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eISSN 2317-6377
A linha de baixo nos ritmos do sul do Brasil: proposi es
pr ticas, te ricas e suas aplica es no contrabaixo
ac stico
The ba li e i he h hm f S he B a il: ac ical a d he e ical
al a d i a lica i he d bleba
Ma he Me i a Pa ali1
matheuspasquali89@gmail.com
Leona do Pie ma i i1
1U i e idade d E ad de Sa a Ca a i a, CEART, Fl ia li , Sa a Ca a i a, B a i
ARTIGO CIENT FICO
Editor de Se o: Fe a d Chaib
Editor de Layout: Fe a d Chaib
Licen a: "CC b 4.0"
Data de submissão: 10 set 2024
Data final de aprovação: 27 out 2024
Data de publicação: 02 jan 2025
DOI: https:/ / doi.org/ 10.35699/ 2317- 6377.2025.54497
RESUMO: E e a ig e ma a li e da li ha de bai g e da mil ga e em i m imila e ,
ca ac e ic da egi l d B a il, a lica d - a c abai . C ide a- e a e a a ec ic
a a a b e de ma idade a iada, ma amb m a ec c cei al de e g e , e
dial gam c m c cei de cla e e mica adi i a. F i fei a ma a li e b e a cla e ada e e g e ,
e e a ame e a me ma e c ada em e il , ge i d ma el igem af ica a c m m.
E e m abalh i f mad ela ica, de m d a e a ici c m m ic c idad em
e f ma ce c m g Q a e C a de P , g e eciali ad e e i li , ediad em Lage -
SC. F i eali ada ma e e i a c m m ic J Gab iel R a, e amb m c m a ilh a e ce e e
ica . Ne e a ig e i cl da a c i e e a li e de ech de b a de e e e i a a c b a
a c cl e le a ada .
PALAVRAS-CHAVE: Ri m li ; R mica adi i a; M ica; C abai .
ABSTRACT: Thi a icle e a a al i f ba li e i he mil ga ge e a d imila h hm , cha ac e i ic
f he he egi f B a il, a l i g hem he c aba . N l he ac ical a ec f b ai i g a
a ia e d i c ide ed, b al he c ce al a ec behi d he e ge e , hich dial g e i h he
c ce f cla e a d addi i e h hm. A h hmic a al i a made f he claff f h e ge e , hich a e e ac l
he ame a h e f d i he le , gge i g a ible c mm Af ica igi . Thi i a k i f med b
ac ice, he e e f he a h a ici a ed a a g e m icia i e f ma ce i h he g Q a e
C a de P , a g eciali ed i he e e i e, ba ed i Lage -SC. A i e ie a ca ied i h
m icia J Gab iel R a, h al ha ed hi e ce i . Thi a icle i cl de a c i i a d a al e f
e ce f m k f m hi e e i e c b a e he c cl i ai ed.
KEYWORDS: S he h hm ; Addi i e h hmic; M ic; D bleba .
Per Musi | Belo Horizonte | v.26 | Gene al To ic |e252602 | 2025
Análise sobre Phantasiestück III e
the storm of the stars will turn to quiet, de Willy Corrêa de Oliveira
Analysis of Phantasiestück III and
the storm of the stars will turn to quiet, by Willy Corrêa de Oliveira
Lucas Cassano1
lucasjcassano@edu.unirio.br
Carole Gubernikoff1
1 Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Programa de Pós-graduação em Música da UNIRIO, Rio de Janeiro (RJ), Brasil
ARTIGO CIENTÍFICO
Editor de Seção: Fernando Chaib
Editor de Layout: Fernando Chaib
Licança: "CC by 4.0"
Data de submissão: 31 mar 2025
Aprovação final de aprovação: 05 mai 2025
Data de publicação: 16 ago 2025
DOI: https://doi.org/10.35699/2317-6377.2025.58416
RESUMO: Este artigo tem como objetivo analisar as obras Phantasiestück III (1973) e the storm of the stars will turn to quiet
(década de 1990), de Willy Corrêa de Oliveira, mediante análise musical e pesquisa documental. O estudo combina exame das
partituras com pesquisa bibliográfica sobre intertextualidade (Kristeva, 1966; Klein, 2005; De Bonis, 2015) e polarização harmônica
(Costère, 1973), contextualizando-as com uma breve biografia do compositor e sua relação com o pensamento marxista. Em
Phantasiestück III, a análise revela o uso de séries derivadas de Schumann e polarizações em ASCH (Lá-Mib--Si), culminando em
citações diretas na Coda, enquanto the storm of the stars will turn to quiet demonstra diálogos intertextuais com Bach, com a
poetisa Marina Tsvetaeva (1892-1941) e o filme Leaving Las Vegas (1995). Os resultados evidenciam como a reescrita musical em
Oliveira articula vanguarda e tradição, refletindo sua trajetória estética e política.
PALAVRAS-CHAVE: Willy Corrêa de Oliveira; Intertextualidade; Polaridade.
ABSTRACT: This article analyzes Willy Corrêa de Oliveiras works Phantasiestück III (1973) and the storm of the stars will turn to
quiet (1990s) through musical analysis and documentary research. The study combines an examination of the scores with
bibliographical research on intertextuality (Kristeva, 1966; Klein, 2005; De Bonis, 2015) and harmonic polarization (Costère, 1973),
contextualizing them with a brief biography of the composer and his relationship with Marxist thought. In Phantasiestück III, the
analysis reveals the use of Schumann-derived series and polarizations in ASCH (A-Eb-C-B), culminating in direct quotations in the
Coda, while the storm of the stars will turn to quiet demonstrates intertextual dialogues with Bach, with the poet Marina Tsvetaeva
(1892-1941), and the film Leaving Las Vegas (1995). The results highlight how Oliveira’s musical rewriting articulates avant-garde
and tradition, reflecting his aesthetic and political trajectory.
KEYWORDS: Willy Corrêa de Oliveira; Intertextuality; Polarity.
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1. A escuta e a reescrita
Aquilo a que podemos chamar de ouvido musical é produto dos mais complexos: Tanto pode ser
espontâneo, através de experiências no meio sócio musical, quanto resultante de experiências e estudos
musicais no decorrer de sua vida. A escuta musical é produto experiências de ordem social, psicológica,
filosófica, associadas a uma prática musical que origem a uma escuta musical singular. Uma obra de
música nunca será uma obra de música, embora possa parecer existir a possibilidade para alguns de que
a música consiga existir sem quaisquer considerações quanto a aspectos não musicais. Uma obra musical,
uma composição, representa uma época é retrato de uma época, e, primordialmente, do ouvido musical de
um compositor e de um conjunto de ouvintes. O exame desse ouvido requer consideração quanto às obras
do autor, mas também quanto à sua visão de mundo e sua história: aspectos sociais, políticos, filosóficos
permeiam-no, moldam-no, e, frente à sociedade, cada compositor propõe uma visão particular de música.
O conceito de reescrita passa a adquirir, então, grande importância na análise de obras musicais. Não
meramente a reescrita no que diz respeito ao reaproveitamento de materiais musicais numa obra, mas, mais
amplamente, a ideia de que todo o arcabouço cultural, social e psicológico de um compositor transbordará
na sua produção artística, isto é, será reescrito; a sua escuta musical é um filtro de sua história enquanto ser
vivo, ativo e pensante, e não meramente um retrato de sua vivência musical.
No caso do presente artigo, pretende-se abordar duas das obras de um marcante compositor, Willy Correa
de Oliveira, que fez parte dos movimentos de vanguarda brasileiro: Phantasiestück III, para violino, viola,
piano, trompa e trombone, e the storm of the stars in the sky will turn to quiet, para piano. Nessas obras, a
ideia de reescrita e metalinguagem são necessárias para que se possa criar um contexto de análise, pois
ambas se constituem como um diálogo intenso de afetos e influências com obras de outros compositores e
de artistas de outras formas de expressão. Esta pluralidade é uma marca característica deste compositor.
Para Phantasiestück III, a análise musical leva em consideração as técnicas de polarização e serialização que
estão presentes em sua fase de produção vanguardista na década de 1970. Apesar de ambas as peças terem
em comum a presença incessante do diálogo com outras obras de outros artistas (a partir da citação direta
e indireta), elas representam fases distintas da produção do compositor.
2. Quem é Willy Correa de Oliveira: breve biografia
Willy Corrêa de Oliveira é um compositor brasileiro nascido em Recife em 1938. Mudou-se na década de
1950 para o Rio de Janeiro, mas em 1958, novamente para Santos, cidade na qual travou contato com o
compositor Gilberto Mendes e os poetas concretistas Décio Pignatari, Haroldo Campos e Augusto de
Campos. Entre 1955 e 1959, suas obras aproximam-se do nacionalismo, pois ressoam as melodias recifenses
que ouviu quando criança. A partir de 1959, contudo, aproxima-se do vanguardismo europeu influenciado
por Karlheinz Stockhausen, Pierre Boulez, Luigi Nono e Anton Webern. Em 1961, Oliveira, em conjunto com
Gilberto Mendes, Damiano Cozzella e Rogério Duprat, fundam o grupo Música Nova. Segundo Denise
Hortência Lopes Garcia (2022, 18), esse grupo valeu-se do apoio e mesmo orientação do maestro Olivier
Toni, que dirigia então a Orquestra de Câmara de São Paulo. 1961 foi o ano em que também fundou com
Gilberto Mendes e Klaus Dieter Wolff o coral Madrigal Ars Viva, grupo pioneiro no Brasil na estreia de peças
corais de vanguarda de compositores de música de concerto. Fundou no ano seguinte, junto a seus pares, o
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Festival Música Nova em Santos. Em 1963, participou dos cursos em Darmstadt
1
, onde teve aulas com
Karlheinz Stockhausen e Pierre Boulez. Estudou ainda na Karlsruhe Hochschule für Musik, e frequentou o
Office de Radiodiffusion-Télévision Française (Organização da Radiodifusão-Televisão Francesa, ORTF) de
Paris e o laboratório de estudos eletroacústicos da Philips, em Eindhoven, Holanda. Ainda nesse ano, assinou
com seus colegas que também estiveram em Darmstadt como Gilberto Mendes, Damiano Cozzella e
Rogério Duprat - o Manifesto Música Nova, na revista Invenção, uma das marcas mais fortes da vanguarda
brasileira. Segundo Garcia:
o manifesto pontua a chegada dos movimentos musicais de vanguarda a São Paulo, no
campo da composição musical, […] atestando a importância do trabalho desses
compositores em um movimento maior de abertura da música brasileira para movimentos
musicais internacionais do pós-guerra, depois de longo predomínio da linguagem
nacionalista. (Garcia 2022, 10).
Em 1970, passa a integrar o corpo docente do Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes
da USP. Após intensa fase vanguardista, próximo à década de 1980 decide colocar sua composição
exclusivamente a serviço da militância socialista (em 1988, por exemplo, compõe o hino do MST).
Em 1979, é afetado por profunda crise pessoal ao perceber a incompatibilidade entre suas
convicções políticas, de inspiração comunista, e sua atividade como compositor de
vanguarda em sua opinião, mera reprodução da ideologia pequeno-burguesa. Com
influência de Hans Eisler e Bertolt Brecht, volta a compor música tonal, de modo a
aproximar-se das massas. Trabalha para as Comunidades Eclesiais de Base, escrevendo
canções para crianças, um método para violão e música de circunstância, como hinos (da
reforma agrária, dos grevistas, dos sem terra) e arranjos para bailes. (Willy…, 2024).
Somente após a queda do muro de Berlim, retorna à composição de música de concerto, próximo à década
de 1990, mas dessa vez sem a intenção de exibi-las em performances. Em 2003, aposenta-se da docência,
mas segue realizando atividades com seus alunos e compondo obras que integram seu acervo pessoal.
Entre seus textos importantes, estão Beethoven: proprietário de um cérebro, de 1979, e Sobre Villa-Lobos,
de 2008,
no qual reavalia a obra do compositor nacionalista que ele menospreza como músico de
vanguarda nos anos 1950 e 1960. Também relativiza a importância do Manifesto Música
Nova "uma estupidez total", segundo suas próprias palavras. (Willy…, 2024).
Deixa como legado não somente suas obras, mas uma geração de músicos que estudaram com ele, e que
têm grande relevância da produção de conhecimento atualmente, tanto nas universidades, como fora delas.
3. Marxismo
O entendimento da filosofia marxista possibilita grande compreensão do pensamento musical de Willy
Corrêa de Oliveira, e da sua relação com a sua produção musical. Alexandre Ulbanere (2005, 27), em sua
dissertação de mestrado, afirma: “Destaque-se neste processo sua concepção [de Karl Marx] de que a
1
Sua ficha de inscrição em Darmstadt: IMD, 1962.
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História é feita por seres humanos, através da Luta de Classes.” Isso implica em considerar que sua visão de
mundo é a do materialismo histórico, e que, consequentemente, isso influencia a forma como ele aborda
materiais musicais e composicionais. Não seria à toa que haveria grande ressonância de pensamento entre
ele e o compositor e pensador belga Henri Pousseur. Para Oliveira, analisar um material musical não consiste
em meramente isolar seus elementos musicais constitutivos e entender de que maneira se organizam dentro
do discurso musical; também, é entender mais amplamente de que maneira se deu sua relação com outras
esferas da sociedade, e de que maneira a organização desse discurso musical por elas foi influenciado.
Oliveira ilustra essa abordagem ao falar da obra de Chopin. Respondendo à pergunta pode Chopin interessar-
nos ainda hoje?, primeiro realiza um apanhado histórico:
1) Alguns anos antes de Chopin nascer, houve a revolução francesa. Essa revolução trouxe
ao mundo novos valores. Anteriormente, tinha valor o parentesco. Se o homem fosse
parente da Família Real, tinha importância, poder. Os outros, estavam excluídos. Com a
Revolução, todos poderiam ter acesso ao poder, desde que tivessem dinheiro. E o
individualismo, era uma questão importante nessa época porque, justamente após a
Revolução, o homem teria possibilidade de ascender socialmente. Poderia ser “ele
mesmo”, ou seja, teria possibilidade. [...] A individualidade, 50 anos antes de Chopin
nascer, não tinha a menor importância. […]
2) Com a Revolução Burguesa, fortaleceu-se o espírito nacionalista. Antes da Revolução,
era-se súdito do Rei [...]. Somente com o capitalismo é que o nacionalismo tornou-se
importante. E a música de Chopin es impregnada de música folclórica polonesa. [...]
Quem nunca ouviu essas e outras tantas canções polonesas, não poderá tocar Chopin
corretamente (Ulbanere 2005, 06).
Mais adiante, ele responde: Chopin pode interessar-nos hoje, “mas somente entendendo o contexto social
em que estava imerso” (Ulbanere 2005, 08). Em uma época de significativos avanços harmônicos da música
tonal, isto é, de expansão do sistema de referências da música tonal da época, “Chopin soube dizer algo e
todo mundo o entendeu sem que ele banalizasse o processo” (Ulbanere 2005, 07). Soube extrapolar a
dimensão individual musical, e ter eco coletivamente, por saber dialogar criativamente com um público por
meio de um sistema de referência que estava sendo ele mesmo modificado. Na obra de Oliveira, observamos
a recorrência dessas questões. A ênfase na citação, por exemplo, possibilita um vínculo com sistemas de
referência, que, ainda que já tenham perdido sua universalidade dentro do contexto musical ocidental, criam
uma ponte entre a dimensão individual e coletiva da escuta.
Ele reconhece fases na sua produção composicional, em que as dimensões coletiva e individual podem ser
analisadas de diferentes formas. Em entrevista concedida a Humberto Pereira da Silva, Oliveira afirma:
“passei por vários momentos absolutamente contraditórios” (Silva, 2007, 02). Sua primeira fase, segundo
ele próprio, caracteriza-se como o seu período de exploração vanguardista, “produto de uma mente
pequeno-burguesa” (Silva, 2007, 02). Aqui, com todo o ideário tipicamente burguês de arte pela arte
apontando para uma dimensão individualista de sua produção musical. Uma vez que, sem um sistema de
referência claro que dialogue com um público nele versado, não se pode pretender que haja de fato um
diálogo, senão com uma parcela reduzida que domine um certo campo de saberes necessários à apreensão
de música com tal natureza de atributos (nesse caso, a música de concerto vanguardista dessa época). A
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ideia de que a arte pela arte “surge à base de seu divórcio irremediável com o meio que os rodeia”
(Plekhanov 1969, 24), parece ser especialmente verdadeira no caso de Oliveira durante essa fase. De acordo
com ele próprio: “Cada vez que eu realizava um concerto, mostrava uma peça, eu me sentia muito mal.
Ninguém me compreendia, nem mesmo os colegas tinham compreensão, imagine o ‘público em geral’” (Silva
2007, 3). Raphael de Lima Puccini, em sua dissertação de mestrado, escreve sobre esse dilema de Oliveira:
Sim, o compositor de música contemporânea erudita tem toda a liberdade de criar algo
que o satisfaça plenamente diante de sua criação. Entretanto, cria apenas para si mesmo,
já que, no âmbito da sociedade, a falta de parâmetros compartilhados com relação àquela
prática artística sequer possibilite que se faça um juízo de valor a respeito do que é
produzido; ou seja, trata-se de uma arte divorciada da sociedade. (Puccini 2019, 34).
É por esse primeiro momento que ele ficou mais conhecido, já que suas explorações de vanguarda estavam
intimamente ligadas ao Música Nova.
Sua segunda fase foi marcada pela produção de uma arte engajada, feita com o intuito de servir à causa das
classes proletárias como mencionamos na subseção anterior. “comecei a fazer música que era usada no dia-
a-dia: em passeatas, greves, etc.” (Silva 2007, 02). Nessa época, “revisou os seus cursos, dedicados à música
erudita e de vanguarda, de maneira crítica, em grande medida desmascarando a visão classista que estava
atrelada àquela produção artística” (Puccini 2019, 22), momento em que se aproxima do dramaturgo e poeta
alemão Bertold Brecht, tanto quanto do compositor alemão Hans Eisler
2
. Também se aproxima do
pensamento do filósofo e teólogo italiano Giulio Girardi, um dos grandes responsáveis pela tentativa de
conciliação entre marxismo e cristianismo no séc. XX
3
.
Entretanto, ele próprio afirma que “o problema da arte engajada não se coloca a curto prazo. [...], pois você
não tem a que se engajar.” (Silva 2007, 02) A tomada de consciência de que a arte no capitalismo não pode
existir senão como mercadoria, marca a sua terceira e atual fase, marcada por um afastamento dos
palcos. “Como artista, para mim ficou assim: eu componho porque preciso” (Silva 2007, 02). Em entrevista
realizada ao Museu da Imagem e do Som, complementa: “Eu continuo fazendo [música]. Mas sem nenhum
2
Hans Eisler e Bertold Brecht tiveram uma intensa colaboração, que foi fruto de seu desejo em conjunto de
produzir uma arte alinhada aos anseios socialistas revolucionários do início do séc. XX. Juntos,
desenvolveram o conceito de “Lehrstücke”, ou “peças didáticas”, que eram obras de teatro e música
destinadas a educar o público sobre questões políticas e sociais, rompendo com a arte burguesa tradicional
(Bianchi 2019). A ideia era criar uma música que pudesse ser compreendida e usada pelas massas,
contribuindo para a formação de uma consciência de classe. Eisler dedicou um grande número de
composições à causa socialista, como para corais de trabalhadores e canções de luta (Betz, 1982),
movimento que Willy Correa de Oliveira também realizou no Brasil em sua segunda fase composicional na
década de 1980.
3
Girardi acreditava que, embora o marxismo fosse originalmente uma filosofia materialista e secular, seus
objetivos de justiça social, igualdade e libertação dos oprimidos ressoavam profundamente com os valores
centrais do cristianismo. Para Girardi, o marxismo oferecia uma análise crítica das estruturas de poder e das
relações de classe que poderia complementar a mensagem cristã de amor ao próximo e de justiça (Girardi
1968). Por essas razões, o seu pensamento se alinha bastante ao movimento da Teologia da Libertação
acontecido na América Latina no séc. XX.
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entusiasmo com relação a um público, a uma apresentação […]. Eu não vejo o futuro disso [de apresentações
musicais]” (MIS 2011).
4. Polaridades
Willy Correia de Oliveira defendia com entusiasmo o teórico francês Edmond Costère
4
, que argumentava
que a escuta musical sem alguma forma de polarização não é possível, mesmo na música atonal. Esta não é
apenas uma hipótese isolada sua, mas uma teoria abrangente que postula a impossibilidade de evitar a
criação de centros de notas, mesmo em uma composição baseada em uma série de 12 sons. Segundo essa
perspectiva, as notas, independentemente de sua organização, tendem a se direcionar para determinados
pontos de estabilidade, movendo-se sob a influência de forças de atração e repulsão. Essa ideia guarda
semelhanças com o pensamento contrapontístico, no qual intervalos são classificados como dissonantes ou
consonantes, refletindo forças similares. A teoria defendida por Oliveira, que propunha uma abordagem
composicional que não era nem estritamente dodecafônica nem tradicionalmente tonal. Maurício de Bonis
escreve que ele se deparou
com um livro trazido por uma amiga, em 1972, que não empreendia essa análise do
repertório e uma proposta de controle das polarizações, como também desenvolvia essa
ferramenta de modo a calcular com precisão relações cadenciais e coeficientes de
estabilidade e instabilidade para intervalos e acordes de qualquer dimensão. Tratava-se de
Mort ou transfigurations de l’harmonie, de Edmond Costère (1962). (De Bonis 2015, 239).
Segundo Costère, música não é um sistema estático de relações harmônicas, mas sim um campo dinâmico
onde os elementos interagem como pólos de atração e repulsão. Nas suas palavras, “a harmonia é vista não
apenas como uma sequência de acordes, mas como uma rede de relações de atração polar que moldam a
direção musical" (Costère 1973, 105); ou ainda: "a polarização cria um sistema de atração e repulsão entre
os elementos musicais, estabelecendo hierarquias dinâmicas de tensão e resolução" (1973, 48). Segundo
Vinicius Siqueira Baldaia:
Costère desenvolve [] uma teoria da ‘estabilidade’ e da ‘instabilidade’ de agregados
harmônicos, segundo a qual agregados cujos potenciais de afinidade apontem mais para
sons intrínsecos daquele agregado do que para sons extrínsecos existentes na gama
frequencial de base (por exemplo, a gama cromática no temperamento semitonal) seriam
‘estáveis’, não evocando à percepção necessidade de ‘resolução’ em sons externos. Por
outro lado, agregados ‘instáveis’ suscitariam o ímpeto por resolução nos sons extrínsecos
mais dotados de potenciais cardinais dos sons do agregado. (Baldaia 2022, 32).
Isso é o que Costère denomina Lei de Atração Universal. Sua intenção era a de, partindo da materialidade
sonora, de algo que ele considerasse objetivo, palpável e universalizável (o som em si e a série harmônica),
elaborar uma teoria das atrações e repulsões sonoras, para além de fatores culturais e para além de estilos
e gêneros musicais. Para ele,
4
Segundo o grupo de pesquisa LAPPSO da Universidade Estadual de Maringá: “No Brasil, o interesse nas
teorias de Costère tem principal origem na figura do compositor Willy Corrêa de Oliveira e no núcleo de seus
alunos e ex-alunos.” (Calculadora…, [s.d.]).
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cada altura - classe dada teria cinco atratores chamados de notas cardinais, a saber: ela
própria, as quintas justas ascendente e descendente (o menor caminho no sentido da série
harmônica) e as duas alturas adjacentes (o menor caminho no sentido da escala), que
podem variar de acordo com o temperamento usado e que traduzem-se nos semitonos
ascendente e descendente no nosso sistema ocidental de temperamento igual com doze
notas por oitava. Utilizando este raciocínio, dada uma coleção hipotética de alturas-classe
X, a densidade de atração (de polarização) de cada altura-classe do universo cromático,
quer esta pertença ou não a esta coleção X dada, é calculada como sendo o número das
notas cardinais desta altura-classe que existir na coleção dada (ver fig. 3). Da mesma forma,
dada uma coleção hipotética de alturas-classe X, calcula-se a densidade de atração de uma
outra coleção de alturas-classe Y somando-se as densidades individuais de cada altura-
classe constituinte desta coleção Y. (Bittencourt 2007, 02).
Vale notar que, segundo Flo Menezes, Pousseur, paralelamente à Costère, chegou a conclusões similares,
razão pela qual é de se supor que Oliveira nutrisse imensa admiração por aquele tanto quanto por Costère,
como se verifica em Tabulae Scriptae (2015), de Maurício de Bonis, livro dedicado à relação entre Oliveira e
Pousseur. De fato, este escreve:
As noções de parentesco, de subordinação, polaridade, de atração, repulsão e de todas as
outras espécies de relações entre os fenômenos sonoros, cujas denominações podem
variar muito, mas que baseiam-se essencialmente nas propriedades proporcionais de
intervalos e de grupos de intervalos (Pousseur 1968, 113 apud Menezes 1987, 227).
5. Intertextos e metalinguagem
A metalinguagem é um tema sobre o qual Oliveira se debruça com avidez, e que compartilha com Pousseur:
“Para Willy e Pousseur a metalinguagem oferece uma perspectiva concreta de ação, de um trabalho
consistente na consciência histórica da linguagem e de suas raízes no passado para um posicionamento
frente a uma crise de comunicação.” (De Bonis 2015, 70). Oliveira percebe a metalinguagem como um certo
princípio unificador do conjunto das diversidades da música contemporânea em sua heterogeneidade.
Segundo De Bonis, primeiramente, pode-se distinguir entre alusão e citação; em seguida, entre colagem e o
pout-pourri, em que o “discurso consiste na montagem das referências, não havendo propriamente material
musical relevante além das referências externas” (2015, 76); e, finalmente, “a variação, a transcrição, o
arranjo, a paráfrase, as peças à la manière de, em que o compositor se apropria de uma obra ou gênero por
completo, e a referência externa rege o planejamento formal” (2015, 76).
Veremos mais adiante como o sexteto Phantasietück III (1973) se configura como um diálogo intenso com
Schumann principalmente através da citação indireta, mas também por meio da citação direta, em particular
na Coda. Em the storm of the stars will turn to quiet, por sua vez, veremos haver um diálogo com J.S. Bach
(a partir da citação variada da Giga da Partita em Sib), com a poetisa Marina Tsvetaeva (a partir de seu
poema I Know The Truth) e com o filme Leaving Las Vegas (a partir do qual se cita o tema de sua trilha sonora
It’s a Lonesome Old Town, de H. Tobias). Essa sua abordagem intertextual exemplifica a premissa de que
“qualquer texto é construído como um mosaico de citações; qualquer texto é a absorção e transformação
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de outro”
5
(Kristeva 1966, 37); e de que “a intertextualidade na música se refere ao modo como a música
evoca outras músicas através de citações diretas ou indiretas, alusões, paródias e outras formas de
referência”
6
(Klein, 2005, 10). Além disso, o apreço de Oliveira por citações diretas dialoga com um éthos da
vanguarda europeia na segunda metade de séc. XX, momento em que existe uma iniciativa experimental de
composição através da citação, como com Luciano Berio:
na reescritura a noção de abertura esno fato de que uma obra, ao se reportar a um
trabalho anterior, provoca uma abertura em si mesma e também no trabalho de origem,
na medida em que atualiza ambos em um novo contexto. Um exemplo bastante explícito
de tal situação seria o terceiro movimento da Sinfonia de Berio que, ao fazer uso do Scherzo
da Segunda Sinfonia (Ressurreição) de Mahler, coloca as duas peças numa perspectiva de
abertura: a Sinfonia de Mahler modula a Sinfonia de Berio, ao passo que a Sinfonia de Berio
modula a de Mahler. (Bonafé 2011, 29).
A coexistência de citações indiretas e diretas em Oliveira é algo que existe em diversas outras peças suas ao
longo de suas várias fases composicionais.
6. Phantasiestück III: análise panorâmica
Apesar da posterior autocrítica do compositor em relação à sua produção vanguardista, caracterizada por
ele como "produto de uma mente pequeno-burguesa", a análise de obras de seu período vanguardista (sua
primeira fase) mantém relevância acadêmica e histórica por múltiplos fatores. Em primeiro lugar, as
composições dessa fase representam um marco no desenvolvimento da música contemporânea brasileira,
sintetizando técnicas serialistas europeias com uma abordagem singular de intertextualidade e polaridade
harmônica. Ainda que Oliveira tenha reavaliado seu engajamento estético nas décadas seguintes, essas
peças permanecem como documentos fundamentais para compreender a transição entre o nacionalismo
musical e as vanguardas no Brasil. Além disso, a aparente contradição entre o experimentalismo formal
dessas obras e sua posterior rejeição pelo próprio compositor revela um tensionamento produtivo entre
arte autônoma e arte engajadaquestão central no debate estético do século XX. A análise dessas peças
não se limita, portanto, a uma mera descrição técnica, mas permite explorar como procedimentos
composicionais aparentemente herméticos (como a serialização e a polaridade) dialogam com tradições
musicais mais amplas, incluindo referências a Schumann e Bach. Longe de serem meros exercícios de
abstração, essas obras demonstram uma preocupação latente com a comunicabilidade, ainda que em um
contexto restrito. O uso de citações e polaridades revela uma tentativa de ancorar a linguagem vanguardista
em centros perceptivos reconhecíveis, antecipando questões que o próprio Oliveira desenvolveria em sua
fase posterior. Dessa forma, a análise desse repertório não preserva sua importância histórica, mas
também ilumina aspectos de sua poética que transcendem as divisões entre as fases de sua produção.
Phantasiestück III é um sexteto de Willy Corrêa de Oliveira, para violino, viola, violoncelo, piano, trompa e
trombone. Enquadra-se no momento de sua primeira fase, isto é, do seu período de exploração
vanguardista. Foi escrita em 1973, quando era docente na USP. É uma peça essencialmente sobre o
5
No original: “Any text is constructed as a mosaic of quotations; any text is the absorption and
transformation of another”.
6
No original: “Intertextuality in music refers to the way that music evokes other music through direct or
indirect quotation, allusion, parody, and other forms of reference”
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compositor alemão Robert Schumann. Oliveira era um fervoroso admirador de Schumann, uma figura com
a qual ele sentia uma profunda empatia, em parte devido à proeminência de Schumann como escritor. Ele
desempenhou um papel crucial como editor do periódico Die Neue Zeitschrift r Musik, por meio do qual
ajudou a legitimar o movimento romântico, tornando-se uma das principais vozes intelectuais dessa
corrente (Gubernikoff, 2024). A identificação de Oliveira com Schumann reflete a maneira como este último
personificava a figura do artista crítico e intelectual. Essa conexão era ainda mais forte pelo fato de Oliveira
ser um intelectual marxista, o que acentuava sua afinidade com o caráter crítico e reflexivo desse compositor
alemão. A ideia de que os compositores românticos eram personagens românticos foi uma concepção criada
por Schumann, que antes de se dedicar à composição, esteve indeciso entre seguir a carreira de escritor ou
compositor.
Schumann criou personagens, que refletiam aspectos de sua vida: Eusébius, o seu lado melancólico;
Florestan, o seu lado ativo e passional; Mestre Raro, que simbolizava o pai de Clara (sua esposa); e Chiarina,
a representação da figura da estudante jovem de piano, que simboliza uma paixão que não pode se realizar.
A obra Carnaval encapsula esse universo, e Schumann utilizava esses personagens como ferramentas
composicionais e também como heterônimos em seu jornal, assinando artigos sob essas identidades
(Gubernikoff 2024).
Oliveira mescla técnicas seriais a partir de motivos intervalares e emprega três ries que estruturam a peça:
uma para Eusebius, outra para Florestan, e ainda uma terceira para Mestre Raro. As séries Mestre Raro e
Florestan são construídas tendo-se como base as séries ASCH e ABEG, empregadas por Schumann em seu
Carnaval, op.9 e nas Variações Abeg.
Figura 1 Séries usadas em Phantasiestücke III
Referência: elaboração própria.
Estruturalmente, a peça organiza-se em 9 seções mais uma coda, nomeadas por Oliveira em seu projeto de
pesquisa (Quadro 1).
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Quadro 1 Seções de Phantasiestück III
1) Florestan I (Entusiasmo, alucinação)
2) Eusebius I (Poético)
3) Florestan II (Obsessão/mudanças de estados [de humor])
4) Eusebius II (Melancolia)
5) Florestan III (Euforia)
6) Eusebius III (Depressão)
7) Florestan IV (Caos [improvisação])
8) Eusebius IV (Poético/mudanças de estados [de humor])
9) Florestan V (Entusiasmo/oscilação entre euforia e
depressão/o piano)
10) Coda (A crise, o hospício)
Referência: Oliveira ([s.d.-c], 24).
Orientando-se de acordo com descrições de caráter da personalidade plural de Schumann, a peça oscila
entre os seus dois aspectos marcantes, Eusebius e Florestan, e termina com a Coda (A crise, o hospício)
7
. O
Mestre Raro aparece como série na estruturação do discurso, mas não como parte estrutural.
Harmonicamente, 4 polarizações (em sequência, ou desenvolvidas individualmente): Lá, Mib, Dó e Si, a
partir do acróstico ASCH.
A peça se orienta a partir de movimentos de convergência e afastamento rumo a pólos específicos baseados
nessas quatro notas. No compasso 21, por exemplo, a movimentação harmônico-melódica revolve rumo ao
pólo Dó, e, em 23, a Mib. Igualmente, de 49 a 51, polariza-se sobre Dó; em seguida, de 52 a 54, sobre Si; de
55 a 58, sobre Mib; e em 59, sobre Lá. Tal procedimento de polarização harmônica é empregado ao longo
de toda a peça. Melodicamente, as séries são empregadas também ao logo de toda a peça.
A título de exemplo, podemos considerar o trecho tocado pelo violino no compasso 4 da peça (na primeira
página). Oliveira, em suas anotações, indica que esse trecho é polar em torno de Mib. Deduz-se que na sua
auto-análise isso é entendido em razão de o trecho começar com a ênfase em Mib - já que é antecedido por
um semitom abaixo (a nota ré), o que na teoria costèriana indica uma polarização - e também terminar com
essa ênfase, o que é reforçada pelo salto abrupto realizado do Mi 5 para o Mib 3. Note-se, aliás, que a mesma
relação de semitom presente no começo da série (de para Mib), está presente no final da série (de Mi
para Mib), embora no final da série o intervalo de segunda seja composto.
7
“‘La dernière fois que je vis mon père, ce fus le jour où il sortit de la maison pour s’ôter la vie. [...] A ma vue,
il cacha son visage dans ses mains et murmura: Ah, Mon Dieu! Il disparut’ (Schumann’s daughter)
(Phantasiestück III, Guide to Interpretation). Tradução: “‘A última vez que vi meu pai foi no dia em que ele
saiu de casa para tirar a própria vida. [...] Ao me ver, ele escondeu o rosto nas mãos e murmurou: Ah, meu
Deus! Ele desapareceu’ (filha de Schumann)” (Phantasiestück III, Guia de Interpretação).
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Figura 2 Melodia realizada no compasso 4 pelo violino, na qual se observa a polarização sobre a nota Mib
Referência: Oliveira ([s.d.-b]).
Figura 3 Primeira página da partitura de Phantasiestück III
Referência: Oliveira ([s.d.-b]).
Fica claro, logo de início, a relação Lá/Mib, um trítono que levará adiante a composição e seus personagens
literários.
Em Phantasiestück III,uma unidade formal obtida, por um lado, através do rigor das séries e polarizações
empregadas pelo compositor, e que permeiam e regulam inteiramente a peça, mas, por outro, através das
atmosferas contrastantes que vêm da oposição de Florestan e Eusebius, o primeiro enérgico,
contrapontístico em geral, e o segundo, estático e depressivo. Essa oposição é intercalada e sistemática,
pois, antes da Coda, cada uma dessas duas qualidades se alterna como partes da composição uma após a
outra.
A Coda, que representaria uma síntese geral da peça, possui um caráter inteiramente diverso.
As nove seções iniciais da peça se dão mediante o controle das séries e polarizações, retirados de ASCH e
ABEG. O diálogo com Schumann nas nove seções que antecedem a Coda está no nível da citação indireta.
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Aliás, mais que citações, essas seções consistem na transformação composicional a partir do aproveitamento
de materiais referentes a Schumann. Aqui, a referência schumanniana serve como base, alicerce, mas os
materiais-base são submetidos a transformações que o tornam praticamente irreconhecível. Exceto por
poucas e esparsas citações literais, o material-base é tratado de maneira extremamente pessoal por Oliveira
com o intuito de descrever a personalidade dual de Schumann, através de procedimentos técnicos que
dialogam com o seu desejo de exploração vanguardista na época, resultando numa sonoridade muito
distante embora afetivamente próxima do que se poderia imaginar de um universo de Schumann. a
manipulação dos dois grupos anteriormente mencionados de notas advindos de Schumann (ASCH e ABEG),
mas trabalhados discursivamente por Oliveira de forma que esse material esteja no nível subjacente da
estruturação da peça: na percepção da escuta, não se cria uma associação com Schumann. É preciso que se
tenha um conhecimento prévio da peça e da relação de Oliveira com o compositor alemão para que isso seja
percebido de forma mais clara.
Na Coda, todavia, é o oposto: citações de trechos literais de peças de Schumann, que auralmente são
bastante perceptíveis. No texto da Coda, podemos perceber claramente como a peça caminha da esfera da
citação indireta para a da citação direta na parte final:
CODA
seção: Sem pausa, o violino, a viola e o violoncelo começam tocando o SCHERZO (molto
vivace) do quarteto para piano de Schumann op. 47.
O trompista (simultaneamente às cordas) toca o ADAGIO e o ALLEGRO op. 70 de Robert
Schumann.
O pianista pode escolher o op. 47 ou o op. 70 para começar a tocar, formando, portanto, o
quarteto ou o duo com os outros instrumentistas.
O trombonista deve ‘atacar’ a peça que o pianista executa. O trombonista deve
IMPROVISAR tendo como objetivo a DESTRUIÇÃO do perfil da peça - não através de um
nível de intensidade mais elevado - mas afirmando:
a) uma cadeia harmônica diferente capaz de de aniquilar a harmonia do fragmento ouvido
b) um ritmo diferente, que, tocado em simultâneo com o fragmento a destruir, atinge o
limite do reconhecimento
c) uma curva melódica diferente do fragmento em questão que interfira nele, mascarando-
o e e que não soe como um contraponto a ele
d) ou através do conjunto de todos esses fatores juntos.
Assim que o pianista perceba que o fragmento que ele está tocando está completamente
perturbado, ele deve abandoná-lo. Então ele se voltará à outra peça: se ele houver tocado
antes o op. 47, ele deve tocar o op. 70. O trombonista deve recomeçar seu trabalho de
destruição assim que ele perceba o fragmento que o pianista passou a tocar com os outros
músicos. Isso deve acontecer tantas vezes quanto possível durante 2 minutos.
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Trompa: o trompista nunca deve interromper seu tocar para que toda vez que o pianista
volte para o op. 70, seja o pianista que ache o compasso que o trompista está interpretando
no momento.
Cordas: toda vez que o pianista vá para o op. 47, é ele quem elege o fragmento (qualquer
sequência do Scherzo) para recomeçar. As cordas param de tocar somente o suficiente
para achar o compasso que o pianista está tocando, para se juntar a ele.
Quando o pianista abandona a peça, devem seguir sem perturbação. Mas se nesse
momento eles tiverem chegado ao final desse movimento, eles tocam Da Capo.
Duração da 1ª seção: 2 minutos
seção: no terceiro minuto, o trombonista levanta-se e vai para o piano, tocando sons
ruidosos e desesperados dentro dele. O pianista, que apertou o pedal, aguarda a extinção
da ressonância (que deve ser amplificada fff) e deixa o palco. O trombonista vai na direção
de outro instrumentista, e sempre tocando sons ruidosos, usa a vara do seu instrumento
para o PARAR. Isso pode ser realizado através da interferência da vara no lugar onde o
instrumentista está usando seus dedos, ou ao empurrar seu braço ou o (com a vara).
Quando o instrumentista HESITA, ele deve parar de tocar. (Nesse momento, ele pode estar
tocando qualquer fragmento de qualquer dos movimentos da peça à qual seu instrumento
pertence).
Uma vez que cada instrumentista esteja em silêncio (mantendo-se sentados, porém), o
trombonista deixa o palco e sai através do auditório, agora tocando melodias do Carnaval
op. 9 de Schumann de forma bastante despreocupada, e deixando uma melodia para outra
(incompleta), e assim por diante, até que ele tenha saído do auditório.
Então somente esse fragmento de Gesange der Frühe é tocado no piano no backstage.
O Fim. (OLIVEIRA, [s.d.-b]).
Figura 4 Presença da citação direta de Gesang Der Frühe, de Schumann, na página 9 da partitura de Phantasiestück III
Referência: Oliveira ([s.d.-b]).
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Simbolicamente, as noves seções antecedentes à Coda são uma espécie de preparação para que o próprio
Schumann ele mesmo emerja na Coda. Primeiro, no começo da Coda, ele emerge repleto de interferências,
mediante os jogos de distorções das citações elegidas por Oliveira, mas no final, ele resta inteiro, numa
citação literal e intocada.
7. the storm of the stars will turn to quiet
A segunda peça musical a ser apresentada se dá num ambiente totalmente diverso da fase vanguardista. Em
pequenas obras, compostas principalmente para piano ou pequenos grupos instrumentais, estamos
mergulhados nas experiências afetivas, emocionais e literárias do compositor.
Um exemplo significativo é the storm of the stars in the sky will turn to quiet, para piano, extraído de um
poema de Marina Tsevetaeva: I Know The Thuth
8
. O título do poema é Eu sei a verdade, e o texto selecionado
é “a tempestade das estrelas no céu se silenciará.
Figura 5 Tema principal de the storm of the stars in the sky will turn to quiet, na mão direita, dos compassos 1-9. Note-se a relação
segunda maior-segunda menor nas primeiras notas da melodia. Referência: De Bonis (2006).
Oliveira se refere a esta pequena obra como baseada na profunda emoção que sucedeu a uma seção do
filme Leaving Las Vegas. A peça é dedicada ao elenco e ao diretor do filme, Mike Figgis. A trilha sonora do
filme é dominada por uma canção composta em 1930, por H. Tobias: It’s a lonesome old town, interpretada
8
I know the truth - give up all other truths!
No need for people anywhere on earth to struggle.
Look - it is evening, look, it is nearly night:
what do you speak of, poets, lovers, generals?
The wind is level now, the earth is wet with dew,
the storm of stars in the sky will turn to quiet.
And soon all of us will sleep under the earth, we
who never let each other sleep above it. (Tsvetaeva 1994, 03)
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pelo cantor Sting. O tema do filme é a obstinada busca do personagem principal pela morte. Portanto, o
tema do filme, assim como o do poema, é a morte, A Verdade ou o silêncio após os conflitos.
A peça se inicia com o tema principal sendo pinçado nas cordas do piano e o acompanhamento, em terças
paralelas, sobrepõe-se à mesma oitava, formando uma melodia que se entrelaça com o acompanhamento.
As terças paralelas seguem a escala predominante do tema: semi-tom/tom. Na repetição do tema, um
acompanhamento por arpejos.
Nos compassos 10-18, há uma reapresentação variada do tema com novas texturas.
Na seção seguinte, entre compassos 19-23, apresenta-se uma re-leitura da Giga da Partita 1 em Sib Maior
de Bach. Esta giga é notoriamente reconhecida pelo entrelaçamento da melodia e do acompanhamento nas
mesmas oitavas, havendo sobreposições das mãos, com farta utilização de figuras cromáticas. Entretanto, o
entrelaçamento proposto é o do tema principal das polirritmias, que está em Sol Maior na peça de Willy. O
acompanhamento da giga continuidade ao material principal de tom/semitom. A última exposição do
tema é precedida de uma figura de acompanhamento ternária, que explora ainda a relação tom/semitom,
presentes tanto no início do tema, como na Giga.
Figura 6 Citação da Giga de Bach
Referência: De Bonis (2006).
Entre 24-28, há uma nova seção que faz uma ponte entre o final da releitura da giga e o início da reexposição
do tema.
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Entre 29-40, inicia-se uma seção na qual o tema principal é re-exposto na mão direita, e o acompanhamento
é construído em torno da relação segunda maior-segunda menor com arpejos quialtéricos.
Antes dos compassos finais da peça, nos quais o tema da canção em notas pinçadas reaparece, ainda
outra menção à Giga de Bach, entre compassos 42-46.
Miserere é um outro exemplo da reincidência dos intertextos em Oliveira. Nessa coleção de peças para
piano, inspirada pelo ciclo homônimo de quadros do pintor Georges Rouault, citações de diversas cantigas
de origem popular, ouvidas na infância no Recife, e da Fantasia em Menor de Schubert. Além disso, a
presença dos afetos do compositor é constantemente explicitada através das dedicatórias e anotações nas
partituras.
Figura 7 Uma das peças da coleção para piano Miserere, na qual se observa uma canção ouvida pela babá na infância no Recife
Referência: Oliveira ([s.d.-a]).
8. Considerações finais
Vimos que Willy Corrêa de Oliveira tem uma prática musical que, apesar de ter atravessado múltiplas fases
no decorrer de sua trajetória (vanguardista, engajada na luta social, e atualmente distante dos palcos), es
intimamente ligada à ideia de metalinguagem. No caso desse artigo, o nosso objeto principal de análise foi o
seu sexteto Phantasiestück III, de sua fase vanguardista, marcado pelo diálogo com a obra de Schumann.
Vimos que em outras peças suas ele mantém uma prática semelhante de intertextualidade, como em the
storm of the stars in the sky will turn to quiet e Miserere.
Em Phantasiestück III, nossa análise concluiu que Oliveira realizou um percurso no qual sua peça caminha
das citações indiretas, nas nove seções iniciais da peça, para citação direta, na Coda. Vimos também que
mesmo na Coda um caminho poético que as citações diretas tomam: inicialmente interferências de
elementos musicais disruptivos que buscam abolir a percepção aural das referências schumannianas; mas,
no final, resta uma citação única e inteira de Gesange der Frühe, sem as irrupções do início da Coda.
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O conjunto de referências schumannianas traduz um interesse de Oliveira pela ideia de um compositor
intelectual, que Schumann teve importante atuação como tal através de seu periódico Die Neue Zeitschrift
für Musik. Vimos que a ideia de um compositor intelectual para Oliveira es diretamente ligada à sua
intelectualidade marxista. Esse conjunto de referências, portanto, foi importante para geração de contextos
de escuta, que a citação cria uma ponte entre a escuta individual e a escuta coletiva. Trata-se, portanto,
de uma forma de reescrita, mas uma reescrita que, ao falar de Schumann, está falando de si, de como o
compositor se reflete nos que lhe precederam.
no caso de the storm of the stars in the sky will turn to quiet, as referências abundam, como vimos no
processo da análise. No livro intitulado Peças para Piano, organizado por Mauricio de Bonis, foram publicados
comentários escritos pelo próprio compositor. Nele escreveu: “Após assistirmos – eu e meus filhos – o filme
Leaving Las Vegas, de Mike Figgis, extravasou-nos o silêncio. Esta música está em lugar daquele Silêncio. As
emoções, as referências literárias, pictóricas ou fílmicas, estão sempre presentes como atividades que o
mantém criativo.
As duas peças abordadas neste texto, levaram em consideração estas experiências: tanto na busca de um
modernismo inteligível, no sexteto Phantasiestück III, como na peça para piano, na busca permanente por
uma escrita transparente, originária de múltiplas as escutas.
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