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eISSN 2317-6377
A linha de baixo nos ritmos do sul do Brasil: proposições
práticas, teóricas e suas aplicações no contrabaixo
acústico
The bass line in the rhythms of Southern Brazil: practical and theoretical
proposals and its application on the doublebass
Matheus Mesquita Pasquali1
matheuspasquali89@gmail.com
Leonardo Piermartiri1
1Universidade do Estado de Santa Catarina, CEART, Florianópolis, Santa Catarina, Brasi
ARTIGO CIENTÍFICO
Editor de Seção: Fernandp Chaib
Editor de Layout: Fernando Chaib
Licença: "CC by 4.0"
Data de submissão: 10 set 2024
Data final de aprovão: 27 out 2024
Data de publicação: 02 jan 2025
DOI: https://doi.org/10.35699/2317-6377.2025.54497
RESUMO: Este artigo propõe uma análise das linhas de baixo no gênero da milonga e em ritmos similares,
característicos da região sul do Brasil, aplicando-os ao contrabaixo. Considera-se não apenas o aspecto prático
para a obtenção de uma sonoridade apropriada, mas também o aspecto conceitual por trás desses gêneros, que
dialogam com os conceitos de clave e rítmica aditiva. Foi feita uma análise sobre as claves usadas nesses gêneros,
que são exatamente as mesmas encontradas em outros estilos, sugerindo uma possível origem africana comum.
Este é um trabalho informado pela prática, onde um dos autores participou como músico convidado em
performances com o grupo Quarteto Coração de Potro, grupo especializado no repertório sulino, sediado em Lages-
SC. Foi realizada uma entrevista com o músico João Gabriel Rosa, que também compartilhou suas percepções e
práticas. Neste artigo estão incluídas transcrições e análises de trechos de obras desse repertório para corroborar
as conclusões levantadas.
PALAVRAS-CHAVE: Ritmos sulinos; Rítmica aditiva; Música; Contrabaixo.
ABSTRACT: This article proposes an analysis of bass lines in the milonga genre and similar rhythms, characteristic
of the southern region of Brazil, applying them to the contrabass. Not only the practical aspect for obtaining an
appropriate sound is considered, but also the conceptual aspect behind these genres, which dialogue with the
concepts of clave and additive rhythm. A rhythmic analysis was made of the claffs of those genres, which are exactly
the same as those found in other styles, suggesting a possible common African origin. This is a work informed by
practice, where one of the authors participated as a guest musician in performances with the group Quarteto
Coração de Potro, a group specialized in southern repertoire, based in Lages-SC. An interview was carried out with
musician João Gabriel Rosa, who also shared his perceptions . This article includes transcriptions and analyzes of
excerpts from works from this repertoire to corroborate the conclusions raised.
KEYWORDS: Southern rhythms; Additive rhythmic; Music; Doublebass.
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Pasquali, Matheus Mesquita; Piermartiri, Leonardo
“A linha de baixo nos ritmos do sul do Brasil: proposições práticas, teóricas e suas aplicações no contrabaixo acústico”
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1. Introdução
Este trabalho pretende investigar as linhas de baixo e as vozes graves presentes em algumas
obras tocadas no contrabaixo propriamente dito, mas por vezes também em algum outro
instrumento de registro semelhante, como o do guitarrón1gaúcho, oriundas da região sul do
Brasil, bem como trazer exemplos para análise. Enfatizo aqui que quando usarmos referências
de linhas executadas no contrabaixo, serão usados exemplos que podem ser
aplicados,majoritariamente no contrabaixo acústico, que é o instrumento onde os exemplos
foram testados, mas também no guitarrón, e por vezes o próprio violão, principalmente quando
estiver encarregado da função do acompanhamento. Foi realizada uma entrevista com o multi-
instrumentista João Gabriel Rosa, que atua juntamente com o Quarteto Coração de Potro, grupo
bem estabelecido de música sulina de Santa Catarina, que contribuiu significativamente para
este artigo. Por fim, foi feita a transcrição de algumas partes da linha de baixo de uma milonga,
chamada de Aporreado, gravada em um baixolão pelo músico Pedro Terra, mas interpretada ao
vivo usando o contrabaixo acústico com o suporte de um guitarrón crioulo.
Ao abordar os registros graves, trago o conceito da palavra baixo, segundo o dicionário Aurélio
(Ferreira 1999) para a pauta:
A mais grave das vozes masculinas; o cantor que tem essa voz; o instrumento de
diapasão mais grave de cada família de instrumentos; a parte mais grave das
realizações contrapontísticas, em relação às partes superior do conjunto e não a
uma voz ou instrumento de diapasão grave (Ferreira 1999, 50).
Para entender as maneiras de concepção, algumas questões que são de provável consenso
entre instrumentistas que acompanham música popular precisam ser levantadas. Como entender
os conceitos de improvisação traduzida aqui como uma certa liberdade de execução que
contrabaixistas e sicos de maneira geral utilizam (principalmente no acompanhamento); como
aprender a obra a ser executada e definir estratégias para um acompanhamento eficaz e que
deixe o espaço confortável para os outros instrumentistas; se os padrões mais comumente
encontrados e sistematizados abrangem de fato todas as situações em que o músico
acompanhante deve tocar esses ritmos; se existe uma maneira de fazer com que tudo soe
natural (com fuidez e leveza) sem ter uma vivência e experiência tocando determinadas vertentes
musicais. Essas são preocupações recorrentes quando, inicialmente, o contrabaixista precisa
entender sua função dentro da música. Embora o conceito possa vir a ser questionado, a
questão sempre foi a de trazer conforto para que a melodia possa se destacar, sendo
devidamente amparada, função que leva muito tempo para ser entendida, levando em conta que
as partes do baixo não são escritas. Para isso o músico passa por diversos momentos de
tentativa e erro na busca pela dita eficácia.
Mas é um erro intuir que estas regras sejam rígidas, ao contrário, são elásticas. Especialmente a
questão rítmica apresenta-se de tal maneira marcada por complexidades de enunciação que
1Oguitarrón é um instrumento folclórico, que consiste em uma adaptação do violão clássico de
6 cordas, será explicado em detalhes mais adiante no artigo.
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conceitos como o de métrica derramada se fazem importantes. Essa expressão foi proposta por
Martha Ulhôa (1999) para a particularidade, na rítmica da música popular brasileira, de serem
muito usados padrões sincopados que produzem um efeito de transbordamento dos limites
métricos. O conceito é especialmente interessante por abrir a questão das pequenas
discrepâncias presentes nas enunciações musicais, discrepâncias estas que não podem ser
apreendidas pela grafia musical em sua totalidade, mas que constituem um importante fator na
sintaxe da música (Guedes 2003).
Uma característica importante da seção rítmica é a parcial liberdade que os sicos têm de
criarem o acompanhamento. Normalmente a parte dos instrumentos de base não vem escrita
“nota por nota”, e sim apenas são indicados os acordes por meio de cifras, e definido o ritmo
conforme o estilo. A partir destas indicações é que os músicos aplicam um determinado padrão
rítmico a uma harmonia, estruturando a base do que chamamos de “levada”, “batida”, ou em
inglês, groove”. A levada é fundamental na definição dos estilos da música popular, sendo que
muitas vezes ela é o único elemento de diferenciação entre um estilo e outro (Carvalho 2006). Na
estética que será coberta pela pesquisa em questão, por vezes veremos que somente o baixo ou
mesmo o registro da voz mais grave das obras, não será específico o suficiente para dar conta
que caracterizar essa diferenciação, sendo necessário traçar um olhar para o que os outros
instrumentos estão tocando para dizer se trataremos de um ritmo ou de outro, e, em alguns
casos mais específicos, até mesmo olhar a temática das letras ou a disposição das notas das
melodias bem como os locais onde os acentos estarão colocados.
2. A música do Sul
O escritor e folclorista gaúcho João Sezimbra Jacques (apud Ribeiro 1955) aponta para algumas
peculiaridades presentes na região sul, que tem em suas entrelinhas, diferenças consideráveis
com o resto do Brasil, sendo inclusive muito próxima culturalmente dos países que se avizinham
geograficamente, que ficam evidenciados quando afirma, por exemplo, que a milonga, um dos
ritmos que serão contemplados aqui a nível analítico, é uma espécie de ritmo crioulo platino. Isso
significa primordialmente que é comum ao Uruguai, Argentina e ao estado do Rio Grande do Sul,
também sendo encontrado nos outros da região Sul do Brasil, quase inexistindo no resto do
território brasileiro. A região platina ou pampiana, compreende um setor geográfico que possui
uma história em comum durante grande parte do período colonial, tendo inclusive participado
de uma mesma administração e com um histórico de conflitos com o restante do Brasil. Esse
fato talvez explicite o porquê de os gêneros possuírem barreiras tão definidas e setorizadas,
mesmo com o fato de, por vezes, terem uma origem tão plural e fundida, amálgamas de tantas
culturas diferentes.
Segundo o antropólogo mineiro Darcy Ribeiro (1955), fato é que na região sul os modos de vida
são tão diferenciados e divergentes do resto do país, e que se deve pensá-la como sendo de
uma configuração diferente. A própria proximidade geográfica com a Argentina e o Uruguai e a
presença do clima subtropical (Ramil 2004, 13) tornam a cultura sulina permeada de
características extremamente singulares. Além das condições geográficas peculiares, as
assimetrias das sociedades produzidas durante a colonização inicialmente pelos portugueses e
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espanhóis resultaram em conflitos políticos, conduzindo processos de guerras civis, revoluções
e golpes de Estado (Nogueira 2015). Essas assimetrias podem ser verificadas até os dias atuais,
dificultando, muitas vezes, a pauta da integração regional. Apesar de compartilharem de um
mesmo passado e de desafios políticos e econômicos similares, a integração na América Platina
apresentou avanços e retrocessos, marcada por rivalidades e alianças com outras potências. A
música sulina, portanto, é resultante de uma mistura de fatores sociais, climáticos e culturais,
como não poderia deixar de ser.
Voltando à problemática concernente às estéticas da sica sulina, Alvares (2007) apontava
em sua monografia a percepção do quão pouco a música tradicional do Sul é utilizada nos
currículos escolares, tanto em nível universitário quanto nos currículos dos ensinos fundamental
e médio. Esperamos que o presente trabalho possa contribuir para romper com este padrão,
valorizando mais essa forma de expressão. Trataremos da figura do gaúcho, que não está ligado
apenas ao estado do Rio Grande do Sul, mas também aos estados brasileiros de Santa Catarina,
Paraná e Mato grosso do Sul, onde a tal cultura existe de maneira latente, e principalmente aos
países vizinhos, Uruguai e Argentina, que são o verdadeiro berço do gaúcho em si.
2.1. O baixo na música sulina
Com a finalidade de tentar sanar, ainda que de maneira parcial e sem a pretensão de criar uma
fórmula que conta de todas as questões e dicotomias da tarefa de propor acompanhamentos
funcionais para determinados gêneros, a presente análise tratará de lançar um olhar
aprofundado às questões rítmicas dentro do contexto dos instrumentos graves, e num segundo
momento, sobre as questões harmônicas e melódicas . Dentro desse âmbito, pode-se
compreender que todas as características das nações banhadas pelo rio da Prata estarão aqui
englobadas. Também tentaremos atentar para as lacunas presentes nos métodos de ensino de
contrabaixo voltados à música brasileira, onde possa-se colocar a linha do baixo como algo mais
importante que o contrabaixo em si (Carvalho 2006). Atualmente esses referem-se
exclusivamente aos ritmos oriundos das regiões central/norte e nordeste, de clima tropical, como
os encontrados no samba, frevo, baião, maracatu, bossa, e excluem a milonga, a chamarra, a
guarânia, a zamba, que por paradoxal que possa parecer, por várias vezes contam com rítmicas
advindas das mesmas claves.
A dita clave, pode ser encontrada como o termo timeline, segundo alguns autores como Joseph
Hanson Kwabena Nketia (1921-2019) e Kofi Agawu (1956-). Este último traz a sua visão sobre o
termo que estrutura a rítmica na música africana:
[…] padrão rítmico de curta duração que é repetido na forma de um ostinato,
através de uma batida de percussão específica [...]. Normalmente atreladas ao
uso de sinos, baquetas ou pedra, as timelines, muitas vezes, projetam uma forma
distinta e até memorável. Embora existam padrões percussivos de pulsação
imutável, a maioria das timelines exibe pelo menos dois valores de modos
contrastantes, um longo e um curto. Isso, a propósito, é outro sinal do impulso
minimalista que é difundido na criatividade africana. Embora a função dos
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padrões timeline seja comparada, às vezes, com a de um metrônomo, uma
diferença significativa. Diferindo do metrônomo, que demarca o tempo e com
isso ajuda a localizar a ‘parede de ataques sem acento’, as timelines esculpem o
tempo, elas são parte integrante da música. Cada timeline é, em princípio,
estruturalmente dependente de uma fundação metronômica anterior (Agawu
apud Gomes 2019, 12).
A análise aqui pretendida visa dar um enfoque ao contrabaixo, podendo contemplar também
outros instrumentos de tessitura similar, conforme dito anteriormente e propor maneiras de como
aplicar esses instrumentos dentro das regiões dos graves, sem interferir nas vozes vizinhas que
possam, porventura, estar também dividindo a instrumentação dentro de uma determinada peça
musical. O bombo leguero2e o guitarrón, podem facilmente entrar em choque por estarem
ambos em um registro baixo, limitando assim, a esfera de atuação que este possa vir a cobrir. O
desafio é ainda maior pelo fato de que muitas vezes as maneiras de tocar contam com uma
grande predominância de improvisação, ainda que com alguns limites. Dentro desta tópica,
podemos observar que os músicos populares têm como pré-requisito estarem acostumados
com a improvisação de alguma maneira. Na esfera dos músicos acompanhantes, isso costuma
acontecer nas diferentes maneiras em que é possível conduzir uma determinada “levada” ou nas
diferentes maneiras de abordar um determinado ritmo, geralmente dentro de uma harmonia
definida e nos gêneros sulinos, majoritariamente dentro da esfera tonal. Costuma-se dizer que
uma levada pode ser realizada de diversas maneiras, mas também costuma-se atribuir uma
estrutura básica que seja capaz de dar a elas a conotação com um estilo ou gênero musical
(Guedes 2003).
Trataremos, portanto, de inicialmente traçar um olhar sobre as levadas da música do Sul,
executadas pelo Quarteto Coração de Potro, e analisar linhas de baixo relevantes de acordo com
o músico entrevistado, transcrevendo algumas ideias.
3. Análise das linhas de baixo
O multi-instrumentista João Gabriel Rosa é um músico que traçou sua caminhada tocando a
estética sulina. Além de ocupar a posição de violonista e de tocar guitarrón no Quarteto Coração
de Potro, também opera a técnica e o áudio de palco de outros grupos. Pela proximidade deste
último com o contrabaixo, ele conversou com o autor deste trabalho, de maneira informal sobre
os padrões para acompanhamento. Tendo montado um material de finalidade didática, ele
escreve alguns padrões usuais para acompanhar os ritmos que predominam no repertório. Com
seu consentimento, serão apresentados em seguida alguns recortes seguidos de comentários
sobre as linhas de contrabaixo, bem como algumas observações sobre a origem dos ritmos.
Com relação ao quesito harmônico e de cifragem, observa-se no trabalho de Guedes (2003):
Entendemos por progressão harmônica a sucessão de acordes que surge da
movimentação melódica simultânea de rias partes. Na música popular de que
tratamos, ela é analisada e grafada por um sistema comum de cifras pelo qual se
2Instrumento de percussão do tipo membranofone, originário da Argentina.
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especificam os acordes que compõem a progressão. Em nosso trabalho,
identificaremos a progressão como a estrutura harmônica da obra. Acordes são
conjuntos harmônicos de alturas musicais. A cifragem de um acorde é um
conjunto hipotético de sons simultâneos que define as alturas potencialmente
válidas para um determinado momento da progressão. Cada acorde é, portanto,
um construto de duração determinada em que se segmenta a estrutura
harmônica na obra (Guedes 2003, 53).
Os exemplos que em seguida serão citados foram concebidos por João Gabriel, e baseados no
entendimento que ele possui dos padrões de baixo que se adequam melhor às conduções
propostas. Vale ressaltar que, embora estes não sejam as únicas formas possíveis de arranjar
para o contrabaixo, elas são maneiras usuais e funcionais de concepção. Todos os padrões
explicitados foram testados no contrabaixo acústico, sem maiores problemas, pelo fato de as
execuções não exigirem um domínio técnico tão avançado, mas sim, como é comum na maior
parte dos gêneros de sica popular, possuírem uma demanda tmica maior. Com isso a
precisão, e a quantização, bem como a exata colocação dos acentos, exercem um papel
fundamentalmente mais importante do que qualquer outro quesito. Como é dito nos jargões dos
músicos populares há muito tempo: “mais vale a nota errada no tempo certo, do que a nota certa
no tempo errado”. Deve-se citar também, o fato de haver semelhanças enormes entre vários
ritmos, bem como uns terem sido os alicerces que desembocaram em outros. Esta parte do
trabalho irá dar maior enfoque a analisar as levadas propriamente trazidas e não a colocar uma
lupa para entendê-las sob uma ótica mais detalhada. Sem mais, vamos aos ritmos.
3.1. A Milonga
Ritmo do qual trataremos com mais profundidade no trabalho, a milonga é muito difundida pelos
territórios sulinos, e pode ser tocada de mais de uma maneira. Etimologicamente, a palavra
milonga designa, segundo Cascudo (1972) termo originário da língua bunda-congolense é o
plural de mulunga, palavra, e usado entre negros, significando palavrada, palavras tolas ou
insolentes” (Cascudo 1972, 560). No livro “El Gaucho” (Assunção 1979) atesta que é um gênero
de influências hispânicas e africanas, encontrado em meados do século XIX e originários dos
chamados “candombes”, que possuíam fórmulas rítmicas peculiares em bailes cerimoniais de
origem africana. Eram ritmos binários com “grande abundância de síncopas (Assunção 1979,
334). Cezimbra Jacques (1912 apud Ribeiro 1955), em seu livro Assuntos do Rio Grande do Sul,
sinaliza sobre a presença da Milonga no Brasil, alegando que esta é uma espécie de música
crioula platina cantada ao som da guitarra.
A exemplo dos vários ritmos que aparecem em outras regiões do Brasil, a milonga possui a
popular divisão do tresillo 3+3+2. Possui um padrão melódico peculiar na região do baixo, sendo
geralmente, em um acorde menor, as três notas executadas nessa sequência: a fundamental, a
sexta menor e a quinta justa.
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Figura 1 - Agrupamento 3+3+2
Fonte: Elaborado pelos autores, 2024.
A imagem acima está posta como se a contagem estivesse sendo em um andamento moderado,
de aproximadamente 100 bpm. De igual forma, pode-se reduzir o metrônomo a 50 bpm e
escrever o mesmo trecho com colcheias pontuadas e colcheias, respectivamente, como no
exemplo abaixo.
Figura 2 - Levada de Milonga
Fonte: Elaborado pelos autores, 2024.
Esse é o exemplo da Milonga Arrabalera, ritmo Pampeano e de profunda difusão nos territórios
sulinos. Geralmente em tom menor e de pouca movimentação harmônica, ela é uma das
traduções mais literais do gaúcho melancólico que observa a pampa. Vitor Ramil, compositor
gaúcho de renome, costuma usar esse ritmo em grande parte de sua obra. Aqui Ramil discorre
sobre as possíveis origens da milonga:
Assim como o gaúcho e o pampa, a milonga é comum a Rio Grande do Sul,
Uruguai e Argentina, inexistindo no resto do Brasil. A discussão em torno de sua
origem expressa bastante bem sua relevância no encontro dessas três culturas:
teses para sua origem rio-grandense, sua origem argentina e sua origem
uruguaia; sua ascendência ora é portuguesa, ora espanhola, ora latino-americana
mesmo, mais especificamente cubana. Para o compositor uruguaio Alfredo
Zitarrosa, que chamava a milonga de blues de Montevideo, a capacidade de
fundir-se a outros gêneros sem dificuldade era uma de suas características; o
argentino Atahualpa Yupanqui afirmava que as formas possíveis da milonga
seriam tantas quantas fossem as possíveis formas de tocá-la. Do lado de das
fronteiras, modestamente, eu a associava à imagem altamente definida do
gaúcho e do pampa. A milonga me soava uma poderosa sugestão de unidade, a
expressão musical e poética do frio por excelência (Ramil 2004, 21-22).
3.2. A Milonga Pampeana
Como explicitado na citação de Ramil anteriormente, existem tantas variações de milonga
quando as que se é possível tocar. Frente a essa ideia, apresentamos aqui umas das tantas
variações existentes chamada milonga pampeana. Novamente, foram notadas as diferentes
nuances que o baixista pode encontrar ao tocar o estilo.
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Figura 3 - Baixo da milonga pampeana
Fonte: Elaborado pelos autores, 2024.
O exemplo aqui começa no acorde da dominante. O agrupamento do primeiro exemplo é o
3+3+2, e no segundo tempo do segundo compasso, houve a opção de encurtar levemente a
colcheia e tocar uma nota abafada na segunda metade desta, para gerar um efeito percussivo,
muito comum na linguagem contrabaixística. O efeito é o da chamada “ghost note”, ou nota
fantasma, onde abafamos as notas com a mão esquerda e atacamos a corda com a mão direita
gerando o som mencionado. Ela irá aparecer com frequência em diversos dos padrões
analisados. Vide que, em comparação ao primeiro exemplo, uma ligadura que provoca a
síncope entre o primeiro tempo e o segundo, enquanto no primeiro exemplo, da milonga
arrabalera, toca-se a nota na cabeça do segundo tempo de cada compasso. Diferenças
pequenas, mas que provocam grandes efeitos no resultado musical do conjunto.
3.3. O Rasguido Doble
Variação da milonga que ganha esse nome em função da maneira como toca-se o violão. De
uma maneira bem ponteada. Muito similar e fácil de confundir com a milonga propriamente,
pode-se constatar que mesmo entre os músicos executantes, pode gerar confusão entre a
terminologia adotada para definir quando é um e quando é outro. Tudo é baseado na levada do
violão, que utiliza esta figura rítmica, distribuindo as notas entre os registros graves e agudos.
Figura 4 - Levada de baixo do rasguido doble
Fonte: Elaborado pelos autores, 2024.
O exemplo acima sai da tônica e movimenta-se até a dominante, sempre usando as quintas
justas como maneira de articular. Durante os ensaios com o grupo Coração de Potro, ao invés
de utilizar algo parecido com a chamarra ou mesmo algumas variações da milonga na condução
do baixo a fim de complementar o ritmo que os outros instrumentos realizavam, João Gabriel
sugeria que o padrão fosse muito próximo às articulações tocadas no violão. É senso comum
que a boa condução, boa levada ou o bom “groove”, terminologia comum a quem toca música
popular, se de maneira complementar, onde as notas tocadas por um instrumento, são
compensadas pelas notas tocadas por outro, geralmente em registros opostos (grave/agudo) e
em partes diferentes do tempo. Durante essa pesquisa, notou-se que várias vezes o que os
músicos querem ouvir, sobretudo nestes estilos, é justamente a mesma subdivisão, apenas em
diferentes registros, de maneira a reforçar os ritmos.
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3.4. O Candombe
O candombe é uma dança com atabaques típica da América do Sul. Tem um papel significativo
na cultura do Uruguai dos últimos duzentos anos. Foi reconhecido pela Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura como Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade.
É uma manifestação cultural originada a partir da chegada dos escravos da África ao continente
sul-americano. Em menor medida, existem manifestações de candombe no Brasil e Argentina.
Na Argentina, pode ser encontrado em Buenos Aires, Santa Fé, Paraná, Salta e Corrientes. No
Brasil, ainda mantém seu caráter religioso: vemo-lo no Estado de Minas Gerais. O candombe foi
integrado pela Unesco na lista representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade
em 2009.
Figura 5 - Padrão de baixo Candombe
Fonte: Elaborado pelos autores, 2024.
O padrão faz-se como de costume com o uso de fundamental e quinta justa sobre um acorde de
Lá, tanto faz se maior ou menor. Origina-se, como os outros ritmos, dos padrões da percussão e
divide-se numa métrica de 4 tempos.
3.5. O Chamamé
Ritmo de origem argentina de forma ternária, possui uma fluidez que faz com que seja
geralmente tocado com arpejos nos tempos fortes. Segundo Maicon Oliveira, do Quarteto
Coração de Potro, Atahualpa Yupanqui, cantor e compositor argentino conhecido por cantar o
folclore do gaúcho, dividia os ritmos como linguagens que vem de três diferentes condições
geográficas: a pedra, a selva e o pampa. Yupanqui referiria o chamamé como sendo da selva.
Figura 6 - Levada de baixo do Chamamé
Fonte: Elaborado pelos autores, 2024.
Como tudo no mundo anda e evolui, as maneiras mais modernas de tocar estes ritmos hoje não
fazem uso da terça no segundo tempo e sim, pulam direto para a quinta justa dos acordes. É de
consenso, ao conversar com os músicos atuantes em alguns grupos de música folclórica
durante a realização deste trabalho, que a terça possa tomar conta de frequências não muito
bem-vindas, principalmente pelo fato de que quando a instrumentação conta com violões, eles
por vezes possuam um número grande de cordas soltas soando concomitantemente. A quinta
justa, portanto, opera de maneira a deixar a sonoridade “limpa como um todo”. também uma
maneira bem comum de se conduzir os chamamés considerada moderna, que é o de utilizar o
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mesmo padrão da zamba, e omitir o primeiro tempo tocando a fundamental, geralmente no
registro mais grave possível nos tempos dois e três. Apesar de parecer muito com a zamba3(na
voz do baixo) os outros elementos do acompanhamento, como os violões e a percussão, se
encarregam de fazer com que o estilo seja de fato o chamamé. Como anteriormente fora exposto,
muito do que ocorre nestas músicas se em forma de nuances e em pequenos detalhes que
justificam a maneira de como ela irá ser definida, pelo fato de os estilos serem demasiadamente
próximos. A temática das letras, por exemplo, que denotam a fluidez das águas do rio, a forma
em como o violão irá dividir os acentos e a ausência ou presença de determinados instrumentos,
todos corroboram para a categorização e denotação da sonoridade.
3.6. A Chamarra
Ritmo advindo da síncope característica (Sandroni 2002) com claras influências da habanera
cubana. De compasso quaternário, é profundamente difundida na estética sulina, com um pulso
dançante e embalado. A ncope acontece no primeiro tempo, e é um dos padrões que mais
se desdobra em diferentes vertentes.
Figura 7 - Padrão de Baixo da Chamarra
Fonte: Elaborado pelos autores, 2024.
Temos a exemplo de todos os outros, o ritmo com o uso da fundamental e da quinta justa, tanto
em direção à região aguda quanto à região grave. Pela questão da tessitura, observa-se que
quando estamos no acorde da tônica (aqui neste caso um sol maior), o movimento se dá em
direção à quinta aguda. Quando chegamos no acorde da dominante (D7), pode-se executar a
linha tanto em direção ao agudo quanto ao grave. O local onde é posta a nota muda, ou a “ghost
note” pode ser invertido, podendo-a inserir na quarta semicolcheia do primeiro tempo no lugar
da terceira, como sugerido por João Gabriel. Não maiores diferenças ao deslocá-la, sendo
inclusive a nota abafada na quarta o padrão visto com mais frequência ao acompanhar o gênero.
Com relação a usar outras notas do acorde, como a terça, no presente caso é visto com menor
recorrência, do que quando comparada à milonga (geralmente mais lenta e em tom menor), por
também tratar-se de um ritmo mais espaçado.
3.7. A Chamarrita
Existem muitas contradições sobre as diferenças entre alguns ritmos tratados na pesquisa. O
fato de haver uma enorme semelhança entre eles e de uns originarem e influenciarem
transformações nos outros, torna muito difícil distinguir quando estamos falando de um ritmo
específico e quando estamos falando de outro. Vide o exemplo da chamarra, chamarrita ou
chimarrita. Nem dentre os músicos que têm familiaridade com a estética um consenso
certeiro sobre o tema. O vídeo do violonista Matheus Alves (2022) traz o exemplo, inclusive de
3Dança tradicional argentina.
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uma música (Apaysanado, do duo Cesar Oliveira e Rogério Melo) categorizado como sendo uma
“Chimarrita” no Festival da Sapecada, tradicional do município de Lages em Santa Catarina, mas
é considerada pelo autor do vídeo como sendo uma “Chamarra”. Fala-se também no termo
“Vaneira Missioneira”, na região missioneira e fronteiriça do sul do Brasil. Segundo o autor do
vídeo, o termo “chimarrita” é um pouco menos usual, mas teria sido uma dança açoriana trazida
para o Brasil pelos portugueses e que teria sofrido uma metamorfose ao longo dos anos com a
mistura das etnias ao viajar para os demais territórios. O exemplo aqui mostrado por João
Gabriel, trata de como a linha de baixo opera em uma destas metamorfoses de origem Uruguaia
abordando uma maneira de levada comum e conhecida na música nativista.
Figura 8 - Levada da Chamarrita Uruguaia
Fonte: Elaborado pelos autores, 2024.
Novamente utilizando o tão recorrente padrão das fundamentais e quintas justas tanto para o
acorde da Tônica (G Maior), quanto para o da Dominante (D7). Utiliza-se um recurso bem comum
que por várias vezes, nota-se ao tocar contrabaixo, e sempre com um certo teor de dúvida
colocado à questão. A quinta justa do acorde de G é a mesma nota Ré, que é a fundamental do
acorde de D7. Para evitar uma repetição que melodicamente não soaria interessante, neste caso
é uma opção mais recomendada voltar à nota da fundamental na segunda colcheia do segundo
tempo, do que repeti-la por três vezes, duas como quinta justa do G Maior e uma como
fundamental do próprio D7. No mais, não nada além de o registro grave acompanhar
exatamente a levada que as partes médio/agudas também fazem, tocando a semínima do
primeiro tempo e as colcheias no segundo. A síncope neste caso fica a cargo do acento na
segunda colcheia do segundo tempo.
3.8. Chamarrita (Variação)
Conforme dito anteriormente, segue o registro de uma das tantas variações que podem ser feitas
ao tocar a Chamarrita. Este caso será uma forma de levada mais utilizada na fronteira do estado
do Rio Grande do Sul. Pode-se usar como exemplo a música “Chamarrita e Costureira”, do
compositor Noel Guarany, nascido na cidade de São Luiz Gonzaga, figura muito conhecida no
folclore gaúcho.
Figura 9 - Chamarrita levada baixo (variação)
Fonte: Chamarrita e Costureira de Noel Guarany. Transcrito pelos autores, 2024.
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Esta levada é muito similar à da milonga, com a figura do tresillo. A exemplo dos outros ritmos, o
que vai definir propriamente de qual estamos falando, será o restante dos elementos que irão
aparecer. Mais uma vez, apenas fundamentais e quintas justas sendo usadas nos acordes.
3.9. Chamarrita (Variação 2)
Ainda podemos usar mais um exemplo de levada para a chamarrita. Essa em específico pode
ser ouvida na música “Com a Tropilha por Diante” do Quarteto Coração de Potro. Ela tem uma
nota abafada no primeiro tempo e tocamos apenas as duas últimas semicolcheias do tempo.
Figura 10 - Levada da Chamarrita
Fonte: Elaborado pelos autores, 2024.
Vou usar aqui a linguagem em primeira pessoa para relatar uma experiência que tive com essa
música. Quando estávamos passando o som, antes de uma apresentação com o Quarteto
Coração de Potro, me reuni com o guitarronista Maicon Oliveira para adaptarmos a levada que
usamos. Na minha concepção, como a obra fora gravada sem contrabaixo, o melhor seria, na
totalidade da peça usar ou a levada da chamarrita uruguaia ou a da variação 1 proposta no
trabalho. Porém me foi dito para, nas primeiras seções da música, “colar” o baixo ao violão,
fazendo o mesmo ritmo.
Num primeiro momento me soou muito estranho, de maneira que até mesmo para conduzir a
música estava tendo muitas dúvidas sobre como aquilo estava soando para frente do palco.
Porém, o padrão se justifica ao entrar na seção seguinte, e sim, utilizar alguma das outras
duas levadas propostas. Como elas são menos “trancadas” e possuem o ataque no primeiro
tempo, fica muito mais nítido o contraste , pelo fato de ela seguir na sequência de um padrão
que resulta em um efeito sonoro inteiramente contrastante. Assim como a música tonal faz
extenso uso da tensão e resolução na harmonia para delinear o discurso musical, também
ritmicamente, pode-se buscar um efeito semelhante. O ritmo inicial, sem o primeiro tempo e com
semicolcheias curtas para conduzir, transmite uma sensação completamente nova trancada que
acaba virando para outra mais aberta quando parte para o segundo com notas mais longas e um
ataque no primeiro tempo.
4. Da análise rítmica
Através da análise tentaremos traçar alguns padrões vindos da chamada rítmica aditiva
(Fiaminghi 2018), trazendo a clave e o gestual como forma de mensurar e entender o ritmo, em
detrimento da rítmica divisiva, oriunda das correntes europeias, mais pautada na ideia de métrica.
As análises dar-se-ão sobretudo na região grave, propondo o enfoque em como os ritmos se
organizam na região do baixo, deixando a atenção mais voltada para o ritmo, e não tanto para a
melodia e harmonia.
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Dado o fato de que que estaremos aqui focando em um estudo de toques de matriz africana,
usar a métrica (tempo medido; mensuração; proporção; número), entendida aqui como uma
forma europeizada de contar o tempo, seja menos interessante do que usar a ideia de rítmica
(tempo sentido; movimento corpóreo-musical que flui no tempo; corporalidade;), dado que a
última, faz a mensuração do tempo de uma maneira gestual, usando as ditas claves como
unidade de medida para o tempo, e sim, de uma ideia africanista.
No capítulo intitulado Premissas Musicais, do livro Feitiço Decente, de Carlos Sandroni (2001),
uma constatação de que alguns estudiosos notaram que certas linhas como as que são
estudadas no presente trabalho, vinham com frases tmicas totalmente inusitadas e que diferiam
de maneira gritante das encontradas nos padrões ocidentais. Ainda segundo o autor, a
característica mais marcante e ao mesmo tempo confusa (do ponto de vista ocidental), era a
mistura de unidades de tempo binárias e ternárias, que em termos mais gerais poderiam ser
representadas por semínimas pontuadas. Também sobre o assunto, cito Jones e seu Studies in
African Music:
Nossa teoria musical clássica prevê dois tipos de compasso, os simples e os
compostos. Nos compassos simples, as unidades de tempo são binárias. Por
exemplo, nos compassos 2/4, 3/4 e 4/4, as unidades de tempo são as semínimas,
que, dividindo-se sempre por dois, serão equivalentes a duas colcheias ou
quatro semicolcheias etc. (Os casos em que semínimas são divididas de modo
ternário constituem exceções à regra, são chamados de “quiálteras” e exigem
sinalização especial). Por outro lado, nos compassos compostos, com o 6/8 ou o
9/8, as unidades de tempo são ternárias e são representadas por semínimas
pontuadas (divididas portanto em três colcheias). Mas o fato é que não
compassos que misturem de modo sistemático agrupamentos de duas ou três
pulsações, como semínimas e semínimas pontuadas. É precisamente esta
mistura que vai desempenhar um papel muito importante nas músicas da África
subsaariana (Jones 1959 apud Sandroni 2001, 26).
Sobre essa dualidade nos ritmos apresentamos aqui um exemplo muito comum:
Figura 11 - Dualidade rítmica
Fonte: Elaborado pelos autores, 2024
Um exemplo disso é a música de alguns músicos conhecidos a vel mundial, como o violonista
Yamandu Costa, o compositor e guitarrista Alegre Corrêa, e o baixista Ronaldo Saggiorato,
conhecido como "O Gringo". Todos eles são naturais da região de Passo Fundo, no Planalto
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Médio do estado do Rio Grande do Sul. A música “Gaudério Barroco”, presente no primeiro
álbum solo de Alegre Corrêa, é, segundo o próprio autor (em entrevista pessoal), uma chacarera4
com uma harmonização bem próxima da música erudita. Essa música possui uma acentuação
na levada do baixo bem característica, que ilustra a possibilidade de contar o pulso em 2 ou em
3, uma característica das polirritmias.
Figura 12 - Parte grave guarânia
Fonte: Elaborado pelos autores, 2024.
Podemos entender o exemplo acima (figura 12) como a célula que originará a levada
propriamente dita. Pode haver desmembramentos nas subdivisões sem nunca perder o senso do
que se está sentindo enquanto gestual da obra. Infelizmente não foi possível encontrar alguma
versão da música na internet. Ela foi passada diretamente pelo músico para mim de maneira oral
e não foi feito o registro.
Figura 13 - Parte grave guarânia subdividida
Fonte: Elaborado pelos autores, 2024.
Sobre a ideia de pensarmos a subdivisão como sendo quem orienta a levada, Fiaminghi (2018)
atenta para o fato de que no território brasileiro, a quase totalidade das músicas folclóricas serão
mais bem compreendidas sobre a ótica da rítmica aditiva, tácita, e pela compreensão de que a
grande maioria destas ocorre por agrupamentos de semicolcheias, facilitadas ao serem
compreendidas sobre uma dita clave rítmica. O insigne professor José Eduardo Gramani
(Fiaminghi, 2018) criou métodos, valendo-se da prerrogativa de que o ritmo pode ser melhor
executado se for sentido ao invés de medido. Escreve Fiaminghi sobre Gramani:
No intuito de sensibilizar o músico para a independência de vozes rítmicas e
preservar suas características autônomas, ao que Gramani se refere na
introdução das Leituras a duas vozes do Rítmica Viva como “o objetivo principal
[dos exercícios] é a independência das vozes, das ideias, cada ideia com sua
personalidade” (Gramani 1996, 15), o autor desenvolve seus exercícios a partir
de conceitos que a todo momento oscilam entre o tempo medido, entendido
aqui como métrica, e o tempo sentido, ou seja, a concepção de Rítmica como
resultado do movimento corpóreo-musical que flui no tempo (Fiaminghi 2018, 93).
4Estilo musical de origem argentina de andamento rápido.
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Sobre esta corporeidade, Gramani acreditava que se faz necessário internalizá-la para uma
melhor execução da rítmica, e não ficar contando sob pena de valer-se menos do sensorial e
mais do racional, o que seria, segundo o autor, um equívoco. Cito o mesmo:
[...] a notação rítmica, um código que, se mal interpretado, pode significar
apenas um conjunto de sinais para grafar durações dos sons. É com base nessa
interpretação parcial da codificação rítmica que a grande maioria dos trabalhos é
estruturada. Nota-se então um salto retroativo de qualidade: deixa-se de
trabalhar a sensibilidade e o estudo se concentra no aspecto racional. Deixa-se
de sentir e começa-se a contar. Ora, contar é necessário. É preciso saber medir
a duração dos sons para conseguir uma execução correta do ritmo escrito. Não
resta dúvida de que é fundamental subdividir os tempos [...] os exercícios deste
livro são sugestões para que o músico conte menos e sinta mais (Gramani 1996,
13).
Adquirir este senso tátil da rítmica traz uma fluidez muito maior para a interpretação, sobretudo
das levadas. Ao dividirmos as unidades para além do pulso da semínima e atentar para os
agrupamentos das subdivisões, teremos o ritmo no gestual, atentando para o tamanho dos
movimentos e dos gestos a exemplo do que se faz na dança. Esse sistema de interpretação faz-
se útil para dar conta de entender as formas rítmicas das músicas de todo território brasileiro,
pelo fato de serem mestiços (Carvalho 2006), ou seja, virem da mistura de culturas diferentes:
[...] a nova música surgida nas Américas passa a existir a partir da
combinação de formas africanas e europeias de se estruturar o discurso musical,
surge o raciocínio de que qualquer forma de abordagem dessa nova música, dita
popular, deve partir da combinação das abordagens africanas e europeias, seja
na análise, na performance ou no ensino. Para uma música mestiça, uma
metodologia mestiça (Carvalho 2011, xiii).
Sandroni (2002) designa uma parte do texto para falar sobre a gestualidade e o pensamento
calcado na subdivisão para rítmicas de origem africana no seu Paradigma do Tresillo:
O cinquillo, aliás, é filiado expressamente por León ao tresillo (1984:283).
Frequentíssimo na música cubana, aparece também na música dominicana
(Carpentier 1979:198) e é encontrado em muitas gravações de música brasileira
do início do século XX . O que se faz aqui é aplicar a lógica dos ritmos ditos
"aditivos", detectados por tantos estudiosos nas músicas africanas (Jones 1959;
Nketia 1975; Arom 1985), a figuras tmicas que habitualmente são encaradas
pela lógica divisiva e binária do compasso. Assim procedendo, acompanhamos
também as intuições dos raros musicólogos que procuraram desfazer-se dos
preconceitos do compasso ao estudar a sica latino-americana. Argeliers León
diz do tresillo que "os acentos não foram deslocados, mas a música se libertou
de acentos regulares e constantes, e no mesmo espaço acomodou-se um novo
sentido rítmico [...]. Não um deslocamento, mas uma nova articulação rítmica"
(1984:283). E Nogueira França: "Na sica afro-brasileira, a polirritmia deriva de
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unidades métricas menores que as utilizadas na métrica europeia. Nossa fórmula
típica: semicolcheia, colcheia, semicolcheia, não tem nada a ver, é claro, com a
unidade constituída pelas semínimas" (s.d.:79). (Sandroni 2002, 107).
A análise de uma tmica mestiça acaba nos trazendo uma experiência etnográfica que mostra
que o contato entre culturas musicais diferentes pode levar a certas transformações, quando o
ouvido seleciona, entre as características acústicas, as que o coerentes com seus próprios
preconceitos culturais. Ela mostra também que estas transformações podem dar lugar a
consequências inesperadas, isto é, à criação de novas formas sonoras independentes da
intenção e da prática isolada de cada um dos grupos. É possível a partir daí formular a hipótese
de que o "ritmo de habanera" surgiu de maneira independente em diferentes pontos da América
Latina devido a um fenômeno de sincrese sempre que o tresillo africano soava junto com o 2/4
espanhol e português.
Não é possível, no entanto, provar esta hipótese no quadro do presente trabalho. Entretanto, o
fato de que este apareça como resultante objetiva da superposição de uma fórmula rítmica afro-
brasileira à transformação desta por europeus, resume muito bem tal significação, que é a de
"crioulidade", no sentido em que os franceses dizem "créolité" para se referir ao produto
americano do encontro entre europeus e africanos. Como escreve Minkowski (1988, 69-70):
"Mesmo sem decidir se a presença do ritmo de habanera [...] foi o resultado de uma influência
espanhola ou africana, sua aparição ali traz um sabor claramente criollo".
Trazendo esse conhecimento para a música do sul do Brasil, como o exemplo dado
anteriormente dos músicos de Passo Fundo, e para interpretar determinados gêneros musicais,
sobretudo estes de origem africana que são cunhados nas rítmicas aditivas, é muito mais
interessante entender a corporeidade e a gestualidade que este gera, do que tentar contar, ou
subdividir à maneira como se faria ao interpretar uma marcha ou uma valsa, por exemplo.
O mesmo fenômeno pode-se contemplar no jazz tradicional, nos moldes norte-americanos. Os
diversos tutoriais usados para entender como pulsar com o contrabaixo para trazer o dito
“suingue” para a execução, sugerem que se coloque os pulsos nos tempos 2 e 4 num compasso
quaternário e não o 1 e o 3, tidos como os tempos fortes na música europeia (Carvalho 2011, 2).
Fazendo desta maneira, o que acontece é que o executante fica com a time line no metrônomo,
facilitando a compreensão do ritmo e da própria fraseologia como um todo.
Carlos Sandroni, em seu livro Feitiço Decente (2001), utilizou amplamente os termos
“cometricidade” e “contrametricidade”, os quais foram postulados anteriormente pelo
pesquisador Mieczyslaw Kolinksi, definindo estas duas possibilidades de ocorrências tmicas
em relação ao seu fundo métrico, cuja infraestrutura permanente recebe intervenções temporais.
Acerca disso, Sandroni comenta: “o caráter variado do ritmo pode confirmar ou contradizer o
fundo métrico, que é constante [...]. A metricidade’ de um ritmo seria, pois, na medida em que
ele se aproxima ou se afasta da métrica subjacente” (Kolinsky apud Sandroni 2001, 21).
Nosso sistema rítmico baseia-se no agrupamento de pulsações iguais em grupos
de 2 ou 3, com um acento regular recorrente na primeira pulsação de cada grupo.
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Qualquer desvio em relação a este esquema é sentida como uma perturbação ou
contradição entre o pulso subjacente [normal] e o ritmo real [anormal] (Kolinsky
apud Sandroni 2001, 827).
4.1. Da obra Aporreado
Partindo desta etapa irei usar por vezes a linguagem em primeira pessoa, dado o caráter pessoal
na escolha e aplicação das linhas de baixo e das entrevistas. Por dentro das correntes de
atuação que pude ter dentro do universo ao qual o presente trabalho se propõe, este foi um que
me trouxe uma experiência inédita. Ao deparar-me com o repertório do grupo lageano Quarteto
Coração de Potro, do qual tenho tido a oportunidade de realizar algumas apresentações, a obra
Aporreado (Teixeira 2022) me chamou atenção pelos contrapontos propostos pelo instrumento
grave. De início, ao ouvir as gravações do grupo, não pude distinguir bem ao certo se era um
baixolão (instrumento similar ao baixo elétrico, possuindo uma caixa de ressonância assim como
um violão acústico tradicional), ou algum violão de sete cordas com um timbre peculiar. Ao
conversar com os integrantes do quarteto, me foi dito que a gravação foi feita pelo músico Pedro
Terra usando um baixolão de fato, mas que é interpretado por Maicon Granja nas apresentações
ao vivo por um instrumento de nome de guitarrón campeiro.
O guitarrón é um instrumento folclórico, que consiste em uma adaptação do violão clássico de 6
cordas, sendo largamente utilizada na música gaúcha (nativista), uruguaia e argentina, onde
também ganha o nome de guitarrón criollo, para diferenciá-lo dos demais guitarróns que existem
na América Latina, pois instrumento conhecido com o mesmo nome no México que é
diferente tanto do "criollo" quanto do chileno. Aqui neste artigo nos atemos apenas ao guitarrón
criollo, ou guitarrón gaúcho, que segue o modelo de guitarrón da Argentina.
A diferença mais notável em relação ao violão de 6 cordas convencional é sua sonoridade mais
grave, encorpada, por conta da afinação empregada. Seguindo a ordem da primeira corda até a
última é B-F#-D-A-E-B. A vantagem de se utilizar esta afinação é que não é preciso modificar
nada quanto à mão direita. A digitação, ou "forma" do acorde, será a mesma, mas com a
diferença que o desenho do acorde no guitarrón irá soar numa tonalidade diferente daquela
empregada no violão. Isto ocorre pois o guitarrón é afinado uma quinta abaixo do violão.
A música “Aporreado” está no tom de Fá# menor. Ela é uma milonga típica e tradicional. O ritmo
é centrado na clave derivada da “síncope característica” de Mário de Andrade (Sandroni 2002),
mencionada anteriormente.
Figura 14 - Paradigma do tresillo
Fonte: Sandroni, 2002.
três violões, afora o guitarrón e o baixolão, que estão em dados momentos tocando melodias
em duetos, bem características da música tradicionalista sulina, e um que toca a base com a
figura explicitada na maior parte do tempo. O acordeon está sempre realizando costuras nas
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regiões agudas. Isso deixa um espaço amplo para o baixolão “passear” de maneira livre pela
região grave. A estilística é visivelmente contrapontística, apesar de ser predominantemente
calcada nas claves vindas da síncope característica. Quando a harmonia está na tônica, quase
sempre teremos a nota Fá# no primeiro tempo. nas partes em que o acorde da dominante
está soando (C#7), ataques em tempo forte por vezes na terça (Mi# enarmonicamente
natural) e por vezes na quinta (G#), sempre de acordo com o caminho melódico que foi
precedido pela chegada. Os exemplos aqui ilustram os caminhos realizados pelo instrumento. O
foco é sempre nos arpejos, excetuando os caminhos realizados nos tempos fracos, com alguns
casos de notas de passagem sobretudo diatônicas, salvo algumas exceções.
Escrevi pensando em aplicar o padrão para contrabaixo, por isso a observação “abafar as notas”.
Vale ressaltar que, conversando com os músicos para entender como agrupar os dois
instrumentos de registro grave, percebe-se o uso do seguinte padrão: quando um baixo,
baixolão ou um contrabaixo acústico na instrumentação, o guitarrón se encarrega de tocar os
acordes do violão, fazendo as levadas de maneira bem similar. Ocorre que, como a afinação está
uma quinta abaixo, o desenho usado para tocar um determinado acorde, muda de um
instrumento para o outro. Por exemplo, se o violonista estiver tocando um Maior e fizer o
desenho deste acorde, o guitarrón irá tocar o desenho do acorde que está uma quinta abaixo
(Sol Maior) para que a resultante seja do mesmo acorde. O efeito sonoro é interessante, porque
como é sabido e pode facilmente ser percebido, o número de cordas soltas e presas, bem como
suas variações de frequência fazem com que haja uma mudança na sonoridade do acorde,
mesmo que as notas sejam as mesmas. No caso da transcrição a seguir, limitei-me a transcrever
os contracantos que o baixolão, tocado pelo sico Pedro Terra fazem ao longo da peça,
atentando para alguns comentários pontuais que considerei mais relevantes.
Figura 15 - Transcrição guitarrón Aporreado (André Teixeira e Quarteto Coração de Potro, Marcelo Granja: Guitarrón)
Fonte: Elaborado pelos autores, 2024.
O início da linha de baixo está ilustrando o que foi explicitado anteriormente. Vemos aqui que a
ideia da voz grave é, para além de um pedal ou de alguma nota repetida sistematicamente, uma
espécie de segunda melodia (Schoenberg 1991, 146). Pode-se inclusive usar dentro da análise,
conceitos comuns aos do walking bass comum nos baixos do jazz como ferramenta de
acompanhamento. É um conceito comumente difundido usar a chamada wave form ou forma
de onda, onde se constrói um padrão melódico ascendente e no próximo descendente, criando
um efeito de onda. No primeiro compasso isso pode ser visualmente e auditivamente percebido.
Inicia-se um arpejo do acorde da tônica em direção ao quinto grau do acorde, uma rápida volta à
terça, seguido de um arpejo descendente.
O segundo compasso usando a rítmica característica da milonga no acorde da dominante, e o
terceiro e o quarto compassos ilustram bem a ideia do sobe/desce nos arpejos da tônica e da
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dominante respectivamente. Vide como nos dois últimos compassos é evidente a intenção da
linha baixa, a exemplo do walking bass do jazz, e da frase do violão de 7 cordas do choro, de
fazer um caminho onde as subdivisões que estão dentro dos ditos tempos fortes, o 1 e o 3
(mesmo em se tratando das semicolcheias presentes no segundo tempo, onde as fortes estão na
primeira e na terceira), temos as notas dos acordes enquanto nas semicolcheias em tempos
fracos (2 e 4), temos as notas de passagem. Este movimento não acontece por acaso. Colocar
as notas do acorde nos tempos mais fortes ajuda a dar a sensação de tonalidade ao ouvido
humano, que é algo consensual entre baixistas.
Ritmicamente falando pode-se perceber no início da linha a figura que caracteriza a milonga, o
tresillo, dentro da métrica subdivisiva do 3+3+2, se formos pensar a subdivisão em
semicolcheias. Ela é “amaciada” no terceiro e quarto tempos por colcheias regulares. Ela vai
seguir da mesma maneira, intercalando as colcheias pontuadas com algumas semínimas e
colcheias nos tempos fortes, para tirar um pouco da tensão do movimento.
A parte transcrita abaixo é uma das mais interessantes em termos de variação de voz grave em
relação à melodia. Vide como após uma seção que conecta a estrofe da música à introdução,
que ocorre nos compassos 13 e 14, ela volta no compasso 15 no acorde da tônica. O ritmo fica
repetindo o mesmo padrão da milonga tradicional até o terceiro tempo do compasso 17, onde a
frase começa a se encaminhar para realizar uma maior movimentação. Ela ocorre,
primordialmente, pela frase de colcheias ascendentes com cromatismo que vão desembocar no
compasso 18. Ali na primeira metade, tem-se a impressão de que o padrão rítmico seguirá a
mesma ideia das anteriores, mas partindo da metade do segundo tempo, há uma frase com
semicolcheias, portanto, com mais movimentação melódica gerando um efeito de aceleração
para o trecho.
Figura 16 - Aporreado contraponto baixo
Fonte: Elaborado pelos autores, 2024.
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5. Considerações finais
A música da região Pampeana, sul do Brasil, é diversa e reflete a mescla de culturas e tradições
presentes nesta área. Varia por vezes segundo a localização exata e as influências específicas de
cada comunidade. Todavia, conserva-se nesta identidade o amálgama que culminou na
heterogeneidade dos povos que hoje ali habitam, e, por consequência, nas diversas atividades
artísticas que o ali realizadas.
Neste estudo, foram analisados os aspectos da instrumentação das vozes graves no grupo
Quarteto Coração de Potro, com análises feitas sobre o uso do guitarrón, bombo leguero e
baixolão, bem como a experiência de inserção do contrabaixo acústico nessa instrumentação.
Foram descritas as adaptações necessárias para que as linhas de contrabaixo não interferissem
nos outros instrumentos
Os ritmos analisados foram observados em relação às sutis variações que criam efeitos de
tensão e estabilidade. Também foram constatadas similaridades com o uso do walking bass no
jazz, o conceito de waveform na condução dos registros graves e a aplicação de cnicas como
aghost note. A milonga e suas variações, como o tresillo, bem como rítmicas aditivas e
polirritmias (especialmente o 3 contra 2), demandam compreensão e internalização para uma
execução mais eficiente, conforme defendia Gramani.
Flertando com as rítmicas dos países vizinhos, Argentina e Uruguai, e criando uma identidade
ímpar, fruto das vivências empíricas de quem toca esses gêneros, catalogar e sistematizar essas
práticas de forma coerente apresenta-se como um grande desafio. Este trabalho buscou
oferecer uma perspectiva prática sobre a execução e a atuação das linhas de baixo e vozes
graves nessas rítmicas. Espera-se que, no futuro, ele possa contribuir para o desenvolvimento de
um método pedagógico voltado à música popular brasileira sulina.
6. Referências
Alvares, Felipe Batistella. 2007. “Milonga, chamamé, chimarrita e vaneira: origens, inserção no
Rio Grande do Sul e os princípios de execução ao contrabaixo”. Trabalho de conclusão de
curso, Universidade Federal de Santa Maria.
Alves, Matheus. 2022. “Diferenças Chamarrita, Chamarra e Chimarrita”. Setembro, 2022, Brasil.
Youtube, 9:00. https://www.youtube.com/watch?v=4x53i6nOuUc.
Andrade, Mário de. 1989. Dicionário de música brasileira. Coordenação Oneyda Alvarenga, 1982-
84; Flávia Camargo Toni, 1984-89. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros da
Universidade de São Paulo.
Arom, Simha. 1985. Polyphonies et polyrythmies díAfrique Centrale. Paris, SELAF.
Assunção, Fernando O. 1979. El Gaucho: Estudio socio-cultural. Tomo II. Montevideo: Dirección
General de Extensión Universitária.
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Pasquali, Matheus Mesquita; Piermartiri, Leonardo
“A linha de baixo nos ritmos do sul do Brasil: proposições práticas, teóricas e suas aplicações no contrabaixo acústico”
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Per Musi |Belo Horizonte |v.26 |General Topics |e252602 |2025
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