Linguística e Tecnologia

Humor, ideologia e discurso: a circulação dos estereótipos do caipira em piadas na internet

Humor, ideology and discourse: the circulation of the caipira stereotypes on the internet

Emanuel Angelo Nascimento
Universidade Estadual de Campinas, Brasil

Humor, ideologia e discurso: a circulação dos estereótipos do caipira em piadas na internet

Texto Livre: Linguagem e Tecnologia, vol. 9, núm. 1, pp. 28-47, 2016

Universidade Federal de Minas Gerais

Recepção: 06 Março 2016

Aprovação: 16 Abril 2016

Resumo: Inscrito na Análise do Discurso (AD) de linha francesa, este artigo tem por objetivo discutir o funcionamento do discurso do humor relacionado à circulação dos estereótipos do caipira na internet. O corpus é constituído de um conjunto de piadas publicadas no portal Humortardela e no site AnimaTunes, a partir do qual analisamos, com base nos estudos de Possenti (1998, 2010), as condições de produção do discurso do humor. Para análise desse objeto de estudo no espaço digital, leva-se em conta a noção de discurso eletrônico, a partir de Orlandi (2013), além dos estudos de Bergson (2007), Raskin (1985) e Skinner (2002) sobre o riso e o humor. Mobiliza-se, ainda, os conceitos de cenas de enunciação, desenvolvidos por Maingueneau (2008), e de estereótipos, a partir de Amossy e Pierrot (1997), a fim de compreender como as representações do caipira emergem nos processos de enunciação humorística. A partir dos resultados das análises, pretende-se verificar como as representações do caipira são interpeladas no interdiscurso e de que forma a internet contribui para a circulação dos estereótipos do caipira na rede em sua relação com o humor.

Palavras-chave: estereótipo, caipira, internet, discurso, humor.

Abstract: Based on the Discourse Analysis (AD) of French orientation, this article aims at discussing the functioning of the humor discourse associated with the circulation of the stereotypes of the Brazilian caipira on the internet. The corpus comprises a set of jokes published on the portal Humortardela and on the website AnimaTunes, from which we analyze, based on studies of Possenti (1998, 2010), the production conditions of the humor discourse. For the analysis of this object of study on the digital environment, we take into account the notion of electronic discourse, from Orlandi (2013), as well as the studies of Bergson (2007), Raskin (1985), Skinner (2002) about laughter and humor. We also put together the concepts of scenes of enunciation, developed by Maingueneau (2008), and stereotypes, of Amossy and Pierrot (1997), in order to understand how the representations of the caipira emerge in the processes of humor enunciation. From the analysis results, we intend to verify the way the representations of the caipira are challenged in interdiscourse and how the internet contributes for the circulation of the caipira stereotypes on the web in its relation with humor.

Keywords: stereotype, caipira, internet, discourse, humor.

1. Introdução

O objetivo deste artigo é analisar o funcionamento dos discursos de humor e a circulação dos estereótipos do caipira em piadas na internet. Uma das observações iniciais é a de que, geralmente, as representações do caipira apoiam-se na imagem de um sujeito ora bobo/inocente, ora matuto/esperto, sócio-historicamente evocada, no interdiscurso, a partir da memória e do imaginário coletivo. A partir da Análise do Discurso (AD) francesa, busca-se estabelecer aqui um diálogo entre a tendência materialista defendida por Eni Orlandi e a desenvolvida atualmente na França por Dominique Maingueneau. Consideramos, desse modo, os conceitos de discurso eletrônico (ORLANDI, 2013), de cenas de enunciação (MAINGUENEAU, 2008), além das teorias do riso de Bergson (2007), dos estudos sobre os mecanismos de humor a partir de Raskin (1985) e de Possenti (1998, 2010), a fim de investigar os efeitos de humor/comicidade relacionados a alguns desses estereótipos do caipira presentes em piadas que circulam na web. Para o tratamento da questão dos estereótipos, levamos em conta os trabalhos de Amossy e Pierrot (1997).

Além disso, analisamos como o espaço digital contribui para reproduzir determinadas representações da cultura caipira. Da mesma forma, buscamos compreender como a história e a ideologia são mobilizadas na relação entre a materialidade e a exterioridade discursiva, evocando os costumes, as tradições e a variante regional (dialeto caipira/caipirês), articulados por meio de processos de enunciação do humor que visam provocar a comicidade e, por conseguinte, o riso.

A partir de um corpus constituído de um conjunto de piadas publicadas no portal Humortardela e no site AnimaTunes, procuraremos observar, nas representações construídas sócio-historicamente (na literatura, nos quadrinhos, no cinema e na música), quais estereótipos do caipira e quais traços de sua cultura permanecem presentes na memória discursiva, operando no funcionamento discursivo do humor. Pretendemos também discutir, neste artigo, quais relações de sentido estão na base da construção desses estereótipos, que ora consideram o caipira matuto/esperto, ora um sujeito inculto/bobo/atrasado, como, por exemplo, em relação ao sujeito das grandes cidades. Afinal, tal como afirma Possenti (2002, p. 159), “uma das características das piadas é que elas opõem dois discursos, que podem ser caracterizados como positivo/negativo (e que se especifica, por exemplo, em 'macho/veado', 'bobo, caipira/esperto')”.

2. Ideologia, discurso e estereótipos do caipira

Para a Análise do Discurso, os estereótipos apresentam-se, geralmente, como um lugar-comum devido à sua cristalização e circulação na sociedade, através da memória discursiva e das representações construídas sócio-historicamente. Nesse sentido, o funcionamento da estereotipia é concebido a partir das relações entre sujeito, linguagem, história e sociedade. Assim:

[…] o estereótipo, como representação coletiva cristalizada, é uma construção de leitura (Amossy, 1991:21), uma vez que ele emerge somente no momento em que um alocutário recupera, no discurso, elementos espalhados e frequentemente lacunares, para reconstruí-los em função de um modelo cultural preexistente (Amossy, 1997) (AMOSSY, 2004, p. 215).

Na história cultural brasileira, diversos estereótipos do caipira são evocados, levando-se em conta diferentes tipos de discurso (histórico, literário, artístico, entre outros). Podemos destacar, como exemplo, a imagem do caipira rústico, pobre, ingênuo e inculto do personagem Jeca-Tatu, de Urupês (2012), de 1918, concebido por Monteiro Lobato. Esse tipo ganhou, inclusive, uma expressão metaforizada na língua portuguesa, quando se registrou “o substantivo comum jeca, que designa o que habita o meio rural, caipira”, de acordo com Torrecillas (2008, p. 4). Não apenas este sentido, mas também outro mais pejorativo é apresentado de forma dicionarizada, expressando aquele que “revela mau gosto, falta de refinamento” (HOUAISS, 2001), que é “cafona, ridículo”.

Além do Jeca-Tatu de Monteiro Lobato, na literatura, outras representações como o personagem da tela Caipira Picando Fumo (1893), do artista Almeida Júnior, o personagem principal dos filmes de Mazzaropi, no cinema, e o personagem Chico Bento, das Histórias em Quadrinhos (HQs) de Maurício de Souza, exerceram um papel crucial na construção de um tipo regionalista, rústico, descrito, principalmente no século XX, por alguns intelectuais da época, como sendo um sujeito à margem da chamada civilização urbana e estagnado diante do desenvolvimento econômico e social das grandes capitais brasileiras.

Em termos ideológicos e discursivos, Chico Bento, de Maurício de Souza, pode ser comparado, em alguns aspectos com o personagem caipira, descrito por Monteiro Lobato, uma vez que Jeca-Tatu, sujeito pobre e simples, também habita o ambiente rural do interior, apresentando-se, geralmente, com os pés descalços e utilizando o seu habitual chapéu de palha. Segundo Giacon (2012, p. 130), o que difere aquele personagem deste é que “Chico Bento é o personagem que resgata a importância do mundo caipira na formação da nacionalidade brasileira”. Nesse sentido é que Pires (1987 apud MARIANO, 2000) se posiciona contra determinadas visões preconceituosas em relação a esse tipo regional, defendendo que o caipira é naturalmente um “homem da terra, que conversa com a terra, que trabalha e vive da terra” (ibidem, p. 3), sendo os caipiras singulares na culinária, na vida religiosa, nas crendices e na magia que encontram na sinceridade, na simplicidade, na ingenuidade de explicar e entender o mundo. Igualmente, Teixeira (2012, p. 16)[1] defende o caipira, afirmando que uma de suas canções mais famosas, Romaria:

[…] teria também que soar como uma contestação; a cultura caipira não estava esgotada e superada como queriam nossos formadores de opinião. Nada como algumas pitadas concretistas para mostrar que não éramos Jecas e que poderíamos andar lado a lado com as tendências mais avançadas (TEIXEIRA, 2012, p. 16).

3. Estereótipos e simulacro

Como bem destaca Possenti (1998), o estereótipo é um dos meios mais explorados na articulação do riso. No caso das piadas, as representações do caipira, geralmente, denotam um certo exagero caricaturesco. Evocando a noção de simulacro, Possenti (2002, p. 159) salienta que:

[…] as piadas fazem aparecer, ao lado de um estereótipo básico, assumido pelo próprio grupo (um traço de identidade?), o estereótipo oposto. Por exemplo, se um grupo se representa tipicamente como “macho” (valente etc.), as piadas dirão dele não só seu oposto, mas seu oposto mais rebaixado possível, considerado um certo quadro cultural. Assim, embora o traço “macheza/masculinidade” possa implicar características não ligadas necessariamente ao desempenho sexual (como valentia, ombridade etc.), o estereótipo oposto com o qual a piada opera selecionará o traço “sexualidade”. É nesse sentido que se pode dizer que o estereótipo talvez seja um simulacro.

Por essa perspectiva, observamos, nas piadas regionalistas, que alguns traços, não exclusivos necessariamente do caipira, são exacerbados em sua caracterização, visando, por meio de simulacros – isto é, a partir de pré-construídos resultantes da relação de polêmica – provocar efeitos como o de comicidade, de humor, de riso, promovendo ou refletindo, em alguns casos, determinadas visões preconceituosas, em relação ao avesso da imagem que se constrói do outro.

Por isso é imprescindível ao analista do discurso considerar as condições de produção discursiva em que os estereótipos associados ao humor são construídos. Não por acaso, Bergson (2007, p. 6) defende a respeito do riso que “é preciso colocá-lo em seu meio natural, que é a sociedade”, uma vez que sua significação é um resultado dos sentidos que emergem no imaginário coletivo e circulam sócio-historicamente. Da mesma forma, Freud, “apesar de dedicar boa parte de seu estudo sobre os chistes à técnica a partir da qual são construídos, insiste na motivação social dos chistes” (LÔBO, 2012, p. 5). Nesse sentido:

Os estereótipos funcionam […] como um referente social compartilhado, recuperado, por sua vez, pelo interdiscurso, pelo conjunto de opiniões, saberes e crenças formadores de dizeres sedimentados e sem um referente histórico aparentemente declarado. Como resultado, o efeito da estereotipia é comumente explorado pelo humor (piadas, provérbios, charges etc.) através de simulacros e, em não raros momentos, visto como fomento de preconceitos (velados ou não) no seio social (LÔBO, 2011, p. 6).

Não raro, os causos e as piadas de caipira exploram e reproduzem alguns estereótipos típicos, representando o caipira como um sujeito interiorano, que usa chapéu de palha, vive na roça e é notado por seu modo de falar em dialeto regional (marcado linguisticamente por metaplasmos e pelo r- retroflexo). Assim, tanto o texto – unidade linguística de análise – quanto o quadro social convergem, nos discursos de humor, para a produção da cenografia, fundamental como pano de fundo para que o efeito de sentido da piada provoque a comicidade e o riso. Abordando os conceitos de cenas de enunciação, Maingueneau (2008) propõe o seguinte desdobramento: (i) cena englobante (correspondente ao tipo de discurso, por exemplo, o discurso religioso, político, literário, humorístico etc.); (ii) cena genérica (os gêneros de discurso, representando um contexto específico, sobretudo, a finalidade e as circunstâncias, além das particularidades que distinguem um gênero de outros); e (iii) cenografia (cena em que se constrói e se processa a enunciação – por exemplo, uma sequência narrativa ou uma conversação). No caso das piadas sobre caipira, a encenação da enunciação é caracterizada pela sua cena englobante (o discurso humorístico), pela sua cena genérica (a piada enquanto gênero discursivo, em função, entre outras coisas, do seu caráter surpreendente, da sua brevidade, do jogo verbal nela presente etc.) e pela cenografia (enquanto funcionamento discursivo articulado através da narrativa e do diálogo encontrado nestas piadas). Em relação especificamente à cenografia, Maingueneau (2008) a define como a cena de fala que:

o discurso pressupõe para poder ser enunciado e que, por sua vez, deve validar através de sua própria enunciação: qualquer discurso, por seu próprio desenvolvimento, pretende instituir a situação de enunciação que o torna pertinente (MAINGUENEAU, 2008, p. 70).

Tendo esses conceitos em vista, comentaremos, a seguir, como as teorias sobre o humor estudam tanto o fenômeno do riso quanto os motivos sociais que o geram. Em seguida, trataremos da questão do humor nos espaços de enunciação digital, analisando, mais precisamente, as piadas sobre caipira nos casos específicos do portal Humortadela e do site AnimaTunes.

3.1 Os estudos sobre o humor e a questão do caipira

Os estudos sobre o humor remontam às teorias clássicas do riso desde as observações de Aristóteles, Platão, Cícero e Quintiliano até as pesquisas sobre os chites de Freud (1996) e sobre os mecanismos do humor analisados por Raskin (1985). Um dos autores que traçaram esse panorama histórico dos estudos sobre o humor é Skinner (2002, p. 52), para quem o riso expressa a sensação alegre e desdenhosa de quem se coloca em posição de superioridade.

Em sua obra O riso (1899), o filósofo francês Henry Bergson aproxima-se do tema do riso, apresentando os mecanismos e o funcionamento do humor em suas características primárias. Assim, Bergson (2007 apud FIGUEIREDO, 2012, p. 176) ressalta: (a) o fato de ele (o riso) ser algo propriamente humano; (b) a necessidade de certa “ausência de sentimento” no riso; (c) e o fato de o riso ser algo compartilhado socialmente. A “ausência de sentimento” de que trata Bergson (2007) representa uma certa insensibilidade na relação com o outro como motivo/objeto de deboche/chacota, uma vez que a finalidade da piada, neste caso, é atingi-lo. Esses aspectos elucidados por Bergson (2007) interessam-nos não apenas pelo seu caráter teórico e empírico, mas também porque nos ajudam a situar o objeto de análise proposto neste artigo, que são os estereótipos do caipira como representações recorrentes no campo do humor. Alguns exemplos são as piadas que evocam a representação de um caipira visto como um Jeca-Tatu, um sujeito inferior, bobo/ingênuo, inculto, no sentido pejorativo da palavra Jeca.

As piadas que exploram a imagem do caipira, geralmente, são construídas a partir de representações hiperbólicas, que, em muitos dos casos, evocam outros discursos sócio-historicamente marcados, seja pelo rebaixamento, seja pelo preconceito em relação à cultura caipira. Tal como aponta Lobo (2011, p. 11), piadas regionalistas em discursos desse tipo “aparentemente não encontram barreiras para a promoção do riso – diferentemente, por exemplo, das piadas que tematizam o negro”. Por outro lado, essas piadas oferecem um material rico para a compreensão de como circulam na sociedade os sentidos e as diversas representações de tipos regionais como o caipira, o gaúcho, o baiano, o paulista, o carioca, entre outros tipos que, em seu conjunto mais amplo, formam a brasilidade, marcada por semelhanças/diferenças, traços de identificação/rivalidade/bairrismos. Dessa maneira, segundo Conde (2005), é que, na materialidade discursiva:

as piadas ditas regionais apresentam enunciadores rivais em ação e em trabalho incessante com o equívoco na língua. Há também riqueza cenográfica significando práticas sociais e regularidades discursivas conferindo unidade a grupos heterogêneos (CONDE, 2005, p. 1).

Nesse sentido, encontramos fartos exemplos de piadas em que cariocas, paulistas ou outros tipos de grandes centros urbanos brasileiros (da cidade grande) parecem sugerir uma visão, por vezes, ridicularizadora, com traços de deboche e zombaria, em relação à imagem que supostamente esses tipos têm do outro. Identificamos, nesses e em outros casos, uma certa generalização da imagem do caipira, visto como bobo/ingênuo, inocente ou inculto. Conde (2005, p. 2) destaca que:

pelo viés mais sociológico […] pode-se observar, com a lente da irreverência, toda uma série de preconceitos étnicos e políticos em estado bruto, o que, eventualmente, também permitiria pensar os regionalismos brasileiros e seu jogo de significações fora do campo específico do humor.

Todavia, em razão de a nossa proposta de análise ser, especificamente, no campo do humor (e não no campo da sociologia), faremos uma análise da construção do discurso humorístico a partir de algumas amostras de piadas de caipira que circulam na internet, como já sublinhamos. Assim, procuraremos, em nossa análise, observar como tais representações do caipira são construídas no espaço digital e de que forma elas circulam nos portais e nos sites de piadas, tendo em vista os diferentes modos de enunciação do humor.

3.2 O humor nos espaços de enunciação digital

A forma de organização dos textos no espaço da internet revela alguns aspectos importantes das condições de produção do sentido nos processos de enunciação digital. Afinal, os sites e os portais de entretenimento online são constituídos de toda uma tessitura textual particular, uma vez que, no domínio digital, há uma vasta disponibilidade de recursos possibilitados pelo hipertexto e pela hipermídia[2], em que os vídeos, o áudio, os infográficos, os arquivos, a reprodução de textos impressos, a reprodução de figuras, ilustrações e imagens contribuem para a construção dos sentidos.

Tais elementos têm influenciado sobremaneira as relações entre tempo, espaço, sujeito, discurso e sociedade. Nesse entendimento, Maingueneau (2015, p. 39) destaca que:

[…] a materialidade do texto se tornou plural. Hoje, um pronunciamento político pode se manifestar ao mesmo tempo por uma forma impressa, por um enunciado em um site da Web, por uma gravação em áudio veiculada por uma rádio, por um vídeo em um site de compartilhamento, por um DVD… Sem falar das versões em número indeterminado que foram realizadas por câmeras ou gravações desse ou daquele espectador ou ouvinte.

Essas materialidades, presentes nas publicações online e nos sites de humor, por meio de gêneros discursivos próprios da internet, assumem um papel fundamental na construção da enunciação digital e do discurso eletrônico. No caso, os conteúdos do portal Humortadela e do site AnimaTunes inscrevem-se nessa dimensão digital, de forma expansiva – na medida em que as tecnologias permitem ampliar diferentes modos de circulação dos textos.

Não raro, encontramos diversos memes, piadas e vídeos engraçados com larga frequência em outros sites, fora de seu ambiente de origem – por meio de postagens, reprodução e compartilhamento em páginas como as do Facebook, do Twitter, e em mensagens de aplicativos como o WhatsApp, em aparelhos portáteis (tablet, ipad, smartphone).

Os modos de enunciação digital se caracterizam, assim, por uma relativa onipresença do discurso eletrônico a partir da qual o sujeito é convocado a participar de forma colaborativa e/ou interativa. Trata-se de um processo em que os modos/espaços de enunciação se revestem de todo um aparato tecnológico, que fornece diferentes caminhos para o dizer. A partir da perspetiva materialista do discurso, Dias (2011) afirma que:

a discursividade do eletrônico […] é um processo histórico e ideológico de significação da nossa sociedade contemporânea, do modo como estamos nela, como praticamos os espaços, do modo como somos interpelados em sujeito pela ideologia, através das determinações históricas (DIAS, 2011, p. 58).

Desse modo, a atribuição de sentidos produzidos no espaço digital está associado às condições de produção e aos modos circulação dos discursos de humor nos portais e sites de piadas. Uma piada regionalista publicada por um leitor/internauta pode ser uma resposta a um determinado estereótipo do baiano, do gaúcho ou do caipira presente em outra piada publicada por outro internauta – não muito diferente do que ocorre fora do espaço digital. Entretanto, a circulação pelos espaços de tecnologia dessas piadas permitem uma maior profusão do humor, tendo em vista um largo alcance do público (convocado a interagir e a compartilhar o riso).

Observemos, agora, as particularidades de cada uma das páginas de piadas como suporte das piadas (objetos da análise proposta em nosso artigo). Procuraremos investigar a sua constituição como referência de entretenimento para o hiperleitor, bem como espaço digital de reprodução e circulação dos estereótipos do caipira nos discursos de humor.

3.2.1 O caso do portal Humortadela

O portal Humortadela foi criado em 3 de dezembro de 1995, por Sergio Batista[3], um dos pioneiros em humor, na internet brasileira. Hospedado no BOL/UOL, o portal sempre se destinou ao público em geral interessado em humor. Após 15 anos, desde o seu lançamento, o portal foi desativado em 2011, retomando suas atividades em julho de 2012, através de sua página no Facebook e, oficialmente, em agosto do mesmo ano, através de seu portal – após ter seus direitos adquiridos pela empresa brasileira OraPois, pertencente ao grupo Verisoft.

Atualmente, além das piadas mais lidas pelos internautas, o Humortadela apresenta, em sua página principal, algumas seções com charges, animações, memes, vídeos engraçados, entre outros, como jogos e sextoons (cartoons & charges de humor voltados para o público adulto), bem como a Piada 1, presente na charge assinada por Denis Casarine (cf. Figura 1).

Piada 1.
Figura 1
Piada 1.
http://humortadela.bol.uol.com.br/

Esse material se encontra disponível quando se pesquisa sobre o tópico “caipira” no sistema de busca interna do portal. Junto com a Piada 1, o internauta também pode encontrar alguns vídeos engraçados e também outras charges. Nesse caso específico, observamos como a charge tenta representar a imagem do caipira, ilustrando dois sujeitos típicos do interior, sentados cada um ao pé e à sombra de uma árvore – ambos usando chapéu de palha, um deles vestindo calça remendada e o outro, camisa aberta ao peito. Ambos parecem “prosear” (conversar), enquanto um fuma cachimbo e o outro fuma cigarro de palha. Além disso, a piada presente na charge se caracteriza pelo texto breve e pela representação em sua escrita da variante regional utilizada na fala entre os dois personagens caipiras: ocê > você, uai (interjeição típica do caipirês). Mais adiante, analisaremos discursivamente o teor das piadas. Por ora, voltaremos nossa atenção para o perfil das páginas de humor na internet através das quais selecionadas nosso corpus de pesquisa. Observaremos, em linhas gerais, algumas semelhanças e diferenças nas ilustrações do caipira nas charges do portal Humortadela e do site AnimaTunes. Em seguida, procederemos propriamente às análises das piadas.

3.2.2 O site AnimaTunes

O site AnimaTunes foi criado em 2007 e tem como sócios Baltazar Paprocki Neto, publicitário, ilustrador, animador gráfico e designer, e Mike Mattos, jornalista e roteirista. Do ponto de vista dos próprios editores do AnimaTunes, “o povo Brasileiro é muito receptivo ao bom humor, haja vista como alguns bordões de programas televisivos ficam para sempre na memória e incorporam-se à língua no uso diário” (PAPROCKI; MATTOS, 2012, p. 1).

Assim, a proposta do site é levar ao leitor o humor em linguagem simples e de fácil circulação, com piadas, vídeo-tunes, tirinhas, entre outros conteúdos, como a charge animada (cf. Figura 2), que tenta ilustrar um típico caipira vestindo camisa xadrez, calças com remendos, chapéu de palha e visto como um sujeito integrado ao ambiente rural, que gosta de pescaria. Curiosamente, o personagem caricaturado é o mesmo da ilustração que circula no site do Humortadela, sobre o qual comentamos anteriormente e do qual trataremos mais adiante.

Charge-animada (frame de vídeo).
Figura 2
Charge-animada (frame de vídeo).
http://www.animatunes.com.br/

4. Análise do corpus

Expostas, assim, as características dos portais/sites (suportes digitais) nos quais circulam os textos de nosso corpus de estudo e também as bases teóricas do enfoque enunciativo-discursivo que empreenderemos em nossa análise, observemos alguns exemplos de piadas do portal Humortadela e do site AnimaTunes, a partir dos quais pretendemos demonstrar como a presença dos estereótipos do caipira contribui para a promoção do humor. O material de análise foi coletado mediante acesso ao site e ao portal – por meio de pesquisa em sistema de busca interna –, sendo que a escolha das piadas, na organização do corpus, levou em conta a constante frequência e retomada de alguns estereótipos do caipira (bobo/ingênuo), os quais analisaremos a seguir.

4.3 Família caipira

Primeiramente, analisaremos uma das versões de uma piada sobre caipira que foi publicada na primeira fase em que o portal Humortadela esteve online, de 1995 a 2011, antes de interromper suas atividades por um ano.

Nessa versão, podemos conferir (Figura 3) como a temática da Piada 2a (cf. transcrição 1) é estabelecida a partir do sintagma “Família Caipira”, identificada no alto da página do site. A ideia pressuposta, inicialmente, por esse sintagma desempenha um papel fundamental na construção dos sentidos da piada. Semântica e discursivamente, o termo “família” parece evocar a noção (ideologicamente dominante) de uma família tradicional. Entretanto, esse sentido é deslocado para outro campo, socialmente relevante, que é o das diversas e possíveis configurações de família.

Piada 2a.
Figura 3
Piada 2a.
Página de Humortadela. Piada-texto nº 26672.

Podemos observar, na Piada 2a (cf. transcrição 1), um diálogo entre dois compadres caipiras. Esse diálogo se desenrola “numa cidade do interior”, que constitui parte da cenografia da piada. Além da marca de espacialidade, o enunciado inicial apresenta também a indicação de temporalidade: “dois compadres se casaram no mesmo dia e, depois de muitos anos, se encontraram” (grifo nosso). Depois de cumprimentam-se, os dois compadres, surpresos pelo longo tempo sem se verem, começam a perguntar como anda a vida um do outro.

Transcrição 1 (Piada 2a) Dois compadres se casaram no mesmo dia e, depois de muitos anos, se encontraram numa cidade do interior. — E aí, compadre, quanto tempo! Como é que está a vida? — Pois é, compadre… Eu tive dois filhos. Um se formou em Medicina e o outro em Direito. E você, compadre?— Bom, compadre, eu tive três. O primeiro virou veado e está dando que não é brincadeira.— É mesmo, compadre? E o segundo?— Nem te falo. Por influência do primeiro, também tá dando mais que chuchu na serra.— E o terceiro?— Esse sim, compadre. Esse foi o melhor. Só dá quando bebe.— E ele bebe muito?— Nossa! Como aquele menino tá bebendo, compadre…

Um dos caipiras, prontamente, começa a relatar que teve dois filhos, um que se formou em Medicina e o outro em Direito. Em seguida, questiona o outro compadre: “E você, compadre? (Como é que está a sua vida?)”. A partir desse ponto do diálogo entre eles, surge uma resposta inesperada. Isso porque o compadre que foi questionado informa ter três filhos e que um deles “virou veado”. Além dessa informação, o caipira acrescenta que o seu filho “está dando que não é brincadeira”. A graça, nesse caso, instala-se pela forma direta e pela sinceridade com que o pai apresenta e resume o histórico de vida de um de seus filhos, a partir de um tema historicamente considerado tabu, isto é, um pai falar abertamente sobre a homossexualidade de um filho. Isso, no texto, é evidenciado pela surpresa do outro compadre, que, por conta disso, expressa uma curiosidade ainda maior em saber sobre os outros filhos do amigo: “É mesmo, compadre? E o segundo?”. Os processos de enunciação, a partir da expectativa pela resposta do compadre, revestem-se de uma estratégia discursiva que leva em conta uma certa gradação informativa. Assim, quando um dos compadres responde que o seu segundo filho também se tornou “veado”, influenciado pelo primeiro, o outro compadre é levado a criar uma expectativa em saber também sobre a opção sexual do terceiro filho do amigo.

Simultaneamente a esses aspectos pragmáticos-semânticos que decorrem do diálogo entre os dois caipiras, observamos como a enunciação dos sentidos em torno da relação de um dos compadres com a opção sexual de seus três filhos é revestida de todo um efeito de graça/humor articulado discursivamente por meio de expressões populares e típicas do dialeto caipira, tais como: “está dando que não é brincadeira” e “[…] por influência do primeiro, está dando mais que chuchu na serra” (grifo nosso). Esses elementos da linguagem popular se relacionam com os possíveis efeito de humor, na medida em que se valem da informalidade para atribuir um sentido levemente de deboche em relação ao assunto tratado: a questão da homossexualidade.

Raskin (1985), em Semantic mechanisms of humor[4], caracteriza esse mecanismo linguístico de articulação do humor a partir da existência de dois scripts, que, nessa Piada 2a, são colocados, de um lado, por meio de um script homossexual (expresso pelo termo “veado”, que, no português popular, designa, de forma pejorativa, o sujeito homossexual) e, de outro lado, por meio de um script heterossexual/não-homossexual (expresso pela ideia/possibilidade de algum filho de um dos compadres “não ser veado”, pressuposto a partir do diálogo. A convocação, por sua vez, dos interlocutores, no intuito de descobrir a opção sexual (heterossexualidade ou homossexualidade) do terceiro filho de um dos caipiras instaura o efeito de expectativa e inscreve, na cena, uma certa preparação para o gatilho final, que visa resolver a possível dúvida pelo fato de um dos filhos do caipira ser/não ser “veado”.

Podemos afirmar que, nos fios do discurso, o humor reflete, portanto, certos pensamentos e formas veladas de preconceito/discriminação que circulam sócio-historicamente contra determinados grupos (como os do[a]s gays, lésbicas, homo/transexuais, entre outros). E, nesse caso, quando notamos que o conjunto da piada pretende associar a homossexualidade à temática da família caipira, percebemos que há uma certa intencionalidade de tentar ilustrar, de certa forma generalizadora, uma típica família caipira ligada à predominância de filhos homens homossexuais/gays/veados.

No caso, subjaz uma relação de tensividade no que diz respeito ao fato de algum filho do caipira ser/não ser veado – o que constitui a base semântica da piada. Por outro lado, o discurso machista dominante, na piada, reprime a questão socialmente relevante que é o das diversas possibilidades de configuração familiar. Satiriza, nos fios do discurso, a questão da orientação sexual dos filhos integrantes da família caipira, uma vez que para o caipira, aparentemente, o homossexual é um sujeito a ser evitado, e silencia aspectos importantes como os dos direitos homoafetivos. Aliás, a oposição macho/veado, no jogo pragmático-semântico da piada, inscreve no ethos discursivo do caipira o tom machista que pode ser verificado na/pela resposta final do pai, quando este revela que seu terceiro filho tem bebido e muito! O tom, no caso, é predominantemente de deboche e o humor da piada depende dessa relação de sentidos entre a condição de o filho do caipira “só dar, quando bebe” e o fato de o rapaz “ter o hábito de beber muito”.

4.4 Caipiras no metrô

Uma versão diferente dessa mesma piada (cf. Figura 4 e transcrição 2 da Piada 2b), curiosamente, também foi publicada pelo portal Humortadela, quando este retomou suas atividades online em 2012. No caso, essa segunda versão é revestida de todo um modo diferente de enunciar no espaço digital, através de uma vídeo-animação. Assim, a Piada 2b (cujos desenhos e animações são assinados por Balta; texto, vozes e edição, por Paulo Faiok) insere no texto dois personagens (Zé e Ademir) representados como amigos e compadres.

Na vídeo-animação, o diálogo entre os compadres caipiras é apresentado por meio de vídeo-legendagem e se desenvolve em um espaço narrativo diferente da primeira versão: em vez da cidade interiorana, eles se encontram em um vagão de metrô na “cidade grande”[5].

Piada 2b.
Figura 4
Piada 2b.
Humortadela. Animação nº 43021.

Além disso, a piada é organizada sob uma temática diferente, proposta pelo próprio portal Humortadela – não mais sob o tema da família caipira, mas sob o tema caipiras no metrô.

Transcrição 2 (Piada 2b)— Zé? É ocê memo?— Eita. Se não é o Ademir— Tem mais de vinte ano que nóis num se vê, homi!— Pois é, o tempo passa rápido demais, sô!— E o que cê fez da vida, Ademir? Casô, teve fio, essas coisa?— Essas coisa… He, he! Casei com a Jovineuzalzira e tive três fio.— Que belezura!— Belezura? Ocê num sabe o trabaio que os moleque me dá!— E é?— Se é… O mais véio é desses tar de homossexuar…Quando disimbesta a dá o butão… Mas dá, dá, dá o dia interim!— Eita lasquera…— Pior é que o do meio foi infruenciado por ele! Resurtado, dá tamém, sô!— Eita nóis…— E quando junta os dois intão… Mai dão, dão, dão o dia interim!— Eita cumpade, que trem isquisito, sô!— E o mais novo? Num vai dizer que ele tomem foi infruenciado?— É, pra num deixá infruenciá o caçula, eu mandei ele pra casa da vó, em São Tomé dos Número.— E deu certo?— Bão! Fiquei sabendo que ele só dá quando bebe.— É, meno mar…— Mais bebe, bebe, bebe…

Na vídeo-animação e na transcrição da Piada 2b, observamos o diálogo entre os dois caipiras por meio de legendas (aqui transcritas), nas quais chamam a atenção a representação de traços do dialeto caipira, muito mais acentuada do que na versão anterior (2a). Identificamos também, nessa segunda versão (Piada 2b), tentativas semelhantes de representar a fala/oralidade do dialeto caipira na escrita[6], por meio de expressões/termos como: cê/ocê (você), memo (mesmo), nóis (nós), num se vê (não nos vemos), homi (homem), eita lasquera, sô, belezura, disimbesta (respectivamente, duas interjeições e duas expressões típicas do caipirês), casô? (casou?), três fio (três filhos), trabaio (trabalho), véio (velho), tar (tal), homossexuar (r- retroflexo na terminação de “homossexual”), dá o dia interim (dá o dia inteiro), pió (pior), infruenciado, resurtado, tamém, cumpade, trem isquisito (metaplasmos, respectivamente de influenciado, resultado, também, compadre e trem esquisito).

Apesar das diferenças entre os textos de uma versão e outra (Piadas 2a e 2b), verifica-se em ambas que a tensão gerada pela dúvida (um dos filhos do caipira ser/não ser veado) se mantém na base semântica da piada. Por exemplo, na primeira versão (2a), quando um dos caipiras afirma que o terceiro filho (i) “só dá quando bebe”, esse enunciado é precedido do seguinte comentário “Esse sim, compadre. Esse foi o melhor”, que revela, nos fios do discurso, uma forma de preconceito velado, subentendido pela ideia de “ser melhor”, isto é, no “possível” sentido de dar menos que seus irmãos. Possível sentido esse desfeito ao final da piada – uma vez que se verifica que o filho mais novo “dá” na mesma medida em que bebe (e, aliás, bebe muito, ou seja, “dá” muito também). Já, na segunda versão (2b), o comentário em relação ao enunciado “só dá quando bebe” não é expresso pelo pai, mas pelo amigo compadre, que julga da seguinte forma: (ii) “Menos mar!”. Tanto este como o comentário da versão anterior pressupõem, nos fios do discurso, uma certa ideologia de rejeição ou aversão ao homossexualismo, que também é depreendida pelo comentário de estranhamento do amigo: (iv) “Eita cumpade, que trem isquisito, sô!”. Cabe, ainda, ressaltar que, na vídeo-animação, enquanto os dois compadres conversam, no vagão do metrô, um rapaz (sentado, vestindo calças jeans e usando tênis) lê um jornal e, ao mesmo tempo, acompanha discretamente a conversa entre os caipiras, com ares de estranhamento.

A aversão à homossexualidade, compartilhada pelos dois caipiras, é pragmaticamente evidenciada, seja pela preocupação do pai e do amigo compadre com relação ao fato de um ou outro filho do caipira ser ou não “veado”, seja pelas formas de deboche e espanto pressupostas pelos seguintes comentários entre os compadres, no texto legendado da segunda versão (2b): (v) “Belezura? Ocê num sabe o trabaio que os moleque me dá!”; (vi) “O mais véio é desses tar de homossexuar”; (vii) “Pior é que o do meio foi infruenciado por ele”; e (viii) “É, pra num deixá infruenciá o caçula, eu mandei ele pra casa da vó”. Subentende-se desses enunciados que o pai nutre, ainda, uma preocupação com a possibilidade de o filho mais novo também poder se tornar homossexual, fazendo o possível para evitar isso. Tal posicionamento discursivo-ideológico é compartilhado pelo amigo e a escolha do termo “homossexuar”, embora menos pejorativo que “veado”, revela um certo tom de ironia/deboche, nos fios do discurso, em relação a uma determinada imagem hiperbólica do homossexual, visto como estranho ao caipira e ao seu amigo compadre, como é possível inferir dos enunciados: (ix) “e quando junta os dois intão… Mai dão, dão, dão o dia interim!”; (x) “eita lasquera”, (xi) “eita nóis” e (xii) “que trem isquisito, sô!”. Nesse sentido, Fiorin (1988, p. 45) afirma que:

Um discurso pode aceitar, implícita ou explicitamente, outro discurso, pode rejeitá-lo, pode repeti-lo num tom irônico ou irreverente. Por isso é que o discurso é o espaço da reprodução, do conflito ou da heterogeneidade. As relações interdiscursivas podem, assim, ser contratuais ou polêmicas.

Assim, as modificações feitas na Piada 2b explicitam o tom de irreverência com que o pai se expressa, ao confessar a respeito do seu terceiro filho o seguinte: “Mai bebe, bebe, bebe...”. As repetições, no caso, reforçam o efeito de comicidade e humor. Esses elementos de linguagem e caracterização do caipira dos quais o texto humorístico se vale (na representação da oralidade e do dialeto na escrita, na ilustração dos modos de falar e de se vestir do caipira, em contraste com a cultura urbana) servem como recursos discursivos que constituem a cenografia da enunciação da piada. Termos e expressões regionais como “está dando mais que chuchu na serra”, “que trem isquisito, sô!”, “e quando junta os dois intão... Mai dão, dão, dão o dia interim!”, associados ao ethos discursivo caipira, reforçam, ainda mais, o tom do humor.

4.5 Prosa entre dois caipiras

Nas tirinhas do site AnimaTunes, geralmente, se repetem, com certa regularidade, piadas expressas na forma de diálogo, isto é, representadas pela tradicional “prosa” entre dois caipiras” – sendo estes, geralmente, representados como “compadres”, termo comum na cultura caipira.

Na Piada 3, presente na tirinha a seguir (Figura 5), observamos um exemplo bastante comum de humor leve, em que o jogo de sentidos e a “brincadeira” com a linguagem caracterizam um certo tipo de graça decorrente da ambiguidade das palavras e de determinadas expressões da língua. Tal como ocorre em 2b (Figura 4), há, na Piada 3, um apelo visual para a imagem do caipira, ao ilustrar dois amigos também usando chapéu de palha, um deles vestindo camisa xadrez, o outro, calça com remendos. O diálogo tem como pano de fundo o ambiente de uma cidade do campo/interior, como pode ser observado na ilustração, pela casa simples, rodeada por extensa vegetação e árvores (cf. Figura 5).

Piada 3.
Figura 5
Piada 3.
Animatunes. Tirinha AT-00214, 06.10.2010.

O que voltamos a observar, a partir da Piada 3, é que o AnimaTunes, em suas tirinhas e vídeo-animações, como já sublinhamos, geralmente estampa as mesmas caricaturas do caipira presentes nas vídeo-animações do portal Humortadela, que, naquele caso, registra ao final do vídeo a assinatura de Balta como autor dos desenhos. Nas tirinhas do AnimaTunes, a menção de autoria dos desenhos, como frequentemente fazem os cartunistas e desenhistas, se dá através de abreviações de assinaturas ou siglas; e, no caso da tirinha AT-00214 aqui analisada (Figura 5), quem assina é B.P.N., que se trata de uma sigla para Baltazar Paprocki Neto, publicitário, ilustrador, animador gráfico, designer e um dos sócios do site AnimaTunes.

Retornando à análise, além dos elementos visuais (desenhos, caricaturas), que são, nesse caso, internos ao discurso como enunciado, a Piada 3 também tenta representar o dialeto caipira como recurso linguístico estratégico, que contribui para a construção do sentido de informalidade entre os dois amigos compadres, além de reforçar o estereótipo do caipira. A cenografia, nesse caso, desempenha um papel fortemente atrelado aos modos de enunciação humorística cuja finalidade é a de ambientação, de preparação para os efeitos de comicidade que emergem dos jogos de sentidos (pressupostos, ditos, não ditos e subentendidos) presentes frequentemente nos textos de humor. Assim, como bem elucida Possenti (2010, p. 108):

[…] se a cenografia é o próprio texto da piada, aquele com o qual o leitor/ouvinte se confronta efetivamente, surgem questões interessantes. Por exemplo, uma piada pode ser construída por meio de diálogos, todos em discurso direto, o que pode permitir, por exemplo, imitações por si só carregadas de comicidade por parte do contador (imitar gagos ou fanhos e sotaques – caipira, alemão, português, americano...). Mas ela pode estar em discurso direto e dispensar as imitações. Mais: uma piada típica é uma pequena narrativa. Como tal, pode incluir descrições mais ou menos detalhadas (o gaúcho pode ter suas roupas típicas descritas e seu bigode estereotípico mencionado, o que contribui para a construção de um ethos e pode tornar um final ainda mais marcadamente surpreendente). Mas, mais do que isso, uma piada pode ter a forma de uma adivinha ou de outro gênero próximo.

O diálogo entre os dois personagens da Piada 3 é caracterizado pela típica prosa caipira. O efeito de humor – expresso de forma breve, típico dos chistes freudianos – ocorre quando um dos “cumpádis” sugere ao outro pensar em um “jeito de acabá com todos os musquito” do sítio e o outro responde que isso “seria o 'fim da picada'”. O sotaque e o dialeto regional aqui também são ressaltados como estratégia de representação do ethos discursivo caipira na enunciação da piada.

A expressão “fim da picada”, consagrada na linguagem popular, representa uma expressão idiomática de uso recorrente na língua portuguesa. Seu emprego, na literatura e na música, pode ser encontrado na crônica-poética O homem, animal exclamativo (1979), de Carlos Drummond de Andrade, e em canções como Águas de Março (1972), de Tom Jobim, e Coisas da Vida (1976), de Rita Lee.

No caso da Piada 3, o uso de “seria o fim da picada” é expressa como uma síntese/desfecho, uma abreviação súbita. O que respalda essa análise é a técnica verbal definida por Freud (1996) como abreviação, sendo que tal abreviação dá-se pela “tendência à economia”.

A graça da piada está centrada justamente no uso da expressão “fim da picada”, que além de resumir a opinião de um dos caipiras, implica a duplicidade de ideias pressupostas em seu comentário, na medida em que a expressão “ser o fim da picada” sugere, no humor do texto, tanto a ideia de (a) “se acabar de vez com as picadas dos mosquitos”, bem como a ideia de (b) “isto ser um absurdo”. Por conseguinte, a não observação por parte do leitor desse jogo de sentidos (a) e (b) determinará o não entendimento da piada, com prejuízo do efeito de humor pretendido.

5. Considerações finais

Como observamos, ao cabo das análises propostas neste artigo, os estereótipos do caipira, principalmente nos textos de humor (piadas, tirinhas, vídeo-animações engraçadas), emergem de processos de enunciação, que visam ao riso, por meio do cômico e do inesperado, a partir de uma imagem caricaturesca do caipira e do seu ethos discursivo. Diferente de outros casos, aqui não comentados, o caipira não é representado como bobo/ingênuo, de forma tão acentuada, pejorativa ou preconceituosa – embora haja, nos exemplos comentados, uma certa generalização. Reforçamos, desse modo, a importância dos estudos do discurso no campo do humor, uma vez que este oferece ao analista do discurso a possibilidade de observar os mecanismos de articulação da linguagem que promovem os efeitos de comicidade, a partir dos estereótipos. Levando em conta a materialidade linguística, é possível, da mesma forma, investigar os sentidos que circulam no funcionamento discursivo do humor – tal como reflete Lôbo (2012, p. 13), quando afirma que:

as piadas, de um modo geral, são um campo rico para a AD, haja vista que os diferentes modos de articulação do riso – a materialidade textual –, somados à convergência de discursos que podem ser mobilizados em tal construção, estabelecem um objeto de estudo de grande relevância analítica.

Os textos de humor, dessa maneira, revelam a heterogeneidade discursiva a partir da qual não só os estereótipos do caipira (representado como bobo/ingênuo) são evocados, bem como outras representações, como a do filho “veado” (homossexual) são inscritas, no/pelo interdiscurso. Nesse caso, conforme analisamos, é possível perceber um certo tom preconceituoso de aversão/rejeição ao homossexual na relação entre este e o caipira. Relação essa, por sua vez, que é tratada, na enunciação do humor, a partir do rebaixamento e do deboche em relação à imagem do outro.

Desse modo, ao analisarmos as piadas de caipira na internet, observamos, além da circulação de seus estereótipos, também sua relação tanto com o ambiente da roça, representada pela paisagem natural do interior, como também sua relação com questões sociais, como a do homossexualismo.

Em síntese, percebemos como as condições de produção de sentido também possibilitadas pelas tecnologias permitem que o humor, bem como algumas tensões sócio-historicamente construídas – a exemplo, do preconceito, da discriminação – circula também digitalmente. Nesse sentido, é possível identificar que – assim como ocorre em piadas fora do ambiente online (a partir de materiais impressos e/ou na oralidade, a exemplos da contação de histórias ou dos causos) – os discursos de humor na internet também reproduzem piadas de cunho sexista, da mesma forma que faz circular os esterótipos típicos do caipira construídos antes do advento da internet. Contudo, isso ocorre a partir do hipertexto e da hipermídia, em modos específicos de enunciação, isto é, por meio do humor enunciado digitalmente.

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Notas

1 Em artigo publicado no Jornal Contato do Vale do Paraíba (SP), o músico e compositor Renato Teixeira relata as motivações artísticas, sociais e históricas que o inspiraram a compor a canção Romaria, que retrata a cultura do caipira.
2 Os termos hipertexto e hipermídia foram cunhados por Theodor Holm Nelson, na década de 60 (1963-1965).
3 Sérgio Batista é também autor do livro Pão com humor tadela: finas fatias de besteirol com recheio de baboseiras – uma coletânea de piadas publicada em 2004 pela editora Matrix.
4 Em português, Mecanismos semânticos do humor.
5 No trabalho intitulado Fórmula e estereótipo em discursos de humor (NASCIMENTO, 2016), a partir de Ebel & Fiala (1977) e de Krieg-Planque (2010), discutimos mais propriamente a questão da “cidade grande” como referente social e possível fórmula discursiva frequente nas piadas de caipira e em outros discursos para além do campo do humor.
6 O -r retroflexo tornou-se sócio-historicamente um traço marcante da variante regional caipira – da mesma forma que os metaplasmos, geralmente caracterizados por ditongações, apócopes, assimilações vocálicas e rotacismos.

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