(Mainguenau 2018, 143). Assim, o espaço associado e o espaço canônico atuam em planos diferentes,
embora sejam indissociáveis. Dessa forma, percebemos como “espaços associados” as dedicatórias, os
diários e também os comentários de Flausino Valle presentes em seu livro de poemas, Calidoscópio (1923),
nos quais, por diversas vezes, ele comenta sobre como percebe a arte da composição como algo além de
suas capacidades. Por exemplo, no Antelóquio, uma espécie de prefácio para o livro, Valle comenta:
Não cabe aqui mostrar o quanto a música paira acima de todas as artes, portanto, da poesia
e da linguagem; se não, eu tentaria provar que só ela é capaz de expressar o verdadeiro
sentimento; bem como de provocar estados d’alma nunca sentidos, e que, sem ela, não
seriam ao menos jamais sonhados. Porém, visto demandar a poesia muito menos aptidão
e estudo que a música, e como circunstâncias espaciais inibiram-me de estudar a parte
científica desta arte, imprescindível para ser-se um bom compositor, escrevo versos já que
me falece competência para produzir músicas. Entretanto, não deixo de aninhar no íntimo
uma tênue esperança de, talvez no ocaso da vida, poder modular os sons agora mal
articulados por mim, que retenho na métrica, às vezes claudicante, e enfeixa nas rimas, às
vezes absonas, destes meus desataviados versos. (Valle 1923, 03-04)
Nesse texto, portanto, o autor deixa uma memória de seu real desejo, tornar-se compositor, algo que não
faz por acreditar não possui o estudo necessário, não deixando de revelar a esperança de que isso fosse
possível com o passar dos anos, ao final de sua vida. Mais adiante, no mesmo livro, ao explicar o que chama
de “sonetos harmônicos”, que seriam constituídos pelos poemas A Tropa e A Cigarra, Valle mais uma vez
revela seu desejo de tornar-se compositor: “Mas eis que eu, um modesto rabequista cá destas paragens,
quando sinto o desejo de produzir uma música, como as vicissitudes da sorte não me permitiram estudasse
a parte científica desta arte, vejo-me obrigado a abordar audaciosamente a poesia” (Valle 1923, 28). É
interessante apontar que, antes mesmo da publicação de Calidoscópio, Valle escreveria seu primeiro
prelúdio, Batuque (1922).
Com esses escritos, percebemos que Valle se colocava em um local de certa forma “à margem” como
compositor por não ter os estudos que considerava necessários. No entanto, ainda assim, passou a se
dedicar a essa arte, e revelou o desejo de que fosse adotada em Conservatórios como estudos de técnica:
Quanto aos meus PRELÚDIOS continuo burilando-os. São 26. Meu máximo ideal é
conseguir sua publicação (...). Tenho certeza que o editor não perderá em nada; pois serão
procurados por todos os virtuoses e, certamente, serão adotados nos conservatórios como
estudos de técnica moderna sendo, ao mesmo tempo, concertantes. (Frésca 2008, 151,
destaques no original)
Talvez exatamente por sentir que não possuía o estudo “científico”, como ele mesmo definiu, Valle tenha
optado por se dedicar a temáticas próprias em seus prelúdios, bem como à associação de técnicas que
constituem hoje o que chamamos de HTI (Vasconcellos 2013).
A seguir, analisaremos efeitos evocativos/imitativos presentes na obra de Valle a partir da proposta
semiológica de Nattiez.