1. Introdução
A compreensão do texto no canto erudito é tema de pesquisa na ópera e na canção de câmara. A relação
texto e música pode ser considerada o “cerne da realização da canção, tanto como expressão e como
técnica” (Picchi 2018, 29), e tem um papel importante como parte da valorização da língua cantada em
português, o que amplia a importância dada à questão da inteligibilidade.
O canto camerístico, tendo o texto poético como ponto de partida, iniciou-se no final do século XVIII com o
Lied, na Alemanha, e se manifestou em outros países europeus, a exemplo da Mélodie na França e das Art
songs na Inglaterra (Netto 2021). No Brasil, a canção de câmara com essas características – “composta a
partir de códigos próprios da tradição musical escrita, em interlocuções com a modinha, com a ópera italiana
e com as várias manifestações da cultura oral brasileira em suas vertentes folclóricas ou populares urbanas”
(Pádua 2009, 76) –, surgiu no final do século XIX. O compositor brasileiro Alberto Nepomuceno (1864-1920)
foi um dos precursores deste gênero e teve uma importante contribuição nesse processo, pois escreveu
várias canções utilizando poemas em português do Brasil (Mariz 2002). A partir daí, muitas gerações de
compositores se dedicaram às canções em língua portuguesa brasileira.
A valorização do canto em vernáculo ganhou força durante o nacionalismo brasileiro, com o aumento do
interesse sobre a melhor forma de se cantar em português. A boa dicção foi tema discutido no ano de 1937,
por Mário de Andrade, no I Congresso da Língua Nacional Cantada, e deu origem ao artigo “Normas para a
boa pronúncia da língua nacional no canto erudito” (Andrade, Azevedo, Corrêa 1938), organizado por
Andrade e publicado em 1938. O musicólogo foi um grande incentivador da música nacional e, em coerência
com seus ideais nacionalistas, advogava por uma forma de cantar genuinamente brasileira, que fugisse do
sotaque italiano ou alemão. De acordo com Santos (2011, 15), nesse período, buscava-se a valorização do
canto em vernáculo e sentia-se a necessidade de torná-lo inteligível, de forma a refletir a realidade da
população, pois já havia no meio musical da época um desconforto reinante devido à diferença da pronúncia
do português falado e cantado pelos cantores eruditos. Essa diferença pode ser atribuída à técnica do Bel
canto, ensinada na época por professores de canto estrangeiros que moravam no Brasil. Para Sundberg
(1977), a técnica do Bel canto exige maior volume de voz, o que gera modificações articulatórias, como a
maior abertura da mandíbula em notas agudas. Essa interferência articulatória proporciona modificações
vocálicas que acabam por comprometer, em alguns momentos, a compreensão do texto cantado.
Entretanto, é inegável a importância da técnica do Bel canto para o contexto e a sonoridade do canto erudito.
Em 2003, iniciou-se no Brasil um grande movimento protagonizado por cantores e professores
pesquisadores brasileiros, tendo como objetivo sistematizar e consolidar normas para a pronúncia do
português brasileiro cantado na música erudita. As ações realizadas incluíram atividades em Grupos de
Trabalho (GTs) nos XIV, XV, XVI e XVII Congressos da Associação Nacional de Pesquisa em Música (ANPPOM),
ocorridos, respectivamente, em 2003, 2005, 2006 e 2007, além da realização do 4º Encontro Brasileiro de
Canto - O Português Brasileiro Cantado, em São Paulo, em 2005 (Kayama 2018). Ainda em 2005, o tema foi
debatido no 3º Seminário da Canção Brasileira da UFMG. Os estudos e as discussões realizados resultaram
na publicação do artigo “PB cantado: normas para a pronúncia do português brasileiro no canto erudito”
(Kayama et al. 2007) na revista da ANPPOM, no qual consta uma tabela com os sons do PB e seus símbolos
fonéticos, para orientar a pronúncia de cantores brasileiros e estrangeiros que se dedicam ao repertório em
vernáculo.