[Digite texto] [Digite texto] [Digite texto]
eISSN 2317-6377
O Violão e a ordem pública:
censura e controle social (São Paulo 1890-1932)
The Classical Guitar and public order:
censorship and social control (São Paulo, 18901932)
Flavia Prando1
flaviaprando@alumni.usp.br
1 Universidade de São Paulo/Sesc São Paulo, São Paulo, SP, Brasil
ARTIGO CIENTÍFICO
Editor de Seção: Fernando Chaib
Editor de Layout: Fernando Chaib
Licença: "CC by 4.0"
Data de submissão: 25 mar 2025
Aprovação final de aprovação: 18 abr 2025
Data de publicação: 26 abr 2025
DOI: https://doi.org/10.35699/2317-6377.2025.58335
RESUMO: Este artigo analisa as representações do violão em São Paulo entre 1890 e 1932, com foco na imprensa e nos discursos
que associavam o instrumento à marginalidade, à boemia e à desordem social. A partir de periódicos e fontes históricas, investiga-
se como o violão foi alvo de repressão simbólica durante a modernização urbana, atuando como marcador de classe, raça e
gênero. O texto aborda antecedentes da censura musical, o papel performativo das práticas sonoras em espaços públicos e as
tensões envolvendo a presença feminina no campo violonístico. Examina-se, ainda, como essas práticas resistiram ao
disciplinamento imposto por autoridades e elites urbanas. Ao articular som, espaço e controle, propõe-se uma escuta crítica das
dinâmicas de exclusão e resistência que moldaram a presença do violão na cidade.
PALAVRAS-CHAVE: Violão; Imprensa; Espaço público; Moralidade; Resistência cultural; São Paulo.
ABSTRACT: This article analyzes representations of the guitar in São Paulo between 1890 and 1932, focusing on the press and
discourses that associated the instrument with marginality, bohemianism, and social disorder. Drawing on newspapers and
historical sources, it investigates how the guitar became a target of symbolic repression during urban modernization, functioning
as a marker of class, race, and gender. The text addresses the historical background of musical censorship, the performative role
of sound practices in public spaces, and tensions surrounding the presence of women in the guitar scene. It also examines how
these practices resisted the disciplining imposed by authorities and urban elites. By articulating sound, space, and control, the
article proposes a critical listening to the dynamics of exclusion and resistance that shaped the guitar’s presence in the city.
KEYWORDS: Classical Guitar; Press; Public space; Morality; Cultural resistance; São Paulo.
Per Musi | Belo Horizonte | v.26 | General Section | e252614 | 2025
Per Musi | Belo Horizonte | v.26 | General Section | e252614 | 2025
2
Prando, Flavia. “O violão e a ordem pública: censura e controle social (São Paulo 1890-1932)
1. Introdução
Entre o que se via e o que se ouvia em São Paulo no início do séc. XX, a cidade se revelava em camadas.
Modinhas nas janelas, serestas nos becos, choros sob a luz rarefeita dos lampiões. Mas nem todos os sons
eram bem-vindos. Entre o ruído do bonde e o silêncio idealizado pela ordem urbana, o violão ocupava um
lugar incômodo ora tolerado, ora reprimido. Neste espaço entre a escuta e a norma, o instrumento se
tornou alvo de discursos que iam além da música: tratava-se de classe, de moralidade, de controle.
E esse incômodo sonoro não foi episódico. O violão, ao longo da história brasileira, ocupou um lugar ambíguo
entre a aceitação e a marginalização. Na virada do séc. XIX para o XX, o instrumento passou a ser associado
a práticas populares que colidiam com os ideais de ordem e progresso promovidos pela modernização
urbana. A imprensa e as políticas públicas ajudaram a construir uma imagem do violão como símbolo de
desordem, resultando em mecanismos de censura e controle social que restringiram sua circulação.
O presente artigo investiga as relações entre o violão e a ordem pública no período de 1890 a 1932,
analisando fontes históricas e a bibliografia especializada sobre o tema. O recorte temporal delimita um
período de intensas transformações na vida urbana e nas formas de circulação sonora em São Paulo. O início
da República inaugura novos regimes de controle social e moralização dos espaços públicos. No outro
extremo, a consolidação da radiofonia comercial sob os primeiros marcos regulatórios voltados à
propaganda e ao interesse dos anunciantes, durante o governo Vargas transforma profundamente as
relações entre música, escuta e mediação. Esses marcos históricos definem os contornos desta pesquisa e
situam o violão em um momento de transição, em que disputas simbólicas sobre gosto, pertencimento e
visibilidade se intensificam.
A relação entre música e controle social não é um fenômeno exclusivo do Brasil, mas, no contexto paulistano
do final do séc. XIX e início do séc. XX, ela adquiriu contornos específicos. O violão era um instrumento
amplamente presente nas camadas populares, acompanhando modinhas, choros e serestas, formas
musicais que faziam parte da vida urbana cotidiana. No entanto, sua associação a grupos marginalizados,
rotulados como ameaça à ordem, serviu de pretexto para sua rejeição por parte das elites que buscavam
consolidar um ideal de "civilidade" excludente, moldado segundo valores eurocêntricos.
A transformação urbana acelerada de São Paulo, impulsionada pela economia cafeeira e pelo influxo de
imigrantes, gerou tensões entre os antigos e os novos padrões de convivência. O Estado, preocupado em
controlar a circulação de indivíduos e práticas culturais consideradas "desviantes", implementou medidas
repressivas que atingiram não apenas o violão, mas também outras manifestações populares, como a
capoeira e o samba. O estudo dessas interdições musicais é fundamental para compreendermos como a
construção simbólica do violão reflete processos mais amplos de exclusão e disciplinamento social.
A identificação do violão como um marcador social esteve intimamente ligada às disputas sobre os espaços
urbanos. Enquanto o piano era o instrumento oficial dos salões das altas classes, o violão era encontrado
nas esquinas, nos botequins e nos quintais, sendo o símbolo de uma música que fugia aos padrões
institucionais. No entanto, o violão sempre foi cultivado por setores das elites, ainda que em contextos mais
discretos e protegidos do escrutínio público. O instrumento era bem aceito em determinados círculos sociais
quando associado a nomes reconhecidos ou quando praticado em ambientes controlados, como os saraus
Per Musi | Belo Horizonte | v.26 | General Section | e252614 | 2025
3
Prando, Flavia. “O violão e a ordem pública: censura e controle social (São Paulo 1890-1932)
domésticos. Ao mesmo tempo, sua presença em espaços públicos e sua ligação com músicos de origem
popular tornavam-no alvo de repressão e desconfiança.
A criminalização da música popular se manifestou tanto na repressão direta a músicos quanto na tentativa
de controlar sua presença e sua atuação por meio de legislações locais voltadas ao controle urbano. Em
diversas ocasiões, seresteiros eram detidos por ‘perturbação da ordem’. Ademais, o discurso oficial
reforçava a relação entre o violão e a vadiagem, termo que, no contexto da época, abrangia desde a prática
musical informal até a simples presença de indivíduos considerados ‘indesejáveis’ nas ruas. Essa
caracterização se alinhava a um projeto de moralização da cidade que visava à erradicação de práticas
consideradas arcaicas e incompatíveis com a modernidade que se almejava para São Paulo.
Resultado de um desdobramento da tese de doutorado da autora (Prando 2021), este estudo adota uma
abordagem historiográfica qualitativa, combinando análise documental e revisão bibliográfica. Foram
examinados periódicos da época — selecionados a partir de sua circulação e relevância na conformação da
opinião pública —, legislação municipal, catálogos fonográficos e crônicas literárias, com ênfase nas
representações midiáticas do violão e sua presença efetiva na cena musical paulistana. A análise das
reportagens e críticas musicais permitiu identificar recorrências temáticas e estratégias discursivas que
associavam o violão a diferentes espaços e significados sociais. Ao articular práticas sonoras, discursos de
repressão e experiências urbanas, o estudo busca compreender como o violão não foi apenas objeto de
censura, mas também vetor de resistência.
Ao longo deste artigo, os termos popular e erudito não são utilizados como categorias fixas ou naturalizadas,
mas como instrumentos analíticos que ajudam a compreender as disputas simbólicas e os circuitos de
legitimação no campo musical. Trata-se de reconhecer que essas classificações operam como construções
sociais e históricas, e não como designações neutras. Seu uso aqui busca iluminar os contrastes entre
práticas musicais socialmente diferenciadas, reconhecendo, no entanto, as muitas zonas de contato,
negociação e ambiguidade entre elas. As palavras de Gilberto Velho “a articulação entre diferentes
domínios culturais é, aliás, uma das chaves de compreensão das sociedades complexas. A própria oposição
entre cultura erudita e cultura popular pode se atenuar ou mesmo desaparecer em situações nas quais os
indivíduos transitam entre diferentes papéis e universos simbólicos” (1994, 40) oferecem uma chave
poderosa para a análise da ambivalência histórica em torno do violão, instrumento que transita entre a
marginalização social e a consagração nos espaços de concerto.
1. Antecedentes históricos da repressão musical no Brasil
A repressão às práticas musicais populares no Brasil é anterior à Primeira República. Durante o séc. XIX, o
Estado Imperial utilizava leis, regulamentos e dispositivos policiais para restringir manifestações
consideradas ‘imorais’ ou ‘subversivas’, geralmente vinculadas às camadas populares urbanas e às tradições
afro-brasileiras. O violão transitava por diferentes redes sociais, sendo praticado por músicos negros,
imigrantes, trabalhadores informais e outros sujeitos que, em muitos casos, estavam à margem das esferas
institucionais de produção musical.
A vigilância sobre sons e práticas musicais está registrada em diversos documentos normativos (Aprobato
2001). Em São Paulo, ainda no período imperial, se aplicavam dispositivos do Código de Posturas que
restringiam os horários e locais de execução de músicas e danças públicas. Embora os alvos principais fossem
Per Musi | Belo Horizonte | v.26 | General Section | e252614 | 2025
4
Prando, Flavia. “O violão e a ordem pública: censura e controle social (São Paulo 1890-1932)
batuques e tambores notadamente reprimidos por sua ligação direta com práticas religiosas afro-
brasileiras –, o violão começava a compor, junto às modinhas e lundus, o repertório das "interdições morais"
(Dias 1995, 87). Esses gêneros circulavam, em sua maioria, por espaços rotulados como perigosos e
moralmente suspeitos — cortiços, quintais, praças e botequins.
Como bem pontua Maria Odila Dias, o poder público enxergava no cotidiano popular uma ameaça à ordem,
e a música ainda que não fosse crime – tornava-se infração quando associada ao desregramento urbano:
"o policiamento da cidade cuidava mais de dispersar os ajuntamentos do que de regular os atos em si" (Dias
1995, 88). O som tornava-se, assim, um marcador de presença indesejada — e o violão, nesse contexto, uma
ferramenta de mobilização estética e social dos grupos subalternos.
Essa perspectiva é aprofundada por Heloisa Cruz (1987), ao examinar como a polícia da capital de São Paulo
atuava entre 1890 e 1915. Segundo a autora, a repressão não visava diretamente à música, mas à "ocupação
autônoma dos espaços públicos por corpos indisciplinados", sendo os músicos de rua, os tocadores de violão
e os cantores populares frequentemente enquadrados como vagabundos, arruaceiros ou corruptores da
moral.
Vale destacar que os primeiros registros de censura indireta à presença do violão em São Paulo coincidem
com a modernização urbana, no início do séc. XX. A construção de uma cidade ‘civilizada’, nos moldes
europeus, passava pela repressão dos elementos que evocassem rusticidade, mestiçagem ou desvio da
norma burguesa. O silêncio tornou-se signo de progresso, enquanto a sonoridade popular era tratada como
resquício arcaico. O violão, por sua portabilidade, uso informal e associação a práticas noturnas, tornou-se
elemento central dessa disputa.
Mesmo assim, o instrumento resistiu. Diversos músicos populares continuaram a difundir seu repertório em
festas, rodas de choro e serenatas. A oralidade e a transmissão informal das técnicas e peças garantiram a
continuidade de práticas musicais que escapavam aos olhos – e ouvidos – da censura oficial. Essa dualidade
entre vigilância e resistência atravessa o percurso do violão e contribui para compreender sua representação
na imprensa e na sociedade paulistana do início do séc. XX.
1. A Imprensa e a construção da marginalização sonora
Entre 1890 e 1932, São Paulo vivenciou transformações urbanas e sociais significativas, impulsionadas pela
industrialização e pelo crescimento populacional decorrente da imigração, ambos reflexos do complexo
cafeeiro. Nesse contexto de modernização, a imprensa emergiu como um agente influente na formação da
opinião pública, desempenhando papel crucial na construção de discursos que associavam determinadas
práticas culturais, como o uso do violão, a comportamentos marginais e à subversão social.
1.1. O violão e a imprensa paulistana
O violão, instrumento central em gêneros musicais populares da época, como o choro e a modinha, tornou-
se símbolo de resistência cultural das camadas populares. Entretanto, sua presença nos espaços públicos e
sua associação com ambientes boêmios foram frequentemente alvo de críticas por parte dos periódicos
paulistanos. Artigos, crônicas e editoriais retratavam o violão como um instrumento ligado à marginalidade
e à imoralidade, reforçando estereótipos negativos e contribuindo para sua marginalização. A imprensa, ao
enfatizar tais aspectos, desempenhava um papel ativo na construção de uma imagem depreciativa do violão
Per Musi | Belo Horizonte | v.26 | General Section | e252614 | 2025
5
Prando, Flavia. “O violão e a ordem pública: censura e controle social (São Paulo 1890-1932)
e de seus praticantes, influenciando a percepção pública e justificando medidas repressivas por parte das
autoridades.
1.2. Linguagem moralista e controle social
A linguagem empregada pela imprensa ao tratar das práticas musicais populares era carregada de juízos
morais, refletindo os valores urbanos que buscavam impor padrões de comportamento considerados
civilizados e modernos. Termos pejorativos e expressões que denotavam desaprovação eram comuns em
matérias que abordavam reuniões musicais em espaços públicos, especialmente aquelas envolvendo o
violão. Essa abordagem moralista não apenas reforçava preconceitos existentes, mas também servia como
instrumento de controle social, ao deslegitimar manifestações culturais das classes populares e associá-las
ao atraso. Ao retratar negativamente o violão e seus praticantes, a imprensa legitimava ações repressivas e
políticas públicas que visavam restringir tais expressões culturais, alinhando-se aos interesses das elites em
moldar a sociedade conforme seus ideais.
1.3. Tipologia das matérias jornalísticas
A análise das publicações da época revela diferentes tipos de abordagens utilizadas pela imprensa para tratar
das práticas musicais populares:
Cartas de Leitores: espaços onde cidadãos expressavam opiniões sobre a presença do violão em
espaços públicos, muitas vezes refletindo os discursos moralistas predominantes e reforçando a visão
negativa associada ao instrumento.
Crônicas: textos que, embora por vezes adotassem tom mais leve ou humorístico, frequentemente
perpetuavam estereótipos sobre o violão e seus praticantes, associando-os a figuras boêmias ou marginais.
Editoriais: artigos que expressavam a posição oficial do periódico, nos quais o violão era
frequentemente citado como símbolo de práticas indesejáveis, servindo como argumento para defender
medidas de controle social e repressão cultural.
Essa diversidade de abordagens evidencia a amplitude e a profundidade com que a imprensa influenciava a
percepção pública sobre o violão e as práticas musicais populares, atuando como um agente ativo na
construção de discursos de marginalização.
1.4. Impacto na sociedade paulistana
A constante associação do violão a elementos negativos pela imprensa teve consequências significativas na
sociedade paulistana da época. Músicos e apreciadores do instrumento enfrentavam estigmatização e
dificuldades em legitimar suas práticas artísticas. Além disso, a pressão midiática contribuiu para a
implementação de políticas públicas repressivas, como restrições a apresentações musicais em espaços
públicos e perseguição a artistas populares. Contudo, é importante destacar que, apesar das adversidades,
o violão e as práticas musicais a ele associadas resistiram e continuaram a se desenvolver, evidenciando a
força e a resiliência das expressões culturais populares diante dos mecanismos de controle e marginalização
impostos pelas elites urbanas.
Per Musi | Belo Horizonte | v.26 | General Section | e252614 | 2025
6
Prando, Flavia. “O violão e a ordem pública: censura e controle social (São Paulo 1890-1932)
Esses materiais editoriais, crônicas e cartas de leitores revelam o modo como a imprensa atuava na
construção de uma sensibilidade urbana pautada por normas de decoro e silêncio. Como se verá nas seções
seguintes, era comum que leitores denunciassem os músicos de rua em tom acusatório: “esses indivíduos
assumem ares de arrogantes, trazem o bigode retorcido [...]”. os editoriais, em tom mais solene,
criticavam “os violões desafinados” que perturbavam o descanso noturno. Esses registros, mais do que
expressões individuais, atuavam como mediadores entre o poder público e a moralidade burguesa em
formação.
2. O violão e a imagem da ordem pública
A imprensa criminal da época frequentemente associava o violão a práticas consideradas indesejáveis.
Serenatas e outras manifestações em praças eram retratadas como perturbações da paz pública, reforçando
a relação entre o instrumento e a boemia. As políticas de urbanização em São Paulo, inspiradas em modelos
europeus, procuravam segregar grupos sociais considerados ameaçadores à ‘moralidade’ da cidade. Por sua
associação a esses grupos, o violão tornou-se alvo direto da repressão, como mostram registros da época:
Às duas da manhã, na rua da Liberdade, um grupo de indivíduos foi detido por cantar e
tocar violão em tom considerado ofensivo à ordem. O delegado os enquadrou por
perturbação da ordem e vadiagem
1
.
Cantorias acompanhadas de violão foram proibidas nas imediações da Estação da Luz. A
polícia alega que músicos aproveitavam o movimento para importunar transeuntes
2
.
A modernização urbana, além de reconfigurar a infraestrutura das cidades, impôs um disciplinamento
rigoroso dos comportamentos, redefinindo a forma como os espaços eram ocupados e vividos. Grandes
metrópoles ao redor do mundo tornaram-se epicentros de transformação social, recebendo fluxos
incessantes de imigrantes que traziam consigo línguas, costumes e expressões culturais diversas. Esse
caldeirão de influências, longe de ser harmônico, era visto pelas elites como um caos a ser controlado, uma
ameaça à ordem desejada. As práticas culturais populares passaram a ser marginalizadas e, com elas, o
violão, que se tornou símbolo de um espaço sonoro visto como ameaçador. Nesse cenário, o disciplinamento
social analisado por Elias (1994) atuava como uma estratégia para conter a efervescência cultural das massas
urbanas e reforçar os valores hegemônicos da elite.
A rápida urbanização de São Paulo gerou uma série de conflitos entre diferentes grupos sociais e culturais,
e uma das estratégias utilizadas para disciplinar os espaços urbanos foi a repressão às expressões culturais
informais (Sevcenko, 1992). As políticas de controle da ordem pública afetaram diretamente a circulação de
músicos e a realização de apresentações em locais abertos. Serenatas e rodas de choro passaram a ser vistas
como ameaças à moralidade e ao projeto de civilização imposto pelas elites, e eram comuns notícias como:
“A polícia notificou um músico que costumava reunir moradores para rodas de choro nas escadarias da
Avenida São João. Embora populares, os encontros foram considerados perturbadores”
3
.
1
Correio Paulistano, São Paulo, ano LIV, n. 18893, 19 maio 1916.
2
Correio Paulistano, São Paulo, ano LXII, n. 21803, 19 mar. 1924.
3
Correio Paulistano, São Paulo, ano LIX, n. 20942, 23 out. 1921.
Per Musi | Belo Horizonte | v.26 | General Section | e252614 | 2025
7
Prando, Flavia. “O violão e a ordem pública: censura e controle social (São Paulo 1890-1932)
A imprensa desempenhou papel central na construção dessa imagem, associando o violão ao mundo da
criminalidade, reforçando sua relação com espaços de instabilidade. Relatos de jornais policiais
frequentemente descreviam o instrumento como parte do cotidiano de boêmios e marginais, contribuindo
para a consolidação de um imaginário em que o violão estava ligado ao comportamento desviante. O violão
comparecia em notícias de crimes passionais e bebedeiras, como instrumento de fundo num cenário de
sangue e álcool, para usar a expressão de Bóris Fausto (1998, 174).
Além da ação repressiva da polícia, a regulamentação dos espaços públicos também foi usada como
ferramenta para restringir essas práticas musicais. A tentativa de exclusão do violão dos espaços públicos
fazia parte de um esforço mais amplo de reordenamento moral dos espaços públicos, no qual o controle dos
sons da cidade refletia também o controle sobre os corpos que os produziam:
Foi conduzido à delegacia um violonista que fazia serenata na rua do Gasômetro. Segundo
o delegado, o som do violão, embora afinado, 'incomodava o decoro noturno'
4
.
Registrou-se ontem uma queixa contra tocadores de violão que se instalaram sob as janelas
da rua da Mooca, entoando versos de gosto duvidoso. A polícia os dispersou
5
.
A repressão ao violão nesse período, portanto, não pode ser vista apenas como uma questão cultural, mas
como parte de um projeto mais amplo de reorganização social. A tentativa de segregar grupos considerados
"indesejáveis" incluiu o estabelecimento de normas que restringiam práticas associadas às camadas
populares. A história do violão reflete as disputas pelo espaço urbano e pelos significados culturais que nele
se estabelecem. O instrumento, que posteriormente seria legitimado por meio da fonografia e radiofonia e
da sua inserção nos espaços da música institucionalizada, passou por um longo período de marginalização
antes de conquistar um novo status.
3. Controle Social e Criminalização da Música Popular
O período abordado coincide com diversas tentativas de disciplinamento dos espaços urbanos, em que
práticas culturais populares passaram a ser alvo de medidas repressivas. A polícia desempenhava um papel
ativo na dispersão de músicos em locais públicos, utilizando normas que tipificavam a prática musical como
"desordem" (Moraes, 1997). A criminalização da capoeira e de outras manifestações culturais afro-
brasileiras exemplifica essa lógica, na qual expressões espontâneas, ligadas a grupos marginalizados, eram
interpretadas como ameaças à ordem pública (Fausto, 1998). O violão, por ser amplamente adotado por
músicos populares, seguiu caminho semelhante. Relatos de apreensão de instrumentos, dispersão de rodas
de choro e notificações a bares e mesmo casas de cômodo ou cortiços que promoviam apresentações
violonísticas são indicativos dessa repressão:
O italiano Ciampa Domenico, morador, com sua esposa e filhos, à rua da Concórdia, 105,
algum tempo alugou um cômodo de sua casa à cozinheira Maria Sophia que, de olhos
baixos e parecendo uma santinha, lá apareceu, atendendo a uma papeleta que vira
pregada num dos vidros dos quartos.
4
Correio Paulistano, São Paulo, ano XLVIII, n. 17149, 29 abr. 1911.
5
Correio Paulistano, São Paulo, ano LIX, n. 20785, 14 maio 1921.
Per Musi | Belo Horizonte | v.26 | General Section | e252614 | 2025
8
Prando, Flavia. “O violão e a ordem pública: censura e controle social (São Paulo 1890-1932)
Nos primeiros tempos tudo correu bem e Domenico vivia satisfeitíssimo com o exemplar
comportamento da inquilina.
Ultimamente, porém, Maria Sophia perdeu a cabeça e todas as noites, reúne no seu
cômodo diversos pretos e pretas em cantorias, com os competentes acompanhamentos
de violão e parati, o que põe em sérios embaraços o senhorio, vexado com os escândalos.
Às reclamações de Ciampa Domenico, responde a preta dizendo que está em sua casa,
paga os competentes aluguéis, e, portanto, está livre de qualquer tutela quanto ao seu
modo de levar a vida.
Não conseguindo por boas maneiras a mudança da turbulenta inquilina, o senhorio
resolveu pedir providências à polícia e, ontem, compareceu à presença do sr. Capitão
Alberto Andrade, subdelegado do Brás, a quem minuciosamente relatou as suas
desventuras.
Maria Sophia foi intimada a tomar juízo
6
.
Convém notar que, diferentemente de outras regiões como o Rio de Janeiro, o choro em São Paulo, no
período aqui analisado, não tinha uma presença negra significativa em sua composição social. Ainda assim,
músicos negros atuavam na cena paulistana. Mais do que a origem dos artistas, o que motivava a repressão
era a associação expressiva entre música popular e grupos considerados marginais, o que incluía uma leitura
racial implícita. A atuação das autoridades e da imprensa, muitas vezes, reforçava estigmas ligados à cor, à
classe e à informalidade, tratando certos sons como indesejáveis não apenas por seu conteúdo, mas por
quem os produzia. Casos como o de Maria Sophia, narrados pela imprensa da época, evidenciam que a
música especialmente quando associada ao violão e a determinados corpos sociais era tratada como
perturbação da ordem.
A modernização das cidades foi impulsionada por um ideário de civilidade urbana, que orientava
transformações nos modos de habitar e ocupar o espaço público. Essa política visava, sobretudo, diferenciar
a ‘gente honesta’ da massa de trabalhadores urbanos e imigrantes que, ao ocupar praças, ruas e botequins,
eram considerados elementos de perturbação da ordem (Martins, 2014).
A repressão policial era um dos instrumentos fundamentais para essa segregação. Policiais tinham ordens
explícitas de dispersar grupos reunidos para tocar música, especialmente quando envolviam o violão,
instrumento associado à vadiagem. O crescimento da cidade e a chegada de grandes fluxos migratórios
fizeram com que o controle social se tornasse ainda mais rígido, em um esforço para conter o que era visto
como um ‘caos cultural’ causado pela sobreposição de tradições e práticas sociais distintas.
A censura às práticas musicais informais envolvia diferentes frentes, incluindo não apenas a ação policial,
mas também um conjunto de medidas legais e administrativas que restringiam a circulação sonora nas
cidades. Decretos municipais e posturas urbanas passaram a coibir a execução de músicas em horários
considerados impróprios, evidenciando o esforço institucional em silenciar determinadas expressões
culturais (Moares, 2000).
6
Correio de São Paulo, São Paulo, ano I, n. 267, 24 abr. 1934.
Per Musi | Belo Horizonte | v.26 | General Section | e252614 | 2025
9
Prando, Flavia. “O violão e a ordem pública: censura e controle social (São Paulo 1890-1932)
As casas de espetáculos populares, que promoviam rodas de choro e apresentações de violão, foram
pressionadas a modificar seus repertórios ou, em alguns casos, fechadas sob alegação de perturbação da
ordem pública (Sevcenko, 1992). Os jornais da época frequentemente publicavam reclamações sobre
apresentações musicais. O discurso oficial sobre civilidade estava diretamente ligado à imposição de um
silêncio urbano, no qual a música das camadas populares era interpretada como um ruído indesejável:
Peço a V.S. que, por intermédio do seu conceituado jornal, reclame providências da polícia
contra uma malta de conquistadores que vive a importunar os moradores da Villa Sarzedas
com desafinados toques de violão.
Esses indivíduos assumem ares de arrogantes, trazem o bigode retorcido e estão
constantemente a perseguir com olhares desaforados as famílias do lugar.
É preciso, sr. Redator do Commercio, que a polícia volte as suas vistas para esses tipos
7
.
O conceito de ‘perturbação da ordem’ era suficientemente amplo para justificar a repressão contra qualquer
prática musical que não estivesse alinhada aos interesses do projeto normativo de cidade:
O que parece estranho, não mais na Coimbra brasileira, mas sim na brasileira Manchester
de hoje: o que é impossivelmente intolerável, é estar às tantas antes de meia noite, no
gabinete de leitura estudando, meditando, ou, não aqui e sim noutro lugar, prestes a
conciliar o sono e sentir uma voz roufenha zurrando, acompanhada por um ou mais violões
desafinados.
[...] Como evitar, pois, a presença desses importunos? O Sr. Secretário da Justiça e
Segurança Pública bem o sabe. Esperamos que o saberá. Isto em nome, não da segurança
pública, mas da pública tranquilidade
8
.
A ideia de que o violão era um mbolo de transgressão estava enraizada na narrativa da imprensa e nos
registros policiais. Em muitas ocasiões, músicos foram presos ou tiveram seus instrumentos confiscados sob
a justificativa de que estavam promovendo inquietação pública:
O sr. delegado do 15º distrito recebeu muitas reclamações de pessoas de família residentes
no Bexiga, contra uns sujeitos que, de madrugada, cantam modinhas em frente às janelas
das moradoras, perturbando o sossego público com seus violões desafinados e vozes de
bêbados
9
.
Às duas da manhã, na rua da Liberdade, um grupo de indivíduos foi detido por cantar e
tocar violão em tom considerado ofensivo à ordem. O delegado os enquadrou por
perturbação da ordem e vadiagem
10
.
7
O Commercio de São Paulo, São Paulo, ano XIV, n. 4727, 21 jun. 1906
8
Correio Paulistano, São Paulo, ano XLII, n. 14916, 18 fev. 1905.
9
Correio Paulistano, São Paulo, ano LIII, n. 18707, 14 ago. 1915.
10
Correio Paulistano, São Paulo, ano XLVII, n. 16828, 10 jun. 1910.
Per Musi | Belo Horizonte | v.26 | General Section | e252614 | 2025
10
Prando, Flavia. “O violão e a ordem pública: censura e controle social (São Paulo 1890-1932)
Um grupo de seresteiros foi detido na Vila Buarque por cantarolar sambas e modinhas nas
esquinas. A autoridade local considerou o ato 'abuso musical'. O violão foi apreendido
11
.
Além disso, o violão aparece associado a uma criminalidade menor, sendo citado como um elemento
recorrente em acusações de pequenos delitos. Havia um discurso moralizante que vinculava o instrumento
a sujeitos considerados marginais, como os chamados "gatunos" e "vadios", cujas práticas eram vistas como
incompatíveis com a nova ordem urbana que se pretendia estabelecer (Fausto, 1998).
A criminalização das práticas musicais populares resultou na limitação dos espaços de atuação de músicos e
na exclusão de determinadas expressões sonoras do cenário urbano formal. Para muitos artistas, a música
tornou-se uma atividade de risco, sujeita à repressão e ao preconceito institucionalizado. A imposição de
padrões sonoros compatíveis com a modernidade urbana significou não apenas a regulamentação do espaço
público, mas também o controle das subjetividades e das identidades culturais. Embora Norbert Elias (1994)
não trate diretamente da música, sua análise do processo civilizador contribui para compreender como
práticas tidas como informais ou desviantes passaram a ser disciplinadas como parte da construção de uma
sensibilidade urbana regulada por normas de comportamento e decoro. A performance entendida como
uma representação
4. Performatividade e espaço público
As apresentações musicais em espaços públicos, especialmente aquelas em que o violão assumia papel
central, foram instrumentos de sociabilidade, negociação cultural e tensionamento das normas sociais
vigentes na cidade de São Paulo entre o final do séc. XIX e o início do XX. Serenatas, modinhas, rodas de
choro, cafés e botequins ativavam experiências coletivas em torno do som, desafiando as tentativas de
silenciamento e disciplinamento dos corpos e comportamentos populares.
4.1 Música como prática performativa
A noção de performatividade, tal como abordada por autores como Judith Butler e Erving Goffman, pode
ser adaptada ao campo das práticas musicais urbanas para pensar o modo como o fazer musical em espaço
público implica enunciações estéticas, mas também políticas. A performance pode ser entendida como uma
representação do eu diante de uma audiência, em que o comportamento social é regido por convenções e
expectativas, funcionando como uma encenação estratégica da identidade (Goffman 2011, 13). Assim, a
performance do violão nas ruas, calçadas ou janelas de cortiços não era apenas entretenimento: era,
frequentemente, afirmação de presença, ocupação simbólica do espaço e expressão de pertencimento de
classe, etnia ou território.
Tal perspectiva dialoga com a ideia de performatividade proposta por Butler (2003), segundo a qual atos
repetidos produzem e reforçam identidades ao longo do tempo inclusive aquelas que desafiam normas
sociais dominantes. Howard Becker (2008), ao analisar os “mundos da arte”, propõe que toda prática
artística está ancorada em redes de cooperação, convenções e rotinas compartilhadas. No caso das rodas
de violão, esse "mundo" se constituía em torno de regras tácitas, repertórios comuns, modos de escuta e
respeito ao solo alheio. Essas cenas performáticas de rua, mesmo quando informais, organizavam-se em
11
Correio Paulistano, São Paulo, ano LIX, n. 20709, 25 fev. 1921.
Per Musi | Belo Horizonte | v.26 | General Section | e252614 | 2025
11
Prando, Flavia. “O violão e a ordem pública: censura e controle social (São Paulo 1890-1932)
torno de códigos reconhecidos entre seus participantes e espectadores, funcionando como territórios
culturais vivos.
4.1 Gênero, moralidade e representações do violão
Se a performatividade musical em espaços públicos configurava uma transgressão aos modelos burgueses
de conduta, quando associada a corpos femininos, essa ruptura ganhava contornos ainda mais marcados.
No imaginário do início do séc. XX, o violão era um instrumento masculino, noturno, que reforçava a ideia
de símbolo da desordem, quando empunhado por mulheres, passava a gerar uma série de tensões que
tocavam diretamente nas fronteiras entre moralidade, decoro e modernidade.
O caso de Josefina Robledo, violonista espanhola que atuou em São Paulo entre 1917 e 1923, é emblemático
e representa um marco para o violão brasileiro. Discípula do espanhol Francisco Tárrega, Robledo foi
recebida pela imprensa como virtuose e elogiada por sua técnica e sobriedade interpretativa. Ainda assim,
os elogios vinham acompanhados de ressalvas que reforçavam o estranhamento: “o instrumento da Sra.
Robledo não se parece em coisa nenhuma com o violão popular, das serenatas e troças, dos bailaricos
assustados”. Essa tentativa de separá-la do imaginário popular associado ao instrumento revela a articulação
que visava legitimar sua atuação sem comprometer os ideais femininos da época. A circulação de sua
imagem, a criação de um violão com seu nome e sua atuação como professora contribuíram para a inserção
do instrumento nos salões de São Paulo e Rio de Janeiro (Taborda, 2012).
No entanto, se algumas mulheres conseguiram visibilidade, outras foram esquecidas. O caso de Aurora
Lemos, violonista, compositora e autora do que parece ter sido o primeiro método prático para violão escrito
por uma mulher no Brasil, ilustra esse apagamento. Embora tenha recebido mais de mil votos no Grande
Concurso de Música Brasileira promovido por A Gazeta (1931), Aurora desapareceu da historiografia musical.
Seu método (1928, Casa Chiarato) não foi localizado, suas composições registradas na fonografia foram
ignoradas e sua imagem não consta das narrativas oficiais (Prando 2021, 263-264).
Esses dois exemplos evidenciam como a legitimação do violão entre as mulheres se deu sob forte vigilância
simbólica. De um lado, associava-se o instrumento a moças de ‘bom gosto’, em campanhas publicitárias e
periódicos como O Violão e A Voz do Violão. De outro, persistia a lógica de silenciamento das que ousaram
circular publicamente com o instrumento, compor ou publicar métodos. Como observa Margareth Rago, o
controle sobre os corpos femininos estava vinculado a um projeto de civilidade que limitava os espaços da
mulher na cidade (1985). A presença das mulheres no violão, portanto, tensionava os limites do aceitável e
operava tanto como estratégia de legitimação do instrumento quanto como ameaça à moral vigente.
4.2 Territorialidade sonora e resistência
A produção sonora em espaço urbano tem sido historicamente atravessada por disputas de classe e poder.
Como aponta Sevcenko (1992), o processo de modernização das cidades brasileiras incluiu também a
tentativa de silenciar os sons tidos como “atrasados”, "barulhentos" ou "desordeiros". O violão, nesse
cenário, funcionava como elemento de resistência simbólica e estética, ao ocupar a paisagem sonora da
cidade com seus timbres e expressões.
A performatividade do violão em praças e esquinas podia ser lida como afronta ao ideal de cidade ‘limpae
silenciosa, promovido pelas elites letradas. Cada acorde soado fora do espaço doméstico ou do palco oficial
Per Musi | Belo Horizonte | v.26 | General Section | e252614 | 2025
12
Prando, Flavia. “O violão e a ordem pública: censura e controle social (São Paulo 1890-1932)
era uma pequena transgressão à lógica da contenção e da disciplina sonora. Nesse sentido, o som do violão
em espaço público desafiava normas urbanísticas e morais. A própria estrutura física do violão portátil,
maleável, acessível facilitava essa mobilidade performática. Diferentemente do piano, fixado ao lar
burguês, ou de instrumentos de sopro, mais associados às bandas civis ou militares, o violão carregava sua
tradição de rua, sua informalidade, sua capacidade de se fazer presente nos interstícios da cidade: no quintal,
na calçada, na sala, na praça.
O embate em torno da presença do violão nas ruas paulistanas pode ser lido também como parte da disputa
por uma paisagem sonora — não apenas física, mas sensorial e emblemática. Murray Schafer (1991) propôs
o conceito de soundscape, paisagem sonora, para descrever a forma como os sons organizam, ocupam e
disputam o espaço. Ao restringirem os sons populares, as autoridades não pretendiam apenas ordenar a
cidade: pretendiam normatizar o ouvido urbano. Como observa Martijn Oosterbaan (2009), o som opera
como prática política, instaurando formas de supremacia e resistência no cotidiano. Cada acorde do violão
ecoando na calçada punha em xeque o ideal de silêncio disciplinado e revelava a persistência de outras
formas de ocupação e pertencimento. Não se tratava apenas de música mas da afirmação, ao som de
cordas dedilhadas, de uma cidade viva, múltipla e, sobretudo, que escapava ao projeto normativo de
regramento.
Ainda que este artigo se concentre no violão como signo de conflito simbólico nos espaços públicos, é
importante reconhecer que as práticas musicais do período, como o choro, envolviam formações diversas e
arranjos instrumentais flexíveis, incluindo por vezes instrumentos de sopro. A presença desses instrumentos,
também associados às bandas civis e militares e a circuitos oficiais, revela uma zona de ambiguidade na
circulação sonora da cidade. Essa sobreposição de usos e repertórios convida a investigações futuras mais
detidas sobre as configurações instrumentais e suas ressonâncias sociais.
4.3 Encontros e trânsitos: o violão como mediador
É importante destacar que o violão não apenas desafiava normas, mas também mediava encontros entre
mundos sociais distintos. Aparecia tanto nos saraus da elite (em versões mais domesticadas) quanto nas
festas populares, criando pontes entre esferas que se desejavam apartadas. As apresentações públicas,
frequentemente registradas em jornais da época, revelam a tentativa de algumas administrações municipais
de regulamentar e conter a performatividade popular sem suprimi-la por completo. O controle sobre os
repertórios executados, os horários e os conjuntos aprovados apontam para a tensão entre o desejo de
normatização e a permanência de uma prática cultural com forte apelo social.
Por outro lado, o simples fato de reunir pessoas em torno do som de um violão criava sociabilidades
horizontais, redes de vizinhança e memória coletiva. Muitos dos que não tinham acesso à cultura letrada
apropriavam-se da música como espaço de construção subjetiva e crítica do mundo ao seu redor. A
performatividade musical, nesse caso, não apenas desafiava as normas: ela forjava identidades e
comunidades.
5. Mudanças na percepção do violão
A reabilitação simbólica do violão não ocorreu de forma abrupta, mas por meio de processos sucessivos que
se iniciaram nas décadas de 1920 e 1930, quando o instrumento passou a circular com maior frequência nos
salões, nas gravações fonográficas, nas rádios e nos repertórios solistas. Esse movimento ganhou força nas
Per Musi | Belo Horizonte | v.26 | General Section | e252614 | 2025
13
Prando, Flavia. “O violão e a ordem pública: censura e controle social (São Paulo 1890-1932)
décadas seguintes, culminando em marcos como a entrada oficial do violão no Conservatório Dramático e
Musical, em 1948, e a consagração do instrumento com a ascensão da Bossa Nova no final da década de
1950. Ao longo desse percurso, o violão deixou de ser um som associado à arruaça para tornar-se símbolo
de identidade e modernidade.
Assim, no início do séc. XX, o violão começou a passar por um processo de reabilitação simbólica, deixando
progressivamente sua imagem marginalizada para ocupar espaços de maior prestígio. A ascensão de
virtuoses como Américo Jacomino, o Canhoto, e a produção fonográfica da Casa Edison alteraram
gradativamente a percepção do instrumento. A imprensa começou a destacar sua musicalidade e
refinamento, afastando-o da imagem de instrumento marginal (Moraes, 2000). Paradoxalmente, enquanto
o discurso civilizatório reforçava a necessidade de disciplinar as práticas culturais populares, o violão era
cultivado em todas as classes sociais. Jovens da elite tocavam-no nos saraus domésticos, e artistas
estrangeiros com formação europeia e prestígio reconhecido nos círculos musicais contribuíram
significativamente para a mudança de seu status.
A ascensão de Américo Jacomino, o Canhoto, foi um marco na história do violão em São Paulo. Considerado
um dos primeiros violonistas a consolidar um repertório solo no Brasil, Jacomino gravou suas composições
pela Casa Edison e outras gravadoras, contribuindo para a difusão do instrumento (Antunes, 2002). Suas
valsas e choros demonstravam refinamento técnico, afastando-se da imagem do violão como instrumento
marginalizado. A gravação fonográfica foi um elemento-chave nesse processo. O catálogo da Casa Edison,
pioneira da indústria fonográfica no Brasil, registrou diversas peças para violão, o que permitiu que o
instrumento ganhasse uma projeção antes inimaginável (Moraes, 1997). Isso reforçou a associação do violão
com a identidade nacional em um momento em que as elites culturais buscavam definir símbolos da
brasilidade.
A Casa Edison desempenhou um papel fundamental na consolidação do violão como símbolo musical do
país. A gravação de peças violonísticas permitiu que o instrumento transitasse entre os mais diversos
públicos, da classe trabalhadora aos salões aristocráticos. O repertório registrado incluía não apenas
composições de músicos nacionais, mas também arranjos de peças europeias, o que ampliava sua aceitação.
Ao mesmo tempo, a atuação de violonistas estrangeiros em São Paulo contribuiu para esta transformação.
A presença de músicos como Agustín Barrios e Josefina Robledo ajudava a legitimar o violão nos círculos da
elite musical. Barrios, conhecido por sua técnica refinada e vasto repertório, realizou apresentações no
Theatro Municipal. Josefina Robledo, por sua vez, trouxe a tradição espanhola de Francisco Tárrega,
apresentando-se em saraus e teatros, conquistando a imprensa e o público paulistano (Rosenfeld, 2008).
Devemos levar em conta também que a valorização do violão pelo modernismo trouxe novas camadas de
significado ao instrumento, e revelou ambiguidades. O próprio Mário de Andrade, uma das figuras centrais
do modernismo brasileiro, via o violão como símbolo nacional, mas ao mesmo tempo mantinha uma relação
tensa com sua prática urbana (Naves, 1995). Para ele, o violão deveria ser valorizado como parte do folclore
brasileiro, mas sem ser contaminado pelos processos urbanos e comerciais da música popular (Prando,
2018). Isso gerava um paradoxo: enquanto o modernismo promovia a valorização das expressões populares,
muitos de seus intelectuais resistiam à aceitação do violão dentro do ambiente acadêmico e erudito (Reily,
2001). Outro elemento importante dessa tensão foi a incorporação do violão ao discurso da originalidade
nacional. O instrumento passou a ser visto como mediador entre o popular e o erudito, entre a tradição oral
Per Musi | Belo Horizonte | v.26 | General Section | e252614 | 2025
14
Prando, Flavia. “O violão e a ordem pública: censura e controle social (São Paulo 1890-1932)
e a escrita, mas nem sempre foi plenamente aceito nos círculos formais da música institucionalizada (Naves,
1995).
Portanto, o processo de reabilitação do violão no Brasil não foi linear nem uniforme. Enquanto setores da
sociedade ainda o associavam à transgressão moral, sua difusão entre músicos renomados, artistas
estrangeiros e jovens da elite foi sempre uma constante. A gravação fonográfica, a atuação de virtuoses e o
envolvimento da imprensa foram elementos determinantes para a mudança pública de status do
instrumento. O modernismo, ao mesmo tempo em que contribuiu para a valorização do violão como símbolo
nacional, também revelou contradições em relação à sua aceitação. A ambiguidade entre o culto à cultura
popular e a resistência à urbanização de suas práticas musicais fez com que o instrumento transitasse por
um espaço de tensão entre o erudito e o popular. O caso do violão ilustra um fenômeno mais amplo de
apropriação e ressignificação de elementos culturais dentro do discurso civilizatório. Se, por um lado, o
instrumento foi inicialmente marginalizado, por outro, tornou-se, ao longo das décadas, um símbolo da
identidade musical brasileira.
6. Considerações Finais
A trajetória do violão entre 1890 e 1932 reflete os embates entre modernização urbana, disciplinamento
social e cultura musical em São Paulo. Este estudo demonstrou como o instrumento, amplamente presente
nas práticas musicais populares, foi também alvo de representações sociais e ações de contenção que
mobilizavam discursos sobre ordem, moralidade e civilidade. Por meio da imprensa, da vigilância policial e
da moral burguesa, construíram-se sentidos que buscaram restringir sua presença e legitimar a exclusão dos
sons populares do espaço urbano em transformação.
Ao examinar as representações jornalísticas, foi possível identificar a atuação da imprensa como um agente
normativo, ao associar o violão ao ‘mau gosto’, à perturbação e à marginalidade. Esse discurso de controle,
no entanto, encontrava resistência nas práticas cotidianas de músicos e ouvintes que reocupavam o espaço
público. A rua, a calçada, o botequim e o quintal tornaram-se palcos de disputas simbólicas e espaços de
produção de subjetividade, pertencimento e memória coletiva.
A abordagem aqui proposta entende o fazer musical não apenas como expressão artística, mas como ação
performativa, capaz de ocupar o espaço e atuar na construção simbólica da vida social. Cada execução
pública do violão implicava uma afirmação estética e identitária que desafiava os modos hegemônicos de
regulação urbana. Tocar, ouvir e circular com o violão não era apenas fazer música: era afirmar presença e
reconfigurar as fronteiras sociais do espaço urbano. O som, nesse caso, não era ruído: era política.
Essa perspectiva convida à reflexão sobre o papel dos instrumentos como operadores simbólicos das tensões
entre controle e expressão. Ao longo da história da cidade, o violão serviu tanto à repressão quanto à
resistência, conforme a escuta, o repertório, o espaço e os agentes envolvidos. Em muitos momentos, sua
presença ativou sociabilidades não autorizadas, afetos públicos e modos de vida que escapavam à
racionalidade disciplinadora.
Escutar o violão do passado é, também, escutar os conflitos da cidade: seus silêncios impostos, seus sons
insurgentes. Nas esquinas, nos jornais, nos quintais abafados pela moralidade vigente, o instrumento e seus
Per Musi | Belo Horizonte | v.26 | General Section | e252614 | 2025
15
Prando, Flavia. “O violão e a ordem pública: censura e controle social (São Paulo 1890-1932)
intérpretes persistiram — e seus rastros ajudam a recompor a paisagem sonora urbana. Sua presença, longe
de ser apenas musical, revela disputas por espaço, visibilidade e pertencimento.
7. Referências
Antunes, Gilson Uehara Gimenes. Américo Jacomino Canhoto e o desenvolvimento da arte solística do violão
em São Paulo. 2002. Dissertação (Mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.
Aprobato Filho, Nelson. Sons da metrópole: entre ritmos, ruídos, harmonias e dissonâncias - as novas
camadas sonoras da cidade de São Paulo (final do séc. XIX - início do XX). 2001. Dissertação (Mestrado).
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001. Acesso em: 19 abr. 2025.
Becker, Howard S. Art worlds: updated and expanded. California: University of California Press, 2008.
Butler, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
Cruz, Heloisa F. Mercado e Polícia em São Paulo (1890-1915). Revista Brasileira de História, v. 7, n. 14, São
Paulo, 1987.
Dias, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no séc. XIX. São Paulo: Brasiliense, 1995.
Elias, Norbert. O processo civilizador, volume 1: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed,
1994.
Fausto, Bóris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). 2. ed. São Paulo: Brasiliense,
1998.
Goffman, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Tradução de Maria C. C. Barros. Petrópolis: Vozes,
2011.
Gonçalves, José Reginaldo Santos. A fabricação do corpo: uma antropologia da cultura e da moralidade. Rio
de Janeiro: Editora UFRJ, 2001.
Moraes, José Geraldo Vinci de. Sonoridades paulistanas: final do séc. XIX ao início do séc. XX. Rio de Janeiro:
Funarte, 1997.
____________________________. Metrópole em sinfonia: história, cultura e música popular na São Paulo
dos anos 30. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.
Naves, Santuza Cambraia. O Violão Azul: Música Popular e Modernismo. Rio de Janeiro: Editora Fundação
Getúlio Vargas, 1995.
Oosterbaan, Martijn. Sonic Supremacy: Sound, Space and Charisma in a Favela in Rio de Janeiro. Critique of
Anthropology, v. 29, n. 1, 2009, p. 81104.
Per Musi | Belo Horizonte | v.26 | General Section | e252614 | 2025
16
Prando, Flavia. “O violão e a ordem pública: censura e controle social (São Paulo 1890-1932)
Prando, Flavia. “Louvemo-Lo com os violões de cordas de tripa”: Mário de Andrade e a crítica sobre o violão
em São Paulo (1929). Opus, Belo Horizonte, v. 24, n. 1, p. 187–198, jan./abr. 2018. DOI:
10.20504/opus2018c2447.
____________. O mundo do violão em São Paulo (1890–1932). Tese (Doutorado em Música). Universidade
de São Paulo, São Paulo, 2021.
Rago, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar Brasil 18901930. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1985.
Rosenfeld, Marcelo (org.) e WERNECK, Humberto (texto). Violões Di Giorgio: os primeiros cem anos. São
Paulo: Di Giorgio, 2008.
Reily, Suzel Ana. Hybridity and Segregation in the guitar cultures of Brazil. Em: Guitar cultures. Oxford: Oxford
International Publishers Ltd, 2001, p. 157-178.
Schafer, R. Murray. The Soundscape: Our Sonic Environment and the Tuning of the World. Rochester: Destiny
Books, 1991.
Sevcenko, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São
Paulo: Companhia das Letras, 1992.
Taborda, Marcia. As senhoritas e o violão: os anos 20 na “Capital Irradiante”. In: Estudos de nero, Corpo
e Música: abordagens metodológicas. Anais do XXII Congresso da ANPPOM. João Pessoa, 2012. p. 581–
588.
Velho, Gilberto. Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.
8.
Leitura Recomendada
Amaral, Antônio Barreto. História dos velhos teatros de São Paulo: da Casa da Ópera à inauguração do Teatro
Municipal. São Paulo: Imprensa Oficial, 2006.
Americano, Jorge. São Paulo naquele tempo (1895-1915). São Paulo: Carrenho, 2004.
Bartoloni, Giacomo. O violão na cidade de São Paulo no período de 1900 a 1950. 1995. Dissertação (Mestrado
em Música). Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes, São Paulo.
________________. Violão: a imagem que fez escola. São Paulo 1900-1960. 2000. Tese (Doutorado em
História). Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências, História e Letras de Assis, Assis.
Bessa, Virginia de Almeida. A cena musical paulistana: teatro musicado e canção popular na cidade de São
Paulo (1914-1934). 2012. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo.
Binder, Fernando Pereira. Profissionais, amadores e virtuoses: piano, pianismo e Guiomar Novaes. 2018. Tese
(Doutorado em Musicologia) – Universidade de São Paulo, São Paulo.
Bruno, Ernani Silva. História e tradições da cidade de São Paulo. São Paulo: José Olympio, 1954.
Per Musi | Belo Horizonte | v.26 | General Section | e252614 | 2025
17
Prando, Flavia. “O violão e a ordem pública: censura e controle social (São Paulo 1890-1932)
Castagna, Paulo; Antunes, Gilson. O violão brasileiro já é uma arte. Cultura Vozes, São Paulo, v. 88, p. 37–51,
1916.
Egg, André. Contra a pianolatria: os concertos de piano na crítica de Mário de Andrade no Diário Nacional
em 1927. XXIX Congresso da Anppom, Pelotas, 2019.
Moraes, Julio Lucchesi. São Paulo: capital artística: a cafeicultura e as artes na belle époque (1906-1922).
Beco do Azougue, 2014.
Prata, Paulo. João Pernambuco, o Violão Brasileiro: Biografia e retrospectiva artística. Rio de Janeiro: Letras
e Versos, 2019.
Taborda, Marcia. Violão e identidade nacional. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 2011.