muito bem identificar tal intenção.
Em relação à dedicatória, Leônidas Autuori foi um compositor e maestro paulista, ligado ao movimento
modernista, que viveu em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, onde faleceu. O dicionário Cravo Albin
da Msica Popular Brasileira registra que “segundo o Boletim da Sbacem, por ocasião da sua morte, ‘era um
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dos mais competentes musicistas da nossa terra e que atuou sempre com grande brilho nas emissoras de
rádio e televisão, regendo orquestras, criando orquestras e compondo msicas do mais fino gosto ’”
8
.
6.4. Prelúdio VIII Repente
o Preldio “Repente” talvez seja mais autoexplicativo para grande parte do pblico. Poieticamente,
sabemos que Valle conhecia a tradição dos repentistas, dado que o descreve em seu livro a respeito do
Folclore Musical (Valle 1978, 87-88):
O desafio vem a ser um diálogo, cantado, em que dois poetas se digladiam, fazendo
perguntas enigmáticas ou contando valentia de parte à parte; no primeiro caso, termina
quando um deles não acha saída para a última rima difícil, provocando hilaridade na
assistência; no segundo, a coisa vai se esquentando, até que entra a família no meio dos
versos, e o mais certo é acabar com cacetadas: a lapina brilha no ar, e os tiros das garruchas
substituem as últimas rimas.
A versalhada é sempre acompanhada à viola. E o último verso de cada quadra serve de
início à seguinte. Quem quiser uma farta colheita deles, basta ler Os cantadores, de
Leonardo Mota.
Entre uma estrofe e outra, os cantadores ficam temperando a viola numa espécie de
harpejado, o que tempo para o preparo da resposta. Este pequenino trecho de música
intermediário é denominado rojão ou baião.
No Brasil, ambos os cantores têm as violas afinadas no mesmo tom em que cantam; nem
parece possível fosse de outra maneira. Pois com real espanto meu, observei em assistindo
a fita Rancho Grande, que no México, embora a música seja a mesma, cada violão dos dois
cantores está numa tonalidade; percebe-se perfeitamente, porque cada cantador, antes
de começar, fere o seu tom, cujo lugar, no braço do violão, é o mesmo em ambos.
Presumo que a razão desse fato está em não forçar a tessitura da voz de cada um, a qual
pode ser muito diversa; e como não tocam juntos, isto não traz inconveniente algum.
Aqui, o que há, entendemos que haja uma evocação, e não uma imitação, já que não é pedido na partitura
que o violino seja tocado a la guitarra. A viola é evocada pelos intervalos de sextas recorrentes (Figura12):
Figura 12: evocação da viola caipira através dos intervalos de sextas recorrentes. Referência: Feichas, 2023
8
Disponível em: https://dicionariompb.com.br/artista/leonidas-autuori/. Acesso em 14 mar. 2024
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Imitação/evocação de sons da Natureza e o Catálogo de Imitações de Flausino Valle: uma análise sob a Semiologia Tripartite Musical
Podemos inferir que na mudança de tonalidade a mudança de violeiros, e no ralentando um violeiro passa
o desafio para o outro. A troca de vozes, posteriormente, é dada sem o ralentando, mas com uma alternância
entre voz aguda e voz grave, a cada dois compassos até a “finalização” pelos dois violeiros (agudo e grave)
ao final(Figura 13):
Figura 13: Referência aos violeiros e à alternância de vozes entre eles. Referência: Feichas, 2023
Novamente, embora a partir da análise poiética parecerem evidentes (quando o instrumentista/analista
tenha conhecimento dos repentes), é possível que os receptores identifiquem ou não a batalha entre os
repentistas. Sob a análise estésica indutiva, a partir da audição, é possível que identifiquem a evocação da
viola, principalmente a partir do título da obra.
Sobre os espaços associados, a dedicatória é ao maestro e violinista Torquato Amore, figura importante no
cenário musical paulista e que, dentre outros, foi professor da violinista Altea Alimonda
9
. Amore foi, ainda,
violinista spalla da PRAR
10
.
6.5. Casamento na Roça
O Prelúdio Casamento na Roça, assim como Batuque, faz referência a um evento tradicional e inclui
elementos de evocação. Em um casamento na ra, como afirma Moraes Filho (2002, 21-29), vários
instrumentos e momentos diferentes da festa:
Errante de vila em vila, de cidade em cidade, de província em província, em busca de nossas
tradições que se extinguem, sem um reflexo se quer na história nacional, os casamentos
na roça ressaltam à descrição de nossa pena, tão originais nos parecem as suas peripécias
e os seus detalhes, como quadros da vida brasileira no interior. [...] A rabeca e a flauta
tocavam, o reboliço era geral, notando-se instantes mais tarde a ausência da mãe da noiva,
que desaparecera no tumulto. [...] E no salão a flauta e a rabeca tocavam, dando sinal para
a primeira quadrilha. [...] Findas as primeiras quadrilhas, as primeiras valsas, o elemento
nacional e dominante o chiba campeava absoluto, lânguido, peneirado, buliçoso, como
a volúpia das nossas noites mornas e estreladas. [...] E cansados os dançadores, ofegantes
as bailarinas, descansavam um pouco, iam tomar café e refrescos, ficando a mesa posta e
constantemente renovada para os que quisessem servir-se. De repente a desafinada
rabeca anunciava fanhosa outra valsa e o bródio prosseguia ainda. No terreiro, os escravos
batucavam, quebravam na chula e cantavam suas trovas. [...] Um casamento na roça era,
9
http://www.musicosalimonda.com.br/?page_id=558. Acesso em 14 de mar. de 2024
10
Conforme indicado em https://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=720216&pagfis=94.
Aceso em 14 de mar. de 2024.
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Imitação/evocação de sons da Natureza e o Catálogo de Imitações de Flausino Valle: uma análise sob a Semiologia Tripartite Musical
com poucas variantes, o que fica descrito; e essas festas, que entravam sempre pela
noite adiante, duravam por dias, na plenitude da abastança e da felicidade. (grifos nossos)
Poieticamente, podemos inferir, não por Valle ser estudioso do folclore, como também por ser o
casamento na roça comum no início do século XX, que o compositor era familiarizado com a festa. Aqui
também, como em Batuque, uma chamada que evoca a viola com intervalos de sextas e terças, com a
diferença que o arco também participa da intervenção, talvez com o intuito de mostrar que instrumentos
diferentes são evocados nessa seção (Figura 14):
Figura 14: Evocação da viola caipira através dos intervalos de sextas e terças e pizzicati. Referência: Feichas, 2016
Em seguida (Figura15), vários pizzicati, também com indicações de quais dedos devem ser utilizados,
propõem uma evocação da viola caipira.
Figura 15: Evocação da viola caipira. Referência: Feichas, 2016
Após a introdução, o violino toca com o arco em intervalos de terças pode ser que represente a viola caipira
ou mesmo instrumentos tocando em conjunto (como flauta e rabeca), dado que Valle indica na partitura
dinâmica forte e fortíssima (Figura 16).
Figura 16: Possibilidade de evocação da viola caipira ou de vários instrumentos tocando juntos, em dinâmica forte e fortíssima
Referência: Feichas, 2016
Os momentos dançantes da festa são evocados pelos constantes golpes de arco jétés, que também podem
ser indicativos pela animação trazida pela bebedeira que Moraes (2002) indica ocorrer em tais festas (Figura
17).
Figura 17: Indicação de arcos jeté evocam momentos dançantes. Referência: Feichas, 2016
A dinâmica indicando piano e as instruções da tastiera indicam que a festa está acabando (Figura 18):
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Figura 18: possível fim da festa com a indicação de tastieira. Referência: Feichas, 2016
A partir de uma análise estésica indutiva, acreditamos que, exceto o caráter festivo identificado no título, as
evocações não são evidentes para o público.
Nicolino Milano (1876-1962), a quem este prelúdio é dedicado, foi um violinista natural de Lorena (SP) e
chegou a ser msico da corte portuguesa “onde foi muito prestigiado pelo Rei D. Carlos, que o presenteou
com um precioso violino e o nomeou instrumentista da Real Câmara. Compôs muito para orquestras e teve
grande sucesso nesta área”, como afirma o Dicionário Cravo Albin de Msica Brasileira.
6.6. Prelúdio XII Canto da Inhuma
O canto da inhuma é algo familiar aos violeiros, sendo que o próprio Valle (1978) indica ter feito uma
transcrição da música:
E só o violeiro é capaz de executar, com impecável maestria, a belíssima toada, tão comum
entre eles: o canto da inhuma, em que arremedam ora o macho, ora a fêmea, ora o casal
dessa irrequieta ave, que anda em bandos, cujo canto é tão interessante (Valle 1978, 09)
Pode-se inferir, portanto que há uma dupla evocação, a do violeiro e a da inhuma. O violino, no caso “imita
uma imitação”, e, devido a esse fato, talvez seja um dos preldios mais complexos de serem analisados
poeticamente. Aqui (Figura 19), novamente, uma introdução tocada alla guitarra com imitação da viola
caipira, com os intervalos em sextas.
Figura 19: imitação da viola caipira através da técnica alla guitarra e intervalos de terças e sextas. Referência: Feichas, 2023
em posição normal e com arco, o pizzicato de mão esquerda estabelece uma evocação do violão enquanto
no pentagrama superior a evocação do violeiro/aves as cordas duplas talvez representem o momento
em que as aves cantam em casal. A voz de baixo em cordas soltas é feita de forma que essas notas adquiram
uma boa ressonância (Figura20):
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Imitação/evocação de sons da Natureza e o Catálogo de Imitações de Flausino Valle: uma análise sob a Semiologia Tripartite Musical
Figura 20: evocação da viola caipira no pentagrama inferior e evocação de aves ou violeiros no pentagrama superior
Referência: Feichas, 2023.
O uso de harmônicos evidencia ainda mais a evocação das aves (Figura 21):
Figura 21: uso dos harmônicos para possivelmente evocar a ave. Referências: Feichas, 2023.
No final, os pizzicati passam para o pentagrama de cima, com a evocação da viola caipira, com os harmônicos
que representam o canto das aves/violeiro sendo representados no pentagrama de baixo (Figura 22).
Apesar de considerarmos que a imitação da viola caipira na introdução deste Prelúdio poderia ser
considerada evidente sob o ponto de vista da análise estésica indutiva, bem como do canto dos pássaros, a
interpretação mais aprofundada das mensagens contidas no prelúdio serão entendidas caso o público
tenha familiaridade com a cultura violeira.
Figura 22: harmônicos evocando a ave e/ou violeiros e os acordes do pentagrama superior evocando a viola caipira.
Referências: Feichas, 2023
O prelúdio é dedicado ao célebre violinista e professor Oscar Borgeth, nascido no Rio de Janeiro, que se
tornaria professor da Escola Nacional de Música dessa cidade.
6.7. Prelúdio XIV - A Porteira da fazenda
Consideramos que “A Porteira da fazenda” constitui um Preldio de imitação: tanto de elementos
extramusicais a porteira quanto de instrumentos a viola caipira, inclusive com o “batuque de viola”
(Feichas 2016). Poieticamente, é previsível, dado o título e a bula escrita por Valle, que o início e o fim do
Prelúdio tenham sido escritos com a intenção de imitar o som de uma porteira abrindo e fechando.
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A evocação da viola caipira se inicia logo em seguida à imitação da porteira da fazenda. Além de ela ser
evidente pelos acordes e pelo conhecimento de que se trata do batuque de viola, acaba sendo reforçada
pela descoberta de que Valle tocava violino com acompanhamento do seu avô no violão, como apontado no
poema presente no livro Calidoscópio, Em face do Atade”: “quanta serenata aqui fizemos, / Em noites
estrelladas, noites lindas, / Ou mais poeticamente, em plenilunios!/ Em que eu chorava no violino amado,/
E então vós, no violão, me acompanhaveis!(Valle 1923, 22) e, principalmente, pela faixa no disco gravado
por Valle
11
.
Figura 23: Intervalos de sextas que evidenciam a imitação da viola caipira. Referência: Feichas, 2023
Figura 24: Ritmo de 'batuque de viola'. Referência: Feichas. 2023
Sob uma análise estésica, acreditamos que a imitação da viola caipira pode ser identificada por maior parte
do público, dada a própria sonoridade estabelecida nos trechos alla guitarra, embora, como afirme o próprio
Nattiez, a interpretação do blico pode ser diferente em cada caso, principalmente se o receptor nunca
ouviu a viola caipira em um momento anterior. Já a abertura e fechamento da Porteira, como identificamos
em uma pesquisa anterior (Feichas e GOMES, 2015), é possível de ser identificado pelo público.
Esse prelúdio é dedicado ao compositor e maestro brasileiro Heitor Villa-Lobos.
6.8. Prelúdio XV Ao Pé da Fogueira
Esse prelúdio se trata de uma dança em terças e sextas (Figuras 25 e 26). Dado a presença desses intervalos
e do final em pizzicati, talvez Valle pensasse, também aqui, em evocar uma viola caipira. Os ritmos evocam
uma dança
12
:
Figura 25: ritmos sincopados evocando uma dança. Referências: Feichas. 2023
Figura 26: Uso de terças. Referência: Feichas, 2023
11
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-4RW8RI1doA. Acesso em 15 de mar. de 2024.
12
Neste masterclass realizado pelo violinista Jascha Heifetz, na minutagem 38’’ ele explica a maneira de se
realizar o spiccato, mais leve e seco para representar uma dança brasileira.
https://www.youtube.com/watch?v=8mLwnSBuYko&t=5s, acesso em 20/01/2023
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O baixo em corda ré na seção seguinte (Figuras 27, 28 e 29) também pode ser uma evidência da evocação
da viola, bem como a parte final que realiza trocas entre notas naturais e harmônicas talvez representando
dois instrumentos diferentes e a finalização em pizzicati:
Figura 27: Baixos na corda ré. Referência: Feichas, 2023
Figura 28: Trocas entre notas naturais e harmônicas. Referência: Feichas, 2023
Sob o ponto de vista estésico, acreditamos não ser possível, na maioria dos casos, identificar as evocações
estabelecidas nesse prelúdio, a não ser que haja uma explicação anterior por parte do intérprete.
Figura 29: Trecho final em pizzicati. Referência: Feichas, 2023
A dedicatória deste prelúdio é ao compositor, pianista, regente e professor Agnelo França (1875-1964),
nascido em Valença (Rio de Janeiro). Segundo o dicionário Cravo Albin, foi professor de Villa-Lobos, Walter
Burle Marx e Radamés Gnatalli.
6.9. Prelúdio XVII Viola Destemida
Em “Viola Destemida” a evocação de um desafio de violeiros, evento presenciado por Valle ao
testemunhar uma catira
13
, que ele descreve em seu livro Elementos do Folk-lore Musical Brasileiro.
trechos que Valle propõe duas opções, sendo o pentagrama inferior a ser realizado em pizzicato somente:
Figura 30: A introdução com trocas entre arco e pizzicato representa as palmas e sapateados da catira. Referência: Feichas, 2023
Com a preparação de uma pausa, o primeiro violeiro se apresenta, principalmente em intervalos de terças
(Figura31).
13
Cascudo (2012) define a Catira como Cateretê, dança do sul do Brasil e presente em São Paulo, Rio de
Janeiro e Minas Gerais. Entre as variações descritas pelo autor a partir de diversos estudiosos, há elementos
de sapateado, palmeado e canto de moda de viola.
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Figura 31: Evocação da viola com predominância dos intervalos de terça. Referência: Feichas, 2023
Ao que o segundo violeiro responde, em cordas duplas em intervalos de sextas (Figura 32).
Figura 32: O dedilhar dos arpejos e acordes da viola representando o ‘rasqueado’. Referência: Feichas, 2023
Sob o ponto de vista a análise estésica indutiva, acreditamos que, com o auxílio do título, é possível que o
público identifique grande parte das evocações estabelecidas por Valle em um plano mais geral, mas não
necessariamente as técnicas específicas referenciadas pelo compositor, pois, mesmo nessas, foi necessária
uma análise mais detida sob o ponto de vista poiético.
O Prelúdio é dedicado ao violinista americano Ruggiero Ricci (1918-2012), conhecido especialmente por suas
interpretações de Paganini
14
.
6.10. Prelúdio XVIII Pai João
Esse prelúdio também se encaixa como um prelúdio descritivo e contém várias imitações e evocações:
evocação de fogos de artifícios, imitações de tambores, evocação de viola caipira e uma melodia
acompanhada por batuque.
Pai João, como afirma Milewski (1985), é uma entidade querida dos cultos afro-brasileiros. Ela é presente
também na umbanda. Pode-se inferir que daí vem a imitação dos tambores tão presentes neste prelúdio
(Figura 33).
Figura 33: Imitação de tambores na introdução de Pai João. Referência: Feichas, 2023
14
https://www.britannica.com/biography/Ruggiero-Ricci. Acesso em: 14 de mar. de 2024.
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A melodia pode tanto evocar instrumentos como os cantos que homenageiam Pai João, em terças, em sextas
e em harmônicos (Figuras 34 e 35).
Figura 34: Melodia em intervalos de terça e em harmônicos artificiais. Referência: Feichas, 2023
Figura 35: Melodia em sextas. Referência: Feichas, 2023
Uma descida da melodia em tons e semitons talvez represente a incorporação de Pai João, dado que é a
única parte em que aparece esse tipo de melodia, inteiramente na IV corda, seguida por melodia
acompanhada por batuque, talvez representando canto com tambores (Figuras 36 e 37).
Figura 36: Melodia realizada na IV corda. Referência: Feichas, 2023
Figura 37: Melodia acompanhada por batuque. Referência: Feichas, 2023
Até recentemente pensávamos no glissando seguido de Batuque como uma suposta evocação de fogos de
artifícios, o que havia sido elucidada pelo filho de Valle, Guatemóc (durante uma visita que ocorreu quando
da pesquisa de mestrado), e que ocorre no início da seção A (Figura 38).
Figura 38: Incorporação de um espírito, com batida no tampo (xx) representando o tambor. Referência: Feichas, 2023
Ela ocorre novamente, aparentemente, no final do prelúdio, sendo que há, diferentemente da primeira vez,
uma indicação de “imitando o tambor” onde haveria supostamente o ruído do estourar dos fogos. O que é
mais provável, em ambos os momentos, é que o efeito se refira à manifestação do espírito no meio do
ritual, a incorporação e no final, sua “despedida”, e que Guatemóc tenha se confundido pelo fato de Valle
ter talvez mostrado para ele o mesmo efeito dizendo que eram fogos de artifício, pois a semelhança
sonora.
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Com a leitura de Elementos do Folk-lore Brasileiro, quando Valle conta sua experiência em uma incorporação
de Pai Matheus, pode-se concluir que o efeito se trata, no meio, da incorporação de um espírito, e no final,
de sua desincorporação:
Como se vê, o espírito de um negro, Pae Matheus, é que accorria. Vou transcrever um
outro trecho captado por mim, e que é sempre assobiado por um determinado medium,
em estado de transe, quando recebe o espírito que se diz de um africano fallecido há dois
seculos (dois cem anno, conforme diz elle proprio). O espírito chega assobiando, repetindo
várias vezes o trecho seguinte, e despede-se da mesma forma, assobiando, de u' a maneira
especial, baixinho, como si fosse a bocca chiusi, mas nitidamente. (Valle 1936, 103-104)
Figura 39: Espírito em “despedida” de ritual de umbanda (Pai João) seguido de imitação de tambor. Referência: Feichas, 2023.
Apesar de, sob o ponto de vista estésico, a imitação do tambor ser evidente, acreditamos que a mensagem
do Prelúdio pode não ser óbvia para o público em sua inteireza (pois mesmo rias informações, como
evidencia a narrativa, foram aceitas por certo tempo sem questionamentos), sendo que também se trata de
um Prelúdio que requer uma explicação por parte do intérprete para ser mais plenamente compreendido.
Esse prelúdio é dedicado ao célebre compositor lituano, Jascha Heifetz (1901-1987), o mesmo que gravou o
prelúdio Ao Pé da Fogueira.
6.11. Prelúdio XX- Tirana Riograndense
Trata-se de um prelúdio que também evoca uma festa, com momentos de dança e de sapateados (Feichas
2016). Valle escreve que fez uso de um tema de Renato Almeida para a composição desse Prelúdio. As
batidas das esporas são representadas pelos pizzicati de mão esquerda (Figuras 40 e 41):
Figura 40: Dança de sapateado com batida de esporas (pizzicato de mão esquerda). Referência: Feichas, 2023
Figura 41: Melodia alternada com sapateado Referência: Feichas, 2023
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Imitação/evocação de sons da Natureza e o Catálogo de Imitações de Flausino Valle: uma análise sob a Semiologia Tripartite Musical
Novamente, do ponto de vista estésico, é possível que o público perceba se tratar de uma dança com
elementos percussivos, mas, sem familiaridade com a dança tirana, a explicação dos elementos é necessária
para que se atinja um melhor entendimento.
Esse Prelúdio é dedicado ao musicólogo Renato Almeida. Feichas (2016) identifica que Valle citou Renato
Almeida ao descrever a dança tirana no livro Elementos do Folclore Musical Brasileiro (1978), sendo que os
momentos identificados da dança no livro coincidem com os momentos do Prelúdio. Portanto, identificamos
aqui características similares ao espaço associado do Prelúdio Tico-tico, ou seja, uma ligação do conteúdo
do prelúdio a quem ele é dedicado.
6.12. Prelúdio XXIV - Viva São João
Mais um preldio que representa uma festa, “Viva São João” faz evocação das violas com uso de sextas e
pizzicati. Podemos citar aqui que Valle tem uma seção que alterna entre cordas duplas tocadas com arco e
pizzicati (Figura 42).
Figura 42: alternância entre cordas duplas com arco e pizzicato. Referência: Feichas, 2023
Na verdade, o prelúdio tem alternâncias que sugerem que mais de um instrumento é representado, como
entre vozes agudas (em cordas duplas) e graves (em corda única) na seção seguinte, em um jogo de pergunta
e resposta que o violinista deve ter em mente ao executar o prelúdio (Figura 43):
Figura 43: alternância entre vozes agudas (em cordas duplas) e graves (em corda única) na seção seguinte, em um jogo de pergunta e
resposta. Referência: Feichas, 2023
A alternância entre cordas duplas com arco e pizzicato se repete, mas com uma variação que é o uso de
notas em harmônico dentro da alternância (Figura 44):
Figura 44: alternância entre cordas duplas com arco e pizzicato e harmônicos. Referência: Feichas, 2023
O prelúdio finaliza com a evocação da viola caipira tocada em acordes de pizzicato (Figura 45):
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Figura 45: evocação da viola caipira em acordes e pizzicato. Referência: Feichas, 2023
Valle dedica esse prelúdio ao violinista ucraniano, radicado nos Estados Unidos, Isaac Stern (1920-2001).
6.13. Prelúdio XXV - A Mocinha e o Papudo
Tanto a “mocinha”
15
quanto o “papudo”, neste preldio, se referem a pássaros. Infere-se que seja um
diálogo entre os dois personagens. Na seção A podemos induzir, ao executar o Prelúdio, que se trata de uma
evocação de viola, com as notas ré e sol acentuadas atuando como baixo. Essa imitação é evidenciada
também pelas terças e pelo pizzicato ao final (Figura 46):
Figura 46: evocação de viola, com as notas ré e sol acentuadas atuando como baixo, o que é evidenciada também pelas terças e pelo
pizzicato. Referência: Feichas, 2023
Em seguida, se inicia o diálogo, que se representa por uma alternância entre melodia e pizzicato, sendo que
estes se alternam entre as cordas duplas sol-ré e ré- (Figura 47):
Figura 47: Alternância entre melodia e pizzicato. Referência: Feichas, 2023
Em seguida, nova representação da Seção A e depois uma variação em oitava abaixo da melodia
intercalada com pizzicato, agora situado nas notas superiores (Figura 48):
Figura 48: Nova representação da Seção A com variação e pizzicato. Referência: Feichas, 2023
15
Informação disponível em: http://www.avespantanal.com.br/paginas/206.htm. Acesso em 20 de Janeiro
de 2023.
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E, após nova intervenção da seção A, a variação surge em oitavas, com os pizzicati em acordes cheios
16
Figura 49: Variação surge em oitavas com pizzicati em acordes. Referência: Feichas, 2023
A seção A retorna e o tema melódico tem variação com o uso de baixos em terças, quintas e sextas:
Figura 50: Retorno da seção A - variação de tema melódico. Referência: Feichas, 2023
É interessante perceber que o piano da seção A e dos pizzicati contrastam com o fortíssimo sempre pedido
pela melodia. O Prelúdio é dedicado ao violinista polonês Henryk Szeryng (1918-1988) e se pode supor que
foi escrito para um exercício, dadas as variações que são escritas sobre a melodia, em diferentes níveis de
dificuldade, ou, ainda mais provável, talvez seja uma brincadeira dedicada ao violinista. A estrutura simples
e as alternâncias na parte de pizzicato entre dominante e tônica reforçam essa ideia de divertimento.
Após essa análise geral das imitações/evocações identificadas nos Prelúdios, propomos catálogos que
complementam e sintetizam essa análise.
16
Após analisar Valle em diversos aspectos surge um questionamento: Esse acorde que aparece aqui em
pizzicato: SOL RE SI SOL, da IV corda para a I. Isso nos faz refletir se não seria uma “assinatura” dele?
Intencional ou não, é um acorde recorrente. Talvez pela sonoridade: duas notas em cordas soltas, as outras
duas bem na primeira posição com primeiro e segundo dedos: seria o acorde talvez mais sonoro ao violino.
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7. Catálogo com signos
7.1. Danças / festas / costumes:
Tabela 1: Danças, Festas e Costumes
1.DANÇAS, FESTAS E COSTUMES
Prelúdio I - Batuque
Dança
- Estrutura formal descreve a dança Batuque;
- Figura rítmica principal sincopada;
- Elemento percussivo na seção A’ que faz referência aos instrumentos de percussão de um batuque;
- A rusticidade de execução de um sautillé em três cordas com um pedal de IV corda.
Prelúdio XV Ao Pé da Fogueira
Dança
Dança em terças e sextas.
Prelúdio XX - Tirana Riograndense
Dança
Escrita sobre um tema do Renato de Almeida. Alternância de melodia com bater de esporas.
Prelúdio VIII - Repente
Repente (Desafio)
Repetição de “versos”, como “estrofes”, como em um duelo de repentistas (violeiros cantores).
Prelúdio XVI Viola Destemida
Repente (Desafio)
Evocação da viola caipira (não está no catálogo e está entre pausas, em relevo)
17
, de duas maneiras:
1) Introdução em Pizzicato
2) Arco Jeté com pizzicato pode ser uma referência aos acordes da viola.
Prelúdio XI Casamento na Roça
Festa
A estrutura formal descreve uma festa de casamento na roça. Início com uma introdução das violas
ponteando o instrumento (evocação entre pausas, em relevo) e depois começa um ritmo de dança
18
.
Prelúdio XVIII Pai João
Ritual
Descreve um ritual através de evocações e imitações. Tambor (imitação, entre pausas, em relevo),
incorporação de espírito (evocação entre pausas, em relevo)
Prelúdio XXIV Viva São João
Festa
Intervalos de sextas (provável característica de uso popular)
Prelúdio XIX Folguedo Campestre
Festa
Inteiramente em intervalos de sextas
7.2. Compositores
Tabela 2: Compositores
COMPOSITORES
Prelúdio VI - Sonhando
Brahms
Sugere um tema de Brahms (op.39, n.15)
Prelúdio XX - Tirana Riograndense
Renato de Almeida
Sobre um tema de Renato de Almeida.
Prelúdio III Devaneio
Canção “Escravos de Jó”
Identificação da canção folclórica “Escravos de Jó”, que remete a infncia.
17
A observação “evocação entre pausas, em relevo” por notar-se que de uma maneira geral, as imitações e
evocações aparecem com certo destaque, geralmente entre pausas. De imediato essa característica pode
provavelmente indicar o quanto o silêncio pode ser importante para evidenciar alguma intenção de Valle.
Essa característica nos remete ao estudo da teoria da retórica barroca e a utilização do silêncio como figura
retórica. Essa característica pode revelar um foco de aprofundamento de pesquisas futuras.
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Imitação/evocação de sons da Natureza e o Catálogo de Imitações de Flausino Valle: uma análise sob a Semiologia Tripartite Musical
7.3. Instrumentos Musicais
Tabela 3: Referências a instrumentos musicais
Instrumentos Musicais
Prelúdio XVIII Pai João
Tambor
Ritual através de evocações e imitações. Tambor (imitação entre pausas, em relevo)
e incorporação de espírito (evocação entre pausas, em relevo).
Prelúdio XVI Requiescat in Pace
Sinos
Evocação do badalar dos sinos da igreja.
Prelúdio I - Batuque
Viola caipira
Acordes aberto nos pizzicati iniciais que evocam a viola caipira (está entre pausas, em
relevo)
Prelúdio VIII - Repente
Viola caipira
Repetição em versos, como estrofes, como um duelo de repentistas (violeiros
cantores)
Prelúdio XVI Viola Destemida
Viola caipira
Evocação da viola caipira (evocação entre pausas, em relevo).
Duas maneiras de evocar:
Introdução em pizzicato
Arco Jeté com pizzicato pode ser uma referência aos acordes da viola.
Prelúdio XI Casamento na Roça
Viola caipira
Início com uma introdução das violas ponteando o instrumento (evocação entre
pausas, em relevo).
Prelúdio XII O canto da Inhuma
Viola caipira
Imitação da viola caipira no Alla Guitarra inicial (entre pausas, em relevo) e evocação
depois no ritmo e pizzicato realizando a harmonia
Prelúdio XIV A Porteira da Fazenda
Viola caipira
Alla guitarra e ritmo de batuque de viola imitando a viola caipira.
Prelúdio VI - Sonhando
Viola caipira
Todo Alla Guitarra (sem o auxílio do arco);
Único Prelúdio inteiramente sem o arco;
Evoca a viola caipira;
Prelúdio XXIV Viva São João
Canto por sextas
paralelas
Intervalos de sexta, provável característica de uso popular.
Prelúdio XIX Folguedo Campestre
Canto/outros
instrumentos/festa
Inteiramente em intervalos de sextas
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7.4. Gêneros musicais
Tabela 4: Referências a gêneros musicais
GÊNEROS MUSICAIS
Prelúdio XX Tirana Riograndense
Dança Tirana
(Açoriana)
Dança açoriana.
Prelúdio VI Marcha Fúnebre
Marcha Fúnebre
Andamento, fórmula de compasso binária que remete a uma caminhada. Não há
indicação de dinâmica e nem de tempo.
Prelúdio IX Rondó Doméstico
Rondó
Em fórmula de compasso binária que pode referir à marcha dos meninos nessa
brincadeira familiar.
19
Prelúdio XVI Requiescat in Pace
Liturgia, Requiem
Evocação de sinos; arpejos que lembram a frequência de sinos.
7.5. Natureza Animada Pássaros Regionais
Tabela 5: Referências a pássaros regionais
PÁSSAROS REGIONAIS
Prelúdio V Tico Tico
Tico Tico
Imitação do pássaro (está entre pausas, em revelo); o momento da execução do golpe de arco
Ricochet arpejado remete a batida de asa do pássaro;
Prelúdio XII O Canto da Inhuma
Inhuma
Intervalo descendente que remete ao canto (c.5, 6, 7, 13, 14, 15);
Imitação da viola caipira no Alla Guitarra inicial (entre pausas, em relevo) e depois evocação
no ritmo de pizzicato realizando a harmonia; Imitação do pássaro em harmônicos na coda final.
Prelúdio XXV A Mocinha e o Papudo
Mocinha
e Papudo
Sem informações
7.5. Natureza Inanimada (referências indiretas à natureza ou ao ambiente)
Tabela 6: Natureza inanimada
NATUREZA INANIMADA (REFERENCIA INDIRETA À NATUREZA)
Prelúdio XIV A Porteira da Fazenda
Porteira da
Fazenda
Imitação da Porteira da Fazenda (está no catálogo, está entre pausas, em relevo)
19
Informação verbal de Guatemoc Valle, filho de Flausino Valle.
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7.7. Sentimentos
Tabela 7: Referências a sentimentos / abstratos
4. SENTIMENTOS
Prelúdio II- Suspiro D’Alma
Amor?
Nenhum signo identificado
Prelúdio III- Devaneio
Infância
Identificação da canção folclórica Escravos de Jó, que remete a infância;
Prelúdio IV Brado Íntimo
Introspecção
O caráter de fantasia remete para um olhar interior
Prelúdio VII - Sonhando
Infância
Evoca a viola caipira e o tema de Brahms. Será que foi escutado na infância? Por que ele intitulou
com esse nome e é executado como viola?
Prelúdio X Interrogando o Destino
Dilema?
Desenhos rítmicos “decididos” em dinmica forte em contraste com desenhos harmônicos em
piano.
Prelúdio XIII Asas Inquietas
?
Em fórmula de compasso binária com ritmos téticos;
Prelúdio XXVI - Acalanto
Infância
Arpejos ascendentes e descendentes que dão a sensação de “ir” e “vir”, como ninar uma criança.
Prelúdio XXII Mocidade Eterna
Virtuosidade representando energia. Música pura?
Prelúdio XXIII Implorando
Música de caráter folclórica cantada pelo gondoleiro. Indicação de expressão (febril) aparece
nesse Prelúdio.
Prelúdio XVI Requiescat in Pace
Luto
Evocação do sino; Arpejos que lembram a frequência dos sinos.
7.7. Referência histórica / Nacionalismo
Tabela 8: Referências históricas ou nacionalismo
5) REFERÊNCIA HISTÓRICA/ NACIONALISMO
Prelúdio XXI Prelúdio da Vitória
II Guerra
Mundial
Cromatismos descendentes, arpejos ascendentes, oitavas. É um Prelúdio difícil tecnicamente.
8. Considerações finais
Podemos perceber, através das análises apresentadas, que muitos prelúdios de Valle evocam ou imitam a
viola caipira, e em menor quantidade, a outros instrumentos. Algumas dessas evocações/imitações são
evidentes para o intérprete em posse da partitura, devido aos títulos e à forma de escrita e às informações
colocadas nas partituras como anotações por Flausino Valle. Outras dessas referências são menos óbvias,
necessitando uma análise mais detida das técnicas apresentadas, bem como de outras leituras para o
entendimento das imitações e das referências extra-musicais trazidas por Valle, como no caso das festas e
de manifestações culturais específicas, como é o caso do Canto da Inhuma, por exemplo.
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Imitação/evocação de sons da Natureza e o Catálogo de Imitações de Flausino Valle: uma análise sob a Semiologia Tripartite Musical
Sendo muitas referências não evidentes para o intérprete, acreditamos serem, algumas vezes, ainda menos
para o público, dado que este não tem acesso, a priori, as partituras nem as anotações de Valle. Nesse
sentido, acreditamos que a Ancoragem Semântica Criativa é de grande utilidade para o maior entendimento
e compreensão das obras. Não queremos com isso afirmar, no entanto, que sua fruição não é possível sem
esse maior entendimento como já nos referimos no interior deste artigo, a linguagem de Valle é acessível
e seus Prelúdios são atraentes mesmo sem tais explicações. O que afirmamos é que, com a posse das
informações antes de ouvir os Prelúdios, as peças podem se tornar ainda mais interessantes para o público,
que será capaz de ligar as técnicas ouvidas/vistas às referências a ele apresentadas. Para além disso, será
também mais familiarizado com culturas outras e variadas que fazem parte do Brasil e que não
necessariamente são conhecidas por todos.
Percebemos, ademais, por alguns espaços associados de Valle, presentes em seu livro de poemas, que ele
se colocava como alguém que não era treinado o bastante para se dedicar à arte de compor no entanto,
em outros espaços, como na carta apontada por Frésca, tinha esperança de que fossem adotados em
Conservatórios de Música para o ensino de técnica instrumental. Talvez, portanto, Valle tenha se dedicado
a temáticas mais próximas de si e à exploração de técnicas expandidas ao violino por não ter o treinamento
que considerasse adequado para composição, encontrando seus pprios caminhos para se expressar
musicalmente. Ressaltamos que isso não significa que consideremos que Valle era um compositor de menor
mérito, trata-se apenas de uma possibilidade de uma visão que tinha (ou expunha ter) de si mesmo que
levantamos com base nos materiais deixados pelo autor que temos disponíveis. Também investigando os
espaços associados identificamos figuras nas dedicatórias que talvez representassem compositores,
maestros e músicos, especialmente violinistas, que eram admirados por Valle, na maioria das vezes somente
como uma homenagem, mas algumas vezes alguma relação com o conteúdo (como nos casos de Tico-Tico
e de Tirana Riograndense).
9. Referências
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Vasconcellos, Daniel Murray Santana. 2013. Técnica extendidas para violão: hibridização e parametrização
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