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eISSN 2317-6377
Representações da memória autobiográfica na trilha sonora do
filme Aftersun (2022)
Representations of Autobiographical Memory in the Soundtrack of the Film
Aftersun (2022)
Amilcar Almeida Bezerra1
amilcar.almeida@ufpe.br
1 Universidade Federal de Pernambuco, Programa de Pós-Graduação em Música, Recife, Pernambuco, Brasil
ARTIGO CIENTÍFICO
Editor de Seção: Flavio Barbeitas e Ines Loureiro
Editor de Layout: Flavio Barbeitas e Ines Loureiro
License: "CC by 4.0"
Data de submissão: 10 ago 2024
Data final de aprovação:27 nov 2024
Data de publicação: 03 mar 2025
DOI: https://doi.org/10.35699/2317-6377.2025.53975
RESUMO: Este artigo se propõe analisar duas cenas do filme Aftersun (2022), dirigido por Charlotte Wells, para explorar a relação
entre memória autobiográfica e mídia, especialmente no que diz respeito ao uso da canção popular e do sound design na trilha
sonora do filme. Se, por um lado, o uso de canções consagradas contribui para o acionamento da memória cultural dos
espectadores, por outro lado, o uso de efeitos sonoros sobre os fonogramas originais sugere um estranhamento e um
distanciamento que ilustram a relação da protagonista com as memórias retratadas e metaforizam o funcionamento do fluxo da
memória em si. Para tanto, utilizaremos alguns autores que tratam da memória coletiva (Halbwachs 1990) do relato autobiográfico
(Sarlo 2007; Starobinski 1971) e da canção popular como artefato de memória (Frith 2001).
PALAVRAS-CHAVE: Relato autobiográfico; Memória cultural; Canção popular; Cinema; Trilha sonora.
ABSTRACT: This article aims to analyze two scenes from the film Aftersun (2022), directed by Charlotte Wells, to explore the
relationship between autobiographic memory and media, especially regarding the use of pop songs and sound design in the
film's soundtrack. If, on the one hand, the use of famous songs contributes to triggering the cultural memory of spectators, on
the other hand, the use of sound effects on the original phonograms suggests an estrangement and a detachment that illustrate
the protagonist's relationship with the portrayed memories and metaphorize the functioning of the memory flow itself. In order
to that, we will use authors who deal with the concepts of collective memory (Halbwaches 1990), autobiographical report (Sarlo
2007; Starobinski 1971) and pop songs as memory objects (Frith 2001).
KEYWORDS: Autobiographical report; Cultural memory; Pop music; Cinema; Soundtrack
Per Musi | Belo Horizonte | v. 26 | Abordagens biográficas na pesquisa em Música | e252609| 2025
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Bezerra, Amilcar Almeida. Representações da memória autobiográfica na trilha sonora do filme Aftersun (2022)
1. Aftersun: uma “autobiografia emocional”
Aftersun (2022) é o primeiro longa-metragem da jovem diretora escocesa Charlotte Wells (1987). Após uma
vitoriosa estreia em Cannes, na semana da crítica - mostra paralela do Festival de Cannes dedicada a novos
cineastas, na qual recebeu o prêmio French touch - o filme empreendeu uma bem-sucedida trajetória em
festivais de cinema ao redor do mundo, com premiações importantes como a de melhor filme estreante
(“outstanding debut by a british writer, director or producer”) no BAFTA (British Academy Film Awards) e
melhor filme segundo o júri oficial da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. No Brasil, entrou em
cartaz nos cinemas no dia de dezembro, pouco antes de sua estreia mundial na plataforma MUBI. Em
fevereiro de 2023, era o filme mais visto de todo o catálogo de streaming da plataforma
1
, dedicada
sobretudo a clássicos do cinema e a produções independentes.
O enredo trata da relação entre um jovem pai (Calum, interpretado por Paul Mescal), por volta de seus trinta
anos, e sua filha (Sophie, interpretada por Frankie Corio) de onze anos, ambos escoceses, durante uma
viagem de verão a um balneário do litoral turco. Contudo, a experiência da viagem é vista sob a perspectiva
de uma Sophie adulta a partir de registros audiovisuais da época feitos por ela e pelo pai em câmera
digital amadora que se misturam a outras memórias marcantes daquelas férias. À época, o filme mostra
os pais de Sophie separados, morando em países diferentes. Logo, deduzimos que aqueles momentos com
o pai seriam raros em sua vida. Assim, o filme sugere o quão especiais foram aqueles momentos para a
Sophie criança e o quão memoráveis se tornaram aquelas férias para a Sophie adulta.
Apesar de ser um filme de ficção, cujos personagens não são representações fidedignas de pessoas que
realmente existiram, Charlotte Wells admite que o filme é uma “autobiografia emocional”, inspirado
livremente em sua própria história de vida. Em diversas entrevistas, a diretora relata que a ideia do roteiro
surgiu quando, ao folhear álbuns fotográficos de suas viagens de férias na infância, se deu conta de como
seu pai era jovem quando ela nasceu, fazendo com que os dois pudessem ser confundidos como irmãos em
um determinado momento, quando ela entrava na adolescência e o pai estava por volta de 30 anos. Essas
fotografias, assim como outros registros em vídeo, fizeram parte de toda a concepção do filme, mesmo que
não sejam mostradas diretamente. Recentemente, Charlotte Wells (2023) divulgou uma das fotografias dela
e de seu pai que inspiraram o filme com a seguinte declaração:
This film is unmistakably fiction, but within it is a truth that is mine; a love that is mine.
Photos, videos records of different types are enclosed in the film and so it felt
appropriate to enclose one here. A photograph of my dad and of me the starting point
for this project each a single shot because photos of us both are in short supply in that
pre-selfie era. I am 10 or 11, Sophie’s age in the film. My Dad is 31 or 32, a little younger
than I am now. We happen to be in Turkey
2
.
Impossível não se espantar com a semelhança física entre os atores escolhidos para os personagens do filme
e os personagens reais que o inspiraram. Se, na vida real, a epifania se quando Wells percebe que está
1
Disponível em https://www.terra.com.br/diversao/entre-telas/filmes/aftersun-vira-filme-mais-assistido-
da-mubi-em-todos-os-tempos,aef0df22254584785cf424ad133684dfkixjr1lq.html Acesso em 9 ago. 2024.
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Disponível em: https://a24films.com/notes/2022/10/a-note-from-charlotte-wells Acesso em 9 ago. 2024.
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Bezerra, Amilcar Almeida. Representações da memória autobiográfica na trilha sonora do filme Aftersun (2022)
com a mesma idade que tinha o pai naquelas fotos, no filme a protagonista relembra um período especial
de sua pré-adolescência num momento da vida em que acaba de se tornar mãe.
Starobinski, quando atenta para as possíveis motivações de um relato autobiográfico, afirma que ele quase
sempre surge de experiências que transformam profundamente a vida no presente. “It is the internal
transformation of the individual - and the exemplary character of this transformation - which furnishes a
subject for a narrative discourse in which “I” is both subject and object” (Starobinski 1971, 289). Trata-se,
para o autor, não apenas de um relato do passado, mas também de uma justificativa que explica como o
sujeito da biografia se tornou o que é hoje. Sob esta perspectiva, o momento atual, a partir do qual o sujeito
se reporta ao passado para (re)construir uma narrativa a respeito, é determinante para a forma que assume
a autobiografia.
A rigidez do relato autobiográfico, afirmava Sarlo (2007), não conta da “mobilidade do vivido” e, na
trilha de Benjamin, ela se pergunta em que medida a narração da experiência é capaz de conservar algo da
intensidade da vivência. O dilema benjaminiano do narrador contemporâneo diz respeito não apenas a esta
impossibilidade de o relato captar a experiência real/subjetiva em sua integridade, mas também ao fato de
esta experiência, por mais inapreensível que seja, poder - ironicamente - tornar-se comunicável através
do relato. Por esta perspectiva, o relato mais honesto não seria aquele com pretensões de reproduzir uma
verdade objetiva, mas sim o que reconhece, em sua própria estrutura, a impossibilidade de apreender
integralmente a experiência relatada. Em suas reflexões sobre autobiografias, Starobinski (1971) nos sugere
que, se fosse possível encontrar uma suposta verdade do relato autobiográfico, ela deveria estar exatamente
em sua coloração específica, na expressão singular que brota da experiência presente e se materializa num
estilo único. Wells parece estar ciente desta singularidade do discurso autobiográfico e consegue expressá-
la habilmente na manipulação da linguagem audiovisual e nos usos da canção popular para tal propósito.
Figura 1 À esquerda fotos de Charlotte Wells e do pai divulgadas nas redes sociais da diretora. À direita, o ator Paul Mescal e a atriz mirim
Frankie Corio.
Fonte: Perfil da produtora A24 no Twitter
3
3
Disponível em: https://twitter.com/A24/status/1583542915321978880 . Acesso em 9 ago. 2024.
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Bezerra, Amilcar Almeida. Representações da memória autobiográfica na trilha sonora do filme Aftersun (2022)
Um dos grandes trunfos do filme reside nos experimentos realizados pela autora com a linguagem
audiovisual no intuito não apenas de representar o que é lembrado, mas também de expressar, de forma
singular, o fenômeno da rememoração em si, especialmente a partir do uso de uma textura visual que
remete ao vídeo caseiro, conectando cenas do passado rememorado com o presente da personagem
principal adulta.
Outra estratégia interessante do filme é o uso de canções consagradas na trilha sonora como ferramenta
para conectar-se intimamente com um espectador cujas memórias afetivas encontram-se ancoradas
naquelas mesmas canções.
Bennet e Rogers (2016) chamam a atenção para o fato de, numa sociedade tão mediatizada como a nossa,
sentirmos cada vez mais intensamente a necessidade agenciar elementos da memória cultural para
comunicar aos outros quem somos. Artefatos midiáticos, de modo geral, são componentes importantes
desta memória cultural e servem tanto para ativá-la quanto para enquadrá-la e torná-la compartilhável
(Niemeyer 2014). A canção popular, como artefato de memória, se destaca, entre outras formas de
mediação, pela sua intensidade emotiva, capaz de articular fortes vínculos entre a esfera íntima do indivíduo
e a construção de sua imagem pública (Frith 2001), sendo, portanto, nos dizeres de Pierre Nora, uma eficaz
“tecnologia do self” (Nora apud Bennet e Rogers 2016). Wells, portanto, faz uso das canções tanto para nos
dizer, sutil e indiretamente, quem são seus personagens quanto para cativar nossa empatia.
Inseridas no contexto da narrativa, as canções se prestam tanto a comunicar, com seus versos, o que os
personagens não dizem, quanto para representar, através de um delicado trabalho de sound design, o
sentido mais íntimo daquelas memórias. Neste trabalho, vamos focar no uso da música, abordando o uso da
linguagem audiovisual lato sensu apenas na medida em que seja necessário para compreendermos de que
maneira o conceito de memória materializado nas escolhas narrativas do filme, de maneira geral, incide
sobre o uso da trilha sonora, mais especificamente em duas sequências: a primeira, que se inicia com Calum
e Sophie jogando xadrez na varanda do quarto e termina com um take, recorrente desde o início do filme,
em que Sophie, adulta, numa pista de dança escura, enxerga a imagem do pai jovem sob repetidos golpes
de luz estroboscópica. Esta sequência vai do minuto 54:00 ao 58:00 e tem como trilha musical a canção
Tender, da banda britânica Blur. A segunda sequência a ser analisada se inicia próximo ao final do filme em
1:29:36, quando Sophie e Calum correm juntos em direção ao que parece ser uma festa ao ar livre
acontecendo ao lado da piscina do hotel, onde várias pessoas dançam ao som de Under Pressure, canção de
Queen e David Bowie. Calum começa a dançar em meio aos outros. Sophie reluta em acompanhá-lo, mas
depois cede aos apelos do pai e dança com ele. A sequência vai até 1:32:37 e se encerra mais uma vez com
um take de Sophie adulta, na mesma pista de dança escura que aparece em vários momentos ao longo do
filme e na qual, em meio a uma atmosfera onírica, continua a enxergar flashes da silhueta do pai. Mas, desta
vez ela se aproxima, ensaia uma coreografia com ele e o abraça.
2. A canção popular como artefato da memória
A sica é uma das linguagens artísticas que tem relação mais notória com a memória afetiva. Basta uma
breve avaliação de nossa própria experiência pessoal com a música para perceber como é frequente
lembrarmos de momentos especiais da vida ao escutarmos determinadas canções que conhecemos.
Recentemente, pesquisadores da área de neurologia vem chamando a atenção para o fato de que
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Bezerra, Amilcar Almeida. Representações da memória autobiográfica na trilha sonora do filme Aftersun (2022)
portadores da doença de Alzheimer, mesmo em estágio avançado, são capazes de conservar antigas
memórias associadas à música
4
.
Segundo o neurologista Oliver Sacks, A resposta à música, em especial, é preservada mesmo quando a
demência está muito avançada (...)(Sacks 2021, 353). A partir de numerosos estudos de caso nos quais a
música é utilizada em tratamentos terapêuticos para pacientes com demência, Sacks afirma:
A música familiar age como uma espécie de mnemônica proustiana, faz aflorar emoções e
associações esquecidas tempos, reabre aos pacientes o acesso a estados de espírito e
memórias, a pensamentos e mundos que pareciam ter sido totalmente perdidos (Sacks 2007,
360)
Com efeito, o ato de escutar uma melodia familiar é capaz de provocar, no indivíduo, poderosas associações
com imagens e sentimentos vinculados a experiências vivenciadas, mesmo num passado remoto. Estas
imagens e sentimentos compõem um mosaico que não é evocado pela melodia, seja instrumental ou
versificada, como parece estar fortemente ancorado nela.
Dentro do universo de uma escuta cultural ocidentalizada, ao escutarmos várias vezes uma mesma melodia,
acabamos fixando-a na memória e nos tornamos capazes de reconhecê-la e reproduzi-la, ainda que apenas
mentalmente. O curioso é que registramos de tal forma os tempos e movimentos da música que, ainda
quando escutamos uma determinada melodia cantarolada ou executada por diferentes instrumentos, ou
mesmo em outra tonalidade, somos capazes de reconhecer a sua forma. Algo como uma memória corporal,
a estrutura singular de cada melodia fica, pela repetição, arquivada em nosso inconsciente.
Alguns etnomusicólogos, a exemplo de John Blacking (2007), consideram a música um domínio singular das
capacidades humanas cognitivas e sensoriais, capaz de registrar experiências específicas da ordem dos
afetos tanto na memória individual, quanto na memória coletiva. Neste diapasão, as experiências musicais
não seriam traduzíveis em outras formas de comunicação humana, mas constituiriam uma maneira própria
de participação na vida social. A música teria então a capacidade de moldar aspectos de nossa sensibilidade
mais profunda, sendo uma via de acesso privilegiada à compreensão de nossas relações afetivas com o
mundo circundante.
A partir daí poderíamos afirmar que certos aspectos da construção de subjetividades no mundo
contemporâneo passam necessariamente pelos usos da música, compreendidos em articulação com outras
práticas sociais.
Ao dissertar sobre as funções sociais da música popular, Simon Frith (2001) destaca seu papel como agente
da memória coletiva. Segundo o autor, a escuta de uma canção conhecida nos proporciona a abstração -
efêmera - de coerções e constrangimentos da vida real e nos transporta para outra temporalidade, a saber,
uma temporalidade específica da canção, vinculada a um imaginário de experiências individuais e coletivas
a ela associadas. A cada fruição, este imaginário é atualizado e tanto a memória individual quanto a coletiva
são revitalizadas. Esta forte ligação afetiva da música popular com aquilo que entendemos por nostalgia se
explica, segundo Frith, pelo fato de a música desempenhar uma importante função no que diz respeito ao
4
Como breve introdução ao tema, ver o documentário Alive inside (2014), de Michael Rossato-Bennett, no
qual diversos especialistas discorrem sobre os efeitos da sica no tratamento de pacientes com Alzheimer.
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Bezerra, Amilcar Almeida. Representações da memória autobiográfica na trilha sonora do filme Aftersun (2022)
processo de autodefinição de nossa identidade. Frith (2001) sublinha como uma das principais funções
sociais da moderna canção romântica, sobretudo para os consumidores mais jovens, a capacidade de prover
símbolos por meio dos quais podem compreender a si próprios e expressar aos outros seus próprios
sentimentos. Propõe, portanto, compreender as canções não como reflexo de identidades individuais ou
coletivas, mas como fontes de significados por meio das quais essas identidades são construídas pelos
consumidores num processo dinâmico, em articulação com outras práticas sociais. O caráter simultâneo de
introspecção pessoal e expressão pública, faz da canção popular um importante elo mediador para a
inserção do indivíduo na vida social. na fase adulta da vida, em que a personalidade está mais consolidada,
as novidades musicais tendem a não soarem mais tão interessantes. Para Frith (2001), a música que
consumimos quando jovens é formadora de caráter; define para nós o que é juventude e, ao mesmo tempo,
define o que será, no futuro, a nostalgia.
Una de las consecuencias más obvias de la organización musical de nuestro sentido del
tiempo es el hecho de que las canciones y las melodías son a menudo la clave para recordar
cosas que sucedieron en el pasado. No me refiero simplemente a que los sonidos como las
imágenes y los olores desencadenen recuerdos asociados a ellos, sino más bien que la
música en si misma dota a nuestras experiencias vitales más intensas de un tiempo en el
que transcurrir. La música centra nuestra atención en la sensación del tiempo: las
canciones se organizan y ello forma parte de su disfrute en torno a la anticipación y a la
repetición, entorno a cadencias esperadas y estribillos que se desvanecen. La música
popular del siglo XX ha tenido en su conjunto un sesgo nostálgico (Frith 2001, 8-9)
A música tem características muito próprias, não apenas por sua natureza de arte “temporal”, que se executa
e se frui num determinado intervalo de tempo, mas também por sua propriedade de reavivar a experiência
a cada performance ou fruição. A escuta reiteradas vezes de uma mesma música não parece consternar
tanto o grande público quanto a reapresentação de uma peça de teatro ou de um filme, para fazer alusão a
duas outras artes “temporais”. Nestas últimas, quando conhecemos o enredo de antemão, é comum que se
perca parcela fundamental da experiência estética. Já com relação à sica, parte do prazer extraído de sua
fruição reside exatamente na expectativa da repetição de certos desenvolvimentos e trechos, ou seja, da
memória que guardamos dela.
Cada experiência de fruição musical de uma canção conhecida, incita a recordação de vivências e emoções
do passado e acrescenta camadas de sentidos a serem reavivados em experiências futuras com aquela
mesma canção. Halbwachs (1990), ao discorrer sobre a qualidade específica do evento sonoro (musical ou
não), fala sobre uma função evocativa dos sons. Ou seja, quando escutamos qualquer som tendemos a
associá-lo mentalmente a coisas “não-sonoras”, como, por exemplo, o objeto ou a intenção da pessoa que
produz o som. “Tudo se passa como se a sucessão dos sons apresentasse uma espécie de matéria plástica
que não tem significação definida, mas que está prestes a receber aquela que nosso espírito estivesse
disposto a dar-lhe” (Halbwachs 1990, 181). Os sons adquirem sentidos para nós na medida em que, na nossa
experiência cotidiana, aprendemos a associá-los a padrões e convenções. Segundo Halbwachs, os fiéis
buscam na lembrança, “menos as palavras de suas orações do que os sentimentos religiosos que
vivenciaram” por meio delas. (Halbwachs 1990, 187)
Esta caraterística indutiva das sonoridades é frequentemente utilizada no cinema como recurso narrativo
para sugerir ao espectador presenças reais ou imaginárias de objetos, eventos e sentimentos associados ao
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Bezerra, Amilcar Almeida. Representações da memória autobiográfica na trilha sonora do filme Aftersun (2022)
arcabouço sonoro de nossa memória coletiva. Esta mesma característica torna a música uma ferramenta
poderosa de rememoração, na medida em que é capaz de deflagrar, como um gatilho, a reconstrução
imaginária de quadros da memória que dificilmente seriam lembrados de outra forma.
Em suma, numa narrativa autobiográfica, a música pode servir como importante ferramenta para atribuir
colorações específicas ao relato devido à sua capacidade de estabelecer vínculos de reminiscências
individuais com a memória coletiva.
3. A música em Aftersun
Em Aftersun é possível identificar diversos usos da música em diálogo com a narrativa. Há uma trilha musical
original instrumental composta por Oliver Coates com traços minimalistas, que mistura arranjos de cordas a
recursos de música eletrônica, mas também um repertório de canções pop consagradas
5
que são
utilizadas de modo diegético e não-diegético. Em alguns momentos estratégicos, a música instrumental se
funde ora a estas canções, ora a sons ambientes. A direção musical ficou a cargo de Lucy Bright, que
desempenhou a mesma função no filme Tar (2022), produção indicada a seis Oscars em 2023. Se por um
lado, certas canções pop desempenham a mera função de enquadrar o espectador no espaço-tempo da
narrativa, outras vão muito além da utilização como índices de uma época, como é o caso de Tender, do
Blur. Segundo a própria Bright:
There are some of those very small uses, really just a few seconds here and there, which
put you in that time and place without having to hang onto it. I mean, “The Macarena,” for
example, it’s a potent kind of time machine. … The Aqua “My Oh My” thing things I
would never think I was gonna be putting into a film! … and (the band) Steps: I think it’s
probably quite British in terms of those references. They’re specific to that moment, and
that holiday culture that those resorts have. But then there’s sort of the other end of it. At
the opposite of Steps and “The Macarena” was probably Blur’s “Tender,” maybe
particularly in the way it was used, with that beautiful sound design making it that kind of
floating, timeless feel. (Bright 2022)
No caso de outra canção com importante papel na trilha, Under Pressure, Lucy Bright nos fala com riqueza
de detalhes sobre sua inserção numa cena que é fundamental como peça que dá sentido ao quebra-cabeças
montado ao longo da narrativa do filme. A canção aparece exatamente quando o pai, numa festa, convida a
filha para dançar; um momento aparentemente alegre, mas que, no decorrer da cena, vai adquirindo
tonalidades ambíguas. Duas versões da canção Under Pressure são utilizadas, a original
6
e, após alguns
5
Segundo o IMDB (International Movie Data Base), entre as canções populares de sucesso que aparecem no
filme, além de Tender e Under pressure estão ainda Macarena, de Los Del Rio, na versão remix de Bayside
Boys (1995), Losing my Religion (1991), do R.E.M, Unchained Melody (1955), de Alex North e Hy Zareth,
canção que retornou às rádios ao ter uma de suas regravações (The Righteous Brothers, 1965) utilizada como
trilha musical do filme Ghost (1990), My, oh my (1998) de Acqua, 5, 6, 7, 8 (1998) de Steps, Tubthumping
(1997) de Chumbawamba, Never ever (1997) de All Saints, The tide is high (1980), de Blondie, Road Rage
(1998), de Catatonia, Drinking in L.A (1999), de Bran Van 3000 e Real gone kid (1988) de Deacon Blue. Todas
elas, em algum momento, alcançaram o top 20 das paradas de sucesso do Reino Unido, segundo o site
www.officialcharts.com
6
A versão original da canção Under Pressure de autoria de Brian May, Freddie Mercury, David Bowie, Roger
Taylor e John Deacon, foi lançada como single em 1981 e atingiu o topo das paradas de sucesso daquele ano
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Bezerra, Amilcar Almeida. Representações da memória autobiográfica na trilha sonora do filme Aftersun (2022)
segundos, uma versão com as vozes de David Bowie, Freddie Mercury e Roger Taylor a capela
7
, que a
diretora Charlotte Wells já conhecia e fez questão de incluir na edição
8
. Para Bright, o isolamento das vozes
traz uma “crueza” que acompanha a mudança de atmosfera na cena e serve como preparação para o
momento seguinte, quando ocorre a fusão da música instrumental original de Oliver Coates com os
vocais. Neste interregno, um momento de silêncio total, inserido, segundo a diretora musical, com o
propósito de nos fazer transitar do flashback ao tempo presente
Embora outras canções pop consagradas sejam utilizadas em diversos momentos da narrativa, vamos nos
ater ao uso destas duas canções, pois em ambos os casos os fonogramas originais foram manipulados de
modo a produzir os efeitos específicos de representação da memória que nos interessam discutir.
3.1. Primeira cena analisada: “tender is the night”
9
Aos 54 minutos de filme, Calum e Sophie aparecerem à distância, na parte superior de um enquadramento
que capta, em primeiro plano porém fora de foco num lento traveling horizontal, algumas pessoas
sentadas, conversando, bebendo e fumando, instaladas num cômodo que fica bem diante da varanda em
que vemos os protagonistas, porém num nível inferior. É noite. No plano seguinte, nos deparamos com uma
câmera alta, fixa, que capta as sombras de Calum e Sophie projetadas numa mesa. Escutamos a conversa
dos dois e vemos, através dos reflexos, o pai oferecer um gole de cerveja à filha, num momento de
cumplicidade e descontração. Em seguida, a câmera está posicionada no interior do quarto e capta os
rostos de Calum e Sophie, cada qual de um lado da mesa, sorrindo após a travessura que acabaram de fazer.
O próximo plano mostra um tabuleiro sobre a mesa no qual os dois jogam xadrez. É o aniversário de onze
anos de Sophie. Logo depois, em outro plano, o pai fecha a porta corrediça que acesso à varanda e a
carrega nos braços para o interior do quarto até a cama. Neste momento em que a porta é fechada,
percebemos uma diminuição no volume da música, dando a entender que o som emana do lado de fora do
quarto, mais precisamente do local onde ocorre a festa mostrada no início da cena. deitados, Sophie
pergunta se um dia ele retornará à Escócia. Calum responde que jamais retornará a Edimburgo, pois nunca
se sentiu parte do lugar em que nasceu, ao contrário de Sophie, que diz se sentir em casa na cidade natal
dos dois. Neste momento, nos damos conta que pai e filha moram em cidades diferentes. Calum comenta
que nunca sabemos onde vamos aterrissar e conclui: “você pode morar onde quiser, ser o que quiser. Você
tem tempo.” Sophie adormece na cama, sob as carícias do pai. Até este momento, toda a cena é
acompanhada pela trilha sonora de Tender
10
(1999), canção de 13, sexto álbum da banda de britpop Blur,
segundo o site Official Charts, sendo posteriormente incluída como faixa do álbum Hot Space (1982), da
banda Queen.
7
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=uMQb9LCNGxs . Acesso em 9 ago. 2024.
8
“I had been aware of this stripped-back version of ‘Under Pressure’, where you can hear David Bowie and
Freddie Mercury really going for each other, and I pulled that into the edit I don’t even know why I did it.
I needed something to match the rhythm of the dance scene and it irrefutably worked.” Disponível em:
https://www.hollywoodreporter.com/movies/movie-features/aftersun-writer-director-charlotte-wells-
interview-1235297225/ Acesso em 9 ago. 2024.
9
Cena disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=YqEh4fefj18 . Acesso em 9 ago. 2024.
10
Tender is the night lying by your side/ Tender is the touch of someone that you love too Much /Tender is
the day the demons go away/ Lord, I need to find someone who can heal my mind/ Come on, come on, come
on/ Get through it/ Come on, come on, come on/ Love's the greatest thing/ Come on, come on, come on/
Get through it/ Come on, come on, come on/ Love's the greatest thing that we have/ I'm waiting for that
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Bezerra, Amilcar Almeida. Representações da memória autobiográfica na trilha sonora do filme Aftersun (2022)
uma balada em ritmo de blues, com participação de coro em estilo gospel. Tanto pela letra quanto pelas
escolhas de instrumentação e arranjo, Tender é uma canção que prega o amor como solução para as agruras
da vida, num sentido que se aproxima da redenção divina. A instrumentação simples deixa mais em evidência
as performances vocais. Ao longo de seus 7 minutos e 40 segundos, o lamento expresso pelo canto solo tem
como resposta, em coro, o estímulo à superação e à esperança de um (re)encontro com o amor, numa
estrutura que repete em ciclos suas quatro estrofes. A canção chegou a alcançar o segundo lugar nas paradas
britânicas em março de 1999
11
, sendo um dos singles comercialmente mais bem-sucedidos do Blur; a partir
de então, passou a integrar a memória afetiva de toda uma geração, à época atenta à música pop de
repercussão global.
É, portanto, sintomático que a partir do momento 56:44, quando Calum beija a face da Sophie adormecida,
a execução da música seja submetida a um efeito de sound design que emula um problema comum em
antigos aparelhos passa-disco de vinil, a rotação lenta e irregular que distorce a sonoridade do fonograma
original. Isto começa a acontecer no segundo anterior a um corte para a cena, recorrente no filme, em que
Sophie, adulta, vislumbra o pai numa pista de dança escura, iluminada apenas por uma estroboscópica.
O efeito inusitado provoca um estranhamento que nos afasta bruscamente da situação anterior, uma
memória afetiva sublime, e nos transporta para aquilo que parece ser um sonho (ou seria um pesadelo?) no
presente. Neste momento, a execução distorcida da canção é acompanhada, ao fundo, do ruído de ondas
do mar, presente em várias cenas do filme. O sonho se mistura então às memórias daquelas férias. A
exemplo do que acontece com a música, sentimos que, de para cá, algo desanda na vida de Sophie, embora
não fique explícito em momento nenhum do filme o que teria acontecido entre ela e o pai. A alteração da
velocidade de reprodução do fonograma transforma o coro do refrão em algo que se assemelha a um urro
de desespero (“Come on, come on, come on, get through it…”) numa possível alusão aos fantasmas que
atormentam a existência de Calum e ao peso que aquela memória assume para Sophie, ao mesmo tempo
que se alinha conceitualmente a uma série de efeitos de manipulação da linguagem audiovisual utilizados
em outros momentos, responsáveis por dar o tom de memorabília ao filme. Sugere, ainda, uma sensação
de estranhamento em relação a nossas próprias memórias, quando em momentos-chave da vida somos
levados a reinterpretar fatos e reconstruir nossas narrativas autobiográficas, ou mesmo a imprecisão do
próprio ato de rememorar, em suas intermináveis torções e distorções do lembrado.
A velha canção, que costuma deflagrar sensações tão previsíveis em quem a conhece, ganha, com o efeito
de desaceleração irregular, conotações inusitadas, ambíguas. Com a utilização deste efeito, Wells insinua: o
que na época foi prazer, hoje, ao ser relembrado, é também dor. A sequência é encerrada com uma câmera
em lento zoom-out no corredor vazio do hotel, onde, no dia seguinte, Sophie ficará presa do lado de fora do
quarto, após um desentendimento com seu pai. Enquanto isso, ouvimos os versos “Oh, my baby, oh, my
baby, oh, why, oh, why...” se repetirem numa rotação lenta e distorcida.
Tudo isso ocorre imediatamente após uma cena importante na construção narrativa. Como num flashback
dentro do próprio fluxo de memórias que vínhamos acompanhando até então, presenciamos um retorno à
feeling/ Waiting for that feeling/ Waiting for that feeling to come/ Oh my baby, oh my baby/ Oh why, oh
my?/ Oh my baby, oh my baby/ Oh why, oh my?/ Tender is the ghost, the ghost I love the most/ Hiding from
the sun, waiting for the night to come/ Tender is my heart, I'm screwing up my life/ Lord, I need to find
someone who can heal my mind.
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Bezerra, Amilcar Almeida. Representações da memória autobiográfica na trilha sonora do filme Aftersun (2022)
cena inicial do filme, na qual Sophie, com uma câmera na mão, filma sob a luz do dia detalhes do quarto de
hotel. Num dado momento, direciona a câmera para seu pai e pergunta como havia sido seu aniversário de
onze anos. Ele tenta fugir da pergunta e ordena a Sophie que desligue a câmera. Desligada a câmera, após a
insistência de Sophie, acaba revelando que, na ocasião, sua mãe nem sequer houvera lembrado da data. A
execução de Tender começa ainda no final desta cena, orquestrando um jogo entre o uso não-diegético da
canção neste momento e o diegético na cena seguinte que nos sugere uma ponte entre estas duas situações
ocorridas no dia do aniversário de Sophie. Os versos, por sua vez, assumem sentidos específicos no contexto
em que a canção se insere, como se traduzisse um diálogo entre a Sophie do presente e a Sophie do passado.
3.2. Segunda cena: “why can’t we give love one more chance?”
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A cena se inicia em 1:29:36. Calum e Sophie chegam a uma festa noturna ao ar livre. Próximo à piscina do
hotel, várias pessoas dançam ao som de Under Pressure, canção interpretada pela banda Queen e por David
Bowie, como assinalamos no início deste artigo.
Under Pressure (1981), parceria única entre a banda de rock Queen e o astro pop David Bowie obteve, na
época de seu lançamento, grande sucesso de crítica e de público e, desde então, tem sido presença
obrigatória nas listas de melhores canções de ambos. Atingiu o primeiro lugar nas paradas do Reino Unido
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no final de 1981 e voltou aos holofotes do público quando, em 1990, teve sua indefectível linha de baixo
sampleada pelo rapper norte-americano Vanilla Ice no single Ice, ice baby um dos grandes hits internacionais
daquele ano. Em 1999, voltou mais uma vez às paradas com o lançamento de uma versão remixada que
integrou a coletânea Greatest Hits III, do Queen.
A canção pode ser dividida em duas partes: a primeira se inicia com a citada linha de baixo em quatro
tempos, que se repete por mais de quarenta segundos enquanto se sobrepõem sucessivamente uma
guitarra dedilhada, a bateria e, finalmente, as vozes, ora em coro, ora em alternância, de Freddie Mercury e
David Bowie, dando a configuração desta primeira parte até cerca de 2m10s. Nela, a letra sugere como
rotinas, pressões e conflitos típicos da vida moderna oprimem o indivíduo, privando-o de sua liberdade.
Encerra com a frase “pressure on people, people on streets”. A segunda parte estabelece um contraste, pois
expressa a reação do indivíduo diante deste quadro de coisas. Os vocais ressurgem num crescendo até a voz
de Freddie Mercury irromper num apelo dramático “Why can’t we give love one more chance?”. Assim
como em Tender, o amor surge como motivo redentor até o coro apoteótico que prepara o anticlímax final,
quando a repetição da expressão “Under pressure” sobre o estalar ritmado de dedos, soa como uma volta à
realidade descrita na primeira parte. Seria o amor apenas um paliativo, uma breve válvula de escape a
amenizar um cotidiano aprisionado pela racionalidade moderna? Após a explosão de sentimentalismo da
segunda parte, o final soa sarcástico e desiludido.
Na cena, enquanto Calum ensaia alguns passos de dança, Sophie se mostra envergonhada com a
performance do pai e resiste a se juntar a ele. De repente, em 1:30:08, um corte nos leva novamente à
escuridão da pista de dança onde a Sophie adulta, entre flashes de luz estroboscópica, tenta reencontrar seu
jovem pai. Onze segundos depois, voltamos à festa. Sophie aparece sozinha, num plano médio, com a piscina
ao fundo. O pai insiste e consegue convencê-la a dançar. Em 1:30:33, um novo corte nos leva mais uma vez
à pista de dança na qual vemos, sob luzes que piscam sem parar, Sophie adulta frente a frente com o pai.
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Cena disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=912Ntw7oYOg Acesso em 9 ago. 2024.
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Bezerra, Amilcar Almeida. Representações da memória autobiográfica na trilha sonora do filme Aftersun (2022)
Enquanto ele dança, ela tenta, com dificuldade, abraçá-lo, já que ele continua em movimento. Logo depois,
vemos num take em slow-motion a Sophie criança sorrindo em close, enquanto dança com o pai na beira da
piscina. Ao fundo, aparecem outras pessoas fora de foco. A sequência se alterna mais uma vez para a Sophie
adulta na pista de dança em 1:30:57. A diferença é que, neste take, não vemos mais as outras pessoas que
estavam aparentemente dançando na sala escura. Agora, a Sophie adulta e o pai estão sozinhos. Até então,
a gravação original de Under Pressure vem acompanhando as imagens desde o início da sequência,
construindo uma ponte entre o presente e o passado e servindo de ambientação musical comum para a
dança dos personagens nas duas situações. Mas em 1:31:02, ou seja, depois de 1m25s de música, os
elementos instrumentais originais desaparecem da canção e ganham destaque os vocais de Freddie Mercury
e David Bowie discretamente acompanhados por uma melodia em longos e melancólicos acordes, executada
por um naipe de cordas, oriunda da trilha sonora original.
Este trecho corresponde exatamente à transição entre a primeira e a segunda parte da canção, às quais nos
referimos anteriormente. Há, neste momento, uma dupla quebra de expectativa, para quem conhece a
canção original, tanto pela supressão da parte instrumental original quanto pela fusão com trilha de Oliver
Coates. O trecho em questão é um momento de destensionamento, com vocais quase sussurrados: “Turned
away from it all like a blind man/ sat on a fence, but it don’t work/ keep coming up with love but it’ so slash
and thorn/”. Em seguida, ouvimos a voz aguda de Freddie Mercury cantando repetidas vezes a palavra “why”
num crescendo que explode com o coro “love, love, love” numa preparação do clímax que antecede o fim
da canção. Neste ínterim, vemos a Sophie adulta abraçada com o pai e, de relance, o rosto dele com uma
expressão de sofrimento intenso, de modo ainda não visto no filme, ao som dos versos:
Can't we give ourselves one more chance?/ Why can't we give love that one more chance?/
Why can't we give love, give love, give love, give love/ Give love, give love, give love, give
love?/ 'Cause love's such an old-fashioned word/ And love dares you to care for/ The
people on the edge of the night/ And love dares you to change our way of/ Caring about
ourselves/ This is our last dance/ This is our last dance/ This is ourselves (...)
A fusão da trilha original de Oliver Coates com os vocais originais retorce a harmonia da canção de modo a
provocar uma vertiginosa espiral de tensão, transformando o brilho original dos versos num desesperado
lamento.
Enquanto a música caminha para o final, os takes da Sophie jovem e da Sophie adulta continuam se
alternando na edição. A Sophie jovem chega a aparecer rapidamente na sala escura, selando a conexão entre
o presente vivido e o passado rememorado. A sequência se encerra com um take do rosto da Sophie adulta
em perfil na sala escura, em sincronia com o verso “This is our last dance”. Logo depois, a música para, no
momento em que a tela escurece. A canção não toca até o fim.
A partir da mensagem dos versos, supomos que aquela foi a última vez em que Sophie dançou com pai. O
filme acaba com uma sequência de ambos se despedindo no aeroporto. Após o embarque de Sophie, vemos
Calum de costas se distanciar, num plano fixo e, ao final de um corredor branco, adentrar uma sala escura,
de onde emana uma luz estroboscópica. Subentende-se, portanto, que após esta despedida, embora não
saibamos exatamente o que teria acontecido em seguida, Calum passa a existir apenas na meria de
Sophie.
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Bezerra, Amilcar Almeida. Representações da memória autobiográfica na trilha sonora do filme Aftersun (2022)
4. Considerações finais
A sequência inicial de Aftersun é uma sucessão de takes cujas resolução, textura e padrão cromático, evocam
registros de antigas câmeras digitais domésticas. Os efeitos de avanço e retrocesso rápido, acompanhados
da decomposição das imagens digitais em quadrados maiores ou menores, bem característica da tecnologia
de fins dos anos 1990, são utilizados logo em seguida para indicar que alguém manipula o equipamento de
reprodução no presente. Mais adiante, em alguns momentos do filme, as imagens de época aparecem com
imperfeições e lacunas, como se os arquivos digitais estivessem corrompidos. Tanto os efeitos como as
texturas fazem parte de nossa memória cultural e sua utilização como recurso audiovisual nos situa no
tempo e no espaço da narrativa. O mais interessante, porém, é que a forma fragmentada em que estes
registros aparecem ao longo do filme, os trechos perdidos em arquivos danificados e o retorno cíclico a
situações-chave imaginariamente revividas a partir dos registros aludem às próprias práticas de
rememoração, com suas lacunas e imperfeições. Observamos que o uso da música se mostra alinhado com
esta proposta conceitual imagética.
Num primeiro momento, a aparição de canções populares em meio à narrativa enquadra nossa memória
no tempo e no espaço. Este é um recurso comum em filmes, que a canção promove uma transição coletiva
do passado para o presente ne medida em que se relaciona com a atmosfera sensível compartilhada por
uma geração (Bennet e Rogers 2016), ou mesmo com estereótipos de diferentes épocas.
A canção, como elemento da memória coletiva, ao ser utilizada em cena tende a nos aproximar das
personagens, criando um ambiente de cumplicidade mais propenso à conexão afetiva.
Nas cenas analisadas, os versos de Tender e Under pressure comunicam algo sobre os sentimentos
vivenciados pelos personagens em cada situação. Ao serem utilizadas deste modo, as canções não
emprestam sentidos e valores à narrativa, como também são “contaminadas” pelo filme, ganhando novas
camadas de significado. Mesmo canções exaustivamente executadas na mídia e em plataformas digitais
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ganham novas conotações e, pessoas que eventualmente tenham “enjoado” destas faixas, muitas vezes,
após a experiência de ver o filme, readquirem o hábito de escutá-las, desta vez atribuindo-lhes novos
sentidos.
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Estas canções desempenham as funções de enquadrar a memória do telespectador e contribuem, com seus
versos, para a compreensão dos sentimentos dos personagens; além disso, ao serem submetidas a processos
de manipulação sonora, aludem às mesmas práticas de rememoração ilustradas pelo uso das imagens e
ainda conseguem traduzir a melancolia que envolve a relação da protagonista com suas próprias memórias.
Esta capacidade de metaforizar, por meio de usos e manipulações da música, as práticas de rememoração
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Under Pressure e Tender alcançaram respectivamente, primeiro e segundo lugar nas paradas britânicas
logo após o lançamento e têm, respectivamente, 1 bilhão e 85 milhões de execuções contabilizadas no
Spotify
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diversos links em canais do Youtube para vídeos da penúltima cena de Aftersun, que tem a trilha de
Under Pressure. Entre os comentários destes vídeos, encontramos declarações como “nunca mais escutarei
esta música da mesma forma novamente” em meio a uma impressionante quantidade de relatos
autobiográficos motivados pela experiencia de assistir à cena, o que pode servir de subsídio para futuras
pesquisas sobre a recepção da obra.
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Bezerra, Amilcar Almeida. Representações da memória autobiográfica na trilha sonora do filme Aftersun (2022)
tão recorrentes na construção do relato autobiográfico, torna Aftersun um estudo de caso exemplar no
âmbito das trilhas sonoras para audiovisual.
Canções pop que escutamos na infância e na juventude, ao serem ouvidas na idade adulta, incitam a
reconstrução imaginária da atmosfera sensível de uma época, satisfazendo nossos anseios de nostalgia. Sua
execução faz com que nos sintamos “em casa” no sentido da simulação de um retorno a um passado
idealizado. Contudo, o lugar imaginário de conforto ao qual somos levados pelas melodias conhecidas é
perturbado, quando a execução das canções sofre interferências externas. No filme, tanto os efeitos de
desaceleração da velocidade de reprodução quanto a decomposição dos fonogramas e sua fusão com a trilha
sonora original, transformam a intimidade com o que era então familiar à memória em estranhamento e
aflição. O reencontro da Sophie adulta com as próprias memórias, com efeito, também produz
estranhamento. Revisitar as memórias da infância, na perspectiva da personagem, é também uma maneira
de vivenciar o luto. A manipulação da música desempenha papel crucial em traduzir esta ambiguidade e nos
conectar a estes sentimentos. Quando associada à memória, a fruição musical traz muitas vezes este sabor
agridoce: a alegria pela vivacidade da lembrança, associada à trágica incapacidade de reviver, em sua
imaginada pureza, a situação lembrada.
5. Referências
Aftersun. 2022. Dirigido por Charlotte Wells. Reino Unido: BBC Filmes. 102 min.
Benjamin, Walter. 1994. "O Narrador: Considerações sobre a Obra de Nikolai Leskov." In Magia e Técnica,
Arte e Política, 7ª ed. São Paulo: Brasiliense.
Benjamin, Walter. 1994. "Sobre o Conceito da História." In Magia e Técnica, Arte e Política, 7ª ed. São
Paulo: Brasiliense.
Bennett, Andy, e Rogers, Rogers. 2016. Popular Music Scenes and Cultural Memory. London: Palgrave
MacMillan.
Blacking, John. 2007. "Música, Cultura e Experiência." Cadernos de Campo 16: 201-218.
Bright, Lucy. 2022."Behind the Music of ‘Tár’ and ‘Aftersun’: Music Supervisor Lucy Bright on Cate
Blanchett, the Classical World and the Majesty of ‘Under Pressure’." Entrevista concedida a Chris
Willman. Variety, 27 nov. 2022. https://variety.com/2022/artisans/news/tar-aftersun-music-
supervisor-lucy-bright-classical-score-songs-cate-blanchett-1235442739/. Acesso em 9 ago. 2024.
Frith, Simon. 2001. "Hacia una Estética de la Música Popular." In Francisco Cruces (ed.) Las Culturas
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Halbwachs, Maurice. 1990. A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice.
Medeiros, Danilo. 2023. "Aftersun Vira Filme Mais Assistido da MUBI em Todos os Tempos." Entre Telas, 8
fev. 2023. https://www.terra.com.br/diversao/entre-telas/filmes/aftersun-vira-filme-mais-assistido-
da-mubi-em-todos-os-tempos,aef0df22254584785cf424ad133684dfkixjr1lq.html. Acesso em 9 ago.
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Moorey, Graham. 2012. Everyday Reveries: Recorded Music, Memory and Emotion. PhD diss., University of
the West of England, Bristol.
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Bezerra, Amilcar Almeida. Representações da memória autobiográfica na trilha sonora do filme Aftersun (2022)
Niemeyer, Katharina. 2014. "Introduction: Media and Nostalgia." In Katharina Niemeyer (ed.) Media and
Nostalgia: Yearning for the Past, Present and Future. Basingstoke: Palgrave Macmillan.
Sacks, Oliver. 2007. Alucinações musicais: relatos sobre a música e o cérebro. São Paulo: Companhia das
Letras.
Sarlo, Beatriz. 2007. Tempo Descoberto: Cultura da Memória e Guinada Subjetiva. São Paulo: Companhia
das Letras; Belo Horizonte: UFMG.
Starobinski, Jean. 1971. "The Style of Autobiography." In Seymour Chatman (ed.) Literary Style: A
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Wells, Charlotte. 2022. "A Note from Charlotte Wells." 21 out. 2022.
https://a24films.com/notes/2022/10/a-note-from-charlotte-wells. Acesso em 9 ago. 2024.
Wells, Charlotte. 2023. "‘Aftersun’ Writer-Director Charlotte Wells on the Ambiguity of Her Personal Film: ‘I
Had to Know What All the Answers Were’." Entrevista concedida a Seija Rankin. Hollywood Reporter,
13 jan. 2023. https://www.hollywoodreporter.com/movies/movie-features/aftersun-writer-director-
charlotte-wells-interview-1235297225/. Acesso em 9 ago. 2024.