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eISSN 2317-6377
A preparação do cantor para a performance de música brasileira
de concerto: voz, corpo e aspectos cênicos
The singer´s preparation for Brazilian classical music performance:
voice, body and scenic aspects
Pedro Razzante Vaccari1
pedrovaccari@usp.br
1 Universidade de São Paulo, Departamento de Música, São Paulo, São Paulo, Brasil
ARTIGO CIENTÍFICO
Editor de Seção: Fernando Chaib
Editor de Layout: Fernando Chaib
Licança: "CC by 4.0"
Data de submissão: 03 mar 2025
Aprovação final de aprovação: 27 abr 2025
Data de publicação: 20 mai 2025
DOI: https://doi.org/10.35699/2317-6377.2025.57866
RESUMO: O atuar do performer vocal está condicionado aos atributos de respiração, fonação e aparelhos ressoadores, que devem
funcionar de forma homogênea e equilibrada, visando a uma interpretação livre de tensões desnecessárias. Esse aparato técnico
deve sustentar a emissão chamada de sul fiatosobre o ar e, na música brasileira de concerto, temos os problemas adicionais
da dicção e fonação provenientes da língua falada e cantada no Brasil. Objetivando sanar eventuais dificuldades relacionadas a
essa performance vocal da música brasileira, desenvolvo aqui um estudo teórico que mostra como o estudante de canto lírico e
mesmo o profissional da voz podem se valer de técnicas corporais dinâmicas e flexíveis para prover sua interpretação de
elementos cênicos que conjuguem, ao mesmo tempo, liberdade e certo grau de improvisação. Os resultados foram que ao integrar
corpo, voz e argumentos cênicos o performer poderá aliar música de concerto nacional com uma linguagem corporal específica.
PALAVRAS-CHAVE: Performance vocal; Música brasileira de concerto; Voz e corpo; Sul fiato; Linguagem corporal.
ABSTRACT: The vocal performer´s acting is conditioned to elements such as breathing, phonation and resonator devices, that
must work through homogeneous and balanced way, aiming a performance free of unnecessary tensions. This technical apparat
should support the vocal emission called sul fiatothrough the air and, in Brazilian´s Classical Music, there are other problems
such as diction and phonation that emerges from spoken and sung language in Brazil. Aiming to solve occasional difficulties
reported to that vocal performance of Brazilian Music, I´ve developed here a theoretical study that shows how the Opera Singer
student and even the professional could improve their performance using dynamic and flexible body techniques, utilizing freedom
and a certain mode of improvisation. The results were that when the performer integrate voice, body and scenic arguments, he
can ally Brazilian classical music with a body specific language.
KEYWORDS: Vocal performance; Brazilian classical music; Voice and body; Sul fiato; Body language.
Per Musi | Belo Horizonte | v.26 | General Topics | e252615 | 2025
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Vaccari, Pedro Razzante. “A preparação do cantor para a performance de música brasileira de concerto: voz, corpo e aspectos cênicos
1. Introdução
Condicionou-se chamar, na Música Vocal Ocidental, produção vocal eficiente aquela que atenderia os
requisitos básicos de respiração, fonação e ressonâncias, para uma execução técnica ao mesmo tempo
artística e livre. De acordo com Richard Miller, são eles: o sistema respiratório, ou de energização, que
compreende a técnica inspiratória e expiratória, o sistema de vibração, produzido pelo órgão laríngeo e seus
músculos – intrínsecos e extrínsecos – um sistema de ressoadores, constituído por diversas cavidades, e um
sistema de articulação, responsável pela coordenação desse todo complexo, que abarca dentes, língua,
lábios e músculos zigomáticos – maior e menor (Miller 2019).
No entanto, para o funcionamento adequado de todo esse aparato, que deve se articular em consonância,
produziu-se, ao longo da história do chamado bel canto, múltiplas abordagens objetivando a uma
performance completa. Esta seria uma interpretação em que as musculaturas não atuariam em
desequilíbrio, para serem evitadas possíveis lesões, com provimento ajustado da técnica de sul fiato
literalmente “sobre o ar” – e que, simultaneamente, a técnica seja uma aliada do resultado artístico (Miller
2019). Cada uma dessas diversas leituras, que redundou em resultados vocais eficientes, guarda suas
idiossincrasias de abordagem e dinâmicas de ensino, compreendendo muitas vezes aspectos subjetivos que
não podem sequer ser descritos e transcritos verbalmente. Afinal, todos nós que somos professores de canto
e fomos alunos, sabemos que o processo cultivado por aulas ao longo de anos e mesmo décadas, finda por
prover o corpo de uma espécie de autonomia. Os próprios músculos desenvolvem uma percepção de como
atuar em determinada performance (Wetting 2020).
Mesmo assim, retemos na memória racional os percursos e percalços necessários para obter esses
resultados performáticos atuais, e é com essa memória – que remete, também, a uma memória muscular –
que procuramos lidar e aproveitar os materiais para o ensino da arte vocal. O mais passível de incorrer em
erros, no entanto, na atualidade, segundo alguns autores, seria a tendência contemporânea de buscar a
propriocepção na performance vocal por meio de uma perspectiva externa, fora de seu próprio corpo, em
vez de procurar, internamente, mecanismos que auxiliem na elaboração performática muitas vezes dialética
– de voz e corpo. Nas palavras de Antonio Juvarra, em Canto perduto, canto ritrovato: liberare la mente per
liberare la voce, essa tendência se refletiria em professores de canto
[…] que são os mecânicos da voz, aqueles que […] dão instruções sobre como se mover no
labirinto da voz, conhecendo-a ao máximo (externamente) […]. É sobre seus mapas do
labirinto que paradoxalmente se baseiam os manuais de estudo das modernas escolas de
canto, gerando um novo tipo de cantor: o cantor robotizado e lobotomizado nas suas
faculdades sensoriais. Educado para estar fora de si mesmo e observar a periferia do
próprio corpo
1
”. (tradução minha).
No entanto, temos que ter a consciência de que, às vezes, é necessário estudar o nosso corpo atuando de
fora, mudando a nossa percepção e perspectiva. A ideia de que o cantor deve conhecer com acurada atenção
1
“[…] che sono i meccanici della voce, quelli che […] danno istruzioni su comme muoversi nel labirinto della
voce, conoscendone al massimo (e dall´esterno) […]. È sulle loro mappe del laribirinto che paradossalmente
si basano i manuali di studio delle moderne scuole di canto, generando un nuovo tipo di cantante: il cantante
robotizzato e lobotomizzato nelle sue facoltà sensoriali… Educato a stare fuori da se stesso e a osservare la
periferia del proprio corpo” (Juvarra 2014, 09)
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Vaccari, Pedro Razzante. “A preparação do cantor para a performance de música brasileira de concerto: voz, corpo e aspectos cênicos
as partes do seu corpo tem crescido nos estudos sobre voz e produção sonora no palco. O cantor se arvora,
portanto, de uma dialética em equilíbrio- ao mesmo tempo deve desenvolver uma noção não lobotomizada
de seu corpo, gestos e movimentos, e também ter uma visão simultaneamente externa e interna deles.
Dessa forma, ao docente de canto atual concernem duas tarefas básicas, que não podem ser dissociadas,
em absoluto: a eliminação gradual dos artificialismos que impelem a essa percepção externa fragmentada,
e o desenvolvimento de uma propriocepção interna, calcada em exercícios específicos, em que o (a) aluno
(a) crie parâmetros de escuta de sua produção sonora. Esses parâmetros, por fim, devem se guiar por uma
crescente independência do discente, e, para isso, sempre deve-se ser frisada, durante a aula, a intenção
técnica de determinado exercício vocal. “Qualquer série de vocalises pode ser cantada de várias formas, das
quais algumas são absolutamente sem valor. Apenas se a independência puder ser induzida através do uso
de um vocalise é que este tem mérito. Nenhum vocalise deveria ser cantado sem uma intenção técnica por
detrás dele” (Miller 2019, 35).
Para o princípio do estudo técnico vocal no Brasil, ademais, devemos nos valer pela especificidade da Língua
Portuguesa brasileira, seus fonemas, acentuação e prosódia, afinidades vocálicas inerentes a ela e suas
particularidades de entonação nasais e decorrentes deles. O início dos estudos de voz serem,
preferencialmente, em música brasileira, foi apresentado em tese por Santos (2011), baseado na premissa
de que o canto vernáculo, ou seja, na língua natal, traria arraigados, por extensão, os sons vocálicos da fala,
sendo, portanto, mais propícios ao desenvolvimento de uma técnica vocal lírica incipiente.
Além disso, o processo histórico que levaria a pensar um canto nacional remonta à figura de Mário de
Andrade, que, ao propor a técnica do “canto sem casaca”, apresentada, sobretudo, em Aspectos da Música
Brasileira, de 1939 (Andrade 1991), procurava investigar qual seria esse canto “em vernáculo”, telúrico e
enraizado nas múltiplas regiões, sotaques e acentos do português brasileiro. A temática é comum a
pesquisadores que continuaram a disseminação do ideal de canto andradiano, como Martha Herr que
propunha uma técnica vocal mista, amparada no canto popular e sua emissão mais frontal para ressaltar a
entoação do texto (Herr 2004), e Luciano Simões Silva, para quem deveríamos “[…] repensar a pedagogia do
canto no Brasil para criarmos uma pedagogia que possa servir de base para diversos gêneros e estilos,
pensando na música como expressão artística plural” (Silva 2016, 390).
Assentada a estrutura primordial do canto, a saber, a vocalização constante visando ao aperfeiçoamento dos
músculos envolvidos na produção vocal conforme os substratos que dão suporte a ela: respiração,
vibração, ressonância e articulação a inserção do discente de canto no cancioneiro brasileiro de câmara
acomodará, com mais facilidade, o seu posterior desenvolvimento nos seis principais idiomas europeus da
música de concerto. São eles: latim, espanhol, italiano, francês, inglês e alemão. A afirmação da sonoridade
brasileira – nasal, frontal e brilhante, conforme os resultados de minha pesquisa sobre o coco de embolada
de concerto no Brasil (Vaccari 2013), desenvolvidos em meu artigo recente publicado na Revista Música
Hodie (Vaccari 2024) não exclui, em nada, o desenvolvimento do repertório europeu tradicional. Muito pelo
contrário, de acordo com Andrade acima, e Santos (2011), apenas reitera que o caráter nacional de
determinada música e sua expressão vocal são, também, eminentemente universais.
Pensar em uma emissão vocal que parta, inicialmente, da sonoridade advinda do português brasileiro
cantado não é mais do que continuar a tradição do bel canto italiano: si canta come si parla (se canta como
se fala). Sendo o canto uma atividade não natural, e derivada diretamente da fala, através da impostação
adequada o aluno pode trazer as qualidades timbrísticas do português falado, tornando-a mais próxima de
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Vaccari, Pedro Razzante. “A preparação do cantor para a performance de música brasileira de concerto: voz, corpo e aspectos cênicos
uma naturalidade coloquial. A diferença essencial entre fala e canto acontece através da articulação e da
ressonância, como nota Miller: “Apesar de, até certo ponto, o canto ser uma extensão da fala, as exigências
especiais da voz cantada demandam ajustamento e formatação dos ressonadores que transcendem aqueles
da fala. As dimensões da cavidade buco-faríngea respondem a essas exigências especiais” (Miller 2019, 107).
Para que haja essa ideal fusão de elementos formadores de uma performance livre, sem tensões
desnecessárias, que traduza, de modo um tanto fiel, as intenções performáticas de uma peça vocal brasileira
de concerto, proponho, a princípio, um estudo do performer vocal enquanto ator. Esse estudo deve balizar
os procedimentos técnicos necessários para a preparação do cantor, dentro e fora do palco, desde a
percepção e leitura da partitura até a memorização e suas implicações físicas, motoras e vocais. Faço uma
revisão da literatura recente de pesquisas em performance vocal que ajudam a decodificar esse universo do
cantor-performer-ator e suas idiossincrasias interpretativas.
2. O cantor-ator: uma revisão da literatura
Em A preparação do ator, obra de Stanislavsky (1863-1938), de 1938 (edição russa póstuma), o autor expõe
a teoria que havia esboçado durante sua trajetória como fundador de teatros e estruturação de um autêntico
teatro russo, em especial a partir da Revolução Russa de 1917 (Stanislavisky 2016). Seu sistema pode ser
resumido na premissa <<o trabalho do ator sobre si próprio>>, e pode ser dividido nas seguintes partes: <<o
trabalho do ator no processo criador do reviver>>, << o trabalho do ator no processo criador da realização>>,
e <<o trabalho da personagem>> (Stanislavisky 2016). Foi acolhendo esse ideário principal que nomes como
os do cantor estadunidense Glenn Allen, e mesmo o clássico consagrado para estudo de lieder, Stein e
Spillman (2002) se basearam fortemente para conceber a sua técnica de palco onde o perfomer não é um
ator somente, mas um cantor-ator.
O cantor estadunidense Glenn Allen (2019) principia sua obra sobre como fundir ação e canto com a seguinte
premissa: qualquer peça vocal, mesmo uma simples canção, deve ser vista como uma obra performática
cênica com uma persona e um modo de endereçamento. Esse é o procedimento técnico sugerido para
estudar lieder conforme Stein e Spillman (2002).
Dessa forma, Allen (2019) propõe uma abordagem da canção como se fosse uma cena dramática. Para tanto,
o exercício se compõe das seguintes fases:
1) Escolha uma canção ou ária: o gênero da canção é irrelevante, porém seria melhor se fosse uma
designada e destinada a situações dramáticas (ópera, musical);
2) Escreva o poema da canção ou ária em uma folha de papel em branco. Para ele, a escrita manuscrita
proporciona mais retenção de conteúdo que a digitada.
3) Se a poesia está em um idioma em que você não é amplamente versado, tenha certeza de fazer uma
tradução fiel.
4) Deixe um espaço amplo para escrever entre cada verso do poema (Allen 2019).
Em seguida, ele pontua a respeito de desenvolver uma lógica cênica da canção ou ária, um discurso voltado
para o seu contexto. Encontrar a ação, os obstáculos, os objetivos da trama e do personagem, nos ajuda a
internalizar os momentos de uma determinada cena.
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Vaccari, Pedro Razzante. “A preparação do cantor para a performance de música brasileira de concerto: voz, corpo e aspectos cênicos
Para o autor, encontrar uma ação dramática ou objetivo cênico se constitui um exercício em que o
personagem imagina o que o seu (sua) parceiro de endereçamento precisa fazer, sentir ou entender. Ao dar
esse passo, observa ele, certifique-se de encontrar uma ação que seja específica, humana, divertida e ativa
(Allen 2019).
Dessa forma, ele considera um segundo exercício, que chama de “encontrando uma ação”:
1) Na sua folha de papel com o poema, encontre dez adjetivos que parecem apropriados para a ação da
canção.
2) A partir desses verbos, que são apenas verbos, deve encontrar ações concretas. Frases equivalentes
às ações correspondentes que o encorajem a traçar planos de ação.
3) Ache expressões idiomáticas que possam substituir cada um de seus dez verbos.
4) Olhando para a canção que Allen prefere chamar de cena’ encontre para quem ela está
direcionada seu modo de endereçamento. É o público? É uma pessoa? É um grupo de pessoas? É
você mesmo?
Allen continua esse direcionamento ou esquema, e ainda utiliza o exercício número 3 encontrando os
obstáculos. Na sua visão, se não um obstáculo grande o suficiente para ser transposto, não drama
(Allen 2019).
Um cantor-ator é aquele que é estimulado pelo desafio de criar uma persona, segundo o compositor Mark
Adamo (Clark e Clark 2009). Para ele, o performer vocal necessita de intuição, inteligência cinestésica e
habilidades analíticas para identificar o que o gesto significa a ação, o intento que convenceu o compositor
a finalizar aquela frase à sua mais precisa expressividade de como o pensamento daquele personagem soa
(Clark e Clark 2009).
Em questões mais específicas, repousa a discussão de como deve ser o gestual do (a) cantor (a) durante a
performance de uma ária, por exemplo. Embora obviamente o gesto seja livre, um movimento involuntário
de mãos ou braços em uma passagem difícil é antes traduzida como tensão do que propriamente
expressividade, lembram Clark e Clark (2009).
No entanto, colocam eles, se o gesto precisa ser feito, que seja feito, porém a repetição de gestual acaba
ocasionando em uma espécie de cristalização de clichês. De fato, o caso é que apenas fazendo mudanças
objetivas no canto o intérprete esfazendo mudanças no drama visto que drama e música andam juntos,
de certo modo, desde a Antiguidade. Do mesmo modo, sustentam Burgess e Skilbeck (2020), se o intérprete
mudar milimetricamente seu modo de atuar mudará também a música, se alterar a duração do tempo de
uma canção ou ária se mais rápido ou mais lento – ou a duração de uma pausa, isso influirá diretamente
em sua performance.
O aparato da expressão musical situa-se em torno das tensões criadas pelas combinações
de ritmo, altura, timbre (som-cor) e volume e seu arranjo em uma textura. O aparato do
drama – essencialmente ação e palavras difere no fato de que nem tempo nem altura são
tão fixados ou formalizados como são em música. A música, portanto, provê a definição, ou
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Vaccari, Pedro Razzante. “A preparação do cantor para a performance de música brasileira de concerto: voz, corpo e aspectos cênicos
no mínimo o esqueleto de tempo para o drama (ação). O drama, por outro lado, coloca a
música no mundo real da história, situação, personagem e espaço
2
(Tradução minha).
Dessa maneira, no Ocidente ao menos, o aparato drama música viera praticamente incólume desde a
tragédia clássica greco-romana. O sentido que a música ao drama pulsação e tempo, qualidades de
timbre e cor é amalgamado ao sentido que o drama confere à música situação, contexto, conteúdo
material e colocação no espaço.
Nesse contexto nos cabe pensar em uma performance vocal que associa música e contexto no palco, sem a
necessidade de fragmentação personagem-cantor/ator. A esse tipo de interpretação unificada Ostwald
(2005) dá o nome de Believable Singing Acting (Canto na atuação crível).
Para isso, o autor estabelece as dez máximas que fundamentariam esse Canto:
1) Seus personagens acreditam que são pessoas reais: não pensam em si como “personagens”;
2) A sua música é os sentimentos do personagem (e vice-versa);
3) Todos os seres humanos têm um repertório de sentimentos em comum: temos o potencial para
representar todos os sentimentos;
4) Você é sempre você: temos nossa própria constituição física, voz e contexto particular. O segredo é
saber quais traços enfatizar no momento da performance.
5) Se você não mostrar, o público não pode saber: o público lê a ação, mas não as mentes – deixe fluir
os sentimentos e pensamentos de seu personagem por meio de gestos.
6) Você está produzindo arte: cada personagem tem uma razão de ser e foi criado com um objetivo. O
primeiro passo é reconhecer que é um intérprete – isso desmistifica os ditames de certo” e errado”
que têm assolado as performances ao redor do mundo Ocidental. A pergunta crucial é: estou sendo
claro em meu gestual e construção do personagem?
7) Personagens críveis engajam as plateias: quando as pessoas do público se identificam com seu
personagem, estendem sua empatia – isso vale tanto para um personagem de ópera como para o eu-
lírico de uma canção.
8) Você dota seus personagens com uma recriação aparente de personagens da vida real.
9) Atenha-se aos mínimos detalhes da construção de seu personagem: aja no palco sempre como seu
personagem agiria, nas respostas aos seus colegas de cena isso confere uma totalidade de
veracidade ao drama.
10) Não tente repetir performances bem-sucedidas: o equilíbrio deve ser dado entre a produção eficiente
de um personagem no drama presente e não em reminiscências de performances passadas. Há uma
2
The Apparatus of musical expression revolves around the tensions created by combinations of rhythm, pitch,
timbre (tone-colour) and volume and their arrangement into a texture. The apparatus of drama – essentially
action and words – differs in that neither time nor pitch are as fixed or formalized as they are in music. Music
therefore provides the definition, or at least the skeleton, of time for drama. Drama on the other hand places
music in the real world of history, situation, character and space (Burgess e Skilbeck, 2020, 05).
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Vaccari, Pedro Razzante. “A preparação do cantor para a performance de música brasileira de concerto: voz, corpo e aspectos cênicos
tendência a um mecanicismo e uma performance fria, quando procurando repetir um êxito (Ostwald
2005).
Procurar uma performance guiada por estes dez preceitos básicos poderá enriquecer o amadurecimento
do intérprete dentro do contexto de cada canção ou ária, não necessariamente oriundas de ópera ou
musical. A construção dessa performance objetiva dotar o performer de uma espécie de eficiência
sendo esta eficiência pré-estabelecida pelo próprio intérprete o intuito é chegar a um resultado
satisfatório, tendo em vista o ponto de partida. “Se o objetivo é ser um sujeito vinculado à sua época,
que vive em um determinado contexto sócio-econômico-político-cultural, e que está ciente do poder da
informação, a opção por uma ´performance eficiente´ parece ser a mais ajustada” (Herr 2007, 12).
Claro que dialogamos, aqui, com a premissa de que cada performance é eficiente a seu modo e, portanto,
várias leituras e releituras da mesma obra, e todas são válidas. “Não existe uma maneira certa,
verdadeira, de proceder, mas sim, várias. Não há procedimento certo ou errado, mas aquele que resulta
no efeito desejado” (Herr 2007, 12).
A visão de uma performance se expande, dessa forma, ainda mais, dividindo-se no tripé: perspectiva do
compositor, perspectiva do intérprete e perspectiva do público. As três serão eficientes, de acordo com
as possibilidades de aquisição do efeito desejado – e o prisma gerado a partir desses três pontos de vista
é que constitui a ´verdade´ de uma interpretação: contextualizada, aberta a inúmeras leituras e releituras,
dependendo do foco da performance e da recepção.
Dentro desse espectro, o cantor-ator surge como um artista híbrido não apenas por traduzir a
concepção do compositor para a plateia, mas por intermediar duas artes que, em germe, levam a palavra
– o canto e a declamação na atuação. Para Malde et. al. (2020), um (a) cantor (a) não é metade cantor e
metade ator, ele (a) é 100% cantor e 100% ator. Cantores que se apoiam em demasia na ação textual e
física, sem ter desenvolvido habilidades suficientes de musicalidade e técnica vocal, residem na dicotomia
estabelecida entre ´músicos e cantores´. (Malde et. al. 2020). Do mesmo modo, cantores que pensam
que são apenas produtores de belas vozes e frases musicais, sem interagir com a produção vocal-sonora
como resultante de complexas estruturas corporais-cênicas entre ator/mundo, participam da dicotomia
´cantor-performer´ (Malde et. al. 2020).
Figura 1 – O cantor deve ser tanto músico como ator.
Referência: Malde et. al. 2020, 242.
A figura 1 mostra como o cantor confunde-se com as outras habilidades nem menos músico, nem menos
ator, mas uma totalidade interseccional. Dessa forma, noções como “subtexto” aquilo que o personagem
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realmente sente ou quer dizer com o que canta – são aprofundadas, a ponto de Ostwald (2005, 07) referir-
se a “subtexto” como uma voz interna contínua, a que chama de diálogo interno”. Esse diálogo serve de
background tanto para as partes cantadas como para as não-cantadas: para as partes cantadas ele utiliza
subtexto”, para as que não têm texto utiliza “pensamentos internos” (Ostwald 2005, 07)
O autor usa o termo “Music-theater(Ostwald 2005, 07), quando referindo-se a toda forma de música que
envolva um “subtexto” e “pensamentos internos”, ou seja, toda forma de música vocal com texto e, de certa
forma, mesmo sem texto. Lembrando que contextos podem ser criados, explorados, construídos e derivados
de situações comuns, frases musicais, vocalizes, simples cenas de cotidiano. O “subtexto” extraído do texto
e os “pensamentos internos” da linguagem não-verbal compõem um quadro em que o intérprete atua na
relação entre a música pertencente ao personagem, texto e os movimentos de cada parte da performance.
Dessa forma, suas escolhas vão influir de modo decisivo na relação que os outros performers estão realizando
entre música, texto e movimento (Burgess e Skilbeck, 2020).
Para conduzir todo esse aparato, são necessários preparos técnicos indispensáveis, desde o condicionamento
físico preciso para sustentar um longo período de tempo de performance, até a inventividade necessária
para encontrar a expressividade que mantenha a interpretação vívida e verdadeira (Burgess e Skilbeck,2020).
O compositor Mark Adamo sugere, ademais, quando preparando um papel em ópera, que seja estabelecido
um objetivo central dentro do contexto da peça. Cada escolha na partitura, pontua ele verbal, intervalar,
de registro, rítmico, de dinâmica, orquestral – foi designada para traduzir aquele objetivo, tentando localizar
e incorporar essas escolhas. (Clark e Clark 2009). O compositor Jake Heggie complementa: “Se a canção
menciona folhas caindo das árvores, por exemplo, o cantor inteligente vai querer saber de que cor as folhas
são; por que elas estão caindo da árvore; que estação do ano é; onde estou; em que parte do mundo; se
estou só; é uma coisa boa ou uma tragédia” (Clark e Clark 2009, 97).
De fato, coloca Allen (2019), são necessárias informações precisas sobre o contexto do personagem que se
representa não a hora do dia e o período histórico, mas aspectos biográficos como idade, nível
educacional, profissão, entre outros. Características não explicitamente condicionadas pela partitura dão
abertura para que façamos ilações, todavia elas precisam vir amparadas por contexto e embasamento da
peça e do personagem.
Para desenvolver altas performances de nível técnico corporal e cênico, têm-se recomendado que cantores
façam seu próprio mapa corporal, ou “body Map”. A rigor, seria uma representação interna de como cada
indivíduo concebe seu corpo, como ele funciona, seu tamanho, e como cada uma dessas estruturas se inter-
relaciona (Malde et. al. 2020).
Além de realizar seu mapa corporal – donde o cantor pode entrever se houve uma mentalização correta de
sua eficiência, tanto do ponto de vista econômico e mecânico (respiração, tensões) como interpretativo
(fraseado, incorporação da persona), o performer tem de ter em mente que todo personagem também tem
seu próprio mapa corporal (Malde et. al. 2020).
Mapear o corpo não é técnica, mas é a base para a técnica; o solo fértil pelo qual a boa
técnica pode crescer. Alguns estudantes virão ao estúdio com mapas corporais acurados e
adequados, e nenhuma menção precisará ser feita a respeito da estrutura, função ou
tamanho corporal do estudante. No entanto, muitos estudantes terão um mapa corporal
irregular e inadequado, que vão constantemente frustrar tanto os professores como os
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Vaccari, Pedro Razzante. “A preparação do cantor para a performance de música brasileira de concerto: voz, corpo e aspectos cênicos
estudantes ao produzir movimentos ineficientes. Uns poucos minutos aqui e ali de atenção
para mapear as estruturas de balanço, gesto, respiração, articulação acurada e adequada,
e ressonância, vão corrigir a base e promover o crescimento próprio da técnica (tradução
minha)
3
A questão do “body Map” ou “body mapping consiste em realizar um mapeamento técnico de toda a
estrutura corporal, gestual, equilíbrio das partes envolvidas sistema energizador (respiração), ressonadores
e fonação, articulação e gestual. De certo modo, portanto, constitui condição sine qua non para uma
performance integrada, desprovida de movimentos tensos ou desconexos do fazer holístico da interpretação.
Realizar noções equilibradas do próprio corpo, ou mapear o corpo, se insere em uma auto-observação em
que o estudante ou cantor (a) procura localizar movimentos ineficientes ou prejudiciais e como substitui-los
por gestos que são elegantes, diretos, amplamente baseados na informação sobre a estrutura, função e de
como imaginam o próprio tamanho das partes do seu corpo (Hoch 2020).
“Na performance de uma ópera, canção, musical ou peça, cada personagem tem sua ou seu próprio mapa
corporal. É responsabilidade do artista determinar quais são essas características e desenhar um mapa que
respeite a integridade do bem-estar físico do performer”
4
(tradução minha).
Em seguida, coloca Jan Prokop, embora haja um senso comum de que o mínimo de movimento deve ser
feito para que não se desvie a atenção do ouvinte em relação à música, a música é movimento, e a
performance é o aparato que baliza a sua produção. Sem ela, o performer se torna tenso e engessado, e se
a performance está rígida, o som soará do mesmo modo (Hoch 2020).
Deve-se trabalhar, ademais, com a noção de que o corpo todo do cantor é seu instrumento. Com essa
perspectiva corporal, procura-se sanar os mapas equivocados do corpo (“mismappins of the body”, Hoch
2020, 97), onde a mentalização errada de partes do aparato corporal pode influir diretamente no
funcionamento da laringe, língua, mandíbula, respiração e ressonância (Hoch 2020).
Em resumo, o mapa corporal é o modo como imaginamos e concebemos a estrutura, tamanho e função do
nosso corpo e suas partes (Savvidou 2021).
Na figura abaixo, vemos como a autora desenhou um mapa corporal essencialmente postural, a partir do
alinhamento da cabeça. Sua ideia é realizar um movimento que chama de “chin tuck” (“queixo dobrado”),
em que gentilmente pressionando o queixo para trás com os dedos sentimos a parte anterior da cabeça indo
3
Body Mapping is not technique, but it is the basis for the technique; the fertile ground out of which good
technique can grow. Some students will come into the studio with perfectly accurate and adequate body
maps and no mention will ever need to be taught about the student´s structure, function, or size. However,
more students will have inaccurate and inadequate body maps that will constantly frustrate teacher and
student alike by producing ineffective movement. A few movements here and there of attention to mapping
the structures of balance, gesture, breathing, accurate and adequate articulation, and resonance, will correct
the ground and promote proper growth of technique (Malde et al. 2020, 07).
4
In the performance of an opera, song, musical or play, every character has her or his own boy map. It is the
artist´s responsibility to determine what those physical characteristics are and design a map that respects
the integrity of performer´s physical well-being (Hoch 2020, 96).
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Vaccari, Pedro Razzante. “A preparação do cantor para a performance de música brasileira de concerto: voz, corpo e aspectos cênicos
para trás e para cima. Quando a cabeça estiver alinhada com a cervical, comenta, os músculos do pescoço
trabalham minimamente pra manter o alinhamento (Savvidou 2021).
Figura 2 – Alinhamento postural desde a cabeça até o tornozelo: mapa corporal
Referência: Savvidou 2021, 82
O mapa corporal, portanto, é imprescindível no sentido de oferecer uma visão holística do corpo do
performer. Um prisma não-fragmentado, que considere as partes não de forma metonímica, porém um
alinhamento como a figura acima, que se baseie na posição do crânio relacionada com os ombros, a lombar,
quadril, joelhos e tornozelos. A partir do estabelecimento do mapa corporal pode-se pensar em uma espécie
de improviso performático/cênico, porém observando algumas diretrizes que iremos apontar abaixo.
3. A voz e o corpo do cantor como instrumentos delineadores da performance
O improviso performático cênico se no âmbito da improvisação cantor/performer/interação com público.
Para tanto, faz-se imprescindível o domínio técnico corporal, não no estrito significado do termo, mas na
medida em que se conhece suas limitações e aprende-se com o fazer dos jogos teatrais, de improviso e
sonoplastia, respondendo aos estímulos do outro participante/personagem, e compondo uma arte híbrida,
permeável e coletiva. “O corpo/voz do ator são os suportes básicos da sua arte. O corpo porta seu próprio
saber e linguagem, resultado da contínua comunicação e interação corpo/mente/mundo”, argumenta Maria
Machado (Associação Brasileira de Pesquisa em Artes Cênicas 2006, 95).
A constituição da performance corporal, desta forma, abarca, além da autopercepção sensorial e cognitiva,
o delineamento das fronteiras entre cantor-ator/público ou cantor-ator/mundo ou cantor-ator/determinada
sociedade, em que se darão as disposições dos elementos cênicos, performáticos ou improvisatórios. Para
compreender melhor essa intrincada configuração de interação corpo/voz/público, é necessário traçar um
breve panorama da realização cênica e musical em performance.
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Vaccari, Pedro Razzante. “A preparação do cantor para a performance de música brasileira de concerto: voz, corpo e aspectos cênicos
A fusão dos elementos musicais e cênicos, longe de ser um hábito contemporâneo, remonta à tradição
clássica greco-romana, conforme vimos anteriormente. Nessa tradição, as peças de teatro eram
apresentadas de forma que se ressaltasse o poema através da música: ali os coros cênicos se formaram, para
narrar a tragédia e conceder-lhe caráter dramático. O renascimento europeu, séculos mais tarde, floresceria
pretendendo, “à imitação da Grécia, conceber a música no sentido artístico totalizado de fusão de todas as
artes” (Mário de Andrade 1976, 149).
A partir do renascimento, portanto, deu-se a retomada dos ideais greco-romanos de arte total, e a
incorporação da música nas artes cênicas, e vice-versa, culminando no advento da ópera no começo do
século XVII, pela Camerata Bardi, na Itália por volta do final do século XVI. As primeiras realizações
operísticas nos mostram como, de certa forma, a prática performática cênica era plenamente fundida com
a música, a dança e a percussão como exemplo, tomemos o coro “Dança das ninfas” do italiano Claudio
Monteverdi (1567-1643)
5
.
A dança, acompanhada da música e do canto, obedeceria aos mesmos parâmetros performáticos e cênicos:
quase não distinção entre os movimentos musicais e corporais. Extremamente atrelada ao corpo e à
performance dramática, a arte do barroco musical nos legou, talvez, o movimento ocidental europeu que
mais aproximava as artes em consonância, produzindo, com hibridez, uma execução em que os timbres dos
instrumentos e das vozes agiam como antífonas – em pergunta e resposta – coerentemente arquitetados.
A estreita relação da poesia com a música conforme se concebe na renascença e no barroco nasce com a
Antiguidade Clássica – canção lírica, em sua acepção primeira, referia-se à canção que se executava ao som
da lira ou da flauta (Pereira et al. 2017). Na Idade Média essa relação foi ampliada e, além da lira, utilizavam-
se os instrumentos de corda como o alaúde, a viola e a guitarra para a execução das chamadas Cantigas
trovadorescas. Essa codependência poético-musical teria perdido força com o declínio do trovadorismo, no
fim da Era Medieval, porém conservou-se a oratória empregada no texto a serviço de uma expressividade
musical (Pereira et al. 2017).
O advento da ópera, após as reuniões de filólogos em fins do século XVI e começo do século XVII, trazia em
seu gérmen a natureza imitativa emprestada dos greco-romanos: a mimese, a imitação humanista que
movimenta a alma, se constitui o eixo central da trama renascentista (Chasin 2004). Os chamados
“madrigalismos” dos séculos XV e XVI, onde a música refletia, de forma retórica, os aspectos poéticos
inerentes do texto, era uma premissa fundamental dos madrigais herdada indiretamente da tragédia
clássica. Em carta a Vincenzo Galilei, Girolamo Mei argumenta, a respeito do declamar o texto
expressivamente, por meio do canto: “[...] quanto mais um efeito de prazer nascer eficazmente dos acentos
da voz, de seus tempos, e, por fim, do próprio falar ordenado pois, por este meio, quem ouve entende
aquilo que quem o utiliza quer exprimir –, creio que seria sempre mais aprovado por mim” (Chasin 2004,
34).
Desse modo, a expressão poética em primeiro plano seria a premissa particular do movimento estético vocal,
desde a Antiguidade, chegando à Renascença e Barroco praticamente incólume. Atrelada a esse aparato da
5
https://www.youtube.com/watch?v=Tf16_lGs7Ss&list=PLXUeUBhvfMh8SX45TfSFZvHbNdelQHHLi
Disponível online. Acesso em: 12.07.21.
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Vaccari, Pedro Razzante. “A preparação do cantor para a performance de música brasileira de concerto: voz, corpo e aspectos cênicos
primazia da poesia sobre a música, despontou uma nova forma de escuta, “comparável a nova maneira de
ver nas artes visuais, causada pela perspectiva e pela busca da unidade” (Fonterrada 2008, 40).
O estilo madrigalesco, comumente reconhecido como o que desenvolveria a arte da imitação e da retórica
visual na música renascentista que, posteriormente alcunhou-se de Word painting, gradualmente
redundaria na própria valorização de uma voz superior (soprano) e a redução das demais em
acompanhamento. Grandes mestres do madrigal renascentista seriam Orazio Vecchi e Luca Marenzio:
“Marenzio colocou sua técnica burilada e infinitamente flexível de composição a serviço do conteúdo poético
do texto” (Fonterrada 2008, 46).
Dessa forma, ao interpretar uma peça da Renascença e, por extensão, também do Barroco, talvez ainda mais
que de outros períodos, deve-se procurar um trabalho apurado sobre as questões do texto, de semântica e
entoação. Conforme ressaltam Stein e Spillman (2002), deve-se estudar primeiro a poesia declamação,
dicção, diferentes formas de entoação depois os outros problemas da performance. Após esse processo,
destrinchar a obra cada aspecto da estrutura musical, por meio de cada dimensão musical: harmonia,
tonalidade, melodia, ritmo, métrica e forma. No fim do processo, uma recombinação dos três tópicos.
Esse processo extenso auxilia os performers em dois modos complementares: de um lado, a revisão das
normas musicais estabelece uma fundamentação de cada aspecto de uma peça vocal, e de outro lado a
discussão da inovação musical as leituras e releituras do texto com outra entoação demonstra como o
ímpeto de colocar textos poéticos no modo mais expressivo e imaginativo pode embasar uma performance
mais “autêntica” (Stein e Spillman 2002).
Porém Richard Miller (2019, 308) atenta para o que chama de “pedagogia com foco de interpretação”,
quando o professor de canto exerce atenção demasiada apenas na interpretação, procurando distensionar
o (a) estudante de modo a olvidar determinadas pressões que pode estar recebendo de natureza técnica.
“Tal pedagogia pode ser útil pela simples razão de que a atenção pode ser desviada dos eventos físicos do
canto, permitindo uma maior coordenação natural”. E complementa, em defesa de um estudo interpretativo
embasado em técnica vocal tradicional: Como o canto é um ato tão artístico como físico (e parte de sua
força artística repousa no grau de independência física mostrada), o ensino do canto focado no texto e na
música é na maioria das vezes inadequado”.
Desse modo, devemos colocar o aparato técnico a serviço do canto de forma adequada respiração, fonação
e articulação para que haja uma interpretação vocal que Martha Herr chama de “eficiente” (Herr 2007,
13), considerando a eficiência “a legitimação do desempenho, de acordo com os objetivos pré-determinados
pelo performer, sejam estes objetivos técnicos, expressivos, estéticos”. E conclui: “É fundamental saber
como conectar o que está disperso. Da organização dos dados é que se chega à performance, donde conclui-
se que a eficiência desta (obtenção do efeito visado) depende do arranjo das informações” (Herr 2007, 13).
A performance que considera uma espécie de fusão das artes, ainda que incipiente, é a buscada e legitimada
pelo cantor- ator, que dota uma simples canção ou ária de atributos cênicos como o “subtexto”, a “voz
interna do personagem” e o “endereçamento” vistos aqui anteriormente. Alguns espetáculos cênicos
relativamente contemporâneos abrigaram, em seu germe, a condensação das diferentes artes, em que
noções de timbre, pulso e demais fundamentos do som foram apropriados pela performance, como o
espetáculo Painel, de 1978, elaborado por Suzy Botelho: “A improvisação foi utilizada em jogos cuja tônica
envolvia princípios da qualidade do som (altura, duração, intensidade, timbre, ritmo, pulso, compasso) e
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Vaccari, Pedro Razzante. “A preparação do cantor para a performance de música brasileira de concerto: voz, corpo e aspectos cênicos
também estruturas musicais (no caso do rondó) e textual (para a demonstração da relação entre a fala e a
música” (Magalhães 2019, 114).
3.1 A performance de música brasileira em concerto
Um exemplo de reciprocidade musical e cênica nos quesitos de voz e pulso pode ser conferido no espetáculo
“Os Saltimbancos”, de Sergio Bardotti, com versão de Chico Buarque. Em “História de uma gata”,
interpretada pela Cia Odeon, as falas que precedem o número obedecem ao mesmo compasso quaternário
da música
6
. Perceba como a tensão das falas se incrementam até o ápice – o culminar no começo da canção.
Esse exemplo reúne os diversos matizes que integram a performance cênica e musical: a variação de pulso
na fala das personagens é condicionada a um compasso quaternário, o mesmo da música que toca a seguir,
e durante toda a peça supracitada vemos a utilização de timbragem e pulsação variando de acordo com a
expressão/interpretação sugerida.
Com relação às diferenças existentes entre a sintaxe e expressão da voz cantada e da voz falada, Lucia Helena
Gayotto pontua:
Na partitura vocal é anotado o recurso de cadência silabada, pois a cadência pontual é
a produtivamente usada na língua portuguesa, não sendo necessário fazer esta marcação.
O acento das palavras relaciona-se à conjugação de alguns recursos vocais como:
intensidade, frequência, timbre aberto ou fechado e duração. Por isso, muitas vezes
nas partituras as sílabas tônicas vêm acompanhadas de um alongamento (duração maior)
ou de curvas melódicas, indicando qualidades da prosódia e da interpretação do ator
(Gayotto 2002, 48).
O adensamento, alongamento, encurtamento e outras disposições musicais dos intérpretes podem ser
conferidos em grande parte da literatura musical, em especial de música popular. Na peça A dança do sapo,
de José Siqueira, que analisei em minha dissertação de Mestrado (Vaccari 2013), um coco de embolada
nordestino, os glissandos atonais normalmente praticados pelos emboladores são grafados pelo compositor
com notas fixas, e deveriam, portanto, vir com explicações em rodapé (Figura 3).
Quando analisamos, no entanto, a performance dos emboladores nordestinos, percebemos que as inflexões
do texto e da música são insuficientemente traduzidas na partitura, não apenas por uma questão estética –
de se adequar à música tonal temperada ocidental – como também por impossibilidades inerentes à música
escrita. Como grafar arroubos, gritos, nasalizações, canto gutural e desafinações propositais com o intuito
de enriquecer a performance?
Em minha pesquisa de Mestrado acompanhei, diversas vezes, os emboladores Verde Lins e Pena Branca. Ao
observar o material que coletei, disponível no YouTube, podemos auferir que, ao interpretar a Dança do
sapo, os performers fazem uma livre variação sobre o tema, pouco se atendo às notas, porém investindo no
improviso e no caráter festivo e paródico de sua execução
7
.
6
https://www.youtube.com/watch?v=sEzwR2s8IrA. Disponível online. Acesso em: 10.06.24.
7
https://www.youtube.com/watch?v=MRlZixZKcwc. Disponível online. Acesso em 12.07.24.
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Vaccari, Pedro Razzante. “A preparação do cantor para a performance de música brasileira de concerto: voz, corpo e aspectos cênicos
Figura 3 – A dança do sapo de José Siqueira.
Referência: Siqueira 1975, 18.
Os parâmetros alcançados por uma performance dessa estirpe podem ser acompanhados em meu recente
artigo (Vaccari 2024), em que exponho como pode o performer vocal incorporar as características do
cantador de embolada por meio dos seguintes ditames: jocosidade, nasalidade e improvisação vocal e
corporal.
Em outra peça de José Siqueira, feita a partir de um canto coletado dos índios Parecis, o compositor incide,
novamente, em um equívoco, ao grafar as notas dentro de uma tonalidade e alturas definidas, ainda que
tenha tentado manter, aparentemente, a melodia original.
Figura 4 – Natiô de José Siqueira.
Referência: Siqueira 1975, 20.
Reference: AUTHOR, YEAR; Link, etc.
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Vaccari, Pedro Razzante. “A preparação do cantor para a performance de música brasileira de concerto: voz, corpo e aspectos cênicos
Não sabemos exatamente como era executado este canto, todavia a gravação que temos, da soprano Alice
Ribeiro, obedece estritamente à afinação temperada tonal e pouco se atém a variações de timbre e de pulso
que poderiam ser feitas de acordo com necessidades interpretativas
8
. A interpretação permanece, ademais,
invariavelmente operística, sem considerar mudanças de inflexão do texto em idioma Pareci, a sua tradução
ou variações de andamento.
4. Resultados e conclusões
Utilizar as questões aqui colocadas de endereçamento, voz interna, subtextos, trabalhar as inflexões
proporcionadas pelo próprio texto de diversos modos e usar o modo declamatório antes da colocação da
música, são técnicas que propiciam uma maior ênfase em aspectos não-literais da partitura vocal. Do mesmo
modo, verificou-se que salientar elementos que agreguem substratos à performance como o desenho do
mapa corporal – delimitam esquemas saudáveis de como gerir os movimentos e as ações dentro do eixo da
interpretação de uma canção ou mesmo obra maior.
Assentadas as premissas básicas de emissão vocal sistema energizador, vibratório, articulatório e
ressonador e uma técnica livre e desimpedida de tensões vocais e extra vocais, em que se utilize uma
técnica amplamente baseada em sul fiato sobre o ar mas que não seja aerada, como sugere Miller (2019),
o desenho do Mapa corporal e o condicionamento da postura “correta” devem permear uma performance
de música brasileira de concerto.
Essa performance, portanto, deve se balizar obedecendo aos parâmetros: equilíbrio corporal pelo Body map,
canto sul fiato mas não aerado, interpretação não lobotomizada que se baseie nos movimentos internos
e externos do corpo, estudo vocal e técnico do texto a partir da voz interna do personagem e substextos,
mesmo em canções que não sejam provenientes de um libreto. A performance de música brasileira de
concerto, desse modo, ganha subsídios no que concerne à expressividade do cantor-ator e sua relação
palco/público/mundo. A incorporação de jogos e esquemas lúdicos visando à uma totalidade performática
encontrada em A dança do sapo pode ser verificada em minha interpretação disponível online
9
.
Acompanhado pelo pianista Alex Flores, realizo essa interpretação relativamente livre, sem abusar de um
gestual complexo, procurando salientar simples aspectos poéticos do texto e a retórica da partitura.
5. Referências
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Performer. Reino Unido: Taylor & Francis.
8
https://www.youtube.com/watch?v=fzU5Xn0Xq6E. Disponível online. Acesso em: 10.06.24
9
Dança do sapo Pedro Vaccari Museu do Ipiranga - YouTube.
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