eISSN 2317-6377


Potencialidades e desafios dos escritos autobiográficos em Música: arquivo e memórias do padre compositor José Maria

Wisniewski

Potentialities and Challenges of autobiographical Writings in Music: the Archive and Memories of the Composer Priest José Maria Wisniewski

Jéssica Wisniewski Dias 1

jessicawisnie@gmail.com

Marta Castello Branco 2

1, 2 Universidade Federal de Juiz de Fora, Instituto de Artes e Design, Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil


ARTIGO CIENTÍFICO

Editor de Seção: Flavio Barbeitas e Ines Loureiro

Editor de Layout: Flavio Barbeitas e Ines Loureiro

License: "CC by 4.0"

Data de submissãp: 31 ago 2024

Data final de aprovação: 10 fev 2025

Data de publicação: 3 mar 2025

DOI: https://doi.org/10.35699/2317-6377.2025.54300


RESUMO: O artigo investiga a intersecção entre memória, música e historiografia, utilizando como estudo de caso o Coral Mater Verbi e os escritos autobiográficos do Padre compositor José Maria Wisniewski (1913-1995). O objetivo central é analisar como a prática musical e os documentos pessoais de Wisniewski contribuem para a preservação e transmissão da memória coletiva e individual, tomando como recorte temporal a transição do Movimento Ceciliano para o Concílio Vaticano II. A pesquisa, cujos resultados parciais são apresentados neste artigo, baseia-se na análise de crônicas e diários elaborados por Wisniewski, explorando o papel desses textos na manutenção da identidade do coral e na construção de uma memória social. A discussão aborda a função desses registros como agentes de continuidade e ressignificação, considerando o problema do esquecimento. Os resultados sugerem novas formas de integrar estudos autobiográficos em música e estudos de memória, através da criação de narrativas.

PALAVRAS-CHAVE: Estudos autobiográficos; Memória social; Arquivos musicais; Padre José Maria Wisniewski; Coral Mater Verbi.


ABSTRACT: The article investigates the intersection of memory, music, and historiography, using the Mater Verbi’s choir and the autobiographical writings of the composer Father José Maria Wisniewski (1913-1995) as a case study. The primary objective is to analyze how Wisniewski's musical practice and personal documents contribute to the preservation and transmission of both collective and individual memory, with a focus on the transition from the Cecilian Movement to the Second Vatican Council. The research, in which partial results are presented, is based on the analysis of chronicles and diaries written by Wisniewski, exploring the role of these texts in maintaining the identity of the choir and constructing a social memory. The discussion examines the function of these records as agents of continuity and reinterpretation, considering the challenge of forgetting. The results suggest new ways to integrate autobiographical studies in music with memory studies through the creation of narratives.

KEYWORDS: Autobiographical studies; Social memory; Musical archives; Father José Maria Wisniewski; Mater Verbi choir.


Per Musi | Belo Horizonte | v. 26 | Abordagens biográficas na pesquisa em Música | e252608 | 2025


  1. Introdução

    A escrita autobiográfica e biográfica em música constitui um campo fértil de investigação, mesclando narrativas de vida com a diversidade sonora e cultural. Este artigo visa explorar os desafios e as potencialidades dessa forma de escrita, propondo um diálogo entre memória, música e historiografia. Embora a biografia busque delinear a trajetória de um indivíduo por meio de documentos e relatos, essa construção está longe de ser objetiva ou isenta de mediações. Como adverte Bourdieu (2005), a narrativa biográfica tende a impor uma coerência retrospectiva à vida, ocultando a multiplicidade e as descontinuidades próprias da experiência vivida. Esse processo de construção do relato biográfico organiza os eventos de forma inteligível tanto para o narrador quanto para o leitor, estabelecendo uma ordem cronológica que muitas vezes não corresponde à verdadeira natureza fragmentada da existência.1 No contexto autobiográfico, essa mediação permanece: o autor, ao narrar sua própria trajetória, transforma-se simultaneamente em sujeito e objeto de interpretação, ajustando o vivido ao filtro da memória e das circunstâncias do relato.

    Antes de abordar o estudo de caso, faz-se necessário elaborar brevemente os conceitos de biografia e autobiografia para compreender os diários como fontes documentais. Conforme Calligaris (1998), ambos são termos ocidentais modernos. "Autobiografia" surgiu no final do século XVIII e se consolidou no início do século XIX, enquanto "biografia", invenção do latim moderno, passou a ser usada no inglês a partir do século

    XVII. Historicamente, esses gêneros se vinculam à formação do sujeito moderno, centrando-se na concepção do “eu” e na valorização da individualidade. Borges (2002) destaca que tais documentos ganharam força com o romantismo, período que enalteceu o sentimento e a introspecção pessoal, elementos que ainda desempenham papel estruturante nas teorias contemporâneas sobre subjetividade.

    Os diários íntimos, de acordo com Calligaris (1998) são produzidos por diversas motivações, como necessidades de confissão, justificação ou invenção de um novo sentido para a vida, frequentemente combinando esses aspectos. Borges (2002) corrobora, pontuando os diários como uma resposta à necessidade do indivíduo de compreender sua posição no mundo, especialmente em épocas de transição cultural e social. Segundo Borges, o diário, juntamente com as memórias e autobiografias, testemunha as transformações na noção de pessoa, refletindo o individualismo ocidental contemporâneo.

    Ao considerar o arquivo do Padre José Maria Wisniewski, este estudo busca investigar as tensões entre ficção e realidade na construção de narrativas biográficas no campo musical, explorando como a música pode ser um veículo de memória e identidade. O conceito de memória viva se torna central, propondo que esses registros não apenas preservam o passado, mas oferecem novas interpretações que mantêm a memória em constante ressignificação. Ao integrar fontes não convencionais e métodos narrativos, pretende-se


    1 “Produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é, como o relato coerente de uma sequência de acontecimentos com significado e direção, talvez seja conformar-se com uma ilusão retórica, uma representação comum da existência que toda uma tradição literária não deixou e não deixa de reforçar” (Bourdieu 2005, 185).

    contribuir para futuras pesquisas biográficas que ampliem a compreensão das relações entre música e memória.

    1. Outras fontes historiográficas: um vislumbre a partir da Escola dos Annales

      A partir do século XVII, a historiografia passou a ser profundamente influenciada por uma visão totalizante e universal da história, moldada pelas filosofias iluministas. Este período foi caracterizado pela tentativa de unificação da história sob uma narrativa de progresso contínuo e linear, que procurava explicar a trajetória da humanidade como um movimento constante em direção à civilização e à modernidade. A Revolução Francesa, ocorrida em 1789, desempenhou um papel crucial na consolidação dessa perspectiva histórica. Nesse contexto, estabeleceu-se a noção de "História Universal", um conceito que buscava integrar a história europeia ao restante do mundo, concebendo-a como um processo único e interligado, em permanente estado de crise e transformação (Koselleck 1999). O mesmo se observa diretamente no campo da música, através da expansão de um suposto universalismo da música erudita europeia (Castello Branco 2024, 1-9), que se mantém longamente não discutido, como apresenta Schmidt (2005, 13).

      A ideia de progresso e de um sentido unívoco para a história foi fundamental para que se formasse um conceito moderno de história, no entanto esse paradigma totalizante começou a ser questionado no final do século XIX e início do século XX, com a emergência de novas abordagens historiográficas que enfatizavam a fragmentação e a multiplicidade das experiências históricas. A Escola dos Annales, liderada por Marc Bloch e Lucien Febvre, precipitou uma transformação radical na abordagem do estudo histórico. Rompendo com a narrativa linear tradicional, este movimento propôs uma nova leitura dos acontecimentos, privilegiando uma abordagem interdisciplinar que abarca a totalidade das atividades humanas. Assim, elementos do cotidiano, artefatos e costumes passaram a ocupar lugar de destaque, entrelaçados com a "civilização material" e as representações coletivas. A economia, a demografia e o tecido social ascenderam ao protagonismo, ampliando as fronteiras do conhecimento histórico. Esta perspectiva inovadora valorizou fontes até então marginalizadas, desde a tradição oral até os vestígios materiais, redesenhando os contornos da historiografia tradicional e incorporando uma diversidade de vozes e narrativas que enriquecem a compreensão do passado (Freitas 2006).

      A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando eles existem. Mas ela pode fazer-se, ela deve fazer-se sem documentos escritos, se os não houver. Com tudo o que o engenho do historiador pode permitir-lhe utilizar para fabricar o seu mel, à falta das flores habituais. Portanto, com palavras. Com signos. Com paisagens e telhas. Com formas de cultivo e ervas daninhas. Com eclipses da lua e cangas de bois. Com exames de pedras por geólogos e análises de espadas de metal por químicos. Numa palavra, com tudo aquilo que, pertencendo ao homem, depende do homem, serve o homem, exprime o homem, significa a presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem (Febvre 1989, 249).

      A historiografia tradicional, historicamente ancorada nas fontes oficiais, tem sido significativamente desafiada e enriquecida pela incorporação de fontes não oficiais ou “extraoficiais”, como discute Samuel (2008), em sua obra "Teatros da Memória”. De maneira complementar à perspectiva dos Annales, argumenta-se em prol de uma historiografia que privilegie uma "história viva" e não-linear, valorizando os vestígios e lacunas deixados pela documentação tradicional. Destaca-se que a construção do conhecimento histórico não deve ser exclusiva dos historiadores profissionais, nem limitada às narrativas construídas por

      fontes oficiais. Ao contrário, ele enfatiza a importância de um conhecimento histórico construído coletivamente, onde a memória social e os objetos do cotidiano ocupam um espaço significativo.

      Neste contexto, a inclusão de fontes não oficiais revela aspectos da vida cotidiana e das experiências de grupos marginalizados que frequentemente escapam às narrativas oficiais. Essas fontes são capazes de revelar um passado mais complexo e caótico, onde as lacunas e os silêncios são tão reveladores quanto os registros formais. A história, concebida como uma tapeçaria intrincada, onde cada fio - mesmo o mais discreto - contribui para a textura e profundidade da narrativa histórica, emerge como um campo mais rico e diversificado. Esta abordagem não apenas democratiza a produção do conhecimento histórico, mas também amplia nossa compreensão do passado, incorporando narrativas que contemplem múltiplas vozes, incluindo aquelas preservadas nas tradições orais, desafiando assim a perspectiva totalizante.

      A abordagem do Movimento dos Annales dialoga com o ambiente pós-moderno, onde o sujeito se depara com a fragmentação e a pluralidade, desafiando as grandes narrativas totalizantes do passado. Nesse contexto, a identidade, percebida como fluida e múltipla, rejeita noções fixas (Hall 2003) e se alinha à inclusão de fontes não oficiais na historiografia. Samuel (2008) argumenta que as narrativas, como construções sociais, refletem os poderes e interesses de seus criadores, o que leva o sujeito pós-moderno, desconfiado das grandes narrativas, a valorizar relatos locais, individuais e marginalizados. Dessa forma, a memória, entendida como seletiva e construída, é continuamente moldada por experiências pessoais e coletivas, que reinterpretam o passado à luz do presente.

      Deve-se ressaltar que, entre as fontes consideradas não oficiais, incluem-se não apenas diários, mas também fotografias, registros orais, mídias audiovisuais e, conforme o caso em estudo, a música e os suportes musicais. Inicialmente, deve-se estabelecer a música, tanto quanto as demais fontes, como um veículo de memória. Através do fenômeno musical, torna-se possível rememorar, reviver e presentificar uma lembrança. Ademais, considerando seu caráter ritualístico, observa-se que a música é também um fenômeno irredutivelmente social. Em Garrido & Davidson (2019) pontua-se que, desde o início da história humana registrada, a música tem sido essencial para conferir um senso de sagrado aos eventos marcantes da vida, como nascimento, casamento e morte, intensificando a experiência desses momentos. Já a repetição sonora evoca lembranças que acionam memórias individuais e coletivas. Como esclarece Vilém Flusser: “Quando estamos expostos à música, o ritmo fundante e regulador da nossa vida nos envolve. É pela música que vislumbramos a estrutura da nossa vida. É por isto que a música revela sempre o aspecto sacral da realidade, e uma aura do sacro acompanha sempre a experiência musical digna deste nome” (cf. Castello Branco 2018, 39). Halbwachs (1990) argumenta que a música deve ser continuamente recriada para ser retomada. Conclui-se que, de maneira subjetiva e atrelada à memória, a música também está vinculada às noções de identidade cultural e individual, apresentadas anteriormente. Argumenta Frith (1996):

      Identidade não é uma coisa, mas um processo - um processo experiencial que é mais vividamente compreendido como música. A música parece ser uma chave para a identidade porque oferece, de forma intensa, um sentido tanto do eu quanto dos outros, do subjetivo no coletivo (Frith 1996, 110).

      A partir da premissa apresentada, sustenta-se que a música, como manifestação estética, incorpora uma compreensão intrínseca das dinâmicas grupais e da individualidade, a partir da qual códigos éticos e ideologias sociais são compreendidos. Em suma, sugere-se que a música, enquanto criação e prática,

      transcende a expressão de ideias, configurando-se como uma vivência profundamente enraizada (Frith 1996). A utilização da música e de seus variados suportes, bem como de autobiografias e outras fontes não- oficiais, revela-se, portanto, de grande valia para uma compreensão historiográfica mais profunda, além de contribuir significativamente para os estudos de memória. As biografias e autobiografias oferecem narrativas pessoais que iluminam as nuances da vida cotidiana e das identidades individuais, muitas vezes ausentes nos registros oficiais. No entanto, ao articular essas experiências individuais com um contexto mais amplo, tais fontes também permitem vislumbrar padrões sociais, valores culturais e processos históricos que estruturam a sociedade. Assim, ao invés de uma oposição entre a esfera individual e a coletiva, considera- se que a abordagem biográfica pode ser um meio privilegiado de acessar dinâmicas sociais e históricas que, de outra forma, poderiam permanecer invisíveis.

      Essas fontes não-oficiais, ao incluir vozes e perspectivas diversas, desafiam as narrativas totalizantes e promovem uma historiografia mais plural, algo pertinente e de suma relevância para o momento atual. Dessa forma, a integração dessas perspectivas não apenas amplia a compreensão sobre os indivíduos biografados, mas também revela como suas trajetórias se entrelaçam com processos socioculturais mais amplos, permitindo uma análise histórica que considera simultaneamente os sujeitos e os contextos que os constituem.

  2. O arquivo do Padre compositor José Maria Wisniewski

    Padre José Maria Wisniewski foi um compositor prolífico e uma figura central na comunidade musical de Juiz de Fora, Minas Gerais. Os diários e crônicas de Padre Wisniewski, que constituem uma parte significativa de seu arquivo, são fontes ricas e detalhadas que documentam não apenas sua trajetória artística, mas também suas reflexões pessoais. Esses escritos oferecem uma perspectiva íntima sobre o processo criativo do compositor, suas interações com a comunidade eclesiástica e seu papel na formação do Coral Mater Verbi. Seus diários pessoais, crônicas e tomos apontam as dificuldades e as alegrias de sua vida sacerdotal e musical, proporcionando uma compreensão aprofundada de como sua fé e sua arte estavam intrinsecamente ligadas. As potencialidades do arquivo de Padre Wisniewski são vastas, especialmente no que diz respeito ao estudo da memória e da identidade cultural. Seus escritos permitem a reconstrução de um panorama detalhado da vida musical e religiosa de Juiz de Fora ao longo de várias décadas. A análise de suas crônicas e diários pode revelar aspectos pouco explorados da história da música litúrgica católica no Brasil, com ênfase no período de transição entre as reformas da Igreja Católica, que provocaram mudanças significativas nesse contexto. Destacam-se, especialmente, os impactos do Movimento Ceciliano, também conhecido como Movimento Restaurista, nas primeiras décadas do século XX, e as transformações decorrentes do Concílio Vaticano II, a partir de 1960, que serão discutidos posteriormente.

    De acordo com Dias (2021), José Maria Wisniewski Filho, nascido em 1913, foi um padre e compositor vinculado à Congregação do Verbo Divino (SVD - Societas Verbi Divini). Natural de uma família de imigrantes poloneses em Curitiba, suas raízes refletiam uma vida de simplicidade e devoção. Filho de um alfaiate e músico recreativo, Wisniewski desde cedo manifestou interesse pela música e pelo sacerdócio, o que o levou a ingressar no Juvenato da Congregação do Verbo Divino, localizado em Juiz de Fora, nas dependências do Colégio Academia de Comércio, aos 13 anos. Relata: “Quando em fins de janeiro, um bisonho paranaense de calças curtas, se sentava num canteiro da Academia de Comércio [...], lápis em punho e caderno em frente” (Wisniewski [198-], 01). Escreve ainda em outro documento: “Minas Gerais era o fim do mundo. De trem, horas a fio” (Wisniewski 1987, 139). Esse período é relatado pelo próprio padre como crucial, pois teve

    que abandonar sua vida de garoto comum, suas coleções e até mesmo um antigo violino, a fim de dedicar- se à vida sacerdotal. No Juvenato, iniciou sua formação musical com aulas de violino e outros instrumentos de sopro, como clarinete, tuba e bombardino. Porém, lamentava a falta de uma formação musical inicial mais sólida. A educação musical era ofertada no Instituto Missionário de São Miguel, também chamado de “Seminário da Borda” (ou ainda “Borda do Campo”), no município de Antônio Carlos – MG, onde Wisniewski estudou órgão, canto e teve contato com obras musicais do canto gregoriano, além da aproximação com obras do Movimento Ceciliano e um de seus compositores no Brasil, Padre Jorge Braun (SVD).2

    Após o Juvenato, José Maria Wisniewski continuou sua formação sacerdotal cursando Filosofia no Seminário do Espírito Santo em Santo Amaro, São Paulo, por dois anos. Em seguida, cursou Teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, por quatro anos, onde compôs sua primeira obra musical em 1938. De volta ao Brasil, lecionou no Instituto Missionário de São Miguel de 1939 a 1941, no Colégio Arnaldo, em Belo Horizonte, nos períodos de 1942-43 e 1945-46, e morou na Paróquia Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, por um ano. Em 1947, retornou a Juiz de Fora, onde permaneceu até o fim de sua vida. A trajetória de Wisniewski foi marcada pela fundação do Coral Mater Verbi – Meninos Cantores da Academia,3 em 1953, em Juiz de Fora; um grupo coral dedicado a não apenas promover a educação musical e religiosa de crianças e jovens, mas também projetar culturalmente a cidade em âmbito nacional e internacional. O grupo, que permanece em atividade até os dias atuais, tornou-se um símbolo da dedicação de Wisniewski à formação musical e espiritual de seus integrantes. Além disso, cofundou e presidiu a Federação Nacional dos Meninos Cantores do Brasil,4 deu aulas de canto no Colégio Academia, atuou como tradutor e escritor de obras literárias da liturgia católica e infantis, e compôs várias obras de música litúrgica católica, sendo considerado um verdadeiro missionário da música.5 Mesmo enfrentando problemas de saúde nos últimos anos de vida, como a deficiência auditiva que acometia suas atividades musicais e mais rotineiras, permaneceu ativo e comprometido com suas atividades até seu falecimento em 1995.


    2 Padre Jorge Braun (1890-1957) veio da Alemanha para o Brasil na década de 1920. Além da função de compositor, atuou como professor de música e regente de coro no Instituto Missionário São Miguel e posteriormente em Santo Amaro – SP.

    3 Mater Verbi, proveniente do Latim, é uma homenagem à Maria, “Mãe do Verbo Divino”.

    4 A Federação Nacional dos Meninos Cantores do Brasil foi fundada em 1966, impulsionada por uma crescente necessidade de organizar e promover a prática dos corais infantojuvenis no país. Inspirada pelos ideais do movimento internacional dos Pueri Cantores (meninos cantores), a Federação teve como um de seus principais fundadores o Pe. José Maria Wisniewski, que já atuava na formação e regência de corais como o Mater Verbi. A criação da Federação visava não apenas fortalecer a tradição coral no Brasil, mas também integrar os coros de meninos dentro de uma rede de apoio e intercâmbio, promovendo encontros, congressos e apresentações conjuntas que destacavam a importância da música coral no desenvolvimento espiritual e cultural dos jovens. Desde sua fundação, a Federação tem sido um pilar na preservação e inovação da música coral no contexto litúrgico brasileiro.

    5 Na Congregação do Verbo Divino, os sacerdotes são formados para exercerem o papel de missionários, frequentemente deslocando-se entre cidades e países. Wisniewski, entretanto, não desempenhou a função de missionário no sentido convencional. Pode-se afirmar, contudo, que atuou como um missionário da música, utilizando o Coral Mater Verbi como instrumento de sua missão.



    Figura 1 – Padre Wisniewski, com 13 anos de idade, no Instituto Missionário São Miguel (Antônio Carlos – MG).6 Referência: ARQUIVO MATER VERBI, 2023.


    6 Imagem retirada do primeiro álbum de fotografias do Coral Mater Verbi, organizado pelo próprio Padre Wisniewski.



    Figura 2 – Padre Wisniewski rege o Coral Mater Verbi em uma de suas primeiras formações, possivelmente em 1962.

    Referência: ARQUIVO MATER VERBI, 2023.



    Figura 3 – Padre José Maria Wisniewski em seu Jubileu de Prata, celebrando 25 anos de ordenação sacerdotal em 1963.

    Referência: ARQUIVO MATER VERBI, 2019.

    O Arquivo Mater Verbi, fundado pelo Padre José Maria Wisniewski, é um repositório significativo que encapsula tanto a memória individual do próprio Wisniewski quanto a memória coletiva do Coral Mater Verbi e do Colégio Academia, onde o coral ensaia. Este arquivo, situado no Colégio Academia – uma das instituições mais antigas de Juiz de Fora – abriga um vasto acervo que inclui documentos autobiográficos organizados nas categorias de Retiros, Meditações, Crônicas do coral e Tomos do colégio, conforme apontado por Dias (2021). Além disso, contém partituras, fitas magnéticas, LPs, CDs, filmes em VHS e DVD, álbuns de fotografias, certificados, medalhas e condecorações, constituindo uma rica fonte de pesquisa. Baseando-se nas categorias de diários delineadas por Calligaris (1998), é possível identificar os Retiros e Meditações como diários de natureza pessoal, apresentados em formato auto narrativo, enquanto as Crônicas e os Tomos se destinam à reconstituição da trajetória do Coral Mater Verbi e do Colégio Academia. Portanto, o arquivo não apenas documenta a vida e obra de Wisniewski, mas também serve como um espaço de preservação e transmissão das práticas musicais e educativas por ele instruídas.

    Ao considerar os conceitos de memória individual e coletiva, conforme definidos por Halbwachs (1990), compreende-se que a memória individual pertence a cada pessoa de maneira única, sendo moldada por suas próprias experiências e reflexões. Em contraste, a memória coletiva é formada pelas lembranças compartilhadas por um grupo social, nas quais as memórias individuais se entrelaçam e são influenciadas pelas estruturas sociais e pelo ambiente cultural. No contexto do Arquivo Mater Verbi, essa dualidade é evidente, pois ele preserva tanto a memória pessoal de Wisniewski quanto a memória coletiva do coral e da comunidade educativa do Colégio Academia. Dias (2021) observa que a memória coletiva preservada no Arquivo Mater Verbi reflete a continuidade do trabalho de José Maria Wisniewski em propagar o ensino da música, adotando práticas como o uso de batinas padronizadas para as apresentações solenes, a execução de repertório específico e a metodologia de ensino que combinava o canto com o estudo de um instrumento musical e da liturgia. Essas práticas perpetuadas no arquivo revelam um desejo não apenas de recordar o passado, mas de projetá-lo no futuro, conforme sugere Samain (2012), que define o arquivo como uma confissão de anseio por novos começos.

    Portanto, o Arquivo Mater Verbi deve ser entendido não apenas como um conjunto estático de objetos, mas como um espaço vivo e dinâmico, que possibilita novas abordagens, tratamentos e interpretações ao longo do tempo. Corroborando essa visão, Farge (2009) pontua que os arquivos funcionam como lugares de encontro entre o pesquisador e o passado, permitindo uma interação íntima e sensível com as vozes e experiências de outros tempos. Embora os documentos arquivados permaneçam inalterados, suas interpretações podem ser revisitadas e ressignificadas, revelando novos sentidos e possibilidades à medida que os contextos históricos e os enfoques de pesquisa evoluem.

    1. Documentos escritos como preservação: registros na trajetória do coral

      Propõe-se uma análise detalhada do material autobiográfico redigido pelo Padre José Maria Wisniewski, concentrando-se especialmente nas crônicas do Coral Mater Verbi e em seus diários pessoais. As crônicas, iniciadas em 1973, foram escritas em um período em que Wisniewski enfrentava problemas graves de perda auditiva. Preocupado com sua saúde e com o futuro do coral (entre trocas de regente e incertezas), empenhou-se em registrar a história do grupo, garantindo assim a continuidade de sua memória. Relata a respeito do desejo de preservação e da preocupação com a continuidade da memória do Coral Mater Verbi:

      Fraca é a memória da gente e muitos há que não dispõem de arquivo. Para evitar que, em breve, desapareça a lembrança do coro “Mater Verbi” tomo a liberdade de encaminhar à Direção da Academia um dossiê com alguns documentos que, seguramente, serão de valor e poderão orientar, em futuro não muito remoto, como espero, no sentido de um ressurgimento do Coro (Wisniewski 1976, n.p).

      Os primeiros volumes das crônicas oferecem uma retrospectiva dos anos iniciais do coral, compilando anotações de ensaios, programas de concertos, fotografias e recortes de jornais que remontam ao período anterior a 1973. Com o término dessa fase retrospectiva, Wisniewski passou a documentar os acontecimentos do coral em tempo real, cobrindo sua trajetória até 1995. A investigação concentra-se na análise deste material até a morte de Padre Wisniewski, com ênfase em sua obra musical e nos textos autobiográficos, que constituem fontes essenciais para a compreensão de seu legado artístico e cultural. Além disso, explora-se o papel das crônicas na construção e preservação da história e do impacto do Coral Mater Verbi, sob a perspectiva de seu fundador.

      Conforme os relatos das crônicas, reunidos por Dias (2021), em suas primeiras décadas de existência, o coral desenvolveu suas atividades principalmente dentro da comunidade do Colégio Academia, onde Padre José Maria Wisniewski era professor. Sob sua regência, o coral começou a se destacar pela excelência musical e pela disciplina rigorosa, características que o tornariam conhecido não apenas em Juiz de Fora, mas também em outras regiões do Brasil. Durante essa fase inicial, o grupo também começou a expandir sua atuação, participando de eventos cívicos e culturais dentro do Estado de Minas Gerais. O ano de 1968 foi um marco importante para o grupo, quando participou do I Congresso da Federação Nacional dos Meninos Cantores do Brasil, realizado em Petrópolis. Esse evento trouxe novo ânimo ao coral, que até então enfrentava dificuldades relacionadas à formação vocal e à renovação de repertório, em parte devido às mudanças litúrgicas decorrentes do Concílio Vaticano II. Apesar dos desafios, o Coral Mater Verbi conseguiu se adaptar ao novo contexto litúrgico e social, e continuou a participar ativamente das missas dominicais até 1973. Em 1974, uma mudança significativa ocorreu quando Padre José Maria passou a regência ao Ir. João Marcos Porto Maciel, embora tenha retornado brevemente para liderar o coral após a saída de Maciel. Em 1976, enfrentando dificuldades para encontrar um novo regente e problemas associados à administração do colégio, Padre Wisniewski decidiu suspender as atividades do coral. Esta decisão, conforme relatado nas crônicas, refletiu a primeira preocupação explícita do padre com a preservação da memória do grupo.7 Dois anos depois, em 1978, o coral foi revitalizado sob a liderança de Otávio Garcia, ex-Canarinho de Petrópolis, com uma nova formação, batinas e até uma camerata instrumental, marcando o início de uma "década promissora" para o grupo.


      7 Informações retiradas da Crônica Volume II, ano de 1976. Wisniewski escreve: “E assim termina definitivamente o Coro dos Meninos Cantores da Academia [...] Morreu o Coro, mas deixou um saldo positivo” (Wisniewski 1976, 40).



      Figura 4 – Capa e contracapa do segundo volume das crônicas do Coral Mater Verbi, referente ao período de 1973 a 1980.

      Referência: ARQUIVO MATER VERBI, 2019.



      Figura 5 – Recorte do segundo volume da crônica do coral, relatando a chegada do novo regente e o retorno das atividades.

      Referência: ARQUIVO MATER VERBI, 2019.

      Sob a regência de Otávio Garcia, o Mater Verbi ampliou seu alcance ao participar de diversos programas de rádio e televisão, assim como concursos de corais, o que lhe conferiu reconhecimento além do contexto litúrgico e da comunidade do Colégio Academia. As crônicas também documentam a intensa atividade do coral durante as décadas 1980 e 1990, incluindo participações em eventos nacionais e internacionais, gravações de álbuns, participação em formaturas, casamentos, missas e audições. Com a saída de Otávio Garcia em 1988, o coral viria a ser regido pelo Ir. Fernando Vieira (SJ). A primeira atividade de destaque foi a preparação para o 7º Congresso Nacional dos Meninos Cantores. Posteriormente, o grupo recebeu convites da instituição Pró-Música de Juiz de Fora para realizar, juntamente com seu próprio grupo (Coral da Pró-Música), o Magnificat e a Paixão segundo São Mateus, BWV 244 (J. S. Bach) nos anos seguintes. Com o grupo aprimorando-se continuamente, as apresentações aumentaram significativamente, passando de uma média de 30 por ano para 73 em 1990 e 94 em 1991. Conforme relato do Padre José Maria Wisniewski: "O Coral cresceu, ficou mais maduro, mais consciente, mais disciplinado, assumindo feição de um grupo que não faria papel feio diante de plateias da Europa ou dos Estados Unidos" (Wisniewski [198-], 18).

      Em 1992, além da preparação para o 8º Congresso Nacional dos Meninos Cantores, o coral expandiu suas atividades, participando de casamentos, cerimônias da Prefeitura de Juiz de Fora, como o Encontro de Prefeitos da Zona da Mata, e da comemoração do Dia da Criança da Rede Globo, entre outros eventos. O grupo, então, contava com a participação de 50 vozes. As aulas de canto, anteriormente ministradas pelo Padre Wisniewski, foram também delegadas a Vieira.8 Um evento significativo foi a gravação de um novo álbum em 1993, celebrando os quarenta anos do coral. Em 1994, já com a saúde debilitada, o padre afastou- se das atividades regulares do coral, que continuou sob a liderança de Vieira. Fernando Vieira desempenhou um papel crucial não apenas como regente do coral, mas também como um amigo e apoiador, ajudando a manter viva a obra iniciada por Wisniewski. Sua dedicação e amizade foram fundamentais para garantir a continuidade e a qualidade do trabalho do coral, refletindo a visão e os ensinamentos do padre. Com Vieira assumindo um papel de destaque na preservação do legado de Padre José Maria Wisniewski, assegurou-se que a música dos meninos cantores continuasse a ser um instrumento de fé e aprendizado para as novas gerações. Ainda atualmente, o regente à frente do grupo mantém a prática de produzir crônicas, um costume transmitido entre regentes ao longo do tempo. A seguir, um relato de Fernando Vieira na crônica de 1995, a respeito do falecimento de Wisniewski e sua relação.

      São 6 horas da manhã. O guarda da Academia vem bater à porta do meu quarto. Acordo um pouco assustado. Quando vou abri-la já não tem mais ninguém. Coloco uma roupa correndo, desço as escadas, rumo à residência SVD pois já sei o que estava me esperando. Chego à residência, ninguém está lá. O enfermeiro me atende e me comunica da passagem para a eternidade, às 5h20min., do meu grande amigo, Pe. Zé Maria. [...] Chego ao seu quarto e o encontro com um lençol o cobrindo. Retiro para ver seu rosto. Está tranquilo e sereno. [...] Que dor, meu Deus, como dói esta separação. Não quero que ele perceba o quanto sofro com a sua partida (Vieira 1995, n.p.).


      8 Escreve Wisniewski: "Estou entrando no 51º ano de atividade nas aulas de canto e parece que chegou a hora de passar o bastão a mãos mais ágeis. Já ano passado dei a entender toda a minha intenção de parar. Não que eu não goste de lecionar, mas veja: 1º - Meio surdo como estou, deixo passar a cantoria sem ligar para a afinação; assim, parte do aproveitamento fica perdido, já que as crianças se acostumam a não ligar [...]" (Wisniewski 1989, n.p.).

      Conforme solicitado pelo próprio Padre José Maria Wisniewski, durante seu velório e enterro, o Coral Mater Verbi executou o coral da Paixão Segundo São João, BWV 245, de J. S. Bach, em tradução para o português, feita pelo próprio padre. O velório ocorreu na capela da Comunidade Verbita, reunindo numerosos professores, funcionários e alunos do Colégio Academia para que pudessem se despedir. Segundo registro de Fernando Vieira, após o velório, houve uma missa de corpo presente na Igreja de São Sebastião, com a presença de diversos membros da Comunidade e do Coral Dom Silvério, de Sete Lagoas, regido por João Lucas Rodrigues, cofundador da Federação Nacional dos Meninos Cantores juntamente com Padre José Maria. Nessa ocasião, os meninos de ambos os corais cantaram sob a regência de João Lucas, com Ir. Fernando Vieira ao órgão. Após a missa, o cortejo seguiu para o cemitério municipal, onde ocorreu o enterro. Mais uma vez, os meninos cantores entoaram a Paixão Segundo São João. Ir. Vieira descreve: “Cada cantor colocou uma rosa no seu caixão e, assim, com muita simplicidade, característica do Pe. Zé Maria, demos o último adeus. Interessante é como sua memória ainda continua entre nós” (Vieira 1995, n.p.).


      Figura 6 – Recorte do Tribuna de Minas (1996) com relato de Wisniewski e trecho da tradução da Paixão Segundo São João.

      Referência: ARQUIVO MATER VERBI, 2019.


      Conforme delineado por Santos e Torga (2020), a autobiografia configura-se como uma modalidade de narratividade na qual o indivíduo assume a incumbência de relatar sua própria trajetória, revisitando suas memórias e vivências através da escrita pessoal. Esse ato de autoescrita pode ser visto como uma forma de perpetuar a memória para as gerações futuras. O processo de criar identificação, comum em relatos

      autobiográficos, é empregado como uma estratégia de transmissão da memória, resgatando seu princípio afetivo: “esta comunidade afetiva é o que permite atualizar uma identificação com a mentalidade do grupo no passado e retomar o hábito e o poder de pensar e lembrar como membro do grupo” (Schmidt e Mahfoud 1993, 289). O princípio afetivo está, assim, intrinsecamente ligado à lembrança e aos processos de rememoração,9 os quais possuem uma dupla face: o eu e o outro, sem os quais a identidade individual não se constitui.

      Conforme indicado por Dias (2021), os diários pessoais de Wisniewski apresentam a essência da memória afetiva cultivada ao longo de sua vida. “Tutto è scherzo d’amore”, frase de Padre Pio (1887-1968) traduzida do italiano como “tudo é jogo de amor”, parece ter norteado a vida de Wisniewski. A citação completa, “Se Gesù si manifesta, ringraziatelo; e se si occulta, ringraziatelo pure; tutto è scherzo d’amore” (Epist. III, 551), sugere que todas as alegrias e dificuldades da vida são expressões de um destino que visa sempre ao amor divino. Aplicando esse conceito à vida de Padre José Maria Wisniewski, entende-se que sua devoção ao ensino da música, as adversidades e alegrias com o coral, as brincadeiras nas aulas de canto, e os anos de enfermidade, faziam parte desse “jogo de amor”. Seus diários frequentemente mencionam a presença amorosa no ensino e na prática musical, na vida sacerdotal e nas memórias que guardava cuidadosamente. Ideal este que ressoa com as artes da memória descritas por Santo Agostinho, Santo Anselmo e Ailred de Rievaux, encapsulando a tríade memoria, intelligentia, amor: “Pode haver memória e inteligência sem amor, mas não pode haver amor sem memória e inteligência” (Le Goff 2003, 448). Escreve:

      A música é o condimento de minha vida, desde que me possa lembrar. Menino cantor, depois jovem cantor, a seguir regente de corais no Instituto Missionário São Miguel (Borda do Campo) e no coral dos internos no Colégio Arnaldo (Belo Horizonte), quando recebi a designação para a Academia de Comércio de Juiz de Fora, em 1947, aqui continuei a transmitir aos alunos o amor pelo canto (Wisniewski [198-], n.p.).

      No que se refere à preservação e transmissão por meio da escrita, percebe-se um anseio recorrente em diferentes sociedades ao longo da história de registrar aspectos de sua existência, seja por meio de diários, objetos, arquivos, ruínas, entre outros. Segundo Candau (2018), o princípio da transmissão de uma memória reside na seleção e eliminação do que deve ser lembrado e esquecido no contexto social. Fatos ocorridos podem ser recortados e alterados, tornando a memória coletiva suscetível à manipulação. Até mesmo o esquecimento tem seu papel no processo de memória: na lembrança, há também um desejo de esquecer. Essa seleção de lembranças e esquecimentos visa, em última análise, à criação de novas identidades. Ainda, a transmissão escrita fortalece o sentimento de pertencimento a um grupo e a uma cultura. Dessa forma, o escritor local, detentor do poder de registrar os vestígios do passado, proporciona ao grupo a oportunidade de reapropriar-se desse passado por meio dos registros transcritos. Novamente, essa condição se manifesta de maneira clara na preocupação e no interesse do Padre José Maria Wisniewski em documentar, por meio de registros escritos e imagéticos, os eventos de sua vida e do Coral Mater Verbi através de crônicas e tomos.

      As premissas anteriormente apresentadas confirmam, portanto, a perspectiva de Candau (2018) sobre a construção da memória e identidade através da escrita. Bourdieu (2005), ao criticar a linearidade e coerência


      9 O processo de rememoração ocorre por meio das memórias de um grupo, sendo essas experiências relacionadas a um grupo menor de pessoas. Segundo Halbwachs (1990), mesmo que a lembrança se refira a um acontecimento distante no tempo, o contato com pessoas que também vivenciaram essa situação permite a rememoração, que, por sua vez, é um meio de manter a memória viva.

      impostas nas narrativas biográficas, destaca a manipulação inerente ao processo de seleção de lembranças e esquecimentos, a partir da recepção dessas narrativas. Calligaris (1998), por sua vez, vê a escrita autobiográfica como uma prática autoterapêutica, que combina confissão, justificação e a criação de novos sentidos, alinhando-se com a ideia de que a memória é moldada ativamente para formar identidades desejadas. Borges (2002) reconhece a evolução dos diários e autobiografias como reflexos das transformações sociais e individuais, sugerindo que essas formas de escrita atuam como expressão das mudanças na memória coletiva, mas não necessariamente como manipulação dessa memória. Assim, pode- se concluir que a escrita autobiográfica e biográfica é um meio em potencial para criar e reapropriar-se do passado, fortalecendo o sentimento de pertencimento a um grupo e cultura.

    2. A prática musical do Coral Mater Verbi como memória viva

      A prática musical do Coral Mater Verbi, sob a regência e influência do Padre José Maria Wisniewski, é profundamente entrelaçada com os momentos históricos do Movimento Ceciliano e do Concílio Vaticano II. O Motu Proprio, documento de 1903 do Papa Pio X,10 iniciou o Movimento Ceciliano que, por sua vez, buscava restaurar a música litúrgica aos moldes do canto gregoriano e da música renascentista do século XVI, inspirando-se especialmente em G. P. da Palestrina (c. 1525-1594). Segundo Duarte, este “foi o documento basilar para a composição de música litúrgica católica do rito romano em toda a primeira metade do século XX” (2009, 186). Essa reforma pretendia eliminar elementos considerados "profanos", como a música romântica de concerto do século XIX e melodias de ópera adaptadas para textos litúrgicos.11 O Motu Proprio também visava uma universalização dos ideais litúrgicos e da prática musical, enfrentando uma dicotomia entre a orientação única da liturgia e a diversidade estilística da música, que incluía influências de ideais iluministas.12 Nesse contexto, Padre José Maria Wisniewski iniciou sua formação musical e sacerdotal, sendo influenciado por J. B. Lehmann (1873-1955) e Jorge Braun (1890-1957), padres compositores verbitas europeus que atuaram no Brasil como missionários e se destacaram na prática musical litúrgica pré-conciliar no país.

      A música considerada mais adequada para a liturgia solene incluía predominantemente a participação de coros compostos por vozes masculinas e meninos cantores, responsáveis pelas partes de soprano e contralto, sendo proibida a presença de mulheres (Terry, 1907); fator que justifica o surgimento crescente de coros de meninos cantores e a fundação da Fédération Internationale des Petits Chanteurs à la Croix des Bois por Monsenhor Ferdinand Maillet (1896-1963), em conformidade com as normas estabelecidas pelo Motu Proprio. Segundo Dias (2021), pode-se identificar uma forte influência do estilo Ceciliano na formação musical e primeiras composições do Padre José Maria Wisniewski, devido ao seu contato ainda jovem com o Padre Jorge Braun, de quem foi aluno de harmonia e auxiliava virando páginas de partituras ao harmônio, durante as missas, enquanto Braun tocava e cantava.


      10 TRA LE SOLLICITUDE. Pio X, 22 de novembro de 1903. Disponível em: https://www.vatican.va/content/pius-x/pt/motu_proprio/documents/hf_p-x_motu- proprio_19031122_sollecitudini.html. Acesso em 30 de agosto de 2024.

      11 Segundo Rainoldi (2000), procurava-se uma música atemporal para os ritos litúrgicos, em vez de uma que estivesse na moda, pois a música popular da época poderia adquirir um caráter associado às práticas sociais mundanas, criando uma dicotomia entre a palavra e o comportamento.

      12 Segundo Duarte (2012), a universalidade sugerida pelo Motu Proprio implicava uma perspectiva que privilegiava Roma e era eurocêntrica em relação ao repertório litúrgico.

      Obras relacionadas ao Movimento Ceciliano também eram comumente executadas no Seminário da Borda. No repertório cantado pelo coro nas missas, predominavam as obras de Braun: Missa de São Miguel, Missa de São José, Missa Mater Amabilis, dentre outras. Além disso, para as aulas de harmonia básica, Padre Braun utilizava o Método de Harmônio do Padre J. B. Lehmann. Relata Wisniewski a respeito de seus primeiros contatos com a composição e com o Padre Braun:

      Pe. Jorge resolveu dar aula de harmonia aos organistas. Além de mim, lá estavam o Nicolau Przybycien e o Bruno Walter. Mal enfronhado no segredo da tônica, dominante e sub- dominante, fui possuído por uma febre artística; [...] eu logo me aventurei em vôo mais alto e resolvi compor uma Missa para 4 vozes, pra ninguém botar defeito. A febre compositória era tanta que, em pouco tempo, rabisquei um pedaço do Kyrie, o início do Glória, o começo do Sanctus. Essa maravilha musical nunca chegou a ser completada. [...] Naturalmente sem ter a mínima idéia de tema musical, motivo etc. Mostrei os pedaços ao Pe. Jorge que deu uma baita gargalhada e improvisou o que poderia ser uma missa feita com aquele início. Exclamou: “ah! os compositores modernos!” (Wisniewski [198-], 05).13

      Padre José Maria Wisniewski ressalta, igualmente, que a prática de copiar partituras lhe proporcionou um profundo aprendizado sobre a polifonia clássica, um assunto pouco explorado na Borda, onde o foco principal era o canto monofônico e gregoriano.14 Menciona que, apesar da boa vontade dos padres que ministravam as aulas de música e canto, a formação musical oferecida era limitada. Somente após anos de contato com a polifonia clássica e com as atividades do Coral Mater Verbi, se aventurou em composições mais ousadas, tanto para quinteto e coro, como em alguns motetos, quanto em música orquestral, como o Divertimento para camerata e castanholas. O arquivo do Coral Mater Verbi também contém cópias de obras de Padre Jorge Braun, realizadas por Padre José Maria. Um exemplo encontrado foi a obra Ecce sacerdos magnus:


      13 O trecho inicial do Kyrie em questão pode ser observado na Figura 8.

      14 O canto gregoriano foi considerado o ideal de música litúrgica pelo Movimento Ceciliano. Essa música monofônica, de melodia simples e sem acompanhamento instrumental, era vista como a forma mais pura de expressão musical dentro da liturgia. A restauração e promoção do canto gregoriano foram centrais para o movimento (Terry 1907).



      Figura 7 – Ecce Sacerdos Magnus do Padre Braun copiada pelo Padre Wisniewski.15 Referência: ARQUIVO MATER VERBI, 2019.



      Figura 8 – Reprodução dos primeiros compassos do Kyrie, referente à primeira Missa composta pelo Padre Wisniewski.

      Referência: ARQUIVO MATER VERBI, 2019.


      Em relação a influência Ceciliana nas composições de autoria do Padre Wisniewski, é muito comum encontrar o acompanhamento em órgão ou harmônio – elemento muito presente nas obras de estilo Ceciliano – e um encadeamento de vozes remetente à harmonia tradicional, promovendo a clara enunciação do texto litúrgico. Por isso, as melodias eram frequentemente simples e desprovidas de ornamentações excessivas, garantindo que as palavras fossem inteligíveis. Cabe ressaltar que a música litúrgica de característica Ceciliana era marcada pela simplicidade e sobriedade. Excessos emocionais ou virtuosismos eram desencorajados, em favor de uma música que evocasse reverência e espiritualidade (Terry 1907). Nas obras de Wisniewski, especialmente antes dos anos de 1970, é comum encontrar formas musicais sem grandes mudanças de dinâmica, ritmos dançantes ou melodias floridas. Suas obras, em sua totalidade até


      15 A partitura é referente às vozes do soprano e contralto, sendo a obra completa composta para quatro vozes. A partitura completa não pôde ser localizada.

      esse período, eram compostas para coral a duas, três ou quatro vozes a capella, ou com o acompanhamento de órgão ou harmônio.

      Apenas após a década de 1970 é que o padre começa a escrever obras maiores, para camerata de cordas e vozes, ou instrumentais. Em nota introdutória ao seu Magnificat, escrito pela primeira vez em 1959 e editado três vezes (uma em 1962, outra em 1986 e a última em 1987), o próprio admite a influência Ceciliana: “Em 1959 eu ainda navegava em águas puramente Cecilianas. A composição bem o reflete” (Wisniewski 1987, n.p.). Ainda, na mesma nota introdutória, revela que à época da primeira versão, possuía pouco contato com os compositores europeus clássicos e com o barroco mineiro, algo que, posteriormente modificou-se e acabou por refletir em sua composição. Afirma em sua última revisão: “Deve haver ali vestígios de meus contactos mais recentes com o Barroco ou com Mozart” (Wisniewski 1987, n.p.). A primeira versão, de 1959, não foi encontrada em arquivo. Porém, foi possível detectar um Magnificat de 1938, composto na Suíça, enquanto Wisniewski estudava teologia em Roma. Ao que consta, esta é a obra completa mais antiga do padre em arquivo.


      Figura 9 – Primeiros compassos do Magnificat de 1938, composto para tenor I, tenor II, baixo I e baixo II.16 Referência: ARQUIVO MATER VERBI, 2019.


      16 Observa-se uma estrutura simples, tendo seus primeiros compassos para serem executados por tenor I e II, com a presença do órgão executando a linha do baixo, a forma livre, sem indicação de compasso, andamento e dinâmica (elementos que remetem ao canto gregoriano), e apenas a partir do segundo sistema é possível observar a entrada completa do acompanhamento, atuando em função das quatro vozes, a indicação de compasso quaternário e de dinâmica mezzoforte.


      Figura 10 – Trecho inicial do Magnificat de 1962, o qual foi primeiro rascunhado em 1959, e teve sua versão final com camerata em 1987.17 Referência: ARQUIVO MATER VERBI, 2019.


      17 Apesar de bem diferente da versão final, observa-se aqui já uma maior exploração dos registros vocais, algo que não é comum em suas obras iniciais. A obra também conta com uma mudança de tom e é estruturada com as vozes cantando alternadamente, salvo alguns compassos. Cabe salientar que esta versão não possui nenhum tipo de acompanhamento instrumental.



      Figura 11 – Primeiros compassos vocais (referente às páginas 2 e 3) da versão final do Magnificat, de 1987, com camerata de cordas.18 Referência: ARQUIVO MATER VERBI, 2019.


      O Coral Mater Verbi, como reflexo, possui repertório influenciado pelo Movimento Ceciliano e pelos compositores renascentistas. Este compromisso é evidenciado pela inclusão de obras de figuras Cecilianas proeminentes, executadas principalmente durante os eventos de missa comum. Alguns compositores como Padre Jorge Braun, Alban Lipp, Padre J. B. Lehmann e Peter Griesbacher, cujas composições refletem a espiritualidade buscada pela reforma litúrgica Ceciliana, podem ser observados nos registros de repertório do grupo, contidos no material das crônicas. Obras da polifonia renascentista, por sua vez, costumam ser executadas em repertório de concerto e estão também presentes nos álbuns gravados. Destacam-se execuções de Giovanni Pierluigi da Palestrina, Marc’Antonio Ingegneri, Jacobus Gallus e Michael Praetorius. A preservação e a documentação das apresentações do Coral Mater Verbi são igualmente significativas. A produção de álbuns e gravações, incluindo LPs, CDs, fitas de rolo, VHS e DVDs, serve como um testemunho duradouro da prática musical do coral (Dias 2021).

      A evolução das práticas litúrgicas no século XX, impulsionada pelos movimentos conciliares, trouxe uma renovação profunda para a música católica. O Concílio Vaticano II (1962-1965), em particular, promoveu reformas significativas que redefiniram o papel dos coros e o repertório musical nas celebrações religiosas. Essas mudanças enfatizaram a participação ativa dos fiéis e introduziram o uso de idiomas vernaculares na liturgia, substituindo a polifonia complexa por melodias mais simples, acessíveis à assembleia. Para o Padre Wisniewski e o Coral Mater Verbi, essa transição apresentou desafios consideráveis, destacando a


      18 A página 01 conta com uma breve introdução instrumental. Aqui o instrumental presente já não exerce a função de apenas acompanhar as vozes, tendo momentos solo e de igual relevância à melodia.

      intersecção entre as novas diretrizes litúrgicas e a preservação da herança musical do grupo. Compreender essa dinâmica é essencial para entender como a memória é cultivada e transmitida através da música.

      De acordo com o documento Musicam Sacram (Vaticano 1968), a reforma conciliar incentivava a criação de novas obras musicais que seguissem os princípios estabelecidos, bem como a adaptação do repertório tradicional às necessidades da liturgia renovada. A diversidade na música litúrgica foi encorajada, incluindo polifonia, canto gregoriano (cantochão),19 música para órgãos e outros instrumentos que fossem aprovados pela Igreja Católica, bem como música popular de cunho religioso, refletindo a diversidade cultural e as diferentes tradições musicais dos fiéis. A adaptação a essas novas normas não foi fácil. Wisniewski, que tinha uma formação enraizada nos princípios do Movimento Ceciliano, viu suas composições e práticas musicais sendo desafiadas. Comenta:

      [...] tudo mudou da noite para o dia. “Harpa de Sião” e “Cecília”, composições artísticas de Braun (seus motetos, suas missas) e dos outros, foram relegadas ao “ferro velho”. Órgãos emudeceram, dando lugar aos violões e às barulhentas guitarras elétricas. E a música sacra, de sacro só tem o texto, se é que o tem... Melodias em que nada diferem das modinhas profanas, temas profanos, tudo invadiu a igreja, numa atitude de dessacralização e deboche (Wisniewski 1976, 06).

      Com as reformas do Concílio Vaticano II, o Coral Mater Verbi teve que ajustar seu repertório, frequentemente com pouco tempo para preparação. A participação do coro nas missas foi reduzida para favorecer o maior envolvimento da congregação. Wisniewski, no entanto, continuou a compor, adaptando- se às novas exigências litúrgicas, porém mantendo um forte vínculo com a tradição musical que o formara. O coral começou a incorporar hinos e cânticos congregacionais em seu repertório, incentivando a assembleia a participar mais plenamente nas celebrações. Além de manter as tradições do canto gregoriano e da polifonia renascentista, passou a incluir obras contemporâneas que atendiam às novas diretrizes litúrgicas. Isso permitiu que o grupo se mantivesse relevante dentro do novo contexto litúrgico.

      As composições de Wisniewski passaram a refletir a teologia renovada do Concílio Vaticano II, destacando temas como a eclesiologia do povo de Deus e a centralidade da Eucaristia.20 Suas obras buscavam transmitir as novas perspectivas teológicas de forma musical, com harmonias simples e melodias que podiam ser facilmente aprendidas e cantadas pela assembleia. Destaca-se no arquivo de Wisniewski diversas composições de Salmos pós-conciliares. Em arquivo foram encontrados 32 Salmos, sendo alguns escritos e


      19 Vale ressaltar que a prática do canto gregoriano não foi abolida; esta manteve um lugar de destaque, sendo considerado próprio da liturgia romana. No entanto, houve também um incentivo para a criação de melodias mais simples e acessíveis para igrejas menores e para a adaptação de obras musicais tradicionais às novas formas, deixando livre a utilização do cantochão junto às outras práticas (Vaticano 1968).

      20 A expressão "eclesiologia do povo de Deus" refere-se a uma visão teológica sobre a natureza e a missão da Igreja. Esta abordagem, desenvolvida e enfatizada durante o Concílio Vaticano II, vê a Igreja não apenas como uma instituição hierárquica, mas como uma comunidade de fiéis que, unidos em Cristo, formam o "Povo de Deus". A centralidade da Eucaristia, por sua vez, significa que a celebração eucarística é o coração da vida litúrgica e espiritual da Igreja. Portanto, a eclesiologia do povo de Deus e a centralidade da Eucaristia são conceitos interligados, que enfatizam a natureza comunitária e participativa da Igreja e o papel fundamental da Eucaristia na vida e na missão dos cristãos.

      musicados pelo próprio padre, e outros com texto ou composição colaborativos, em parceria com outros autores. De acordo com Dias (2021):

      Observa-se, a partir dos anos 1970, [...] a crescente e numerosa quantidade de Salmos – Aclamação ao Evangelho para serem executados durante as missas solenes, em sua maioria compostos para coro e assembleia, com melodias simplificadas para serem cantadas a uma só voz (Dias 2021, 61).

      Ainda segundo Dias (2021), outra mudança a ser pontuada na obra musical de Padre José Maria Wisniewski, decorrente das reformas conciliares, foi a composição de Missas e outras obras com a tradução do texto litúrgico para a Língua Portuguesa. De acordo com Duarte (2012), a escrita de obras com texto em português foi uma estratégia adotada pelos compositores do período de transição para o Concílio, com o intuito de promover uma maior aproximação dos fiéis pela compreensão do texto cantado. Este recurso é evidente em obras como a Missa Polifônica Comunitária – em Honra de Santa Cecília (1965) e a Missa Acadêmica (1969).


      Figura 12 – Exemplo de Salmo composto por Padre José Maria Wisniewski, enfatizando os princípios conciliares.21 Referência: ARQUIVO MATER VERBI, 2019.


      21 Observa-se a adoção de uma melodia simples, a qual deve ser cantada a uma só voz, o texto em vernáculo e próprio para a participação comunitária.



      Figura 13 – Os três primeiros movimentos da Missa de Santa Cecília destacam-se como exemplo de música pós-conciliar para coro uníssono e assembleia.

      Referência: ARQUIVO MATER VERBI, 2019.


      Os anos subsequentes ao Concílio Vaticano II foram marcados por muitas dificuldades e pouca atividade para Padre José Maria Wisniewski e o Coral Mater Verbi, enfrentando não apenas a ausência de um repertório adequado, mas também a falta de cantores. O grupo voltou a reanimar-se brevemente e atuar com certa regularidade apenas em agosto de 1968, após o I Congresso da Federação Nacional dos Meninos Cantores do Brasil, realizado em Petrópolis. Ainda assim, permaneceu reduzido e limitou-se a participar das missas dominicais, sem maiores compromissos. A partir de 1978, conforme contado anteriormente, o Coral Mater Verbi começou a ganhar novo fôlego; fato que se deu com as mudanças de regente e as participações na mídia, expandindo sua atuação além da comunidade do Colégio Academia e dos eventos exclusivamente litúrgicos.

      Em suma, a relação entre a prática musical do Coral Mater Verbi e os momentos históricos do Movimento Ceciliano e do Concílio Vaticano II evidencia a tensão entre continuidade e inovação na música litúrgica. As crônicas, diários e materiais autobiográficos de Wisniewski não apenas documentam a história e as transformações do coral, mas também refletem as mudanças mais amplas na liturgia e na música da Igreja Católica durante o século XX. A música e o repertório do Coral Mater Verbi, sob a influência e legado do Padre José Maria Wisniewski, atuam como suporte vital para a rememoração e a construção de memórias coletivas e individuais por meio de práticas que transcendem a execução musical.

      As atividades do coral, incluindo ensaios, apresentações e a seleção de um repertório diversificado, atuam como rituais que evocam e solidificam lembranças, reforçando a identidade e a coesão do grupo, conforme

      discutido por Frith (1996), e evidenciando o caráter social inerente à música. A interação constante entre os membros do coral e o público configura um espaço de compartilhamento e vivência de memórias, no qual cada execução musical não apenas remete a momentos específicos do passado, mas também contribui para a formação de uma memória continuamente renovada. Os escritos autobiográficos do Padre Wisniewski, preservados nos arquivos do coral, enriquecem esse processo ao fornecer contextos emocionais e narrativos que tornam a música uma experiência tanto pessoal quanto comunitária, conectando intimamente as trajetórias individuais à história do coral e à memória coletiva.

  3. Discussão e resultados

    Constatou-se, neste estudo, que os diários e materiais autobiográficos do Padre José Maria Wisniewski desempenham um papel crucial na continuidade e transmissão da memória do Coral Mater Verbi. Esses escritos não apenas documentam eventos, mas também preservam as práticas e os ritos estabelecidos por Wisniewski, que ainda orientam os membros do coral. Ao funcionar como um reservatório de palavras, imagens e ideias, os textos refletem o papel estruturador da escrita na memória cultural, organizando e consolidando as experiências vividas. Esse processo se insere em uma dinâmica histórica mais ampla, na qual a escrita, a partir do século XVI, deixa de ser apenas uma prática retórica para se alinhar ao ideal de objetividade e cientificidade (Assmann 2011), contribuindo para uma concepção linear da história.

    Considerando o princípio afetivo, pôde-se concluir que o laço social desempenha um papel fundamental, junto ao conteúdo material (seja ele escrito ou em outro formato), no que tange o processo de transmissão de uma memória. Refletindo acerca do problema do esquecimento, questiona-se até que ponto a transmissão da memória do grupo e do Padre Wisniewski será efetiva, seja pelo princípio afetivo, que, embora desempenhe bem sua função, depende de vínculos sociais para se perpetuar, ou pelo material em suporte físico. Concomitantemente, o problema do esquecimento é assunto que tem se tornado cada vez mais recorrente.

    Hall (2003) observa que, em uma sociedade descentralizada, globalizada e em constante expansão, o sujeito pós-moderno caracteriza-se por sua fragmentação e fluidez, sem uma identidade fixa. Esse contexto pós- moderno é marcado pela aceleração dos fluxos de informação, pela dissolução de fronteiras comunicacionais devido aos avanços tecnológicos e pela experiência de um mundo interconectado. Nesse cenário, Assmann (2011) aponta para um distanciamento progressivo entre a sociedade e a memória coletiva, afetando especialmente o campo cultural. Candau (2018) complementa essa análise ao destacar que o esquecimento, inclusive em sua forma voluntária, tornou-se uma prática recorrente nas sociedades contemporâneas. Nos séculos XX e XXI, o acúmulo excessivo de informações e imagens tornou impossível a lembrança absoluta, provocando assim a destruição e o esquecimento proposital, movidos por esse excesso de informação. O crescimento exponencial de artefatos da memória, aliado ao ambiente fragmentado e disperso do pós-moderno, dificulta cada vez mais o registro e a preservação documental.

    Propõe-se, então, como possível saída do paradoxo do esquecimento, um tratamento de reelaboração documental através da criação de narrativas. Recapitulando a crítica de Bourdieu (2005) ao tratar da “ilusão biográfica” como narrativas que frequentemente impõem uma ordem cronológica construída artificialmente, justapõe-se e responde Rancière ao pontuar: “A memória é uma obra de ficção” (Rancière 2013, 160). Convém destacar que este conceito de ficção não necessariamente se refere a uma falsa verdade (em oposição à realidade ou com a intenção de se passar por real), mas sim a uma "mobilização dos recursos

    da arte para construir um 'sistema' de ações representadas" (Rancière 2013, 160). Afinal, todo trabalho documental e narrativo requer uma montagem, assim como todo arquivo exige uma interpretação, devendo, como pressuposto, alcançar um ponto de equilíbrio e bom senso. Corrobora Didi-Huberman: "para recordar é preciso imaginar" (Didi-Huberman 2020, 51). Para propor reconstruções de memórias, é necessário o exercício da imaginação. No entanto, essa imaginação não é despropositada, mas fundamentada nos vestígios, nos segredos, nos detalhes, no que foi deixado de lado. Em outras palavras, trata-se de imaginar através de um olhar arqueológico: "Olhar as coisas através de um ponto de vista arqueológico é comparar o que vemos no presente, o que sobreviveu, com o que sabemos ter desaparecido" (Didi-Huberman 2017, 41).

    No caso em estudo, que envolve o arquivo e a memória do Padre Wisniewski e do Coral Mater Verbi, é fundamental reconhecer que as fontes primárias, como os documentos elaborados por Wisniewski, não devem ser vistas como portadoras de uma verdade absoluta, mas sim como saberes em constante transformação. Esses saberes interagem diretamente com o objeto de pesquisa e são essenciais para sua construção, implicando uma troca dinâmica entre o pesquisador, o objeto de estudo e as fontes, o que pode resultar em contínuas reconstruções. Sob uma perspectiva distinta, as fontes primárias não apenas fornecem explicações, mas também as recebem, criando uma interdependência entre as fontes e os objetos de investigação, onde os significados podem ser alterados reciprocamente (Cury e Campos 1997).

    Ao investigar a relação entre música, memória e identidade no contexto do Coral Mater Verbi, utilizando os escritos autobiográficos de Wisniewski como base, revela-se a complexidade das interações entre o repertório musical, a prática coral e a memória. As atividades do coral, incluindo ensaios e apresentações, funcionam como rituais que evocam e solidificam lembranças, reforçando a identidade do grupo e evidenciando a música como veículo de memória social. Com base nos resultados alcançados, propõe-se, como próximos passos na pesquisa, a exploração de abordagens complementares que ampliem o alcance e a interação com o material estudado. Entre essas possibilidades, estão o desenvolvimento de uma plataforma digital colaborativa, a produção de um filme documentário e de programas educativos.

    A plataforma digital permitiria o acesso aos documentos de Wisniewski, possibilitando que pesquisadores, músicos e o público em geral comentem e adicionem suas próprias memórias e interpretações, formando um arquivo digital vivo e interativo. Além disso, a produção de um documentário ou série audiovisual poderia aprofundar a história do coral e a vida de Wisniewski, por meio de entrevistas com membros atuais e antigos do coral, familiares e especialistas, construindo uma narrativa multifacetada. Os conteúdos visuais resultantes seriam também valiosos para programas educativos em escolas e universidades, onde os documentos de Wisniewski poderiam ser utilizados como material de estudo em atividades de escrita criativa, análise histórica e projetos de pesquisa que incentivem os estudantes a explorar a memória e a história de maneira inovadora.

    Ao integrar essas iniciativas, o trabalho científico se beneficia de uma abordagem multidisciplinar e interativa, garantindo a preservação e a disseminação da memória cultural de forma abrangente e dinâmica, ampliando o alcance da pesquisa e oferecendo uma visão mais holística e inovadora das narrativas de vida, integrando a música, a memória e a identidade em um diálogo contínuo e renovador. Os resultados em potencial, portanto, não apenas respondem aos objetivos iniciais, mas também sugerem possibilidades de preservação e disseminação da memória em questão, confirmando a relevância do estudo para os campos da autobiografia musical e da memória social.


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