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eISSN 2317-6377
Cuidado Violão! Mozart Secundino e o acompanhamento
violonístico no âmbito dos conjuntos regionais
Watch out Guitar! Mozart Secundino and comping guitar within the scope of
regional ensembles
Humberto Junqueira1
junqueira.humberto@gmail.com
1 Faculdade de Música do Espírito Santo, Departamento de Musicologia, Vitória, Espírito Santo, Brasil
ARTIGO CIENTÍFICO
Editor de Seção: Flavio Barbeitas e Ines Loureiro
Editor de Layout: Flavio Barbeitas e Ines Loureiro
Licença: "CC by 4.0"
Data de submissão: 23 ago 2024
Data final de aprovação: 09 dez 2024
Data de publicação:2 mar 2025
DOI: https://doi.org/10.35699/2317-6377.2025.54138
RESUMO: Este artigo se concentra na descrição de aspectos da prática musical de Mozart Secundino de Oliveira, tomando-a como
referência para examinar a inserção do violão de acompanhamento no contexto dos conjuntos regionais. Mozart teve profícua
atuação na cidade de Belo Horizonte, obtendo reconhecimento e notoriedade nos últimos anos de sua vida, entre 2004 e 2015.
Esteve envolvido com o choro em suas diversas dimensões durante aproximadamente 70 anos, tocando com instrumentistas
fundadores desse estilo, cantores célebres, e também ao lado de jovens músicos inexperientes. Algumas dessas dimensões serão
tratadas aqui como categorias analíticas, como as rodas de choro, os baixos de obrigação, as baixarias, e a própria origem e
consolidação dos regionais.
PALAVRAS-CHAVE: Violão de acompanhamento; Regionais; Obrigações; Baixarias; Choro.
ABSTRACT: This article describes aspects of the musical practice of Mozart Secundino de Oliveira, taking it as a reference to
examine the insertion of the comping guitar in the context of regional ensembles. Mozart had a fruitful performance in Belo
Horizonte, obtaining recognition and notoriety in the last years of his life, between 2004 and 2015. He was involved with Choro in
its various dimensions for approximately 70 years, playing with instrumentists who founded this style and also with young
inexperienced musicians. Some of this dimensions will be treated here as analytical categories, as in the case of the Roda de Choro,
the bass lines know as obligation, the improvised bass lines, and the regional group itself.
KEYWORDS: Comping guitar; Regional; Obligations; Bass lines; Choro.
Per Musi | Belo Horizonte | v. 26 | Abordagens biográficas na pesquisa em Música | e252610 | 2025
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Introdução
O músico Mozart Secundino de Oliveira nasceu no dia 21 de fevereiro de 1923, em Bandeirinhas, localidade
situada na cidade de Betim, que, por sua vez, integra a região metropolitana de Belo Horizonte. Filho de Ana
Felipa de Jesus e Júlio Gomes de Oliveira, Mozart se transferiu para a capital do estado de Minas Gerais no
ano de 1934, com seu pai e seus três irmãos, após o falecimento da mãe, em busca de mais oportunidades
de trabalho para a família.
Neste texto que se apresenta, busco ressaltar a trajetória desse personagem, destacando as especificidades
e a relevância de seu fazer musical, bem como as articulações dessas com o meio social em que ele esteve
inserido. Em outras palavras, o caso de Mozart nos serve como guia, como condutor privilegiado para a
compreensão das práticas sociomusicais ligadas ao choro tomado aqui como categoria genérica que reúne
em torno de si um conjunto de ideias, ritmos, instrumentos, danças, territórios e assim por diante. Não se
trata, portanto, de uma abordagem biográfica particular, da etnografia de um território (comunidade ou
grupo), ou do estudo específico de um gênero musical tomado em abstrato, nem mesmo de uma prática
instrumental considerada isoladamente. Todos esses elementos serão observados em certa medida, mas a
descrição analítica da vida musical de Mozart como testemunha reveladora de práticas sociomusicais é o
principal objetivo deste trabalho.
Além de discutir temáticas relacionadas ao choro e, mais especificamente, à inserção do violão de
acompanhamento nos conjuntos regionais, este artigo propõe uma reflexão a respeito dos aspectos
comumente exaltados como valores essenciais à criação artística, conforme a própria invenção da obra como
resultado da elaboração individual do autor. No universo do choro, alguns elementos, como a capacidade
de improvisação, o virtuosismo, a habilidade técnico-mecânica, também tendem a ser valorizados. Mozart
não foi compositor ou um virtuose em seu instrumento (no sentido estrito dos termos); tampouco inaugurou
uma linguagem, um estilo. No entanto foi um músico reverenciado por seus pares e pelo meio social que o
circundava, como veremos a seguir.
Nesse sentido, três aspectos justificam o estudo das relações entre as práticas musicais de Mozart e o
universo do choro em Belo Horizonte. Em primeiro lugar, o músico cultivou e difundiu repertórios e práticas
advindas de uma tradição violonística que, com o passar do tempo, caiu em desuso até mesmo entre os
músicos de choro: o violão de seis cordas de acompanhamento, típico dos agrupamentos denominados
como regionais. A origem dessa tradição remonta uma fase específica da cultura brasileira, em que fatores
diversos contribuíram para a criação de um amplo mercado de trabalho para músicos populares. Por outro
lado, as sucessivas alterações no mercado da música popular coincidem com novas formas de produção e
difusão no campo da cultura de massa, modificando substancialmente o contexto de atuação dos conjuntos
regionais. Em outras palavras, a emergência de novos gêneros musicais (como o rock e a bossa nova), o
surgimento e a popularização da televisão ou seja, a introjeção do audiovisual no mercado, fazendo frente
à experiência exclusivamente sonora proporcionada pelo rádio provocam a paulatina desagregação dos
conjuntos regionais, ambiente fundamental para o cultivo do violão de seis cordas de acompanhamento.
Segundo Luiz Otávio Braga (2002), não apenas as modernas técnicas de produção e transmissão,
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características da televisão, como a própria publicidade que nasce a partir de então, transformam a técnica
musical, conduzindo-a do contexto denso do rádio e das gravações elétricas para uma transformação
sintonizada com formas especialmente novas de veiculação e recepção. É nesse quadro de transformações
que os conjuntos regionais tendem a reduzir sua atuação.
1
O segundo ponto que gostaria de ressaltar se refere à atuação de Mozart como agente mediador,
responsável pela transmissão de saberes partilhados durante suas performances nas rodas de choro.
Importante notar que tais conhecimentos não dizem respeito apenas às habilidades técnicas e musicais
compreendidas pelo músico.
Finalmente, o terceiro aspecto que me parece significativo é a relação que se estabeleceu entre o violonista
e uma grande diversidade de grupos relevantes no contexto cultural da cidade de Belo Horizonte. Tive a
oportunidade de conviver com Mozart de maneira bastante próxima por cerca de 10 anos entre 2003
aproximadamente e 2015, ano de seu falecimento. Durante esse período, pude observar como se constituiu
entre o sico e os agentes que circulavam nos ambientes das rodas e eventos ligados ao choro uma relação
de respeito e reverência. Tal relação resultou, a partir do final dos anos 2000, em uma série de ações que
promoveram Mozart a um grau de proeminência no cenário cultural da capital mineira. Músicos, agentes
culturais, políticos, jornalistas, artistas em geral, passam então a noticiar a relevância do músico por meio
de matérias jornalísticas, programas de rádio e televisão, documentários, entre outras ações.
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Tendo em vista todo o contexto exposto até aqui, nos aproximamos das questões que norteiam este
trabalho. Se, como vimos, Mozart não foi um músico “criador”, no sentido tradicional do termo no campo
das artes o inventor de uma linguagem, de um estilo, um compositor ou um violonista de técnica
exuberante por que foi reverenciado por seus pares e pelo meio social que o circundava? Se Mozart não
representou o modelo habitual do artista criador, em que se sustenta a notoriedade alcançada por ele?
1. (Re)Conhecendo Mozart
Guardo na memória meus primeiros contatos com os locais onde se cultivava a gafieira em Belo Horizonte,
em meados da década de 1990.
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Os ambientes carregavam certas particularidades aos olhos desse jovem
adolescente, misturando a imagem de uma penumbra enfumaçada com o som das orquestras que
executavam boleros, serestas, tangos, sambas, xotes, maxixes e outros ritmos. Naquele momento, nada
1
Ainda sobre esse tema, vale destacar a conhecida história, transmitida entre os chorões, sobre uma fase
em que Dino 7 Cordas enfrentou dificuldades para obter trabalhos e precisou lançar mão da guitarra elétrica
para se sustentar.
2
Destaco aqui a realização do documentário Simplicidade dedicado exclusivamente à atuação e trajetória
de Mozart, lançado em 2015 e as duas condecorações concedidas ao músico pela Câmara de Vereadores
da capital mineira. Em abril de 2010, Mozart recebeu o título de Cidadão Honorário e, em julho de 2015, a
homenagem de Honra ao Mérito (Junqueira 2023).
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Elite, Estrela e Montanhês foram alguns dos clubes que ajudaram a escrever a história da boemia festiva
de Belo Horizonte desde a década de 1940. Esses salões se situavam no hipercentro da cidade e encerraram
suas atividades no final da década de 1990 e início da década de 2000.
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poderia ser mais exótico para um candidato a roqueiro do que pessoas dançando em par enlaçado,
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vestidas
a caráter (a cada número, uma troca de figurino) ao som de ritmos brasileiros e latinos. Além disso, o público
dos salões era composto por senhoras e senhores de uma faixa etária bem mais avançada do que a minha.
Apesar do compreensível embaraço juvenil, algo naquele ambiente me interessava. Depois de algum tempo
consegui me livrar das aulas de dança financiadas por minha tia paterna e passei a frequentar aqueles
espaços como um ouvinte-espectador curioso. Reconheço que, por influência de familiares, tive a
oportunidade de frequentar um rico universo que àquela altura passava por profundas alterações,
impactando sensivelmente os espaços e formas de cultivo e circulação de gêneros, danças e repertórios.
Certa ocasião, acompanhando minha tia e minha avó, fui a um restaurante onde acontecia um baile no salão
principal. Ao chegarmos, nos dirigimos imediatamente aos fundos do estabelecimento, uma espécie de área
privativa, onde havia uma mesa redonda que apoiava os comes e bebes. Ao redor da mesa três músicos e os
instrumentos: violão, cavaquinho e pandeiro. Minha avó e minha tia se aproximaram de um dos músicos e
cumprimentaram-no, conversando mais detidamente. Tratava-se de Mozart, que tocava em diversos
espaços que frequentávamos. Em entrevista, Carlos um dos componentes da roda descrita acima e
amigo de primeira hora de Mozart , comenta sobre o local que ficou conhecido na cidade justamente por
reunir bailes em um salão interno e uma roda de choro na área externa.
[O] Quintal do Gamela, quem tocava era o Mozart Secundino de Oliveira e o Carlos.
os dois. Acústico. Era um quintal que tinha um restaurante que entrava pela Afonso
Pena. Esse era pela Gonçalves Dias. tinha a chamada cachaçaria, onde eles faziam alguns
tira-gostos pra quem estava no quintal. E o outro lugar tinha o restaurante. Então nós
tocávamos de segunda a sábado. E interessante, o dia mais movimentado era segunda-
feira. Agora, sexta e sábado, quando a gente estava com o Waldir, então o que acontecia?
Eu pegava e pedia ao Mário com o bandolinista dele. Ele ia pra e levava o pandeiro. E
como também era só eu e Mozart, aí chegou lá uma vez o coronel Jonas: “eu posso pôr um
bandolim?”. Depois do Coronel Jonas apareceu o Fernando do pandeiro e foi aparecendo
o pessoal. Tinha o… como era o nome dele meu Deus? Era um engenheiro. Ele gostava de
tocar uma timba. Eu esqueci o nome dele. É gente nossa. Miguel. Tocava uma timba. E foi
aparecendo o pessoal. Inclusive teve um francês uma vez que foi levado por alguém que
frequentava lá. Ele tocava cavaquinho, mas não usava palheta. Era com o dedo. Ele esteve
muito aqui. Teve lá no Ausier. Mas lá no quintal era interessante. E na segunda-feira era o
dia mais cheio (Junqueira 2023, 100).
O “Waldir” a quem Carlos se refere, é Waldir Silva, destacado músico e compositor mineiro, referência
não apenas para músicos de choro da geração de Mozart, mas para todos que se dedicam ao gênero,
especialmente no estado de Minas Gerais. Waldir Silva iniciou sua carreira no rádio em 1951, aos 20 anos de
idade, atuando como cantor e instrumentista. Gravou 29 LPs e 9 CDs, recebendo disco de ouro pelo álbum
Tangos e Boleros, lançado em 2002. Ao todo, seus discos venderam mais de seis milhões de cópias. Waldir
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Sobre as danças de par enlaçado e suas implicações culturais na formação de gêneros urbanos populares,
ver Sandroni (2001, 105-106).
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gravou composições próprias e de outros autores, tendo algumas de suas músicas como temas de novelas,
como é o caso de Castelo de Amor, tema da novela Pecado Capital da Rede Globo em 1977 (Freitas 2005).
Na entrevista que realizei com Mozart, o nome de Waldir Silva aparece pela primeira vez justamente no
momento em que pergunto com quantos anos ele começa a tocar violão. Mozart responde:
Ô Beto, eu não lembro. Eu devia ter uns vinte e cinco anos. O Waldir Silva, ele era do
regional da Rádio Inconfidência, tocava cavaquinho na Rádio Inconfidência. Na Rádio
Inconfidência, tinha dois regionais. Tinha o um e o dois. Ele tocava no um. E fazia também
o programa A hora do fazendeiro, na Rádio Inconfidência mesmo. Mas ele fazia cantando.
Você sabe que ele cantava, né? Cantava e bem. Repertório do Augusto Calheiros.
5
Então
me convidou para acompanhá-lo na Rádio Inconfidência e eu fui. Fui eu e o meu amigo
Geraldo. Inclusive o Geraldo era uma pessoa… ele é, é vivo. Mas acho que não toca mais.
Mas era uma pessoa que fazia um segundo violão muito perfeito. E eu nessa época fazia o
primeiro violão. Então nós dois, modéstia a parte, éramos uma dupla…! (Junqueira 2023,
100).
No relato de Mozart, emerge um dado fundamental para a compreensão da prática musical que o
caracterizou. Ele emprega os termos “primeiro” e “segundo” violão para se referir à dupla que fazia com seu
amigo Geraldo. Retornaremos a esse tema, mas vale destacar que a qualificação comumente utilizada
atualmente para distinguir as funções dos dois violões no contexto dos regionais de choro violão de seis
cordas e violão de sete cordas não estava consolidada no início da década de 1950. Em outras palavras, o
violão de sete cordas ainda não havia ganhado a proeminência que atingiu nas décadas subsequentes. No
entanto, é preciso observar que duas funções violonísticas claramente distintas se destacavam no âmbito
dos conjuntos regionais e Mozart era especialista, à época, em uma dessas funções justamente a função
ocupada atualmente pelo violão de sete cordas.
Alguns anos depois de meu encontro com Mozart no quintal do Gamela, tive outra experiência marcante na
qual o músico teve papel fundamental. Eu amargava as dificuldades inerentes a um curso de graduação em
música de inspiração conservatorial e, talvez, por essa razão, flertava com a música popular e mais
especificamente com o choro. Na tentativa de desvencilhar-me de certo marasmo escolástico eu e outros
colegas da universidade criamos um grupo de choro que não chegou a se apresentar publicamente. Apenas
ensaiávamos, lendo partituras que não correspondiam exatamente ao que era executado pelos músicos mais
experientes. Assim, mesmo que decodificássemos os símbolos que representavam parte dos sons presentes
naquelas obras, havia uma divergência entre o que tocávamos e o que escutávamos nas gravações de
referência e rodas de choro que frequentávamos. Num desses ensaios, que ocorriam em geral na casa do já
5
Augusto Calheiros (1891-1956) foi um músico brasileiro envolvido no contexto de origem dos conjuntos
regionais. Iniciou sua carreira no Recife em meados da década de 1920 e em 1927 se transferiu para o Rio
de Janeiro juntamente com o grupo pernambucano Turunas da Mauriceia, do qual era integrante. No Rio de
Janeiro, Augusto Calheiros fez enorme sucesso em função de sua voz afinada e estilo peculiar de
interpretação.
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citado cavaquinista Carlos
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único membro do grupo da referida banda que não fazia parte da
universidade , Mozart chegou, bastante elegante, bem-vestido e perfumado. Caminhava lentamente
carregando seu estojo de violão. Muitas vezes, um bom instrumento pode ser reconhecido apenas pela caixa
onde é transportado, uma vez que esta pode ter um valor comercial mais alto do que um instrumento de
qualidade média. A julgar pelo estojo, não se tratava de um violão qualquer, como de fato não era. Mozart
foi extremamente simpático conosco, músicos inexperientes. Seu semblante era enigmático e sério por um
lado, mas também tranquilo e bem-humorado por outro.
Nessa ocasião, pude perceber as diferenças entre um violão “clássico” (aquele que eu utilizava e praticava)
e o violão híbrido, utilizado na tradição do choro, que mistura cordas de aço com cordas de nylon. Tais
diferenças, como se pode imaginar, não se restringem ao material das cordas dos instrumentos, estendendo-
se para as formas de execução dos violonistas. Não apenas a postura de Mozart, como também o uso da
dedeira plectro de acrílico ou metal que se acopla ao dedo polegar da mão direita do violonista , foram
elementos que me chamaram a atenção nessa ocasião. Além disso, como já mencionado, eu era um músico
muito dependente do registro escrito, enquanto Mozart, ao contrário, tocava com muita desenvoltura sem
ler, improvisando melodicamente na região grave do instrumento e harmonicamente (através de formações
de acordes invertidos) por toda a extensão do braço do violão. Foi a partir daí, quando me aproximei de uma
execução que conduzia a uma sonoridade similar àquela que eu considerava mais autêntica, característica,
típica, original, que decidi me dedicar mais seriamente à pesquisa e à performance do choro. Talvez seja
possível propor que as diferenças entre o chamado violão clássico aquele cultivado nos cursos de
graduação em sica e a tradição violonística representada por Mozart não são tão grandes como se
imagina. Dito de outra forma, considerando os repertórios e as técnicas empregadas na tradição do violão
de acompanhamento no contexto da música popular urbana no Brasil, talvez a execução de Mozart seja
igualmente “clássica”, no sentido modelar e paradigmático.
Na medida em que o choro conquistou popularidade e foi sendo executado com mais frequência em
diferentes espaços, ocupados especialmente por jovens de classe média, Mozart foi paulatinamente se
tornando uma espécie de “patrimônio” da cidade, um “xodó da juventude.
7
6
José Carlos Choairy nasceu no dia 31 de outubro de 1934 na cidade de São Bento, interior do Maranhão.
Estabeleceu-se em Belo Horizonte com a família em 1952. Até os dias de hoje, Carlos é um grande
incentivador das novas gerações de músicos de choro e busca estar em contato com as rodas da cidade.
7
O músico ficou conhecido como o “xodó da galera”, especialmente em função do título de uma extensa
matéria jornalística a seu respeito, que trouxe no título tal expressão em letras garrafais. A partir de então,
outras reportagens passaram a reproduzir a alcunha.
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Figura 1 Matéria do jornal Hoje em Dia de 15/09/2015
Fonte: Jornal Hoje em Dia (impresso)
Esse público (re)descobria a potência dos gêneros musicais forjados no Brasil entre a segunda metade do
século XIX e a primeira metade do século XX, dentre esses o samba, o frevo, o baião, o xote, o maracatu, a
seresta e o choro.
Foi nesse período, na primeira metade dos anos 2000, que se iniciou minha (ainda tímida) profissionalização
como músico, tocando com colegas que tinham os mesmos interesses e expectativas em relação ao choro.
O bairro de Santa Tereza, por sua característica boêmia, pela grande concentração de bares, e por sua
própria tradição e vocação musical foi o local que nos acolheu nesse primeiro momento.
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Depois de tocar
em diversos bares do bairro, nos fixamos no Mercado de Santa Tereza, espaço em que tivemos um contato
mais próximo e frequente com músicos de choro mais experientes. Marcos Frederico, meu colega de grupo
nessa fase, comenta: “A gente tocava domingo de manhã. Chegávamos às 11 horas da manhã, começávamos
meio-dia e tocávamos a tarde inteira. Eno mercado eu acho que já deu uma ampliada no repertório e nas
participações. Eu acho que foi lá que os músicos profissionais chegaram” (Junqueira 2023, 92).
Em um domingo, durante nossa apresentação na Confraria do Velho Chico nome do estabelecimento onde
nos apresentávamos dentro do mercado Mozart chegou, acompanhado de outros chorões. Reconheci
imediatamente aquelas fisionomias. Eram artistas atuantes no contexto musical de Belo Horizonte. Cada um
deles carregava seu respectivo instrumento. Provavelmente, nesse dia, ficou nítida para mim a diferença
entre uma apresentação musical ordinária, habitual, comum, e uma roda de choro. Mozart e seus colegas,
ao visualizarem a mesa em que estávamos tocando, se dirigiram até e, com toda a naturalidade,
assentaram-se para tocarmos juntos.
8
Vale ressaltar que o aclamado Clube da Esquina foi criado no bairro de Santa Tereza em Belo Horizonte e
vários de seus integrantes continuam a frequentar os bares da região, muitas vezes tocando em jam sessions
improvisadas ou mesmo se acompanhando sozinhos ao violão.
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Tocamos a tarde toda, trocamos experiências, dialogamos sobre assuntos variados. Embora houvesse
diferenças evidentes entre nós relacionadas à idade, origem, formação e raça, aquele encontro me mostrou
uma nova possibilidade de fazer música. A propósito, cabe aqui uma breve reflexão a respeito da interação
entre um grupo de jovens brancos de classe média e sicos negros, representados, nesse caso, por Mozart.
Embora a dinâmica racial possa ser analisada através de distintas perspectivas, partimos de uma realidade
em que tal interação ocorre em uma sociedade marcada por uma história de escravidão, segregação racial
e desigualdade, o que afeta substancialmente o modo como cada agente compreende sua identidade no
contexto descrito. Nesse sentido, ainda que Mozart pudesse estar mais consciente das disparidades raciais
existentes naquele encontro enquanto o grupo de jovens brancos permanecia com uma percepção
privilegiada do mundo não éramos confrontados com o peso dessa história. Assim, da tensão entre a
consciência do privilégio e o desejo de ser aliado do personagem negro, resultou uma convivência longeva,
complexa e multifacetada, caracterizada pela admiração mútua e, sobretudo, pelo reconhecimento de
Mozart como notável expoente daquele contexto.
Um comentário sobre as rodas de choro e suas diferenças em relação a outros tipos de apresentações, como
concertos, shows e assemelhados. Estes podem ocorrer em locais abertos ou fechados, em palcos de
diferentes tamanhos e formatos, com variações de proximidade entre o público e o espetáculo, e assim por
diante; mas uma certa delimitação entre público e artista, um afastamento da audiência em relação à cena,
tende a perpassar todas essas modalidades. Em outras palavras, nas apresentações musicais convencionais
as interações entre público e músicos ficam restritas a momentos prévia ou tacitamente designados. Na roda
de choro, por outro lado, a permeabilidade entre os músicos e outros agentes que, nesse caso, pode incluir
também outros músicos que eventualmente poderão se juntar à roda tende a ser mais acentuada. Dessa
forma, as interações entre os diversos agentes sociais presentes na roda de choro, mais do que desejáveis,
são essenciais para a existência da mesma.
Segundo Henrique Cazes (2005), embora o choro possa ser ouvido e executado em palcos de teatros, casas
noturnas e bares, não vidas que o contexto natural desse gênero são as rodas. Elas podem ser
realizadas em locais públicos ou podem possuir um caráter privado, sendo realizadas em encontros
domésticos. Uma das características mais importantes da roda é que ela “mistura profissionais e amadores,
gente que toca melhor ou pior, sem nenhum problema” (Cazes 2005, 113).
9
Ainda sobre o caráter
participativo do choro, vale ressaltar as formas de transmissão de conhecimentos relativos à prática, que
ocorrem, sobretudo, através da observação e performance, em espaços comunitários e redes de
sociabilidade. Isso reforça o argumento que descreve o choro não apenas como um estilo ou gênero musical,
mas principalmente como uma prática social que se sustenta por meio da participação dos diversos agentes
9
Creio que tenha ficado clara a intenção do autor ao distinguir “profissionais” de “amadores”. No entanto,
por prudência, faço aqui uma ressalva: no caso do choro é importante considerar que grande parte de seus
praticantes, desde o surgimento do gênero na segunda metade do século XX, desempenha outras atividades
profissionais para se manter. O próprio Mozart exerceu diversas ocupações: foi carregador, taxista,
vendedor de doces, entre outras. Por outro lado, é igualmente importante ressaltar que não basta um
músico ser profissional para participar de uma roda de choro. Em outras palavras, um músico amador (que
não tem a música como profissão), no contexto do choro, pode desempenhar um papel mais relevante do
que um músico profissional.
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envolvidos (Livingston-Isenhour e Garcia 2005). Nesse sentido, vale destacar que o conceito de música
participativa é formulado por Thomas Turino (2008), como uma dinâmica social que emerge durante o
processo musical, em oposição à música de performance ou à música de escuta, na qual a audiência se
encontraria em postura relativamente passiva. O autor propõe que, na música participativa, os limites entre
audiência e artistas tendem a ser suprimidos e os participantes são tão criadores (no sentido de repertórios
estendidos) quanto os músicos que executam repertórios essencialmente sonoros.
Paulo Amado (2018), em seus apontamentos etnográficos, descreve a roda do Bar do Salomão
10
da seguinte
forma:
Aquela noite a organologia daquele Choro estava no que se toma de comum para o gênero:
o som de prata de uma flauta, as faíscas de um cavaco centro, o tilintar de um bandolim
solista e os bordões e harmonia dos violões de seis e de sete cordas. Sentavam-se os
músicos em torno de uma pequena mesinha circular um pouco mais alta que seus próprios
joelhos. O formato circular do pequeno móvel se irradiava para a disposição dos músicos.
E ali ainda se via outro círculo concêntrico boa parte do público no bar na ocasião se
postava de pé, por detrás dos músicos, também formando uma espécie de roda da
audiência que em movimentos compassados gravitava lenta por ali. A maioria desses
ouvintes mais atentos era de faixa etária mais avançada, mas nem todos. Os dois
envoltórios humanos centrados uma roda dentro da outra vez ou outra se
atravessavam por atendentes transitando com suas entregas ou outras pessoas: um
tremendo aperto ali dentro. Alguns músicos também iam e vinham, mas outros ficavam
sentados em seus lugares todo o tempo (Amado 2018, 09).
A citação acima resume boa parte das ideias que eu gostaria de trazer em relação às rodas de choro. Esse
atravessamento de agentes que transitam entre envoltórios circulares é o que, em minha opinião,
potencializa a criação de uma “boa” roda de choro. Como bem notou Amado, no caso específico da roda do
bar do Salomão, a minúscula mesinha redonda, onde se apoiava bebidas e tira-gostos destinados aos
músicos, pode ser tomada como metáfora, espécie de núcleo das outras formas circundantes que
gravitavam por ali. A roda do Salomão foi um dos últimos redutos de choro frequentados por Mozart antes
de seu falecimento em 2015. Ali se criou um espaço de convivência entre ele e músicos de uma geração mais
jovem que a minha. Deu-se o cultivo e a transmissão de práticas sociomusicais que atraiu a atenção de um
público que se interessa cada vez mais pelo choro na cidade de Belo Horizonte.
10
O bar do Salomão se situa em uma esquina do bairro Serra, região sul de Belo Horizonte. A roda de choro
foi instituída no local no ano de 2008 e paulatinamente foi agregando músicos de choro de diversas gerações.
Tornou-se o maior reduto de choro da cidade entre 2010 e 2017 até a total desagregação da roda no ano de
2018 por questões políticas relacionadas à eleição presidencial daquele ano. Uma curiosidade: o bar do
Salomão também é reconhecido como um tradicional reduto de torcedores do Clube Atlético Mineiro. A
decoração do recinto é toda inspirada nos temas do clube e as transmissões dos jogos do Galo mascote do
referido clube são um costume no bar.
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2. A origem dos regionais: exotismo e etnicidade
O surgimento do termo regional como designação para agrupamentos que executam o choro tem origem
nos primeiros conjuntos que se dedicaram à interpretação de músicas populares no início do século XX no
Rio de Janeiro, acompanhando modinhas (que ganhariam posteriormente o nome de seresta), sambas-
canção lentos, lundus, maxixes, marchas, sambas e, quando foi preciso, boleros, foxes, tangos, rumbas e até
árias de ópera. Os músicos de tais agrupamentos eram intuitivos a tal ponto que eram capazes de, em alguns
minutos, confeccionar e realizar arranjos para qualquer tipo de peça, sem partitura e quase sem ensaio
(Taborda 2004). Esses grupos também buscavam reproduzir em seus repertórios, performances e figurinos,
aspectos que denotassem certo exotismo em relação ao contexto urbano que se instaurava na cidade
naquela fase. Referências e temas ligados ao Nordeste
11
do país como o Cangaço, a Guerra de Canudos, a
figura de Lampião e do seu bando estavam em voga na chamada belle époque carioca.
Segundo Márcia Taborda (2004), nas primeiras décadas do século XX, os grupos de choro se apresentavam
com um programa de variedades e temática regional, motivados em particular pela exacerbação de um
nacionalismo vocalizado pelos principais intelectuais do país, que buscavam propor um projeto nacional-
erudito-popular para o Brasil.
12
Nesse contexto, obteve destaque o Grupo Caxangá, que trazia a inspiração
nordestina no repertório, na indumentária e na alcunha de seus integrantes, que adotaram para si
codinomes “sertanejos”. O célebre compositor e violonista João Pernambuco
13
era apelidado de Guajurema;
Pixinguinha era Chico Dunga; músicos menos conhecidos do grande público atualmente, como Caninha, Jacó
Palmieri, Henrique Manoel de Souza, Manoel da Costa e Osmundo Pinto, eram Mané Riachão, Zeca Lima,
Mané Francisco, Porteira e Inácio da Catingueira, respectivamente. Note que o próprio termo caxangá
não possui uma definição clara na língua portuguesa, sendo muito provavelmente uma palavra originária do
tupi-guarani. Assim, o nome do conjunto também reforça a ideia de um Brasil regional, folclórico, sertanejo.
Outros músicos importantes participaram do grupo em sua primeira formação, como Quincas Laranjeiras,
Bonfiglio de Oliveira e Nelson Alves.
11
É preciso ressaltar que o Nordeste do Brasil foi reconhecido como região física e cultural na passagem
dos anos 1940 para os anos 1950. Antes desse período, tal denominação não estava inteiramente
consolidada. Esse fato reforça a ideia de uma concepção regional, sertaneja, ou ainda folclórica, atribuída ao
semiárido do território nacional nessa fase.
12
Mário de Andrade foi o maior representante do projeto nacional-modernista, que priorizou o folclore e o
regionalismo como fonte de inspiração para a criação de uma arte culta e “verdadeiramente” nacional. Não
cabe aqui uma discussão mais aprofundada sobre esse tema, mas vale ressaltar que a intelectualidade
nacional-modernista não incluiu em seu projeto a música urbana que surge entre o fim do século XIX e início
do século XX. José Miguel Wisnik (2004), em artigo intitulado Getúlio da Paixão Cearense, aborda essa
temática.
13
João Teixeira Guimarães nasceu em Petrolândia (PE) no dia 2 de novembro de 1883 e faleceu no dia 16 de
outubro de 1947 na cidade do Rio de Janeiro. Além de um dos maiores expoentes do violão de sua época,
esteve inserido no contexto de consolidação do choro como gênero musical.
11
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Figura 2 Grupo Caxangá com Pixinguinha e João Pernambuco
14
Fonte: Instituto Moreira Salles (IMS) Acervo Pixinguinha
O Grupo Caxangá foi formado em 1914 para as festividades carnavalescas daquele ano e tinha João
Pernambuco como principal organizador. O caso desse músico é especialmente representativo porque
revela uma realidade de trânsito cultural existente entre o Nordeste e a capital do país, mesmo antes da
virada do século XIX para o século XX, conforme aponta Sandroni (2001,100). Na segunda metade do século
XIX, se acentuar o fluxo migratório do Nordeste para o Sudeste do país, acompanhando a mudança do
eixo econômico, que vinha do século anterior e que se expressou também na mudança da capital de
Salvador para o Rio de Janeiro”. João Pernambuco chega ao Rio de Janeiro em 1904, trazendo em sua
“bagagem” os traços da cultura nordestina cultura essa que ratificava o sentimento de um Brasil “raiz”.
15
Vários outros exemplos de músicos nordestinos que chegaram ao Rio de Janeiro nessa fase podem ser
elencados, tais como Luperce Miranda (1904-1977), José Calazans (Jararaca) (1896-1977), Severino Rangel
(Ratinho) (1896-1972), Manuel Pedro dos Santos (Baiano) (1870-1944), Catulo da Paixão Cearense (1863-
1943), Jayme Florence (Meira) (1909-1982), além do mencionado Augusto Calheiros e os companheiros
dos Turunas da Mauriceia. Alguns regionais eram compostos em sua totalidade por integrantes nordestinos,
como o Turunas Pernambucanos, os próprios Turunas da Mauriceia e o Voz do Sertão. Considero importante
salientar esses exemplos, pois, se por um lado havia uma tendência à incorporação de temas relacionados
ao universo sertanejo de forma caricata na cultura do Rio de Janeiro nas décadas de 1910 e 1920, por outro
lado havia, de fato, uma realidade migratória. Em outras palavras, não se tratava de mera encenação a
integração dos elementos exógenos à capital.
A esse respeito, parece-me apropriado examinar o conceito de etnicidade proposto por Manuela Carneiro
da Cunha (2017). Na diáspora ou em situações de intenso contato, a cultura original de um grupo não se
perde ou se funde simplesmente, mas adquire uma função nova e essencial, que se soma às outras enquanto
se torna uma cultura de contraste. Esse novo princípio, chamado também de identidade contrastiva,
determina inúmeros processos, tendendo ao mesmo tempo a se acentuar, tornando-se mais perceptível,
14
Pixinguinha é o primeiro da esquerda para a direita e João Pernambuco é o terceiro (um pouco à frente)
da direita para a esquerda, empunhando um violão.
15
Manuela Carneiro da Cunha (2017, 243) nos adverte que, se por um lado é verdade que existe uma
bagagem cultural, por outro é igualmente correto afirmar que “ela deve ser sucinta: não se levam para a
diáspora todos os seus pertences”.
12
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simplificando-se e reduzindo-se a um mero menor de traços que a distinguem, os chamados elementos
diacríticos.
No caso em tela, os traços diacríticos podem ser verificados na linguagem, nas roupas, nas combinações dos
sons, etc. Dessa forma, a escolha dos tipos de traços culturais que garantirão a distinção do grupo enquanto
tal (aqui os nordestinos, sertanejos ou regionais), dependerá dos outros grupos em questão e da sociedade
em que estão inseridos, uma vez que os sinais diacríticos devem se constituir através da oposição a outros
sinais de mesmo tipo. Assim, os grupos não são definidos a partir de sua cultura, embora, como vemos, a
cultura se inscreva de modo essencial na etnicidade.
A construção da identidade étnica extrai, assim, da chamada tradição, elementos culturais
que, fora do todo em que foram criados, seu sentido se alterou. Em outras palavras, a
etnicidade faz da tradição ideologia, ao fazer passar o outro pelo mesmo; e faz da tradição
um mito na medida em que os elementos culturais que se tornaram “outros”, pelo
rearranjo e simplificação a que foram submetidos, precisamente para se tornarem
diacríticos, encontram- se, por isso mesmo, sobrecarregados de sentido. Extraídos de seu
contexto original, eles adquirem significações que transbordam das primitivas. Um barrete
frígio não é para esquentar a cabeça. Polissemia que permite a existência de uma cultura
de resistência operando com um discurso que é propriamente refratado. E isso nos dois
sentidos, pois os símbolos distintivos de grupos, extraídos de uma tradição cultural e que
podem servir para resistência, são frequentemente abocanhados pelo discurso oficial
(Carneiro da Cunha 2017, 243-244).
A partir dessa perspectiva é possível compreender os conjuntos denominados como regionais como um
desses símbolos distintivos, mencionados na citação acima, representando uma forma de resistência
cultural. Ainda que o discurso de uma história oficial do choro
16
tenda a sublinhar o elemento “exótico” dos
regionais, no sentido da confirmação de uma identidade nacional, parece fundamental refletir sobre a
etnicidade e a construção dos sinais diacríticos.
Assim, os conjuntos de música popular passam a ser identificados e a se reconhecer como regionais. O termo
se consolida independente dos gêneros musicais constantes nos repertórios dos grupos. Além dos gêneros
considerados sertanejos (ou regionais), como o côco, a embolada e a toada, o repertório era composto
também por gêneros essencialmente urbanos, como choros, valsas, maxixes e sambas. Os gêneros
internacionais, como o tango, o ragtime, o fox-trot e o charlestone, também faziam parte do repertório dos
primeiros regionais (Bittar 2011).
No Carnaval de 1917, o Grupo Caxangá obteve grande sucesso ao executar o famoso samba Pelo Telefone,
considerado pela maioria dos estudiosos como primeiro samba a ser registrado e reconhecido como tal, de
16
Escaparia demasiadamente aos propósitos desse trabalho uma atualização do estado da arte a respeito
das histórias do choro, que vêm sendo vastamente pesquisadas sob diversas perspectivas no Brasil. Vale
ressaltar, no entanto, o mapeamento para o registro do choro como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil,
que se encontra disponível na base de dados resultante do processo. O banco de dados pode ser acessado
através do seguinte link: https://acervosvirtuais.ufpel.edu.br/choropatrimonio/
13
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autoria de Ernesto dos Santos (1890-1974), o Donga, e Mauro Almeida. Admite-se atualmente que a sica
foi concebida de maneira coletiva, na famosa casa de Tia Ciata,
17
em uma época em que a noção de autoria
ainda não estava consolidada no âmbito da música popular. O grande sucesso alcançado pelo conjunto, que
até então se configurava como um grupo essencialmente amador, conduziu o Caxangá a um processo de
profissionalização. É assim que no ano de 1919 o diretor do Cine Palais, Isaac Frankel, oferece a Pixinguinha
a oportunidade de tocar sob garantias contratuais, na sala de espera do cinema, marcando o fim do Grupo
Caxangá e a origem do célebre conjunto Os Oito Batutas. Também chamados de Orquestra Típica, os Oito
Batutas estrearam no dia 7 de abril de 1919, alcançando grande êxito. Além das diversas gravações realizadas
pelo grupo na década de 1920, excursionaram pelo Brasil e pelo exterior sob a liderança de Pixinguinha,
contribuindo de maneira decisiva para a difusão de suas composições.
18
A constante variação na composição d’Os Oito Batutas em fins das décadas de 1920 fato aliás que marca
o conjunto desde sua origem termina por extingui-lo, dando espaço a outros agrupamentos que vieram a
sucedê-lo, criando um novo estilo no âmbito dos regionais. Alguns músicos que passaram pelo grupo foram:
Donga (violão); Jacob Palmieri (pandeiro); José Alves de Lima (bandolim); Luiz Pinto da Silva (bandola e reco-
reco); Nelson dos Santos Alves (cavaquinho); Otávio da Rocha Viana (conhecido como China, um dos
precursores do violão de sete cordas no Brasil e irmão de Pixinguinha).
3. Cuidado Violão! Baixos de obrigação e forma-choro
Discutimos no tópico anterior a origem e a utilização do termo regional para a designação de agrupamentos
de música popular no Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX. Cabe salientar que Mozart, embora
fosse herdeiro da tradição violonística dos conjuntos regionais que surgiram posteriormente assunto que
abordaremos a seguir , não cultivou as práticas desses primeiros agrupamentos. Em outras palavras, a
exacerbação de um nacionalismo apresentado em repertórios variados, com tendências ao exotismo, não
fazia parte do universo sociomusical do músico. Como veremos adiante, o regional para Mozart não era
aquele do início do século XX, que valoriza o exotismo rural, mas uma versão posterior, urbana, vinculada
ao mercado mediatizado.
17
Hilária Batista de Almeida nasceu em Santo Amaro da Purificação (BA) em 1851 e morreu, em 1924, no
Rio de Janeiro. Além de ter sido uma das figuras mais influentes para a formação do samba carioca, ela foi
iniciada no candomblé por Bangboshê Obitikô, babal africano que chega à Bahia no final da década de
1830, vindo do reino de Oyo (Nigéria). No Rio de Janeiro cultivou a religião africana, tornando-se iakekerê
(ou mãe-pequena), segunda pessoa mais importante de uma casa de candomblé, responsável pelas relações
da comunidade com o mundo exterior (Moura 1995).
18
Alfredo da Rocha Vianna Filho (1897-1873) é amplamente reconhecido no universo do choro e da música
popular brasileira de maneira geral como maior ícone do gênero, não apenas por sua vasta produção
composicional mas, principalmente, por sua capacidade de síntese formal. Suas obras contribuíram
definitivamente para a consolidação do estilo, dialogando com seus predecessores e sucessores. O dia
nacional do choro, comemorado em 23 de abril, é uma homenagem à data em que se acreditava ser sua
data de nascimento. Foi criada oficialmente em 4 de setembro do ano 2000. Em novembro de 2016, no
entanto, se descobriu que a verdadeira data de nascimento do músico é 4 de maio de 1897. Apesar disso, a
data da comemoração do dia do choro permanece inalterada.
14
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Em entrevista, Mozart declara que escutava o programa Noites Brasileiras, transmitido pela rádio Mayrink
Veiga.
19
Segundo ele, “era só música de seresta e o regional do Canhoto acompanhando. Aí você já viu o que
acontecia né? (risos)” (Junqueira 2023, 156). O programa mencionado, que ia ao ar às sextas-feiras às 22
horas, tinha o conjunto executando apenas seu repertório instrumental (Bittar, 2011). Note que Mozart se
refere ao repertório instrumental como música de seresta. Nesse sentido, parece importante salientar as
diferentes conotações que aquilo que designamos comumente por meio da categoria genérica choro, pode
assumir em outros contextos seresta, gafieira, samba, polca, maxixe, valsa, xote, e assim por diante.
Dizendo de outra maneira, o termo guarda-chuva choro, parece abrigar um sem-número de gêneros, ritmos,
repertórios, gestos, danças, locais, personagens, agrupamentos, estéticas e ideias.
Peço então que Mozart cite o nome dos componentes do regional do Canhoto. “Era o Dino e o Meira no
violão. Canhoto no cavaquinho. Orlando Silveira no acordeom. O Carlos Poyares, que depois eu vou contar
como eu consegui entrar na dio Mayrink VeigaCarlos Poyares de flauta” (Junqueira 2023, 156). Nessa
época, o regional contava ainda com Jorginho do Pandeiro na percussão. Pelo relato de Mozart, pode-se
deduzir que se trata de um período compreendido entre os anos de 1957 ano em que o flautista Carlos
Poyares passa a integrar o conjunto mencionado e 1965, ano de encerramento das atividades da rádio
Mayrink Veiga.
Ao rememorar os componentes do regional, Mozart recorda de imediato, um episódio marcante: seu
encontro com músicos que foram grandes referências para sua formação. “Eu ficava entusiasmado e
pensando assim: um dia eu vou ter que conhecer esse regional. E ficava com aquilo na cabeça” (Junqueira
2023, 156). No início da década de 1960, Mozart é convidado por Waldomiro Constant cavaquinista,
compositor e então diretor do regional da rádio Guarani em Belo Horizonte para uma viagem ao Rio de
Janeiro. Miro, como era chamado por Mozart, faria uma visita a seu sogro, que morava naquela cidade,
durante um feriado de Páscoa. No sábado de Aleluia, dia que ficaria marcado em sua memória, Mozart
retornaria a Belo Horizonte e Waldomiro permaneceria no Rio.
Ele então me trouxe de Bangu para o Centro e passamos num Café. A gente tomou um
café. Perto da rodoviária. Então estamos lá, tomando um café e chega um cidadão com um
estojozinho.
- Bom dia.
- Bom dia.
- Ah! Que instrumento é esse?
- É flauta. Eu estava aqui na Mayrink Veiga, eu sou o Carlos Poyares.
- Ah! Prazer.
ele saiu, se despediu. eu pensei assim que ainda faltavam uns 40 ou 50 minutos pra
pegar o ônibus. E eu acordei. Falei: olha, essa é a oportunidade de eu conhecer o
pessoal da Rádio. Aí cheguei à portaria e pedi pra chamar o Carlos Poyares.
- Ah! Vamos lá dentro, nós estamos ensaiando lá.
19
A rádio Mayrink Veiga foi uma emissora carioca fundada em 1926. Foi reduto de talentos e ícones da
chamada “Era de Ouro do Rádio”. Em 1965 foi fechada pelo regime militar.
15
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Chegou e me apresentou pra turma toda: Dino, Meira… então eu me lembro como se
fosse hoje. O Dino falou assim:
- Olha, nós vamos tocar uma música pra você aqui. Nós vamos tocar primeiro o Cuidado
Violão porque os violões trabalham bastante. Então eu tive uma emoção muito grande. Foi
uma das maiores emoções que eu tive na minha vida. Então eu fiquei muito feliz. Ele
tocou lá mais umas duas músicas e eu fui pra rodoviária. Peguei o ônibus e vim no ônibus
assim pensando: o dia que eu aprender a acompanhar essa música Cuidado Violão eu vou
me sentir realizado. Mas não existe esse negócio de realização não. Não é? Aprendizado
não tem fim. A música é uma coisa infinita. Você aprendeu uma coisa, mas tem outra mais
difícil que você tem que aprender (Junqueira 2023, 157).
É possível perceber através desse relato não apenas a importância que Mozart atribui ao momento em que
pôde presenciar a execução de Cuidado Violão pelos músicos do regional do Canhoto, mas também o desejo
de chegar a executá-la no futuro. Em sua fala, ele ressalta sua felicidade e seu estado de emoção ao ouvir a
música, além do sentimento de realização ao “aprender a acompanhar essa música”. Em sua breve reflexão,
o músico pondera sobre a relação entre esse sentimento de realização e um aprendizado mais abrangente,
amplo, em suas palavras, “uma coisa infinita”.
Em Cuidado Violão o violão de seis cordas de acompanhamento possui uma função bastante característica
e realiza, juntamente ao violão de sete cordas, frases em terças paralelas, as chamadas obrigações. Os baixos
de obrigação se caracterizam como trechos estruturantes das obras, ao contrário da prática violonística de
caráter mais improvisatório realizada na região grave do instrumento. Esse procedimento requer a execução
de frases obrigatórias, como o próprio termo sugere. Segundo Luiz Otávio Braga (2002), existem trechos
melódicos realizados na região grave do violão que nascem com as composições e delas não devem ser
separados, a não ser que um arranjo muito alterado seja construído, de preferência original e bem realizado,
o que justificaria, assim, a omissão de tais trechos. O autor ainda ressalta que as obrigações são
corriqueiramente consagradas por gravações.
No choro Cuidado Violão os baixos de obrigação realizados pelos violões se apresentam na primeira frase da
música, na anacruse, acionando a melodia principal. A música composta e comumente executada na
tonalidade de sol menor foi gravada pela primeira vez no disco intitulado Choros Imortais, de Altamiro
Carrilho,
20
lançado em 1964. Apesar de não integrar o regional do Canhoto nessa época, o flautista foi
acompanhado por esse conjunto na gravação do disco, que contou com Dino no violão de sete cordas, Meira
no violão de seis cordas, Canhoto no cavaquinho e Jorginho no pandeiro. Formalmente, Cuidado Violão se
difere consideravelmente dos choros convencionais, sobretudo pelo fato de a quadratura
21
da obra não ser
simétrica, algo bastante incomum na tradição do choro. Nessa música, a melodia principal é articulada
20
Altamiro Carrilho nasceu em 1924 em Santo Antônio de Pádua, município do estado do Rio de Janeiro.
Faleceu em 2012 na capital do mesmo estado. Sobre as contribuições do flautista para a música brasileira,
ver Sarmento (2005), Pereira (2016) e Moraes (2017).
21
Como se sabe, a quadratura é o princípio segundo o qual se identifica a simetria nas estruturas das
composições.
16
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constantemente por meio das obrigações, deslocando os violões da tradicional função de acompanhadores
para uma função de destaque. Lembremo-nos do que Dino disse a Mozart a esse respeito: “os violões
trabalham bastante”.
Nas últimas décadas, convencionou-se chamar de forma-choro um tipo de música surgido em meados do
século XIX no Brasil, que se consolidou por práticas e repertórios diversos, e que traz consigo características
formais similares, estruturando-se conforme o seguinte modelo: AA-BB-A-CC-A. Em seu trabalho, Geus
(2009) analisou choros que obedecem a esse padrão composicional, que intercala a reincidência entre as
seções A, B e C. O autor nos informa que cada uma dessas seções é, em geral, constituída por 16 compassos.
Em um modelo ideal, esses 16 compassos são subdivididos em 4 frases menores, de acordo com a seguinte
classificação:
Tab. 1 Estrutura fraseológica do choro
Compasso 1 a 4
Enunciado principal ou antecedente
Compasso 5 a 8
Contraste
Compasso 9 a 12
Repetição do enunciado ou
consequente
Compasso 13 a 16
Desfecho cadencial
Desde a constituição do enunciado principal (ou antecedente) até a estruturação global da obra, identifica-
se as características formais presentes no que chamei de forma-choro. Importante ressaltar que as
tonalidades das diferentes seções variam entre as chamadas tonalidades vizinhas e homônimas.
22
Uma
representação genérica da forma-choro pode ser caracterizada segundo o seguinte modelo.
A B C
||: | Tônica | :||: | Tônica Relativa | :||: | Homônimo | :||
1 16 17 32 33 48
Figura 3 Representação da estrutura da forma-choro
Fonte: JUNQUEIRA, 2023
22
Tonalidades vizinhas são aquelas que possuem a mesma armadura de clave da tonalidade original ou dela
se diferenciam por apenas um acidente. as tonalidades homônimas possuem a mesma tônica, se diferindo
pelo intervalo de terça (maior ou menor).
17
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Em Cuidado Violão, podemos observar que as estruturas maiores da obra, que chamarei de A e B, são
articuladas por seções menores, que chamarei de interlúdios,
23
o que gera uma assimetria formal na
composição. No entanto, é interessante notar que as estruturas internas (antecedente, contraste,
consequente e conclusão), continuam presentes e organizam a fraseologia característica do estilo. Na parte
A que possui 16 compassos, tal qual os choros convencionais , os violões executam as baixarias
normalmente, acompanhando a melodia principal. Na transição da parte A para a parte B, os violões deixam
de ser instrumentos acompanhadores e passam a realizar a melodia principal em terças paralelas. B se
repete, assim como as obrigações. No fim da repetição da parte B, uma obrigação diferente se apresenta,
estruturando o retorno para a parte A, ponto em que a música termina. Assim, podemos analisar as
obrigações de Cuidado Violão como trechos estruturantes que articulam a melodia principal, sendo um
interlúdio composto por 4 compassos e outro composto por 6 compassos. A estrutura de Cuidado Violão se
configura, portanto, da seguinte maneira: ||: A + interlúdio :||: B + interlúdio :|| A + coda ||.
Seção A Interlúdio I Seção B Interlúdio II Seção A
||: | | :||: | Obrigações | | | :|| | Obrigações | | | :||
1 16 17 20 21 35 36 42 x x
Figura 4 Representação da estrutura de Cuidado Violão
Fonte: JUNQUEIRA, 2023
4. O regional de Benedito Lacerda: uma nova gramática
Vimos que o termo regional como forma de designação para agrupamentos musicais no contexto da
sociedade urbana carioca das duas primeiras décadas do século XX se relaciona com traços diacríticos
incorporados por tais grupos em suas roupas, em sua linguagem, em sua música, como forma de distinção e
condição de resistência em face de um discurso hegemônico de modernização. na década de 1930, o
termo regional se cristaliza no âmbito da música popular e se estabelece definitivamente como qualificação
do agrupamento instrumental que executa um tipo de repertório mais consolidado (e menos abrangente do
ponto de vista estético) e com uma instrumentação mais definida. A própria imagem de tais conjuntos passa
a ser redefinida, não apenas através da adoção de ternos e gravatas por parte de seus componentes (em
oposição aos trajes típicos utilizados anteriormente), mas também por meio da reconstrução de sua
identidade. Tal redefinição, modulada justamente a partir do regional
24
(tomado aqui como categoria
analítica), aponta para a ideia de etnicidade na medida em que faz passar o outro pelo mesmo. Nesse
23
Os interlúdios são trechos que articulam as estruturas principais de uma obra. Na música instrumental,
podem servir como transição da tonalidade de uma seção para uma nova tonalidade (de uma nova seção).
24
Vale ressaltar que em meados da década de 1960, quando Jacob do Bandolim cria o Época de Ouro o
termo “regional” é relegado. Jacob, que abominava a denominação, o chamou de “Conjunto”. Radamés
Gnattali adotou solução mais sofisticada: chamou seu regional de “Camerata” (Taborda 1995).
18
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sentido, Carneiro da Cunha (2017, 247) propõe que a etnicidade pode ser compreendida, sobretudo, como
ideologia, além de “poderoso veículo organizatório”.
A etnicidade não seria uma categoria analítica, mas uma categoria “nativa”, isto é, usada
por agentes sociais para os quais ela é relevante, e creio ter sido um equívoco retificá-la
como tem sido feito, destino que, aliás, partilha com outras categorias, nativas como ela.
[…] Tendo em vista quão pouco elucidativo é o recurso à noção de ideologia em suas várias
acepções, é-se conduzido a admitir uma categoria irredutível, que seria a cultura. Pois não
há o que determine o como as coisas são ditas: nesse reduto há mistério. Isso não significa
devolver ao conceito de cultura um significado ontológico e o peso determinante que
teve. Talvez até acabe sendo uma categoria residual. Mas as objeções que levantamos têm
também outro alcance: o de lembrar o respeito que cada país deve à diversidade cultural
dos povos que o compõem. Parece-me que ficou claro que a etnicidade, como qualquer
forma de reivindicação de cunho cultural, é uma forma importante de protestos
eminentemente políticos. Reconhecer o que ela diz, o protesto, a resistência, quem o
faça. Mas o que ela diz, di-lo de certa maneira. Não porque pensar que essa maneira
seja um balbuciar (Carneiro da Cunha 2017, 249).
O regional de Benedito Lacerda é o conjunto reconhecido por realizar uma síntese de elementos sonoros ao
afirmar um estilo de execução da música popular durante os anos em que atuou. Foi justamente com esse
grupo que se configurou uma gramática
25
de acompanhamento do samba e do choro, cujo instrumental é
formado por dois violões, cavaquinho, pandeiro e solista (cantor/a ou instrumentista). Não pretendo dizer
com isso que outras formas de instrumentação, igualmente tradicionais e próprias desses neros,
anteriores e posteriores ao regional de Benedito Lacerda, sejam anacrônicas. Busco apenas sublinhar a
relevância do grupo para a consolidação de um estilo de acompanhamento do choro que se perpetua até os
dias de hoje e do qual Mozart foi leal tributário.
O avanço tecnológico permitiu o aperfeiçoamento das técnicas de gravação e o desenvolvimento das
transmissões radiofônicas no Brasil. Esse contexto possibilitou o surgimento de agentes culturais
(produtores, músicos, compositores, arranjadores, intérpretes), capazes de estabelecer a mediação entre a
produção de um tipo de música popular e um público nela interessado, cada vez mais amplo.
26
O regional
de Benedito Lacerda é impulsionado nesse cenário para o mercado da música popular, assinando contratos
exclusivos com gravadoras e emissoras de rádio.
Benedito Lacerda (1903-1958) nasceu na cidade de Macaé, estado do Rio de Janeiro e ainda criança
transferiu-se com a mãe para a capital, indo morar no bairro do Estácio. Essa região da cidade do Rio de
Janeiro esassociada à criação de um novo tipo de samba, a compositores e músicos que ali viviam, a partir
25
Em seu trabalho, Iuri Bittar (2011) denomina como gramática de acompanhamento do samba alguns dos
elementos que busco salientar aqui, expandindo tal categoria para a execução e performance do choro.
26
O documentário intitulado Programa Casé, disponível na plataforma YouTube, retrata em boa medida
esse contexto. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lKm4bZLujDU. Acesso em: 23 ago 2024.
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Junqueira, Humberto. “Cuidado Violão! Mozart Secundino e o acompanhamento violonístico no âmbito dos conjuntos regionais”
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do final da década de 1920.
27
O tipo de samba gestado no Estácio logo se difundiu e influenciou os
compositores cariocas, de maneira geral, generalizando-se. Segundo Carlos Sandroni (2001, 131), “a
primazia do Estácio sobre outros redutos do samba carioca é admitida por todos”. O próprio paradigma
proposto por este autor, batizado como paradigma do Estácio, é uma clara indicação da relevância dessa
região no contexto cultural carioca. Nesse sentido, vale ressaltar: Benedito Lacerda foi um músico oriundo
desse contexto. Tocava flauta e instrumentos de percussão na Deixa Falar, considerada a primeira escola de
samba do Rio de Janeiro a adotar o formato de desfile carnavalesco que conhecemos hoje (Bittar 2011).
Devido à sua localização geográfica espécie de limite da expansão do velho centro na direção da zona norte
o Estácio atraiu uma população proletária, de pequeno comércio e atividades artesanais. “A proximidade
com a zona de prostituição do Mangue, porém, atraía para os seus muitos bares, nas vizinhanças do Largo
do Estácio, os bambas da zona, isto é, os tipos especiais que viviam graças a seus dotes de esperteza ou
valentia da exploração do jogo ou das mulheres” (Tinhorão 2010, 306). Tinhorão (2010) ressalta ainda que
os bambas eram também conhecidos como bambambãs, e na linguagem da imprensa chamados de
malandros. Durante o Carnaval, o pessoal do Estácio ampliaria a grande concentração de foliões, formando
uma massa de aspecto assustador, à qual começavam a se juntar os primeiros contingentes de populações
pobres e majoritariamente negras, levados a morar nos morros cariocas em função das reformas urbanas
das décadas anteriores.
28
Essa massa vivia em permanente atrito com a polícia e, em 1928, surgiu, a partir
de uma conversa entre os bambas do Estácio, a ideia para a formação de um bloco carnavalesco destinado
a se apresentar pacificamente ao som de sambas. Era a criação do mencionado Deixa Falar, sob a
denominação de Escola de Samba. Esse novo samba urbano que contrastava com o samba amaxixado dos
pioneiros do gênero, como Donga, Sinhô e o próprio Pixinguinha , introduziu também um novo formato de
desfile, conduzido por um instrumento de percussão criado por Alcebíades Barcelos (1902-1975), o Bide. O
surdo, um tambor grave que durante a execução faz prevalecer o segundo tempo do compasso 2/4, de fato
“empurrava” adiante os componentes da escola de samba, tal qual reivindicava um dos pioneiros do estilo
do Estácio, Ismael Silva (1905-1978). É possível notar, portanto, que o fenômeno ocorrido no Estácio não
está isolado de um contexto sociocultural diverso daquele dos primeiro anos do século.
A partir da década de 1930, juntamente com uma política econômica de incentivo ao comércio interno e
aproveitamento das potencialidades nacionais, as próprias fábricas de discos se beneficiariam das criações
das camadas mais baixas. Para a efetivação do aproveitamento comercial da arte musical das grandes
camadas urbanas, algo inédito até então, um fato importante se sucedeu. No ano de 1929, desembarca no
Rio de Janeiro um concessionário da marca Brunswick
29
se oferecendo para explorar o mercado dos discos
de sica popular e neros, como choros, maxixes, marchas, canções e, naturalmente, o novo estilo de
samba do Estácio. O norte-americano concessionário da Brunswick, até hoje não identificado, abriu os
estúdios para iniciantes que se tornariam, posteriormente, figuras célebres, como Carmen Miranda (1909-
27
Para um conhecimento detalhado das implicações sociomusicais relacionadas ao samba do Estácio, ver
Sandroni (2001).
28
Para mais detalhes acerca de tais reformas, ver Tinhorão (2010).
29
Brunswick Corporation, anteriormente conhecida como Brunswick-Balke-Collender Company, é uma
empresa americana que desenvolve, fabrica e comercializa uma ampla variedade de produtos desde 1845.
20
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1955), Silvio Caldas (1908-1998), dentre outros e entre os quais se incluíam o desconhecido conjunto Gente
do Morro (Tinhorão 2010).
O próprio nome do grupo é uma indicação do propósito comercial, uma ambição em vender a música das
camadas mais pobres da população do Rio de Janeiro. O Gente do Morro, fundado em 1930, era constituído
inicialmente por Benedito Lacerda (flauta e voz), Gorgulho e Henrique Brito (violões), Júlio dos Santos
(cavaco), Alcebíades Barcelos (percussão), Gastão de Oliveira (percussão), Juvenal Lopes (percussão) e Russo
(percussão). Era composto por moradores do Estácio e jovens de classe média. Em outras palavras, nenhum
dos integrantes era realmente “do morro”. O que o Gente do Morro trazia como novidade era a fusão da
instrumentação dos conjuntos regionais, cuja base era constituída por violões, cavaquinho e solista, com a
batucada introduzida pelos ritmistas do Estácio.
30
Já nos primeiros anos de sua existência, o Gente do Morro sofreu diversas alterações em sua formação. Em
1932, com a entrada de Waldiro Frederico Tramontano (1908-1987) no cavaquinho, o Canhoto, o conjunto
inicia um percurso de consolidação de sua formação. Segundo Bittar (2011), teriam surgido questionamentos
por parte do público durante uma excursão realizada pelo grupo em 1934, em função do nome do conjunto
não representar a realidade social dos integrantes. Foi a partir de então que o nome do grupo se altera para
Conjunto Regional Benedito Lacerda. Em 1935, novas alterações na formação voltam a se suceder, mas é em
1937 que as mudanças substanciais ocorrem, com a entrada de Horondino José da Silva (1918-2006), o
célebre Dino 7 cordas, e de Jayme Tomás Florence (1909-1982), o Meira. Importante ressaltar que Dino não
tocava violão de sete cordas nessa época. Estava formado, portanto, o trio de acompanhamento Dino-Meira-
Canhoto, considerado por muitos o mais importante núcleo de acompanhamento da música popular
brasileira, que atuaria junto por aproximadamente 45 anos (Bittar 2011).
Entre 1937 e 1950, o regional de Benedito Lacerda assinou contratos de gravação e lançamento de
fonogramas com diversas gravadoras, como Columbia, Odeon e Victor, executando predominantemente
sambas e choros e acompanhando os cantores mais importantes da época, como Carmen Miranda, Silvio
Caldas, Orlando Silva, Francisco Alves, Isaura Garcia, Dalva de Oliveira, Linda Batista, entre muitos outros. A
partir de 1951, Benedito se afasta do conjunto, que passa a ser liderado pelo cavaquinista Canhoto.
30
Ainda sobre esse assunto, ver Bittar (2011, 51) e Tinhorão (2010, 311).
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Figura 5 Regional de Benedito Lacerda
31
Fonte: Coleção Jacob do Bandolim - Acervo MIS-RJ
Vimos como se deu o encontro de Mozart com o regional de Canhoto no Rio de Janeiro na rádio Mayrink
Veiga. Uma análise mais detida a respeito dos regionais e sobre a própria constituição desses agrupamentos
historicamente nos permite compreender com mais profundidade a tradição violonística herdada pelo
violonista. Esses músicos foram pioneiros, criadores de uma linguagem, de uma gramática de
acompanhamento da música popular urbana que se desenvolvia plenamente, impulsionados por um amplo
mercado que se abria. Em entrevista, Mozart revela que começou a tocar violão com vinte anos,
aproximadamente (Junqueira 2023). Considerando o ano do nascimento dele, é possível concluir que foi na
década de 1940 que inicia a jornada como músico, o que coincide com o apogeu da era do rádio no Brasil,
assim como o auge do regional de Benedito Lacerda.
Foi nessa fase, mais precisamente em 1946, que Pixinguinha passa a integrar o regional de Benedito Lacerda,
por meio de um acordo controverso, que causa discussões acaloradas ainda hoje. O conjunto tinha um
contrato com a gravadora Victor para a realização de uma série de gravações, dentre as quais se incluíam
algumas composições de Pixinguinha. Ao convidar o compositor para seu regional e, naturalmente,
considerando os ganhos financeiros que esse gesto acarretaria Benedito Lacerda, em troca, se tornaria
coautor dessas composições. Isso, de fato, ocorreu. A maioria dessas músicas havia sido gravada por
Pixinguinha anteriormente, décadas, não havendo nenhum sinal de coautoria. Importante ressaltar o
benefício do acordo para Pixinguinha que, na década de 1940, se encontrava em relativo ostracismo,
enquanto Benedito Lacerda e seu regional gozavam de amplo reconhecimento público e comercial. A
parceria revigora Pixinguinha, trazendo-o de volta ao mercado de trabalho. O fruto desse acordo são 33
gravações antológicas da dupla acompanhada pelo regional executando choros, além de outras gravações
com cantores (Bittar 2011).
31
Da esquerda para a direita: Popeye (pandeiro), Dino (violão), Benedito Lacerda (flauta), Canhoto
(cavaquinho) e Meira (violão).
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5. Virou baixaria
Não foi através de um virtuosismo mecânico que Mozart se destacou em sua atividade artística. A
sofisticação presente na execução violonística do músico consiste em articular elementos distintos em suas
performances musicais, conferindo equilíbrio à sonoridade da formação instrumental. Dessa maneira, para
que o músico realize sua função agenciando os elementos musicais presentes no regional, é necessário que
ele desempenhe esse papel se localizando dentro de alguns limites. Ou seja, não basta conhecer apenas as
características de seu próprio instrumento, sendo necessário também um vasto conhecimento (uma escuta
acurada, poderíamos dizer) a respeito da função do regional como um todo, justamente para que tais limites
não sejam desrespeitados.
Mozart se especializou nessa função, embora no início de seu percurso, o músico desempenhasse a função
do primeiro violão. Talvez, justamente por essa razão, pela familiaridade com o repertório de choro, com a
harmonia das músicas e com os baixos de obrigação, Mozart tenha se adaptado bem ao atuar como segundo
violão, realizando sempre uma excelente ligação entre as tessituras dos instrumentos do regional. Insisto no
emprego do termo violão de seis cordas admitindo a redundância da expressão não apenas por ser
ostensivamente utilizado no universo do choro, mas também como forma de diferenciá-lo do violão de sete
cordas, uma vez que a consolidação desse último na música brasileira a partir da década de 1950 o elevou a
um status de distinção.
É importante ressaltar, no entanto, que antes da década de 1950 as diferentes funções dos violões no
regional eram desempenhadas por dois instrumentos convencionais de seis cordas, portanto. A
diferenciação de tais funções se dava através dos já mencionados termos primeiro e segundo violões. Alguns
músicos, especialmente os mais antigos, ainda se referem à função desempenhada pelo de sete cordas por
meio do termo primeiro violão, assim como utilizam a expressão segundo violão para se referir ao violão de
seis.
O termo baixaria denota a condução dos baixos, a maneira de construir a improvisação no registro grave do
violão, o próprio idiomatismo do instrumento. Além disso, a expressão carrega um duplo sentido, uma figura
de linguagem semelhante ao trocadilho, que pode ser compreendida de duas (ou mais) maneiras. O primeiro
sentido é associado, de fato, à prática violonística no meio musical. O segundo é irônico, sarcástico,
eventualmente inadequado, sugestivo, e tem a intenção de provocar o humor.
32
Segundo Luiz Otávio Braga (2002), a baixaria não deve ser atribuída aos violonistas, no sentido da invenção
de uma prática musical melódica de contracantos realizados no registro grave. Tal prática, segundo o autor,
teria origem nos instrumentos de sopro como a tuba, o oficleide e o trombone, em agrupamentos
instrumentais anteriores aos regionais, no contexto das bandas de instrumentos de sopros. A esse respeito,
Geus (2009) ressalta que tais bandas contribuíram de forma determinante para a difusão e popularização do
repertório de choro no início do século XX. No entanto, conforme revela Becker (1996), as bandas e
32
Como se sabe, na linguagem coloquial o termo baixaria designa ato ou condição grosseira, desrespeitosa, situação
em que limites éticos ou morais são desrespeitados, carregando também conotação sexual. Esse duplo sentido é muito
acionado nas rodas de choro. Mozart foi um perito dos trocadilhos.
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conjuntos musicais de formação mais reduzida compostos em geral por flauta, cavaquinho e violão se
influenciavam mutuamente no contexto de gênese do choro. Segundo o autor, eram os músicos das bandas
que tendiam a adotar com frequência as baixarias dos violões em suas performances, salientando-as com
instrumentos de registro grave, como o trombone e a tuba. Como vemos, é difícil determinar com precisão
o surgimento da prática contrapontística e improvisatória realizada na região grave no acompanhamento do
choro, uma característica marcante do gênero.
A baixaria do violão pode ser caracterizada como um elemento dinamizador das partes componentes do
conjunto regional. Pode ser pensada também como uma espécie de contínuo na música popular (Braga
2002).
33
Rogério Caetano (2010), eminente violonista brasileiro, classifica a baixaria como uma técnica
associada à improvisação e também relacionada à prática da música barroca europeia. Ramos (2016),
informa-nos que a baixaria é concebida a partir de uma série de recursos, como a inserção de respostas
melódicas e rítmicas a outros instrumentos do regional, a improvisação de melodias contrapontísticas, a
utilização de clichês, baixos pedais, entre outros. Esse autor corrobora a perspectiva de semelhança entre a
baixaria e o acompanhamento improvisado da música barroca europeia.
Ramos (2016) também menciona um recurso vastamente utilizado por violonistas de choro: a dedeira. Como
vimos anteriormente, se trata de um plectro de metal ou acrílico que se molda ao dedo polegar da mão
direita do músico, permitindo maior vigor e amplitude sonora para a realização das baixarias, sobretudo
quando o violonista opta por utilizar cordas de aço no instrumento. Além de alcançar maior projeção sonora,
o uso da dedeira influencia de maneira determinante no timbre obtido, sonoridade essa bastante
característica de uma prática que poderíamos chamar de tradicional ou “típica” (Braga 2002). De qualquer
forma, a utilização desse recurso é facultativa e depende muito de cada violonista. Mozart foi um adepto do
uso da dedeira e do violão híbrido, um instrumento que mescla cordas de aço com cordas de nylon.
34
Como vimos na análise de Cuidado Violão, a formulação das obrigações em intervalos de terças ou sextas é
uma característica marcante na execução violonística no contexto dos regionais de choro. No entanto, é
preciso ressaltar que as baixarias categoria mais afeita à improvisação também podem ocorrer em
duetos. A grande diferença entre as duas categorias esno fato de que uma é obrigatória e se consolida
com o tempo, seja pela intenção do autor da composição ou em razão de um registro sonoro que se
consagrou, e a outra não. Em outras palavras, podemos dizer que toda obrigação é uma baixaria, mas as
baixarias não são obrigatórias. Sendo assim, podemos sintetizar o caráter das baixarias da seguinte forma:
33
O baixo contínuo ou contínuo é uma expressão que se refere à parte ininterrupta do baixo no período barroco
(também do renascimento tardio e do primeiro período clássico) e servia como base para as harmonias. As partes para
contínuo podem ser cifradas, indicando ao executante quais harmonias podem ser adequadas. Frequentemente não
são cifradas e apenas um executante treinado poderá escolher as harmonias. Vários instrumentos (melódicos e
harmônicos) podem exercer a função de contínuo (Sadie 1994).
34
Quando Dino adere ao violão de sete cordas, passa também a utilizar uma corda de violoncelo em seu
instrumento (justamente a 7ª corda, mais grave, afinada em Dó), algo que confere uma sonoridade especial
e bastante característica ao violão. O violão híbrido, tal qual concebido por Dino, foi bastante difundido no
Brasil na segunda metade do século XX.
24
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1) Condução dos baixos: as baixarias indicam uma direcionalidade para o regional, tanto do ponto de vista
harmônico quanto rítmico, dinamizando a formação instrumental e potencializando suas características. A
partir da condução dos baixos, o músico pode estabelecer as inversões de acordes mais apropriadas para os
encadeamentos harmônicos. A alternância dos estados de inversões,
35
por si só, indicará uma linha melódica
que coexistirá com a melodia principal da composição.
2) Caráter contrapontístico: linha melódica mencionada poderá ser incrementada, desenvolvida e
refinada, a depender das habilidades e inventividade de cada músico, assumindo, assim, um caráter
contrapontístico. Vale ressaltar, no entanto, que a noção de contraponto não é utilizada aqui segundo as
concepções normativas da teoria musical que a fundou e desenvolveu. Utilizo esse termo porque é
vastamente utilizado pelos músicos de choro para se referir exatamente à prática que descrevo. Luiz Otávio
Braga (2002) observa que o choro, como estilo musical, possui um caráter polimelódico entre as partes
envolvidas. Tal palavra, segundo o autor, se adequaria melhor que o termo contrapontístico, que estaria
sujeito à crítica da escola clássica.
3) Caráter articulatório: as baixarias encadeiam, ligam, unem seções, articulam pontos de repetições,
surgem nas pausas e nos momentos em que a melodia principal se mantém pouco ativa do ponto de vista
rítmico (notas longas).
Outras categorias essenciais, não apenas no contexto do choro, são as levadas, as raspadeiras e as
gemedeiras. Não é o caso de nos estendermos aqui na descrição de tais concepções, mas vale dizer que as
levadas se relacionam com padrões rítmicos, em geral derivados da chamada imparidade rítmica.
36
no
caso das raspadeiras, podemos considerá-las como um modo de ataque característico da mão direita nas
cordas do violão em ocasiões específicas. Bittar (2011) ressalta, no entanto, que esse termo pode assumir
diferentes significados a depender dos interlocutores envolvidos. De qualquer forma, essa categoria se
relaciona com a técnica violonística, uma espécie de pizzicato que destaca a acentuação através do golpe do
polegar nas cordas do instrumento.
37
Finalmente, o violão gemedeira ou apenas gemedeira é um recurso
que consiste, resumidamente, em deslizar um ou mais dedos da mão esquerda de uma nota grave até uma
nota aguda na(s) mesma(s) corda(s), sem que haja descontinuidade sonora. Esse efeito deslizante é
conhecido na terminologia tradicional como glissando.
38
No entanto, como nos informa Ramos (2016), a
concepção do violão gemedeira vai além de um mero recurso técnico ou um efeito sonoro produzido no
instrumento, podendo designar uma forma de harmonizar a música, uma maneira de destacar o fraseado
ou um modo de preencher os acordes. O glissando, portanto, não representaria exatamente o sinônimo de
violão gemedeira.
35
Como se sabe, uma tétrade (acorde com 4 sons) poderá contar com três inversões, além de seu estado
fundamental (baixo na tônica). Na primeira inversão o acorde conta com o baixo na terça (maior ou menor);
na segunda inversão conta com o baixo na quinta, e na terceira inversão conta com o baixo na sétima (maior
ou menor).
36
Para mais informações a respeito da imparidade rítmica, ver Arom apud Sandroni (2001).
37
Para mais informações a respeito das raspadeiras, ver Junqueira (2023) e Bittar (2011).
38
Para mais informações a respeito do violão gemedeira, ver Junqueira (2023) e Ramos (2016).
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6. Considerações finais
Ao longo do texto busquei focalizar as práticas sociomusicais de Mozart Secundino de Oliveira no contexto
em que ele atuou. Servi-me do contato que estabeleci com o músico ainda nos anos 1990 para descrever
ainda que de modo provisório , características que marcam seu fazer musical, ressaltando os ambientes em
que se apresentava habitualmente, personagens relevantes em sua trajetória, eventos e homenagens
recebidas ainda em vida. Tanto a fala de Carlos amigo e parceiro de choro , quanto à do próprio Mozart
apontam para categorias que possibilitam uma aproximação com as questões e temáticas propostas para
este estudo. O violão emerge, portanto, como instância privilegiada de (e para) análise dos fenômenos
relacionados à vida musical de Mozart. A partir das práticas do músico foi possível observar não apenas a
organologia do instrumento no âmbito dos conjuntos regionais, como a própria origem e consolidação
desses agrupamentos em uma perspectiva histórica e social.
A amplitude do reconhecimento de Mozart no meio social em que circulou parece se relacionar com o
conjunto de concepções, imagens e representações acionadas através de suas performances, seja em rodas
de choro, apresentações em palcos ou gravações. Em outras palavras, do ponto de vista sonoro-musical, os
baixos de obrigação, as gemedeiras e raspadeiras, as baixarias, assim como a própria existência do violão de
seis cordas de acompanhamento em conjuntos regionais, não apenas revelam como asseguram a existência,
no tempo presente, de uma tradição que transporta traços de distinção. É nesse sentido que Mozart e suas
práticas podem ser tomadas como um caso paradigmático, uma vez que se trata de um músico comum, de
atividade cotidiana que, ao mesmo tempo, manifesta em sua arte um conjunto de recursos que, em geral,
são apresentados, descritos e analisados de forma isolada.
Dessa forma, se torna possível deslocarmo-nos em dois ou mais sentidos; por um lado, tomando como base
a vida musical de Mozart e, por outro, tomando como referência os recursos que o artista utiliza para criar
tais práticas: a dedeira, o violão híbrido, as rodas de choro, os conjuntos regionais, seus companheiros, e
assim por diante. Tais deslocamentos, como busco demonstrar, não ficaram restritas ao passado. A música
de Mozart não deixou de soar com seu falecimento. Ela continua a se expandir e continua se expressando,
seja por meio desse texto, ou por meio de músicos que voltaram a se interessar pelo violão de seis cordas
no contexto dos conjuntos regionais.
Assim como diversos choros começam pela corda (repetição), as histórias também podem começar pelo
“meio” ou pelo “fim”. Sabemos que as histórias das polcas são muitas; as histórias das valsas também, das
quadrilhas, das mazurcas e assim por diante. E hoje, mais do que nunca, são muitas as histórias do choro. É
necessário que tais histórias emerjam. Para que Mozart se “encaixe” em uma narrativa dominante, é
necessário transportá-la para um universo mais próximo, como a roda do Salomão e o contexto dos
conjuntos regionais. O choro de Mozart está relacionado à cultura de sua terra, às gafieira de Belo Horizonte,
às serestas do interior de Minas. Parece evidente, portanto, que é preciso alargar as formas de acesso às
histórias do choro, sob pena de deixarmos de lado os próprios personagens que as constituem. É preciso
seguir outras trilhas, outros rastros. É preciso seguir outras partituras, outras pautas, outras indicações,
outros gestos, desvelar outros enigmas. A música de Mozart nos ajuda a reconhecer a conjunção de um
tempo daquilo que ainda não é com aquilo que já se foi.
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