
Per Musi | Belo Horizonte | v.26 | General Topics | e252611 | 2025
Cardoso, André Roque; Marinho, Helena. “A ‘Acusmaticidade’ da música de piano para a mão esquerda:
o caso de Resignação, op. 39, de José Vianna da Motta”
Como afirmou Brian Kane: “Acusmaticidade é, ultimamente, um julgamento do ouvinte, e não uma
qualidade intrínseca do som em si mesmo” (idem, 225); assim, os ouvintes acima referidos estariam a
experienciar diferentes graus de Acusmaticidade (idem, 225).
Kane apresenta então um conjunto de proposições sobre o conceito de Acusmaticidade (Kane 2014, 223—
226), das quais destacaremos três para sustentar o caso acusmático da música de piano para a mão
esquerda:
1) “O som acusmático, quando definido em termos da Acusmaticidade (…) apenas requer o espaçamento
da fonte, causa e efeito”
(Kane 2014, 225). Na música de piano para a mão esquerda, o efeito sonoro, por
si só, não é suficiente para criar essa distância ou espaçamento da fonte; é na verificação discordante com o
visual que a rutura se forma. Ou seja, o visual informa-nos, primeiro, da inabitual ausência da mão direita e,
em segundo, da dessincronização entre os movimentos que visualizamos e o resultado sonoro que
escutamos. Desta forma, podemos postular diferentes instâncias de dessincronização entre o visual e o
aural. Estas estão sedimentadas na nossa capacidade de imaginar gestos a partir da escuta de sons e vice-
versa (Godoy 2010, 104), além disso, da capacidade de imaginar a imitação (ou mimetismo) quer dos gestos
que vemos, quer dos gestos que inferimos a partir do que escutamos (Godoy 2010, 108; Robb 2015, 6).
Em relação à ausência da mão direita, a fundamental dessincronização entre o visual, que sugere o uso de
uma mão, e o auditivo, que sugere o uso de ambas, estabelece uma primeira instância de rutura entre causa
e som. Numa segunda instância, verifica-se a dessincronização entre os gestos físicos - gestos relacionados
com o corpo - e os gestos musicais - gestos relacionados com o som (Godoy e Leman 2010, 6). Ou seja, no
repertório para a mão esquerda, esta acumula várias funções, que, no repertório a duas mãos, estariam
distribuídas. Assim, os vários tipos de gestos físicos do intérprete, entendidos enquanto ações produtoras
de som (Jensenius, et al., 2010, 23—24), suscitam dessincronizações, tanto entre entre si como em relação
a gestos musicais, estes últimos entendidos enquanto sensações de direção ou movimento sonoro (Dahl, et
al. 2010, 62).
2) “Sons acusmáticos encorajam a projeção imaginada de um corpo sónico”
(Kane 2014, 8). No repertório
para a mão esquerda, a mão direita será o mais imediato equivalente a este corpo sónico, ainda que padrões
idiomáticos de outros instrumentos, ou referências extramusicais, possam ser incorporadas e reconhecíveis.
Grande parte do repertório que consolidou esta tipologia pianística recorreu à imitação de texturas típicas
do repertório para duas mãos, por questões estilísticas, estéticas, anatómicas e também por adequação ao
imaginário sonoro e gestual do público.
Estas texturas correspondem a um dos dois tipos de escrita para a mão esquerda, tal como elencado por
Donald Patterson (Patterson 1999, 12): a contrapontística. Neste tipo de escrita, vozes autónomas são
sobrepostas - como a melodia com acompanhamento, ideal para a anatomia da mão esquerda, com o
polegar afastado dos restantes dedos, ocupando de forma diferenciável o registo e as funções normalmente
atribuídos à mão direita (Godowsky 1935, 298). Relativamente ao segundo tipo de escrita, a monofónica, os
compositores tomaram o piano como um instrumento melódico, ideal para música de câmara, piano e
orquestra, ou piano e fita. No primeiro tipo de escrita, há a tentativa de criar a ilusão da ação da mão direita,
“Acousmatic sound, when defined in terms of acousmaticity (…) only requires spacing of the source, cause,
and effect” (Kane 2014, 225).
“Acousmatic sounds encourage the imaginative projection of a sonic body” (Kane 2014, 8).