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eISSN 2317-6377
Notas sobre a interpretação de um Larghetto de Handel
Notes on the interpretation of a Larghetto by Handel
Laura Rónai1
laura.ronai@unirio.br
1 Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Instituto Villa Lobos, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
ARTIGO CIENTÍFICO
Editor de Seção: Fernando Chaib
Editor de Layout: Fernando Chaib
Licança: "CC by 4.0"
Data de submissão: 21 abr 2025
Aprovação final de aprovação: 13 jun 2025
Data de publicação: 10 jul 2025
DOI: https://doi.org/10.35699/2317-6377.2025.58726
RESUMO: O presente artigo discorre sobre a interpretação historicamente informada da música barroca, abordando a execução de
movimentos lentos do tipo italiano, que costumeiramente devem ser ornamentados pelo intérprete. Para sustentar seus
argumentos, a autora se vale do auxílio de um exemplo prático retirado do repertório flautístico: o Larghetto da Sonata em mi
menor para flauta e baixo contínuo, op.1 no 1a, HWV 379, do compositor George Frideric Handel. Para este Larghetto são sugeridas
opções de articulação, dinâmicas e andamento, sendo apresentadas justificativas musicais para tais escolhas, embasadas nos
tratados da época e em fontes secundárias, usando como inspiração as Sonatas Metódicas de Georg Philipp Telemann. Ao final do
artigo, há uma partitura contendo as partes originais de flauta e baixo contínuo do movimento em questão, acrescidas de sugestões
de ornamentação e interpretação. Ao cotejar a parte original e a versão proposta, pode-se constatar o resultado prático da discussão
teórica proposta pelo artigo.
PALAVRAS-CHAVE: Música barroca; Ornamentação; Handel; Interpretação Historicamente Informada; Flauta.
ABSTRACT: This article discusses the historically informed interpretation of baroque music, focusing on the execution of slow
movements of the Italian type, which typically require ornamentation by the performer. To support her arguments, the author uses
a practical example taken from the flute repertoire: the Larghetto of the Sonata in E minor for flute and basso continuo, op.1 no 1a,
HWV 379, by George Frideric Handel. For this Larghetto, articulation, dynamics, and tempo options are suggested, and musical
justifications for these choices are presented, based on treatises of the time and secondary sources, with Georg Philipp Telemann's
Methodical Sonatas serving as inspiration. At the end of the article, a score is offered containing the original flute and basso continuo
parts of the movement in question, plus suggestions for ornamentation and interpretation. By comparing the original part and the
proposed version, the practical result of the theoretical discussion proposed by the article can be appreciated.
KEYWORDS: Baroque music; Ornamentation; Handel; Historically Informed Performance; Flute.
Per Musi | Belo Horizonte | v.26 | General Topics | e252620| 2025
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Rónai, Laura. Notas sobre a interpretação de um Larghetto de Handel
1. Introdução
Durante grande parte do século passado, acreditava-se que a execução de qualquer peça deveria respeitar
rigorosamente o que o compositor havia determinado, e que na partitura todas as suas decisões estavam
reveladas claramente aos olhos do mundo. Esse era o entendimento predominante, especialmente em um
contexto em que a interpretação musical era vista como uma prática quase mecânica, em que a fidelidade
estrita à partitura era tida como a única maneira de se honrar a intenção daquele que a escreveu. Foi o estudo
aprofundado da música barroca, iniciado por volta de 1950, especialmente através do trabalho de pioneiros
dedicados ao que mais tarde passamos a chamar de Interpretação Historicamente Informada que revelou que
a obediência à partitura era apenas o primeiro passo em direção a uma interpretação que verdadeiramente
captasse a essência estilística da época em que a obra foi composta. Este entendimento trouxe à tona a
percepção de que a partitura é, em muitas ocasiões, um guia, e não um conjunto rígido de instruções. Nos
nossos dias, o conceito de ser fiel ao espírito, e não à letra (e a convicção sobre a necessidade de desobedecer
criativamente à partitura original) já é moeda corrente. Como bem explica Mary Cyr:
Na música de hoje, os papéis do intérprete e do compositor são geralmente separados: os
compositores escrevem o que esperam que os intérpretes toquem e os intérpretes não se
afastam significativamente do texto escrito. Na música barroca, no entanto, o intérprete e o
compositor partilhavam um papel mais igualitário no processo composicional, e duas
execuções da mesma peça poderiam, portanto, ser muito diferentes [...] uma partitura
usada pelo compositor pode carecer de muitos detalhes que seriam considerados cruciais
em execuções modernas.
1
(Cyr 1992, 123)
São esses detalhes, como dinâmica, inflexões de andamento e ornamentação que cabem ao bom intérprete
suprir, preenchendo assim as lacunas deixadas pelo compositor. Mas a habilidade subjetiva, de saber como e
o quanto interferir nas notas escritas na página, consiste em uma verdadeira arte, ou pelo menos uma ciência
a mais a ser aprendida, indo além do domínio puro e simples da técnica instrumental. Diferentemente da
atitude anterior, em que se tocavam apenas as notas, sem pensar muito nas sutilezas de interpretação que
não estavam notadas, a prática interpretativa historicamente informada exige uma sensibilidade apurada para
as nuances estilísticas da época e para as expectativas de desempenho que eram implícitas, mas raramente
explicitadas nas partituras do período barroco.
Se no início do século XX boa parte dos músicos descartava a música barroca como desinteressante e pouco
sofisticada talvez porque fosse sempre ouvida de maneira incompleta e em execuções literais muito pobres,
que não faziam jus à riqueza intrínseca dessas composições –, com o resgate das práticas interpretativas ela
passou a ser mais valorizada, embora ainda relegada a um pequeno grupo de especialistas. Sabia-se que
muitas das partituras do Barroco que chegaram até nós eram como manequins a serem vestidos com
roupagens exuberantes, esboços que precisavam ser completados pelo intérprete. Essas partituras,
comumente despojadas de indicações precisas de dinâmica, ornamentação, inflexões de andamento, não
1
In today’s music, the roles of performer and composer are usually separate: composers write what they
expect performers to play, and performers do not depart significantly from the written text. In baroque music,
however, the performer and composer shared a more equal role in the compositional process, and two
performances of the same piece could therefore be vastly different […] a score used by the composer may be
lacking in many details that one would consider crucial in modern performances”. (As traduções cujos textos
estão em pé de página são da autora)
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prescindiam desses elementos; pelo contrário, esperava-se que o intérprete os inserisse, contribuindo
ativamente para a realização completa da obra. Entretanto, o grau de liberdade que o intérprete moderno
deve ou pode assumir ainda é uma questão complexa e, em muitos casos, nebulosa. A extensão dessa
colaboração entre compositor e intérprete era – e em muitos aspetos ainda é um mistério a ser desvendado.
Em 1990, no seu capítulo do livro Performance Practice: Music after 1600, David Fuller já apontava para essa
questão, ainda hoje em debate:
Quarenta anos atrás
2
, Bukofzer escreveu sobre um ‘código de execução’ barroco que deveria
ser “conhecido e observado para que uma interpretação fiel e sem distorções da música
fosse realizada”. Sem dúvida, alguns músicos ainda procuram por esse código uma pedra
de Roseta
3
ou uma máquina ‘Enigma’
4
para traduzir cifras barrocas em notas que
preencheriam esses esboços tal como o seu autor os imaginou. [...] é fácil sonhar assim com
a música a três séculos de distância, mas basta nos aproximarmos dela e as regras se
desmancham em realidade desordenada. Podemos ter uma ideia de como a coisa realmente
era, observando a nós mesmos e à nossa própria produção musical.
5
(Fuller 1990, 117)
De fato, toda a música do passado demanda um grau de familiarização com os seus códigos e suas regras de
bom gosto. Nos vários tipos de andamentos o intérprete tem desafios diferentes. Movimentos de dança, como
minuetos, bourrées, gigas, exigem que se tenha uma noção de como era a dança original que inspirou aquele
trecho, pois esse é o melhor indicador para a escolha do andamento e das inflexões que serão aplicadas. E se
em movimentos rápidos é necessária uma técnica ágil, movimentos lentos precisam principalmente de uma
capacidade interpretativa aguçada, de uma sensibilidade para perceber qual o affekt apropriado (Doloroso?
Contemplativo? Nostálgico? Desesperado?) e ornamentar de acordo com este caráter implícito. Afinal, é nos
movimentos lentos, aqueles em que a parceria compositor/intérprete é mais complexa, que reside uma das
dificuldades mais comuns na execução da música barroca. Uma miríade de problemas desafia o intérprete:
que andamento escolher? Quantas inflexões de andamento usar? De quantos recursos de dinâmica podemos
dispor? Por outro lado, quando não foram indicadas pelo autor, como escolher as articulações utilizadas?
Quais são os critérios para se decidir sobre a ornamentação?
Conhecer o estilo da época, ler tratados e livros sobre este repertório, tocar com sicos que têm a prática
desta música, utilizar instrumentos do período, tudo isso ajuda a responder a algumas dessas interrogações.
A prática com instrumentos de época, por exemplo, não apenas oferece insights técnicos sobre a execução,
mas também fornece uma conexão direta com as sonoridades e as técnicas de produção de som que os
compositores da época tinham em mente ao criar as suas obras. Para citar apenas uma instância, a relação de
volume entre instrumentos modernos é bem diferente daquela entre instrumentos barrocos. Numa peça que
2
Ou seja, pelas contas atuais, 74 anos atrás!
3
A pedra de Roseta foi encontrada por soldados napoleônicos em 1799 e é considerada a chave para decifrar
os hieróglifos egípcios.
4
Enigma foi uma máquina eletromecânica de criptografia com rotores, utilizada na Europa a partir dos anos
1920 para criptografar e descriptografar códigos de guerra.
5
Forty Years ago Bukofzer wrote of a baroque ‘code of performance’ that had to be “known and observed in
order that a faithful and undistorted rendition of the music be accomplished”. No doubt some musicians still
search for that code a Rosetta stone or an “Enigma” machine to translate baroque ciphers into the notes
that would fill out those sketches as their author imagined them. [...] it is easy to dream this way about music
at three centuries’ remove, but draw near and the rules collapse in disorderly reality. We can get an inkling of
how it really was by observing ourselves and our own music-making”.
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reúna flauta doce e transversal, por exemplo, a transversal moderna terá mais som do que a flauta doce.
em instrumentos originais, é o contrário que ocorre. No entanto, boa parte destes problemas pode ser
enfrentada mais adequadamente com base em uma cuidadosa análise da peça, particularmente da sua
estrutura harmônica. Porque ainda que o compositor não anote explicitamente a ornamentação e as nuances
de andamento e dinâmica, a própria partitura traz informações sutis que se revelam a uma leitura mais atenta
e servem de guia para o intérprete.
2. Handel e Telemann
Seguindo a sugestão de Fuller, de observarmos a nossa própria prática, o presente texto se propõe a lidar com
estas questões mediante um exemplo musical. Escolhemos o movimento lento
6
de uma sonata para flauta de
Georg Frideric Handel (1685-1759), que analisamos harmonicamente, no qual anotamos inflexões de
andamento e dinâmica, e que ornamentamos por escrito. No curso do artigo pretendemos justificar, apoiados
nesta análise, nossas escolhas interpretativas. Para proceder à ornamentação desse movimento de Handel,
usamos como inspiração os movimentos lentos das Sonatas Metódicas TWV41, de Georg Philipp Telemann
(1681-1767), compositor alemão que, assim como Handel, escreveu música que mesclava o estilo italiano com
influências francesas.
Georg Friedrich Handel e Georg Philipp Telemann foram contemporâneos e mantiveram uma relação de
respeito mútuo. Embora suas trajetórias tenham seguido caminhos diferentes Handel passou grande parte
da vida em Londres, enquanto Telemann atuou sobretudo na Alemanha os dois compartilhavam uma
formação comum e interesses estéticos similares. registros de que trocaram correspondência, e Telemann,
que era apenas quatro anos mais velho, admirava sinceramente o colega, chegando a considerá-lo o maior
compositor vivo. Ambos são representantes notáveis do barroco tardio e mestres do chamado estilo misto,
uma fusão das tradições italiana, francesa e alemã que marcava a música europeia da época. Nesse contexto,
a comparação entre suas sonatas para flauta se justifica plenamente. Trata-se de um gênero que ambos
cultivaram com afinco, inserido em práticas musicais tanto públicas quanto privadas, frequentemente
destinado a amadores refinados e músicos profissionais. As sonatas para flauta transversal e contínuo desses
dois compositores revelam muitas afinidades, apesar de naturalmente apresentarem pequenas diferenças em
suas abordagens estilísticas.
Handel tende a seguir modelos mais próximos da tradição italiana, com melodias cantáveis, claras articulações
harmônicas e contrastes afetivos marcantes. Sua escrita muitas vezes remete à expressividade vocal da ópera
e evidencia uma preferência por estruturas bem definidas. Telemann, embora também fortemente
influenciado pelo estilo italiano, exibe uma linguagem mais variada, com a presença de elementos franceses
e populares, e às vezes até mesmo influências de outras nacionalidades menos dominantes na música da
época, como a polonesa. Suas sonatas exploram uma maior liberdade formal, apresentam uma escrita mais
idiomática para a flauta, e frequentemente incorporam ritmos de dança e soluções harmônicas ousadas. Mas
nos movimentos lentos é geralmente o estilo cantabile italiano que predomina.
6
Edward R. Reilly explica, em nota de de página na sua tradução do tratado de Quantz: “Assim como ‘o
Allegro’ se refere a qualquer tipo de movimento ou peça rápida, ‘o Adágio’ se refere a qualquer tipo de
movimento ou peça lenta” (Quantz, 1966, p. 162). (“Just as ‘the Allegro” refers to any type of quick movement
or piece, ‘the Adagio’ refers to any kind of slow movement or piece”).
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Outro ponto que aproxima esses dois compositores é justamente a valorização do traverso, instrumento que
ganhava destaque na primeira metade do século XVIII e começava a suplantar a flauta doce como veículo
principal da música de câmara. Handel e Telemann foram figuras importantes nesse processo de transição, e
suas sonatas ilustram não apenas a expansão do repertório para o instrumento, mas também os diferentes
modos de explorar sua expressividade. Faz muito sentido usar as sonatas metódicas de Telemann como
modelo para ornamentação em uma sonata de Handel por várias razões interligadas. Primeiro, Telemann era
conhecido por sua escrita clara, prática e didática, especialmente nas sonatas metódicas, que foram
concebidas com o propósito explícito de servir como referência para instrumentistas quanto a execução e
ornamentação. Essas sonatas apresentam exemplos detalhados e sistemáticos de ornamentos no contexto
estilístico do início do século XVIII que são representativos do estilo barroco germânico. Além disso, embora
Handel e Telemann tenham estilos individuais, eles pertencem a uma mesma tradição musical e temporal,
compartilhando muitas convenções estilísticas e práticas interpretativas do barroco tardio. A ornamentação
que se adequa às sonatas de Telemann, com seu equilíbrio entre clareza melódica e expressividade retórica,
tende a funcionar muito bem na música de Handel, que valoriza o contraste afetivo e a fluidez vocal.
Por fim, as sonatas metódicas têm um caráter pedagógico que auxilia o intérprete a entender não apenas
quais ornamentos usar, mas também como executá-los de forma musical e elegante. Isso é especialmente
valioso para obras de Handel, que frequentemente exigem delicadeza e sensibilidade na ornamentação para
evitar excessos e preservar a integridade da linha melódica. Assim, o uso das sonatas metódicas de Telemann
como referência para ornamentação em uma sonata de Handel promove uma abordagem informada, histórica
e estilisticamente coerente, valorizando tanto a técnica do intérprete quanto a expressividade da obra.
Para cada estilo nacional é necessário um tipo de conhecimento para as decisões que concernem as
ornamentações. Enquanto os sicos italianos recorriam a uma ornamentação mais linear, improvisada, do
tipo florido, os franceses se valiam de pequenos ornamentos pontuais, muito precisos, indicados pelo autor.
Essas diferenças eram bastante evidentes e refletiam o caráter das duas culturas, sendo o italiano mais lírico
e aproximado ao estilo do canto e o francês mais discursivo e aproximado da fala. Como Johann Joachim
Quantz (1697-1773) afirma em seu tratado:
Com boa instrução, a maneira francesa de embelezar o Adágio pode ser aprendida sem
compreender Harmonia. Para o estilo italiano, por outro lado, o conhecimento da Harmonia
é indispensável, ou, como acontece com a maioria dos cantores, você terá que manter
sempre à mão um mestre com quem possa aprender variações para cada Adágio; e se você
fizer isso, permanecerá um estudante por toda a vida e nunca se tornará um mestre.
7
(Quantz 1752, 163)
Assim, sabendo o que acontece na harmonia, e seguindo as excelentes instruções do melhor dos mestres,
esperamos ter alcançado, na nossa versão do Larghetto de Handel, uma ornamentação agradável e correta,
dentro das diretrizes de Quantz e de Telemann.
Telemann foi um dos compositores mais prolíficos e influentes do período barroco. Além das suas inúmeras
obras para diversos conjuntos instrumentais e vocais, suítes, cantatas e óperas, contribuiu significativamente
7
With good instruction the French manner of embellishing the Adagio may be learned without understanding
Harmony. For the Italian manner, on the other hand, knowledge of Harmony is indispensable, or, as is the
mode with most singers, you must keep a master constantly at hand from whom you can learn variations for
each Adagio; and if you do this you will remain a student all your life, and will never become a master yourself.”
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para a música de câmara, particularmente com suas sonatas. As Sonatas Metódicas (Methodische Sonaten)
publicadas pela primeira vez em 1728 e 1732, estão entre as obras mais significativas do compositor no que
diz respeito à ornamentação e ao estilo de execução do Barroco. Foram concebidas não apenas como
composições musicais para entreter o público, mas principalmente como ferramentas pedagógicas destinadas
a ensinar músicos a arte da ornamentação, que era uma prática essencial na interpretação da música barroca.
Tanto Telemann quanto Handel estavam perfeitamente inteirados dos estilos italianos, franceses e alemães
da época, e essas influências permeiam as suas composições. As sonatas de Handel para flauta, como as suas
Sonatas para Flauta Op. 1, compartilham muitas características com as sonatas de Telemann, como a
estrutura formal, a ênfase na melodia e a harmonia. Isso faz com que as técnicas de ornamentação detalhadas
por Telemann em suas Sonatas Metódicas sejam facilmente aplicáveis às sonatas de Handel. O estilo
ornamentado de Telemann pode iluminar como os músicos da época poderiam ter abordado a ornamentação
nas obras de Handel, que frequentemente deixava mais espaço para a interpretação do que Telemann,
especialmente em suas sonatas instrumentais.
As Sonatas Metódicas de Telemann não são apenas composições musicais; são também guias instrutivos.
Telemann incluía uma linha melódica simples junto com uma versão ornamentada da mesma linha, mostrando
claramente como a ornamentação poderia ser aplicada de forma prática. Ele fornecia exemplos de trilos,
mordentes, appoggiaturas, grupettos e outras formas de ornamentação comuns, permitindo que os músicos
entendessem não apenas como, mas porque certos ornamentos deveriam ser aplicados. Essa abordagem
detalhada fornece uma base educacional robusta que é extremamente útil para a ornamentação das sonatas
de Handel, especialmente porque suas sonatas eram frequentemente destinadas a amadores e músicos
menos experientes, que poderiam lucrar muito ao usufruir de exemplos claros de ornamentação para
melhorar suas interpretações.
3. Flexibilidade e Interpretação Individual
Um ponto importante é que o estilo de composição de Telemann, especialmente nas Sonatas Metódicas,
encoraja a criatividade e a expressão individual na ornamentação. Embora Telemann forneça exemplos
extensos, ele também deixa espaço para os intérpretes adicionarem o seu toque pessoal, o que, aliás, era um
aspecto fundamental da prática interpretativa barroca: os intérpretes frequentemente utilizavam seus
próprios ornamentos e improvisações. Portanto, é importante lembrarmos que os ornamentos presentes na
partitura são sugestões do autor, mas não é obrigatório se valer deles em sua totalidade ou mesmo
parcialmente. Embora possa ser valioso incluir algumas das suas sugestões, também é essencial entender que
o embelezamento era, essencialmente, uma questão de estilo pessoal e criatividade.
As sonatas para flauta de Handel, igualmente, podem se beneficiar dessa abordagem flexível. Enquanto
algumas dessas sonatas incluem sugestões de ornamentação, muitas vezes elas são mínimas, e os intérpretes
são deixados para embelezar as linhas melódicas por conta própria. Não devemos entender a grafia mínima
de ornamentações como um limite daquilo que podemos fazer, nos permitindo criar a partir das sugestões do
compositor e do nosso conhecimento sobre a música da época. O uso das técnicas de ornamentação de
Telemann pode fornecer uma base sólida e ainda permitir que os intérpretes adaptem e modifiquem as
ornamentações para melhor se adequarem ao estilo pessoal ou às circunstâncias específicas de uma
apresentação. Como exemplo, podemos citar a acústica do local de apresentação. Ambientes com acústica
muito reverberante convidam à ornamentação mais simples e escorreita, com número menor de notas, para
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evitar que a clareza da execução seja comprometida. ambientes mais secos não permitem, como até
exigem ornamentação mais intensa, que serve como elemento aglutinador das frases musicais, preenchendo
o espaço vazio entre as notas que é criado pela falta de reverberação.
A expressão musical é outro ponto a ser considerado. Ornamentos são acrescidos à linha melódica para
aprimorar a expressão musical e adicionar um toque de virtuosismo. Em um movimento que retrate o sono,
por exemplo (tais movimentos são bastante comuns, especialmente na música francesa) um excesso de
ornamentos se opõe totalmente ao espírito da peça, que requer tranquilidade e pouca agitação. Em um
movimento que simbolize a fúria de tempestades (outro tema favorito na música instrumental do século XVIII)
a adição de appoggiaturas ou trilos graciosos pode enfraquecer a mensagem que se deseja comunicar à
plateia. Por outro lado, se a peça retrata o chilrear de aves, certamente appoggiaturas curtas seriam bem-
vindas. Deve-se levar em conta igualmente o contexto de cada apresentação. Em um ambiente de concerto
mais formal, ou numa ocasião em que se deseja demonstrar sua habilidade na prática da ornamentação, pode-
se optar por tocar todos os ornamentos sugeridos. Em um ambiente mais casual, poderiam ser selecionados
apenas aqueles que se encaixam no gosto do instrumentista ou que destacam o caráter da peça.
Se um ornamento parecer fora de lugar ou excessivamente complicado, pode ser melhor simplificá-lo ou até
mesmo omiti-lo inteiramente. E finalmente existe a questão da habilidade técnica de cada intérprete. Antes
de sobrecarregar uma obra com ornamentos elaborados, convém ter certeza de que esses ornamentos serão
executados de maneira limpa e natural. Se alguns ornamentos estiverem além da capacidade técnica atual do
intérprete, é melhor focar naqueles que podem ser bem executados. É também imprescindível que o
intérprete entenda muito claramente o que é estrutura e o que é ornamento, e saiba projetar isto em sua
execução, por exemplo, usando sua capacidade de inflexão e/ou de utilizar patamares de dinâmica variados.
Ou seja, embora incorporar ornamentos conforme o sugerido possa ser uma prática excelente, é importante
equilibrar a precisão histórica com a musicalidade, o domínio técnico e a expressão pessoal.
No contexto moderno, em que muitos músicos procuram abordar a música barroca de uma maneira
historicamente informada, as Sonatas Metódicas de Telemann servem como um recurso prático para
entender como a ornamentação poderia ser realizada, no caso de um movimento lento sem uma ideia
simbólica específica. Elas são frequentemente usadas como ponto de partida para músicos que desejam
aplicar práticas ornamentais autênticas às obras de outros compositores que compartilham a mesma época e
estilo, proporcionando um modelo que é ao mesmo tempo fiel ao período e aplicável a uma variedade de
repertórios. Assim, tomar as Sonatas Metódicas de Telemann como diretrizes para a ornamentação das
sonatas de flauta de Handel faz sentido devido à sua relevância histórica, similaridade estilística, natureza
instrutiva e flexibilidade interpretativa. Elas oferecem uma noção bastante confiável de como a ornamentação
era praticada no período barroco na Alemanha e na Inglaterra e até na Itália, e fornecem parâmetros que são
perfeitamente aplicáveis à música de Handel, ajudando os intérpretes de hoje a recriarem a riqueza expressiva
e o estilo ornamentado que caracterizavam a música daquela época e região.
4. Estrutura e Propósito das Sonatas Metódicas
As Sonatas Metódicas são constituídas por 12 sonatas divididas em dois volumes, cada um contendo seis
sonatas em diferentes tonalidades. Elas foram escritas para instrumentos melódicos, como o violino ou a
flauta, acompanhados por baixo contínuo. O que torna essa obra particularmente valiosa do ponto de vista
histórico e pedagógico é a abordagem inovadora de Telemann no que tange a ornamentação. Seu aspeto mais
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distintivo é que cada uma das sonatas contém duas versões do movimento lento: uma versão simples, sem
ornamentos, e uma segunda versão, altamente ornamentada pelo próprio Telemann.
Esse contraste entre as versões ornamentadas e não ornamentadas permite que o intérprete compare
diretamente as duas e compreenda como a ornamentação pode transformar a expressividade e o caráter de
uma peça musical. Telemann mostra como mesmo um adágio simples, com uma melodia básica, pode ser
enriquecido por meio de ornamentos, como trilos, mordentes, appoggiaturas, escalas rápidas e passagens
arpejadas. alguma discussão sobre se a ornamentação deve ser levada em consideração na sua
integralidade. Para o ouvido moderno, ainda mais depois de lermos vários autores alertando contra o exagero
na ornamentação e apelando para o bom gosto do intérprete (uma das qualidades mais evocadas no Barroco),
para não obscurecer as intenções do autor, poderia parecer que esta ornamentação é excessiva, certamente
mais florida e abundante do que a interpretação que a maior parte dos músicos atuais ousaria propor. Porém,
vale lembrar que o Barroco era uma época de excessos, e que os exemplos de obras com ornamentação escrita
que chegaram até nós são muito mais profusamente embelezados do que imaginaríamos. Muito é um
conceito relativo, afinal. Descartando as exceções como aquelas que mencionamos anteriormente,
consideramos mais do que provável que as ornamentações das Sonatas Metódicas sejam um espelho
fidedigno da prática comum do período.
A ornamentação no período barroco não era meramente decorativa; ela desempenhava um papel crucial na
expressão emocional da música. Compositores da época esperavam que os intérpretes adicionassem
ornamentos à música, utilizando seu próprio julgamento e habilidade. Na verdade, essa liberdade era de tal
maneira um padrão, que compositores que escolhiam ornamentar suas obras para que não fossem distorcidas
por eventuais intérpretes pouco habilidosos eram severamente criticados. Este foi o caso de Johann Sebastian
Bach, por exemplo. Nas suas memórias, eis o que comentou Charles Burney:
Os temas [de Handel] são quase sempre agradáveis e naturais. Sebastian Bach, ao
contrário, assim como Michelangelo na pintura, desprezava a tal ponto a facilidade que seu
gênio jamais se inclinou para o simples e gracioso. Nunca ouvi uma fuga deste sábio e erudito
compositor que fosse escrita sobre um motivo natural e cantável; ou mesmo uma passagem
simples e óbvia que não fosse carregada com acompanhamentos bisonhos e difíceis. (Burney
apud Wolff 1998, 372)
8
E Burney não foi o único a comentar (com viés bem negativo!) o hábito de Bach. Johann Scheibe, que foi aluno
do compositor, em artigo de 1737 afirmou que seu mestre praticava
um estilo prolixo e confuso no qual ele obscurece a beleza com um excesso de arte. [...] E
sua ornamentação é tal que não só priva as suas peças da beleza da harmonia, mas também
cobre completamente a melodia. E sua dificuldade, artificialidade, caráter sombrio, trabalho
oneroso e esforço são empregados em vão, que eles conflitam com a Natureza. [Wolff
1998, 338]
9
8
“[Handel's] themes being almost always natural and pleasing. Sebastian Bach, on the contrary, like
Michelangelo in painting, disdained facility so much, that his genius never stooped to the easy and graceful. I
have never seen a fugue by this learned and powerful author upon a motive that is natural and singable; or
even on an easy and obvious passage that is not loaded with crude and difficult accompaniments.”
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turgid and confused style in which he darkens beauty by an excess of art. […] And his ornamentation is such
that it not only takes away from his pieces the beauty of harmony but completely covers the melody
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Talvez por isso mesmo, o diplomático Telemann faz questão de explicitar o cunho pedagógico de sua obra,
deixando óbvia qual a estrutura original e qual a versão ornamentada. Assim tinha a oportunidade de oferecer
sua versão ornamentada, ao mesmo tempo em que driblava as críticas que poderiam acusá-lo de cercear a
criatividade de seus intérpretes. Como comenta Guilherme Herdade Linberger dos Anjos, em sua dissertação
de mestrado “As Sonate Metodiche de Georg Philipp Telemann: um estudo sobre ornamentação e estilo no
final do período barroco”,
A ornamentação musical era prática comum no final do período barroco, e era costume que
os compositores escrevessem música de forma a permitir os intérpretes improvisarem seus
próprios ornamentos. No entanto, vemos em alguns tratados de época a preocupação de
compositores com intérpretes não preparados, incapazes de ornamentar com “bom gosto”
e de forma a não atrapalhar o discurso escrito pelo compositor. (Anjos 2014, 40)
O fato é que, ao publicar exemplos elaborados e bem-sucedidos de como ornamentar uma melodia, Telemann
estava, essencialmente, educando os músicos sobre como entender e aplicar as práticas ornamentais de sua
época, e por isso teria garantido seu lugar na história da música, ainda que não tivesse o mérito de ter uma
das obras mais importantes do Barroco. Esses exemplos ornamentados fornecem uma visão detalhada das
expectativas estilísticas da época e oferecem ao intérprete atento uma variedade de técnicas que podem ser
usadas para enriquecer suas execuções.
Cada uma das doze sonatas é composta por vários movimentos, geralmente alternando entre lentos e rápidos,
seguindo a tradição barroca. Telemann usa essas configurações de movimentos para demonstrar como
diferentes tipos de ornamentação podem ser aplicados dependendo do caráter e do andamento da peça.
Tipicamente nessas sonatas dois movimentos que poderiam, ou melhor ainda! deveriam ser
ornamentados. No primeiro, o compositor faz a sua sugestão. O segundo, ele deixa a cargo da criatividade do
intérprete. Nos movimentos lentos, como adágios e larghettos, a ornamentação sugerida pelo compositor
frequentemente inclui longas passagens de notas rápidas, mordentes, trilos, appoggiaturas e outras figuras
ornamentais que aumentam a expressividade da música. Essas ornamentações dão vida à linha melódica,
enriquecendo a interpretação com detalhes expressivos, ajudando a destacar o lirismo e a profundidade
emocional da música, enquanto respeitam o andamento calmo e a estrutura harmônica subjacente.
5. Exemplos Práticos de Ornamentação
Para ilustrar como as Sonatas Metódicas podem ser usadas como um exemplo de ornamentação, vamos
considerar algumas técnicas específicas que Telemann utiliza em suas ornamentações:
5.1. Passaggi
Nos movimentos lentos das sonatas, Telemann frequentemente inclui passaggi, que são trechos
ornamentados com notas rápidas, geralmente escalares, que ligam notas principais da melodia. Isso não
apenas cria um efeito mais fluido e expressivo, mas também adiciona complexidade e virtuosismo à
interpretação. Por exemplo, na versão ornamentada de um movimento tranquilo, Telemann pode transformar
throughout. And his difficulty, artificiality, somberness, onerous labor and effort are vainly employed, since
they conflict with Nature.
Agradeço a Ruth Van Baack Griffioen por ter chamado minha atenção para essas duas últimas citações, em
sua magnífica palestra sobre a cantata BWV60 de J. S. Bach.
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Rónai, Laura. Notas sobre a interpretação de um Larghetto de Handel
uma simples linha melódica de colcheias em uma sequência de semicolcheias ou fusas, demonstrando como
o intérprete pode embelezar a música sem alterar sua essência harmônica.
Figura 1Telemann, Sonata metódica em si menor (fac-símile). c.5-7
Note-se que nem toda nota longa ou salto melódico grande devem ser necessariamente ornamentados.
Dependendo da localização na frase e do baixo contínuo, às vezes uma nota longa permanece longa e um
salto grande é deixado liso exatamente para ressaltar o efeito dramático do gesto.
Figura 2Telemann, Sonata metódica em mi menor, c. 1-6
5.2. Trilos e Mordentes
Esses são ornamentos clássicos do Barroco que Telemann utiliza abundantemente. Nos exemplos de
ornamentação fornecidos, ele mostra como e onde esses ornamentos podem ser aplicados para aumentar a
expressividade e a tensão de uma peça. Trilos são frequentemente usados em notas longas ou no final de
frases, enquanto mordentes são aplicados em notas mais curtas, adicionando textura e contraste.
5.3. Diminuições
Telemann usa diminuições para ornamentar a linha melódica, dividindo notas longas em sequências de notas
mais curtas. Este tipo de ornamentação é especialmente eficaz em movimentos lentos, onde ajuda adicionar
variedade e interesse a uma linha melódica sem alterar sua estrutura harmônica básica.
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Rónai, Laura. Notas sobre a interpretação de um Larghetto de Handel
Figura 3 – Telemann, Sonata metódica em sol menor, c. 1
5.4 Cadências Ornamentadas
Outro aspecto importante das ornamentações de Telemann são as cadências ornamentadas, onde ele
demonstra como elas podem ser enriquecidas com trilos, apogiaturas e outras figuras ornamentais. Isso é
particularmente importante na música barroca, que a resolução harmônica e a ornamentação são
frequentemente usadas para criar tensão e resolução.
Figura 4 – Telemann, Sonata metódica em sol menor, c. 12-15
Figura 5Telemann, Sonata metódica em dó menor, c. 11-15
Ao fornecer exemplos detalhados de como ornamentar uma melodia, Telemann não apenas educa os
intérpretes sobre as práticas estilísticas da sua época, mas também os encoraja a explorar as suas próprias
habilidades de ornamentação e improvisação, em peças de estilo semelhante.
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Rónai, Laura. Notas sobre a interpretação de um Larghetto de Handel
As sonatas de George Frideric Handel
10
se prestam admiravelmente a este tipo de exercício musical. Escritas
em uma linguagem acessível e fluente, exibem geralmente um movimento lento intermediário, com uma
melodia bastante descomplicada, em que a ornamentação é não apenas opcional, mas obrigatória. Frederick
Neumann explica:
Também totalmente italiano é o método de Handel de escrever adágios em forma
inacabada. Eles não foram feitos para serem tocados como foram escritos: os intérpretes da
época zelavam pelo privilégio de adicionar enfeites floridos à linha melódica básica. Assim,
as linhas muitas vezes austeras de um adágio de Handel como as de Corelli ou de outros
mestres italianos não refletem nobre simplicidade, mas são um esqueleto melódico a ser
desenvolvido pelo intérprete, que assim se torna um parceiro no processo criativo.
(Neumann 1989, 222)
11
Em meio às obras do compositor, as sonatas para flauta formam um grupo coeso, de qualidade excepcional,
e demonstram a sua intimidade com os últimos desenvolvimentos estilísticos da época, apresentando os
instrumentos em sua melhor luz, explorando suas diferentes regiões com habilidade e graça. A forma utilizada
é, em geral, a da sonata italiana, como dito acima, normalmente em quatro movimentos (grave-vivo-lento-
vivo). A melodia predomina sobre os outros atributos, o que, segundo Émile Damais, é uma das marcas
registradas do estilo de Handel. Ele comenta: “o timbre particular do instrumento não está em questão, é a
melodia que conta... A inspiração melódica é, aliás, sempre persuasiva, com caráter vocal, de uma espécie de
perfeição natural de contorno, de um lirismo calmo e repleto de serenidade.”
12
(Damais 1970, 85)
Sem dúvida estas características as tornam especialmente indicadas para ornamentação livre e para serem
usadas como exemplo, não apenas por flautistas, mas por qualquer pessoa que toque um instrumento
melódico. Vamos nos concentrar no terceiro movimento, Larghetto, da Sonata em mi menor para flauta e
baixo contínuo, op.1 no 1ª, HWV 379, escrita por volta de 1727-1728.
13
Lembramos aqui que a tonalidade de
mi menor, para Johannes Mattheson (1636-1704), autor que se interessava pelos affekts característicos de
cada tonalidade e procurou defini-los de maneira clara, é apropriada para “pensamentos profundos, aflitos e
tristes”, mas com esperanças de consolo, talvez algo de resignado, mas não alegre. (Mattheson 1713, 226).
Este movimento de Handel se encaixa muito bem nesta definição!
6. Andamento
O Larghetto em questão tem um vocabulário harmônico rico e variado, com um ritmo harmônico que muda
frequentemente dentro de cada compasso. Não nele um único compasso que contenha apenas uma
10
Para o nome do compositor, seguimos a grafia utilizada pela Norton/Grove Encyclopedia of Music 1988, 319.
11
Also thoroughly Italian is Handel’s method of writing adagios in unfinished form. They were not meant to
be played as written: performers of the time were jealous of their privilege of adding florid embellishments to
the basic melodic line. Thus Handel’s – like Corelli’s or other Italian masters’ – often austere lines of an adagio
do not mirror noble simplicity, but are a melodic skeleton to be fleshed out by the performer, who thus becomes
a partner in the creative process”.
12
Le timbre particulier de l’instrument n’est pas en cause, c’est la nature de la mélodie qui compte et qui
peut s’adapter aussi heureusement
à
tel ou tel instrument. L’inspiration mélodique est d’ailleurs toujours
persuasive, de caractère vocal, d’une sorte de perfection naturelle de contours, d’un lyrisme calme et
empreint de sérénité.
13
Utilizamos como base a edição Bärenreiter n. 4225.
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13
Rónai, Laura. Notas sobre a interpretação de um Larghetto de Handel
harmonia. Isto parece indicar um andamento bastante tranquilo, o que aliás é confirmado pelo título original
Larghetto. Além disto, o Larghetto teria que ser devagar o suficiente para criar contraste com o movimento
precedente, não o Allegro mais comum neste tipo de sonata, mas sim um Andante. Este pareceria um ótimo
argumento para defendermos um andamento bastante lento. Mas tal decisão mostraria bem o perigo de
levarmos em conta apenas um parâmetro interpretativo, subestimando a complexidade e a riqueza dos
elementos em jogo.
Aqui podemos perceber que nem tudo é o que parece a uma primeira vista. Acontece que, apesar de ser a
única sonata de Handel especificamente designada para a flauta transversal em manuscrito e de não
estarmos pondo em dúvida a sua autenticidade –, esta obra foi concebida como uma espécie de colagem de
movimentos de outras obras (este terceiro movimento, por exemplo, começa da mesma maneira que a Sonata
em maior HWV 378, que não faz parte desta coleção, e cuja data de composição é anterior). Assim, a
justaposição de Andante e Larghetto pode não ter sido totalmente intencional. Caso fosse, talvez devêssemos,
sim, pensar em um andamento bastante pausado. Mas, por outro lado, a pulsação quaternária e a indicação
Larghetto nos sinalizam que devemos fugir de um excesso de lentidão.
Como explica Mary Cyr, Quantz classifica os movimentos lentos em dois tipos: patético e cantabile, sendo que
o Larghetto estaria nesta última categoria. (Cyr 1992, 39) A respeito da pulsação habitual em Handel, existe
um comentário muito interessante do já citado Émile Damais. Ele diz:
O movimento tem por centro o tempo ordinário”, ou seja, o movimento fisiológico do
batimento do pulso. É evidente que existem movimentos mais rápidos ou mais lentos; mas
esta gama de movimentos jamais atinge a rapidez ou lentidão que a música irá conhecer nos
séculos seguintes. (Damais 1970, 66)
14
Convém ainda esclarecer que algumas indicações de andamento estão relacionadas ornamentação da linha
melódica. Quando ela é muito exuberante, provavelmente implicará em escolha de andamento mais calmo.
Claro, estamos pressupondo que este Larghetto requer algum tipo de ornamentação. Nikolaus Harnoncourt
confirma: “Na música de Handel, por exemplo, todo músico tem uma certa vontade de ornamentar
improvisando, especialmente em se tratando de um movimento lento, dada a simplicidade da melodia. Isto
convém a um Largo...” (Harnoncourt 1982, 73).
Um andamento de aproximadamente =52 bpm nos parece adequado aqui, mas naturalmente isto
dependeria da quantidade de ornamentos que se deseja para este movimento. A escolha do andamento ideal
é, portanto, uma decisão que não pode ser tomada isoladamente; deve sempre levar em conta a
ornamentação pretendida e o efeito desejado. Não o tocaríamos muito mais lentamente, já que isto faria com
que a ornamentação acrescentada deixasse de soar como ornamental e passasse a soar como estrutural. As
passagens ornamentadas não devem soar deliberadas ou rígidas, mas sim fluentes e guardando uma sensação
de improviso. Por outro lado, não devem dar uma impressão de apressadas ou enérgicas demais. Portanto, o
andamento tem que levar em conta estes dois fatores aparentemente contraditórios.
14
Le mouvement a pour centre le “tempo ordinario”, c’est-à-dire le mouvement physiologique des battements
du pouls. Bien entendu, il y a des mouvements plus rapides ou plus lents; mais cette gamme de mouvements
n’atteint jamais à la rapidité ou la lenteur que la musique connaîtra aux siècles suivants“.
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14
Rónai, Laura. Notas sobre a interpretação de um Larghetto de Handel
Na ausência completa de qualquer ornamentação (uma escolha talvez por demais estranha, no nosso
entender) seria então desejável tomarmos um andamento um pouco mais rápido. Para efeito de
exemplificação, decidimos por uma ornamentação bem presente, e até, talvez, um tanto exagerada. Deve-se
ter em mente que para o caso de uma execução pública, poder-se-ia tocar apenas uma parte destes enfeites,
e não necessariamente todos eles. Tal opção naturalmente afetaria novamente o andamento. Finalmente, o
andamento escolhido (assim como a quantidade de ornamentação a ser utilizada) deve levar em conta
também a acústica do local em que a peça for tocada. Ambientes muito secos, com salas atapetadas e cadeiras
estofadas, abafam o som, e pedem, portanto, pulsação mais rápida. Ambientes com muita reverberação
(como igrejas, em geral), ao contrário, requerem andamentos mais pausados, para que o som não embole.
7. Sobre a Análise Harmônica
Este Larghetto foi escrito em forma livre, com linguagem harmônica generosa, fazendo amplo uso de retardos
e modulações. Ele principia com aproximadamente quatro compassos em sol maior (de acordo com
Mattheson, sol maior “apresenta uma imagem de tranquilidade e pode, em sua transparência se tornar
insignificante [...] nesta tonalidade se manifestam a fidelidade íntima, o amor sem paixão, o repouso
contemplativo e um humor sereno”. Segundo ele, sol maior reflete “fielmente a vida pastoral, muitas vezes
sendo de caráter idílico.” (Mattheson 1713, 243)
15
para Charpentier
16
sol maior é sério e magnífico,
docemente jubiloso) seguidos de mais quatro em ré maior, a tonalidade da dominante
17
. Esta é uma maneira
de o compositor anunciar uma sonoridade assertiva, e encerra também uma indicação para o intérprete:
apesar de estarmos em um movimento lento, nada há aqui de melancolia ou depressão. Longe disto, o estado
de espírito que prevalece é brilhante e decidido.
A partir deste ponto, temos modulações ocorrendo praticamente a cada compasso, o que também aponta
para uma postura de ousadia afinal, em termos harmônicos, permanecer na tonalidade principal denota
timidez, um desejo de segurança e proteção; inversamente, se aventurar para longe de casa é sinal de um
espírito mais corajoso ou pelo menos, curioso, não? Assim, na execução, um toque de virtuosismo nos
ornamentos não seria descabido. Mais tarde, este ritmo modulatório se torna mais vagaroso, até chegarmos
a dois compassos em menor
18
e finalmente, quatro na tonalidade principal da sonata, mi menor (uma
tonalidade que frequentemente simboliza sentimentos sombrios e pesarosos). Em termos práticos, isto
poderá se traduzir em uma interpretação mais angustiada na parte central do movimento (quando ainda não
15
“G-dur stellt ein Bild der Beruhigung auf und kann in seiner Durschschauligkeit, wenn der Künstler das
Einfache nicht zu behandeln weiss, bis zum Bedeutungslosen sinken. In diesen Tonart aber spricht sich die
Innigkeit der Treue, der leidenschlaftlosen Liebe, die Ruhe der Betrachtung un eine sanfte Stimmung aus. {…]
das ländliche Leben spegelt sich in ihr treulich ab, und mann kann ihren Charakter oft idyllisch nennen”.
16
Marc-Antoine Charpentier, ca. 1682
17
Mattheson dizia que maior é a tonalidade do triunfo, das festividades; agudo, brilhante, enérgico,
obstinado, opiniático, engraçado, guerreiro, estimulante, voluntarioso, serve para fazer barulho, para coisas
guerreiras e alegres. Bom para trompetes e tímpanos, mas quando tocado com flauta pode ser delicado.
(Mattheson 1713, 231)
18
De acordo com Mattheson, menor é introspectivo, melancólico e muitas vezes ligado a sentimentos
profundos de tristeza ou seriedade. Mas também dirigido à lisonja. De natureza, é bastante moderado, um
pouco queixoso, decente, respeitável, tranquilo, até mesmo convidando ao sonho. Pode ser usado para todos
os movimentos da alma. É moderado e doce para o público. Bom para teclado e música instrumental.
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Rónai, Laura. Notas sobre a interpretação de um Larghetto de Handel
sabemos onde iremos desembocar harmonicamente, por assim dizer) e um final com caráter algo misterioso,
talvez até ligeiramente ambíguo (já que o início do movimento parecia indicar sol maior como objetivo final).
Quanto aos acordes, estes são, na sua maioria, bastante despojados, com uma notável exceção. No compasso
11, uma cadência perfeita em maior é o que seria esperado, mas, ao invés disso, através da adição do
que resolve a suspensão, temos uma estrutura dissonante que poderia ser considerada como uma supertônica
em sol maior. Já que esta substituição é baseada em notas comuns às duas tonalidades, o rápido entrever de
sol maior soa perfeitamente aceitável a nossos ouvidos. E aqui, novamente, a harmonia indica ao intérprete
atento um procedimento musical: uma ligeira demora na nota , para ressaltar este belo efeito.
No compasso 20, o uso de notas comuns a duas tonalidades tem um resultado ainda mais misterioso. O sol
natural no baixo nos pega de surpresa e ajuda a criar a sensação de liberdade e improvisação consistente com
o caráter dos últimos compassos do movimento. Na realidade a sequência de acordes do compasso 19 ao 20,
emprestados da tonalidade de menor a subdominante do tom de mi menor que termina a peça
estabelece o “clima” mais sombrio do final, sem que haja de fato uma modulação, além de funcionar como
uma passagem de conexão para o próximo movimento. Aqui, ainda outra vez, a interpretação deve seguir o
caminho aberto pela harmonia: o som deve ter um timbre escuro e velado, e o natural deve ser tocado
apenas depois do devido suspense ter sido estabelecido. É um momento de estranheza, e é importante que
esta estranheza soe proposital, e não como um erro.
8. Sobre as Cadências
Estabelecer onde estão as cadências e de que espécie elas são poderia parecer um exercício de harmonia
inútil; mas não devemos esquecer que, ao falarmos de cadências, estamos falando de pontuação musical, e
isto irá afetar diretamente a dinâmica e o fraseado em geral, sendo que no caso de instrumentos de sopro a
posição e qualidade das cadências será um importante elemento na definição dos pontos de respiração.
A primeira cadência que surge é uma suspensiva à dominante, não muito forte, seguida de perto por uma
cadência mais estável, imperfeita. Ainda assim indicamos esta cadência suspensiva do compasso 3, que a
frase da flauta, com seu arco claramente definido, parece sugerir um ponto de repouso. No compasso 5, a
cadência imperfeita está entre parênteses, que se trata de uma elisão e poderia passar desapercebida. A
decisão a respeito desta cadência pode mudar a ornamentação se quisermos enfatizar a cadência e
igualmente o fim da frase anterior, poderíamos aqui optar por não fazer as quiálteras, apenas tocar o ,
respirar depois dele, e retomar o resto do arpejo, numa clara referência ao tema da primeira frase. A opção
de ornamentar com grupos de quiálteras, desde a primeira nota do compasso, chama a atenção para a elisão.
No compasso 6, seguindo a mesma lógica aplicada anteriormente, teríamos que ouvir uma cadência
suspensiva. A cadência conclusiva do compasso 8 parece delinear o final do que poderia ser chamado de
primeiro segmento deste movimento. De acordo com esta ideia, poder-se-ia pedir ao cravista um leve
ritardando antes do acorde pivô que nos leva de volta a sol maior.
A cadência imperfeita do compasso 9 não é suficientemente estável e poderia facilmente ser desconsiderada.
Aqui, novamente, é a escolha de respirar (ou não) depois do que vai determinar se vamos ou não ouvir
uma cadência neste ponto. No compasso 11, novamente a cadência indica uma respiração. No compasso 14
há uma cadência importante – perfeita – em si menor. Esta é seguida por outra cadência perfeita, fortalecida
pelas rápidas mudanças harmônicas que levam até ela, e que criam uma espécie de accelerando harmônico
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Rónai, Laura. Notas sobre a interpretação de um Larghetto de Handel
que enfatiza a sensação de tensão desembocando em relaxamento. O Larghetto propriamente dito acaba
nesta cadência. O que vêm depois é quase que um pensamento de última hora, um eco que prepara o ouvinte
para o próximo movimento. Como convém a tal passagem de transição, ela acaba com uma cadência instável,
a tradução musical do termo suspense.
9. Inflexões de Andamento
Como podemos antecipar, a escolha de inflexões de andamento está intimamente ligada à análise
harmônica. São as cadências que vão ditar, em sua maior parte, os pontos de maior agitação, em que se
poderia acelerar, ou maior relaxamento, em que caberia algum ritardando.
Num movimento que é bastante lento e ao qual, além disso, não falta variedade, não seria desejável um
excesso de flutuações rítmicas. Ritardandi são geralmente usados para enfatizar a importância de certas
cadências, e, portanto, não costumam vir antes de cadências fracas. Por outro lado, os accelerandi são raros
em música barroca, e geralmente indicam uma mudança de estado de espírito dentro de um mesmo
movimento (ou um efeito especial, como o gorjear cada vez mais excitado indicado textualmente augmentés
par des gradations imperceptibles
19
na partitura de Le Rossignol en amour, de Couperin), o que não é o caso
aqui.
Os lugares mais óbvios para ritardandi são logo antes das duas cadências perfeitas, a dos compassos 13/14 e
18/19. Um alargamento de tempo para o total dos compassos 19, 20 e 21 seria justificável, que toda esta
passagem funciona como conexão para o próximo movimento e tem um clima quase que improvisatório. Aliás,
este alargamento de tempo nos últimos compassos de movimentos lentos que acabam com meia cadência,
era uma prática padrão na era barroca. Essa prática de alargar o tempo antes de cadências finais ajudava a
criar uma sensação de conclusão e, ao mesmo tempo, de antecipação, conduzindo o ouvinte suavemente para
a transição para o próximo movimento.
10. Articulações e Dinâmica
Não existem marcações de articulação no manuscrito original, com exceção das ligaduras usadas para
prolongar notas (como nos compassos 1 e 2). Isso não é de surpreender. Como bem observou Lisa Read em
sua tese Robert Cavally’s Edition of G.F. Handel’s Solo Flute sonatas: An Evaluation and Historical Perspective:
Alguns compositores barrocos, como J. S. Bach, indicaram muitas das ligaduras que
desejavam; outros compositores, como Handel, indicaram muito poucas. Neste último caso,
é responsabilidade do intérprete flexionar a linha com a articulação apropriada para tornar
os motivos e padrões audíveis. Os tratados do século XVIII aconselham o intérprete sobre a
articulação apenas de uma forma geral, dizendo que a vivacidade dos allegros é transmitida
com notas destacadas e a sensação de adágios por meio de notas ligadas e sustentadas. As
sugestões específicas são limitadas, deixando ao aluno a tarefa aparentemente gigantesca
de decidir a maneira mais vantajosa de executar a música. (Read 1994, 63)
20
19
“Aumentados por graduações imperceptíveis”.
20
“Some Baroque composers, such as J. S. Bach, indicated many of the slurs they wanted; other composers,
such as Handel, indicated very few. In the latter case, it is the responsibility of the performer to inflect the line
with the appropriate articulation to make motives and patterns audible. Eighteenth-century treatises advise
the performer about articulation only in a general fashion, saying that the liveliness of allegros is conveyed
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Rónai, Laura. Notas sobre a interpretação de um Larghetto de Handel
No presente caso, devido ao caráter lírico do movimento, seria aconselhável escolher uma execução com
muito legato, literalmente conectando todas as notas ornamentais, e articulando muito delicadamente onde
isto não é possível, como no caso de intervalos grandes demais para serem ligados de maneira elegante (por
exemplo, no compasso 3). As notas que delineiam a melodia devem ser articuladas de maneira mais enfática,
para assim diferenciarmos o que é estrutural daquilo que é puramente ornamental. Essa distinção é crucial
para que a interpretação do movimento preserve o equilíbrio entre a fluidez melódica e a clareza estrutural,
elementos essenciais para a estética do estilo barroco.
Um início suave (poderia ser piano) parece estar de acordo não apenas com a natureza delicada do movimento
como também com o arco melódico ascendente esboçado pela flauta, e com o fato de que este arco começa
com silêncio (a pausa de colcheia). Um crescendo depois disso, à medida que a harmonia aumenta de tensão
e a melodia sobe, é quase inevitável. O relaxamento de tensão harmônica e a descida da melodia no final da
frase podem ser acompanhados de um diminuendo. Isto seria igualmente consistente com a cadência do
compasso 3, bastante instável. Um ligeiro crescendo em direção ao compasso 4 enfatizaria a cadência
imperfeita que ocorre e que é o mais forte ponto de descanso até agora. Os próximos quatro compassos
refletiriam o mesmo modelo dinâmico como resultado de raciocínio paralelo.
Ao passo em que as harmonias se tornam mais complicadas e modulações ocorrem, pode-se seguir um padrão
de crescendo em direção às cadências, piano ou pianíssimo logo após, depois crescendo novamente até a
próxima cadência. Passagens sequenciais começariam suavemente e se tornariam gradualmente mais fortes
ao se aproximarem de cadências estáveis.
O piano na última nota do compasso 12 pode ser justificado não apenas porque descobrimos aqui uma ligeira
mudança de padrão, como também porque precisamos estar mais quietos no compasso 13, para podermos
então ficar mais barulhentos ao se aproximar a cadência perfeita, no compasso 14. Daí em diante, p crescendo
até a metade do compasso 16, e aí p novamente para termos recursos dinâmicos suficientes para chegarmos
ao F na cadência perfeita que ocorre em 19.
11. Ornamentação
Como dissemos no início do artigo, Handel escreveu este movimento à maneira italiana, o que sugere o uso
de uma ornamentação florida, do tipo melódico, tal como aquela empregada por seu conterrâneo Telemann
nos movimentos lentos de suas Sonatas Metódicas (escritas, como vimos, com o propósito explícito de
exemplificar o procedimento de ornamentação de movimentos lentos). As linhas melódicas da sonata de
Handel, semelhantes às de Telemann na obra citada, pouco ativas, com intervalos disjuntos, mas não
agressivamente abertos, sustentam a ideia de que ornamentos devem ser adicionados, tanto para preencher
os espaços entre os intervalos maiores do que terça quanto para adicionar fluência e movimentação aos
gestos musicais. As primeiríssimas notas, por exemplo, que delineiam o arpejo de sol maior, não poderiam ser
executadas ligadas na flauta barroca, devido às limitações do próprio instrumento, e também devido à prática
estabelecida de não se ligar notas arpejadas a não ser que por indicação expressa do compositor, para efeitos
específicos. No entanto, tocar esta passagem com qualquer tipo de articulação forte seria trair a qualidade
with detached notes, and the feeling of adagios by sustained slurred notes. Specific suggestions are limited,
leaving the student with the seemingly formidable task of deciding the most advantageous way to perform the
music.”
Per Musi | Belo Horizonte | v.26 | General Section | e252620 | 2025
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Rónai, Laura. Notas sobre a interpretação de um Larghetto de Handel
lírica implícita na própria música. Qualquer ornamentação que ‘suavize’ os saltos é, portanto não apenas
aceitável, como extremamente bem-vinda.
A ornamentação que sugerimos consiste basicamente em notas de passagem (como no compasso 1), de
passaggi, ou trechos escalares para preencher intervalos maiores do que uma terça (ainda como no compasso
1), bordaduras superiores e inferiores (como no compasso 2), cambiatas (como no compasso 3), substituição
de uma nota do acorde por outra (como no compasso 13), mordentes (compasso 5) e trilos (como no
compasso 3).
Quando sequências ocorrem, a ornamentação tende a ser mais elaborada na repetição do padrão, como era
costume na época. Notas ligadas de uma pulsação a outra ou de um compasso a outro foram deixadas sem
adorno, para que os retardos e o caráter rítmico da peça não fossem obscurecidos, e, por assim dizer, para
desviar os holofotes para o baixo contínuo. Estas notas longas podem ser embelezadas através do uso de
flattement, uma espécie de vibrato de dedo, conforme recomendação dos métodos barrocos que chegaram
até nós.
Ao decidir a quantidade de ornamentação que cabe acrescentar a um movimento lento, é fundamental para
o flautista levar em conta também a destreza de seu acompanhador e sua maneira de tocar. Se o baixo
contínuo for realizado de modo discreto e despojado, com pouca ornamentação e acordes não muito cheios,
uma ornamentação mais exuberante por parte do solista se justifica. Mas se o acompanhador, por outro lado,
é daqueles que adoram fazer acordes muito cheios e acrescentar dezenas de passagens ornamentais à sua
própria parte, talvez convenha mais ao flautista tocar com uma postura mais sóbria. É importante avaliar o
equilíbrio entre os dois instrumentos, não só no que concerne o volume sonoro, mas também a densidade da
textura.
Finalmente, devemos ressaltar que todas estas são opções pessoais, de jeito algum obrigatórias. Em qualquer
época, não existe uma maneira correta de se tocar uma peça musical e é a variedade de concepções artísticas
que faz da interpretação uma atividade fascinante. No caso da música barroca, num período em que o
intérprete era considerado tão importante quanto o compositor (ou até mais), a liberdade interpretativa era
o objetivo final de todo bom músico. O encanto de um movimento como o Larghetto que tentamos dissecar
é exatamente a quantidade de possibilidades interpretativas diferentes que nos oferece, sem, contudo, perder
sua personalidade e suas características únicas. Reside aí, em grande parte, o talento e a grandeza do
compositor permitir que o instrumentista brilhe, mantendo acesa a chama do autor. Afinal, como
afirmava o mestre J. J. Quantz “O Adágio geralmente proporciona a pessoas que são simples amadores de
música o menor dos prazeres. No entanto um verdadeiro músico pode se destacar pela maneira como toca o
Adágio.
21
(Quantz 1966, 162)
12. Considerações finais
A elaboração de uma versão ornamentada do Larghetto de Handel à luz das Sonatas Metódicas de Telemann
busca não apenas oferecer um exemplo prático de interpretação, mas também estimular reflexões sobre o
papel criativo do intérprete na música barroca. Ao estudar a ornamentação como linguagem viva e flexível, o
21
“The Adagio ordinarily affords persons who are simple amateurs of music the least pleasure. […]. Yet a true
musician may distinguish himself by the manner in which he plays the Adagio”.
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Rónai, Laura. Notas sobre a interpretação de um Larghetto de Handel
músico se torna também leitor-criador, respeitando os limites do estilo, mas sem abrir mão da expressão
pessoal.
A edição comentada, apresentada como anexo, é fruto dessa abordagem reflexiva e prática. Espera-se que
ela contribua para o repertório interpretativo da flauta, mas também para o debate mais amplo sobre como
ensinar e praticar ornamentação em música barroca.
13. Referências
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