Trabalho & Educação | v.29 | n.1 | p.155-169 | jan-abr | 2020
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DOI: https://doi.org/10.17648/2238-037X-trabedu-v29n1-12168
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/
A RELEVÂNCIA DA CATEGORIA GÊNERO E DAS RELAÇÕES SOCIAIS
DE SEXO NAS DISCUSSÕES SOBRE A ORGANIZAÇÃO E DIVISÃO DO
TRABALHO
1
The relevance of the gender category and the social relations of sex in
discussions on an organization and division of labor
MOREIRA, Lucimara
2
GUIMARÃES, Ludmila de Vasconcelos Machado
3
QUIRINO, Raquel
4
RESUMO
A mulher é apontada como a principal responvel pelo trabalho de manuteão da vida, e quando está
no mercado de trabalho, acaba acumulando os serviços produtivo e reprodutivo. A partir deste
entendimento propomos neste ensaio debater a imporncia da divisão sexual do trabalho, e relações
sociais de sexo, nas discuses clássicas sobre a divio do trabalho. Para tanto, partimos dos estudos
de Smith, Durkheim, Marx e Engels sobre divisão do trabalho, passando às obras de Kergoat e Hirata
sobre divisão sexual do trabalho e relões sociais de sexo. Neste percurso foram evidenciadas
aproximações entre Smith, Marx e Engels quanto à materialidade na base da formação da sociedade,
sendo que Marx e Engels ampliam a discussão inserindo a exploração entre as classes, e
distanciamentos entre Smith e Durkheim enquanto um vê as trocas como elo que une as pessoas, o
outro atribui à consciência da interdependência essa mesma fuão. Entretanto observa-se que a
especificidade da condão femininao foi considerada. A divio sexual do trabalho demonstra que
socialmente trabalhos ditos para homens e mulheres, sendo o do homem mais valorizado. Essa
divisão mostra-se como a base material que altera as relações sociais entre homens e mulheres,
gerando uma tensão constante que colabora com a manuteão da desvalorização, social e
ecomica, das mulheres. Com isso, conclui-se que a variável gênero é relevante nas discussões sobre
a divio do trabalho e a produção e reprodução social.
Palavras-chave: Divisão do Trabalho. Divisão Sexual do Trabalho. Relações Sociais de Sexo.
ABSTRACT
Women are appointed as the main responsible for life-sustaining work, and even when in the labor
market, they accumulate productive and reproductive services. From this understanding we propose, in
this essay, debate the value of the sexual division of labor, and social relations of sex, in the classical
discussions about the division of labor. For this, we start from the studies of Smith, Durkheim, Marx and
Engels on division of labor, and moving to the conceptual work of Kergoat and Hirata on sexual division
of labor and social relations of sex. Approaches between Smith, Marx and Engels regarding materiality
on the basis of the formation of society were evidenced in this path, and Marx and Engels go deeper on
the discussion of classes exploration, and distances between Smith and Durkheim - while one sees the
1
A primeira versão do texto foi apresentada no II Simpósio Nacional Educação, Marxismo e Socialismo; (ii) O presente trabalho foi realizado
com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
2
Mestranda em Educação Tecnológica pelo CEFET-MG. Graduada em Engenharia Mecânica pelo CEFET-MG. Integrante do Grupo de
Pesquisa Formação e Qualificação Profissional (FORQUAP) no CEFET-MG. Bolsista CAPES. E-mail: lucmoreira@yahoo.com.
3
Doutora em Administração pela UFMG. Coordenadora do Núcleo de Estudos Organizacionais Sociedade e Subjetividade (NOSS).
Pesquisadora do NERHURT/PUC. Tutora do Programa de Educação Tutorial (PET) de Administração do CEFET-MG. Professora do
Programa de Pós-Graduação em Administração do CEFET-MG. E-mail: ludmilavmg@gmail.com.
4
Doutora em Educação pela UFMG. Mestra em Educação Tecnológica pelo CEFET-MG. Graduada em Pedagogia pela UFMG.
Coordenadora do Grupo de Pesquisa Formação e Qualificação Profissional (FORQUAP) no CEFET-MG. Professora do Programa de Pós-
Graduação em Educação Tecnológica do CEFET-MG. E-mail: quirinoraquel@hotmail.com.
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exchanges as a link. between people, the other attributes the same function to interdependent
consciousness. However, it is observed that the specificities of the female condition were not considered.
The sexual division of labor demonstrates that there are socially determined jobs for men and women,
and men’s work is most valued. This division appears as the material basis that changes the social
relations between men and women, generating a tension that contributes to the maintenance of the
social and economic devaluation of women. Thus, it is concluded that the gender variable is extremely
relevant in discussions about the division of labor and social production and reproduction.
Keywords: Division of Labor. Sexual Division of Labor. Social Relations of Sex.
INTRODUÇÃO
As mulheres compõem uma importante parcela dentre os trabalhadores. Os indicadores
no Brasil revelam, conforme Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua -
PNAD (IBGE, 2018), que as elas são 43,5% das pessoas ocupadas
5
no país. Portanto,
quase metade dos trabalhadores que estão exercendo alguma atividade econômica
possuem demandas diferenciadas em comparação aos homens. Elas continuam sendo
as principais responsáveis pelas atividades domésticas e pelos cuidados com os filhos e
demais familiares, o que representa uma sobrecarga para aquelas que também realizam
atividades econômicas (BRUSCHINI; LOMBARDI, 2007, p. 48).
Longino (2008) atenta que, apesar da ciência positivista demonstrar a importância da
universalidade embasada no método cartesiano e apresentar como fonte de autoridade
a razão purificada e descorporificada, os estudos feministas levantam a importância de
situar o sujeito sexuado no tempo e espaço. Essa corporificão significa levar em
consideração que o referido sujeito está em um determinado lugar, em um dado
momento, e orientado de determinadas formas em seu meio ambiente.
Com base na epistemologia feminista, sem desmerecer ou desqualificar o conhecimento
gerado até então, mas trazendo um ponto de vista situado, o conceito de divisão sexual
do trabalho vem enriquecendo as discussões sobre o trabalho e as suas divisões, e mais
ainda, as relações sociais de sexo que eso no âmago da sociedade.
Apresentado esse contexto, compreendemos que se faz necessária a discussão
acamica sobre a imporncia da divio sexual do trabalho e das relações sociais de
sexo nas abordagens clássicas sobre a divisão do trabalho. Assim, tomamos esse como
objetivo deste ensaio, e recorremos às obras de Danièle Kergoat e Helena Hirata
(HIRATA; KERGOAT, 2007; KERGOAT, 2009) como referências teóricas para a
discussão, já que trazem à tona as questões relativas ao gênero e suas articulações com
a divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo.
Em relação às obras clássicas sobre a divisão do trabalho, trabalhamos com as obras
de Adam Smith (CERQUEIRA, 2004; COUTINHO, 1999; PAULA et al., 2016; RUBIN,
2014; SMITH, 1996), Émile Durkheim (CAETANO, 200?; DURKHEIN, 1999; ENDLICH,
1997; QUINTANEIRO et al., 2003; SELL, 2010), Karl Marx e Friedrich Engels (ALVES,
5
Segundo o IBGE (2018) são classificadas como ocupadas na semana de referência as pessoas que,
nesse período, trabalharam pelo menos uma hora completa em trabalho remunerado em dinheiro, produtos,
mercadorias ou benecios (moradia, alimentação, roupas, treinamento etc.), ou em trabalho sem
remuneração direta em ajuda à atividade econômica de membro do domicílio ou parente que reside em
outro domilio, ou, ainda, as que tinham trabalho remunerado do qual estavam temporariamente afastadas
nessa semana.
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2014; BOTTOMERE, 1988; CAETANO, 200?; GORENDER, 2001; MARX; ENGELS,
2001; QUINTANEIRO et al., 2003).
Apesar de termos uma gama de estudiosos que tratam da divisão do trabalho, a escolha
por Adam Smith se deve-se à sua relevância na economia clássica e por ser precursor
na organização deste conceito, sendo Émile Durkheim, Karl Marx e Friedrich Engels
críticos de sua obra, ampliando o debate acerca da formação social tendo por base a
divisão do trabalho.
O que podemos compreender com essa discussão, que é parte de um estudo em
desenvolvimento dois anos por um grupo de pesquisa, é que a divisão sexual do
trabalho vem avançar na conceão clássica sobre a divisão do trabalho, trazendo
aspectos que tratam da subjetividade sexuada dentro das classes, o que influencia
diretamente a forma como o trabalho e a sua organizão se dão. As relações sociais
de sexo, tendo como base material a divisão sexual do trabalho, demonstram que o fato
de socialmente haver trabalhos ditos para homens e para mulheres, e o trabalho do
homem ser mais valorizado, perpetua a desvalorização social e econômica da mulher,
mantendo-a em uma posição subalterna, e dificultando a equidade entre os gêneros.
OS CLÁSSICOS: ADAM SMITH, A DIVISÃO DO TRABALHO E AS TROCAS
Cerqueira (2004, p. 423) alerta para a falta de um conceito ou de um arranjo de conceitos,
a o século XVII, sobre o que se denomina hoje Economia. Conceitos econômicos tais
como trocas, pros, dentre outros eram citados, mas, o que não havia era a
combinação destes temas em um conjunto unitário e articulado de saberes, dotado de
princípios próprios.
Coutinho (1990) corrobora tal afirmação explicando que a partir da metade do século
XVII as obras de Petty, Catillon e Quesnay já suscitavam reflexões sobre esse novo
campo, mas foi Adam Smith que cunhou uma temática própria, uma ciência do
pensamento econômico - a economia política clássica. Em parte, isso se deve à
expressão política que sua obra Riqueza das Nações (SMITH, 1996), obteve ao
confrontar o protecionismo mercantilista vigente. Por isso,
a Riqueza das Nações é uma síntese da tetica típica da reflexão econômica dos séculos
XVII e XVIII, reunindo de modo original e em uma trama coerente, os fios antes dispersos
da cena material e cultural do capitalismo nascente (COUTINHO, 1990, p. 101).
Quando Smith inicia sua obra com a frase o trabalho anual de cada nação constitui o
fundo que originalmente lhe fornece todos os bens necessários e os confortos materiais
que consome anualmente” (SMITH, 1996, p. 59), introduz algo novo na ciência
ecomica. Neste momento o foco até então direcionado pelo mercantilismo para o
comércio é deslocado para o trabalho e seus desdobramentos sociais. Entendendo
trabalho, neste contexto, como o trabalho total de uma nação - agregado sob a forma de
uma divisão social do trabalho - e riqueza como o total de produtos ou artigos de
consumo (RUBIN, 2014).
Se o trabalho é o gerador de riquezas, segundo Rubin (2014), há duas formas de
desenvolvê-lo: (i) aumentando a produtividade do trabalhador individual, por meio da
divisão do trabalho; (ii) ou aumentando o número de trabalhadores produtivos, o que
demanda um aumento e uma acumulação de capital para mantê-los. Pensando nisso
Smith divide o livro Riqueza das Nões em dois volumes, sendo que o primeiro
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coma com a divisão do trabalho, passando ao fenômeno da troca (dinheiro, valor) e
da distribuição da produção (salários, lucro, renda) e, o segundo, contendo a teoria do
capital, a doutrina da acumulação de capital e o trabalho produtivo.
Continuando com Rubin (2014, p. 226), a genialidade dessa obra reside no fato de ter
sido iniciada a partir de uma descrição eloquente sobre a divisão do trabalho, o que
causou um forte impacto em virtude do seu alcance, e da descrição da sociedade de
mercadorias, que
emerge de um só golpe como uma sociedade baseada, por um lado, na divisão do trabalho
e, por outro lado, na troca entre unidades econômicas individuais - em outras palavras, como
uma sociedade baseada no trabalho e na troca (uma "sociedade comercial", para usar o
termo de Smith).
Direcionando o foco para a divisão do trabalho, Smith (1996) relata que para aumentar o
excedente da produção é necessário dividir o trabalho em várias tarefas mais simples do
que o todo. Tal divisão poderia fazer o trabalho ser executado com mais agilidade em
comparação com o modelo de uma pessoa executando todo o processo, alcaando
um aumento significativo na produção. O executor da tarefa também é relevante, sendo
importante buscar na sociedade a pessoa mais habilidosa para tal; habilidade essa que
parece não provir tanto da natureza, mas antes do hábito, do costume, da educação ou
formação” (SMITH, 1996, p. 75).
Smith (1996) ainda aponta três circunstancias distintas advindas da divisão do trabalho
e responsáveis pelo aumento de produtividade: (i) a destreza que o trabalhador adquire
se empenhando a somente uma etapa da produção; (ii) a redução do tempo perdido
entre a passagem de uma tarefa a outra; (iii) e a invenção de máquinas que agilizam o
trabalho e possibilitam que um número reduzido de trabalhadores execute a mesma
tarefa de um grupo maior.
Entretanto, a invenção de máquinas faz surgir uma nova classe de trabalhadores a quem
Smith chama de filósofos ou pesquisadores - desenvolvedores e detentores dos meios
(máquinas) de prodão -, cujo trabalho não é a fabricação de produtos,mas observar
cada coisa, e que, por essa razão, muitas vezes são capazes de combinar entre si as
forças e poderes dos objetos mais distantes e diferentes (SMITH, 1996, p. 70). Devido
a evolução da sociedade, a ocupação de filósofos e pesquisadores passou a ser
exercida por uma categoria específica de pessoas.
Conforme observam Cerqueira (2004), Rubin (2014), e Paula et al. (2016), Smith ignora
a diferença entre os dois tipos de divisão do trabalho que ele mesmo menciona a
divisão técnica e a divisão social , concentrando-se exclusivamente no aumento da
produtividade. Contudo Rubin (2014) demonstra que nessa descrição de
interdependência material e técnica, entre os diferentes membros da sociedade, a
postura assumida foi a deque esses indivíduos gozam de uma harmonia completa de
interesses (RUBIN, 2014, p. 228-229), esquecendo o fato de que todos os produtores
estão vendendo seus produtos para o mercado, e que a luta pelo preço cria um profundo
antagonismo entre os envolvidos.
À vista disso,
a preocupação de Smith com as vantagens materiais e técnicas da divio do trabalho, mais
do que com a forma social que esta assume numa economia de troca de mercadorias, leva-
o a superestimar os elementos de harmonia numa tal economia e a ignorar as contradições
e antagonismos que ela produz (RUBIN, 2014, p. 229).
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Mesmo com os equívocos, para Rubin (2014, p. 230) a teoria de divisão do trabalho de
Smith representou um grande avanço. Pensando na sociedade como uma grande
fábrica e posicionando os indivíduos como pessoas que trabalham e trocam
simultaneamente, a divisão do trabalho elevou cada um a participante de processos
singulares de prodão, no qual os produtos de todos são trazidos para um estoque
comum (mercado), e cada um pode adquirir os produtos e talentos de outrem, fazendo
com que todos sejam dependentes do trabalho de outras pessoas. Deste modo o grupo
se une em uma única sociedade de trabalho, sendo que Smith concebe essa sociedade
de trabalho estritamente como uma sociedade de troca.
Nas palavras de Smith (1996, p. 73), essa divisão do trabalho, da qual derivam tantas
vantagens, não é, em sua origem, o efeito de uma sabedoria humana qualquer, mas
sim, fruto da sua propensão a intercambiar, permutar ou trocar uma coisa pela outra.
OS CLÁSSICOS: O OLHAR ORGÂNICO DE DURKHEIM SOBRE A DIVISÃO DO
TRABALHO
O principal objetivo de Émile Durkheim foi conferir à sociologia uma reputação científica,
voltando toda a sua obra para o que ele julgava ser o maior empecilho dessa ciência até
aquele momento: a falta de um todo consistente e elaborado de análise sociológica.
Também desenvolveu estudos pioneiros na área da sociologia da religião e do
conhecimento, sobre individualismo e coesão social, e estudos empíricos sobre o
fenômeno do suicídio. Foi um dos grandes analistas do mundo moderno e a sua tese
sobre a divisão do trabalho social demonstra a complexidade da sociedade
contemporânea marcada pela diferenciação social e a especialização das fuões
(SELL, 2010, p. 77).
Durkheim (1999, p. 429) critica o modelo de Smith e desenvolve a ideia de que a divisão
do trabalho é relevante não apenas porque ela faz de cada indivíduo um "trocador",
como dizem os economistas, mas porque ela evidencia a importância da combinação
de diversas interações concomitantes, tendo como amálgamao direito e a moral [que]
são o conjunto de vínculos que nos prendem uns aos outros, e à sociedade
(DURKHEIN, 1999, p. 420). Sendo a pressão social o modelador da moral humana, é
devido à divisão social do trabalho que o homem retoma consciência da sua condição
de dependência, e que faz aflorar a solidariedade social, base da ordem moral.
Dentre os pressupostos da teoria sociológica durkheimiana está a crença de que a
sociedade possui um aperfeiçoamento gradual, governado pela lei do progresso. Então
era necessário criar um novo sistema científico e moral afim com a ordem industrial
emergente. O industrialismo se impunha como a marca da sociedade moderna
difundindo a concepção de uma vida coletiva que não era apenas uma imagem ampliada
da individual, mas um ser distinto, complexo, que não pode ser reduzido às partes que a
formam (QUINTANEIRO et al., 2003).
Partindo do pressuposto de que a sociedade tem precedência lógica sobre o indivíduo,
Sell (2010) explica o fato social - segundo Durkheim - como toda a maneira de agir, fixa
ou não, que exerça sobre o indivíduo uma coerção exterior. Destarte, possuem duas
características essenciais: (i) são exteriores, sendo que o comportamento social o
procede do indivíduo, mas da própria sociedade tendo como exemplo os papéis sociais
assumidos (irmão, esposa, cidadão dentre outros) e, (ii) são coercitivos e impostos pela
sociedade - mesmo sendo aceitas de bom grado-, e quando não o seguidos sente-se
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a pressão da sociedade. Por encontrar-se fora dos indivíduos e possuir ascenncia
sobre eles, consistem em uma realidade objetiva, são fatos sociais (QUINTANEIRO et
al., 2003, p. 70).
Para Durkheim a sociedade é semelhante a um organismo vivo, no qual, segundo
Caetano (200?), cada órgão possui uma função, e as partes (os fatos sociais) existem
em fuão do todo (a sociedade). Ao fazer essa comparação são identificados dois
estados em que a sociedade pode se encontrar, um normal - que designa os fenômenos
que ocorrem com alguma regularidade, e o outro o patológico em que os
comportamentos põem em risco a harmonia e o consenso, arriscando a moral e a ordem
vigente.
A sociedade moderna encontra-se em estado doentio, uma vez que deixou de exercer
seu papel de freio moral para os indivíduos, e nem a religião, o Estado ou a falia
conseguiram instituir esse controle. Em consequência somente a solidariedade social
poderia reestabelecer a coesão social (CAETANO, 200?). A especialização provocada
pela divisão do trabalho traz ao indivíduo o sentimento de solidariedade orgânica, de
coordenação e subordinão dos esforços. Os indivíduos se agrupam independente da
descendência do meio natural, da consanguinidade; a organizão desta estrutura
depende da atividade social, do meio profissional e a função que os indivíduos
desempenham” (ENDLICH, 1997, p. 52). Isso posto,
a tese Durkheimiana é que a interdependência de funções consiste, por si mesma, em um
valor moral. Ocorre que a divisão do trabalho transfere o eixo da moralidade da consciência
coletiva para o indivíduo. Sem essa autonomia e independência, a divio do trabalho não
seria possível. Este é elo de dever que liga o indivíduo à sociedade (SELL, 2010, p. 91).
Sell (2010) retrata que a Teoria da Modernidade de Durkheim explica os efeitos que as
transformões modernas causam na sociedade. Como a modernidade se caracteriza
pela divisão do trabalho e pela especialização das funções, aera da quina” acentua
a diferencião social, fazendo com que a sociedade deixe de ser regida pela
solidariedade mecânica (consciência coletiva, sociedade segmentada, direito repressivo
todos os atos criminosos devem ser punidos) e passe a ser orientada pela
solidariedade orgânica (divisão social do trabalho, sociedades diferenciadas, direito
restitutivo restabelecer a ordem das coisas).
Para Sell (2010, p. 91-92), apesar da solidariedade orgânica encaminhar a sociedade
para a coesão e harmonia, Durkheim admite que a sociedade moderna está longe desse
ideal, sendo atravessada por crises, lutas e conflitos por ele denominados como formas
anormais ou patológicas. Em seus estudos essas anomalias foram divididas em três
grupos: (i) divisão do trabalho anômica, em que asprincipais manifestões seriam as
crises industriais e comerciais, o antagonismo entre trabalho, capital e falências; (ii) a
divisão do trabalho forçada, consideradas as guerras de classes; (iii) e a divisão do
trabalho burocrática, sendo que neste caso, a divisão especializada das tarefas está
conjugada com a falta de produtividade e um desajuste na coordenação das fuões”.
Apesar das críticas sobre as dificuldades dos trabalhadores em aceitar os limites de uma
tarefa especializada, Durkheim, conforme Endlich (1997), continua argumentando a
favor da divisão do trabalho, assegurando que ela por si só não traz malecios, e
alegando que o trabalhador não é uma máquina que repete movimentos, mas um
indivíduo que sabe que suas ações tendem a algum lugar, servindo a um objetivo.
Entretanto,
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qual a possibilidade de um trabalhador se situar no interior do processo de produção e
reconhecer a validade de seu trabalho? Mais do que isso - realmente ficaria tal trabalhador
satisfeito? Parece que aqui eso algumas das lacunas da análise durkheimiana
(ENDLICH,1997, p. 53).
OS CLÁSSICOS: A DIVISÃO DO TRABALHO E DE CLASSES SOCIAIS NO MARXISMO
Marx elaborou uma ampla teoria social que visava compreender a modernidade em sua
dimensão econômica, e formulou uma crítica ao modo de produção capitalista que é
marcado por relações de exploração e alienação. Embora, segundo Sell (2010), ele não
tivesse o objetivo de fundar a sociologia como uma ciência, suas obras são clássicos da
sociologia devido à relevância das suas discussões para a compreensão da sociedade
moderna, sendo considerado um dos precursores do pensamento sociológico.
Marx e Engels (2001) iniciaram seus estudos sobre os homens em suas atividades reais,
já que,
[se] não tem história, não tem desenvolvimento; ao contrário, são os homens que
desenvolvendo sua produção material e suas relações materiais, transformam, com a
realidade que lhes é própria, seu pensamento e também os produtos do seu pensamento.
Não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência
(MARX; ENGELS, 2001, p. 20).
Gorender (2001) destaca que Marx e Engels, influenciados pela obra de Smith (1996),
reforçam a ideia do trabalho como criação de valor, acrescentando que esse é
apropriado pelo dono do capital. Também explicam que a divisão do trabalho alcança
seu ápice na separação entre o trabalho intelectual e o manual, criando assim duas
classes que se articulam, uma dominando e explorando a outra. Enquanto o trabalho
intelectual é um privilégio da classe dominante - ocupada do pensar -, o trabalho manual
é exercido pelo proletariado que, iludido pela ideia de um interesse social comum,
engendrada para que não enxergue a dominão que sofre, permanece alienado de sua
real condição de explorado.
Sobre a divisão do trabalho no capitalismo, Marx denomina como divisão social do
trabalho na manufatura e na sociedade. Nessa divisão o trabalhador passa a executar
uma parte do produto, especializando-se em uma fração do processo que é dividido em
etapas conforme a complexidade do produto. Essa divisão e especialização, que busca
aumentar a produtividade, deprecia a força de trabalho. Portanto, o Capital cria uma
cooperação social complexa, reunindo em um mesmo lugar ocios iguais e diferentes,
em prol de aumentar a produtividade para aumentar o lucro. Marx condena todas as
sociedades que impõem uma divisão do trabalho sem considerar o bem-estar e a
máxima realização do grupo e de cada indivíduo (ALVES, 2014).
Caetano (200?) constata que Marx reforça a teoria do economista inglês Adam Smith de
que o trabalho seria a verdadeira fonte de riqueza da sociedade, e ainda amplia esse
conceito demonstrando que a força de trabalho significa crião de valor, contudo,
apropriado pelo capitalista.
Dessa maneira, Gorender (2001, p. 31) argumenta que,
com a divisão do trabalho, dá-se uma separação entre o interesse particular e o interesse
comum. Os atos próprios dos indivíduos se erguem diante deles como poder alheio e hostil,
que os subjuga. O interesse comum se erige encarnado no Estado. Autonomizado e
separado dos reais interesses particulares e coletivos, o Estado se impõe na condição de
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comunidade dos homens. Mas é uma comunidade ilusória, pois o Estado, por baixo das
aparências ideológicas de que necessariamente se reveste, está sempre vinculado a classe
dominante e constitui o seu óro de dominação. Por consequência, as lutas de classe, que
dilaceram a sociedade civil, devem tomar a forma de lutas políticas.
Como a alienação está associada às condições materiais da vida, somente será extinta
se o processo de vida real for transformado por meio da ação política. Na sociedade
capitalista o sujeito que efetua as potencialidades da história é o proletariado e, somente
ele, tem a condição de se libertar da consciência alienada que confere à realidade
histórica uma aparência mágica, enfeitiçada, mascarada pela classe dominante
(QUINTANEIRO et al., 2003).
À luz da teoria marxista, Bottomore (1988, p. 113) argumenta que a principal intenção da
análise de Marx sobre o capitalismo é demonstrar como e porque os produtores são
dominados pelo produto do trabalho, como o trabalho morto, objetificado em sua
existência como capital, exerce seu donio sobre o trabalho vivo mediante as leis
aparentemente objetivas da oferta e da procura. Um dos pilares é a divisão do trabalho
que é imposta aos indivíduos pela sociedade criada por eles. Se a produção é sempre
uma atividade de objetificação do trabalho em produtos, as relações de classe são
fundamentais para determinar que enquanto há cisão entre o interesse particular e o
interesse comum, enquanto [...] a atividade não é dividida voluntariamente, [...] a própria
ação do homem se transforma em força estranha, que a ele se opõe e o subjuga
(MARX; ENGELS, 2001, p. 28).
É por essa razão, conforme Caetano (200?), que Marx afirma que a superestrutura é
condicionada pela infraestrutura da sociedade; que a base econômica determina as
bases política, jurídica e ideológica. Por isso, a preocupação central da obra de Marx é a
libertação da classe operária de seu estado de alienão, que só será possível no
momento em que o proletariado deixar de ser classe em si e se tornar uma classe para
si, reconstruindo a sua consciência de classe. Nesse momento o proletariado estaria
preparado para promover uma revolução social que depusesse a burguesia, extinguindo
as classes sociais, suplantando a ordem social capitalista e construindo uma sociedade
comunista.
PARA ALÉM DOS CLÁSSICOS: AS RELAÇÕES SOCIAIS DE SEXO QUE PERPASSAM
O TRABALHO E AS SUAS DIVISÕES
Ao longo da história surgiram mulheres que o aceitaram a sua condição, lutaram pela
sua liberdade e, algumas vezes, pagaram com a própria vida. Entretanto a primeira onda
do feminismo só ocorreu a partir do final do século XIX, na qual as mulheres inglesas, e
posteriormente em vários países, organizaram-se para lutar pelo direito ao voto (PINTO,
2010). O sufrágio universal, direito conquistado pelos homens da classe trabalhadora,
não abrangeu as mulheres, então elas se organizaram e travaram uma luta em prol
dessa conquista (ALVES; PITANGUY, 1991).
Já a década de 1960 é caracterizada por uma grande mobilizão na luta contra a
discriminão racial, o colonialismo, pelos direitos das minorias e reivindicações
estudantis, evidenciando o individual sobre o coletivo edeixando claro que o ser social
não se esgota na sua experiência de classe (ALVES; PITANGUY, 1991, p.58). Sendo
profundamente influenciado por esse cenário, a segunda onda do movimento feminista
ressurge com toda a força, desta vez questionando as relações de poder entre homens
e mulheres. Conforme esclarece Pinto (2010, p. 16), as mulheres não querem somente
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assumir seus espaços no trabalho, na educação e na vida pública, “mas que luta, sim,
por uma nova forma de relacionamento entre homens e mulheres, em que esta última
tenha liberdade e autonomia para decidir sobre sua vida e seu corpo.
Löwy (2009) acrescenta que nesse momento histórico iniciou-se uma reflexão sobre a
ciência e o gênero, tema que ainda hoje causa controvérsias. O termo ciência e gênero
foi descrito por pesquisadores adeptos do relativismo metodológico na ciência, e sem
negar a existência de fenômenos naturais independentes da vontade humana, postula
que a compreensão deles é uma atividade social e cultural que, como tal, não é
independente do tempo e do lugar da sua produção (LÖWY, 2009, p. 40). Enquanto
isso outros pensadores argumentam que a ciência é a implementação de um método,
um sistema de regras que garante a sua aceitão, independente de quaisquer outras
considerações. Isso torna dicil a inclusão do gênero, uma vez que a construção do
saber universal o pode ser afetada pelas características dos pesquisadores, quer seja
inerente ao gênero ou outras.
Ainda segundo Löwy (2009), em resposta ao discurso do saber universal, pesquisadoras
que estudaram a relão entre ciência e gênero, dentre elas Sandra Harding, Donna
Haraway, Ruth Bleier, Ludmilla Jordanova, Evelyn Fox Keller e Helen Longino,
apresentaram uma visão diferenciada da ciência. Partindo da premissa de que o
conhecimento sobre as leis da natureza provém de um trabalho em grupo e de um
coletivo de seres humanos, não pode ser totalmente dissociado do lugar e do tempo da
sua produção, poisnão há cultura fora da cultura, nem história natural fora da História
(LÖWY, 2009, p. 41).
Afinal, como Longino (2008, p. 506) alerta,
talvez um pouco desse paradoxo venha do pensamento de que "feminista'" modifique
"epistemologia'" em vez de "epistelogo". Feministas não devem deixar de ser feministas
quando começam a exercer a filosofia, mas também não podem desistir inteiramente em
vista das restrições e aspirações da filosofia.
Nessa mesma linha, Haraway (1995, p. 33-34) esclarece que a questão da ciência para
o feminismo diz respeito à objetividade como racionalidade posicionada”, em
consequência disso suas imagens não transcendem os limites, o são visões de cima,
mas sim a junção de visões parciais e de vozes vacilantes numa posição coletiva de
sujeito que promete uma visão de meios de corporificação finita continuada, de viver
dentro de limites e contradições, isto é, vies desde algum lugar.
Faz-se importante a inserção de algumas reflexões acerca do termo gênero e as
categorias desenvolvidas como consequência. Conforme Scott (1995, p. 72) a aparição
desse termo é supostamente atribuída às feministas anglo-saxãs, com o intuito de rejeitar
o determinismo biológico associado ao termo sexo, e enfatizar o caráter social e
relacional das distiões embasadas no sexo. Logo, as justificativas para as
desigualdades precisariam ser buscadas não nas diferenças biológicas, mas sim nos
arranjos sociais, na história, nas condições de acesso aos recursos da sociedade, nas
formas de representação (QUIRINO, 2015, p. 231).
Este conceito de gênero também foi assumido pelas feministas de base marxista,
segundo Araújo (2000, p. 69-70), como um importante recurso analítico para refletiros
caminhos através dos quais os atributos e lugares do feminino e do masculino são social
e culturalmente construídos, porém com ressalvas. Como gênero é relacional, permite
concatenar tanto a dominação como a emancipação que envolvem relações de
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interão, conflito e poder entre homens e mulheres. Entretanto, a crítica marxista
feminista pauta-se na centralidade da dimensão simbólica trazida pelo conceito, que
empalidece a referência às práticas e relações materiais, correndo o risco de abdicar de
qualquer perspectiva estrutural de um sistema econômico e político mais amplo, só
restando lugar para o simbólico, abstraído de bases concretas.
Michèle Ferrand, referência dentre as feministas francesas, esclarece em entrevista
(RIAL; LAGO; GROSSI, 2005, p. 681) que a adoção do termo gênero equivalente a sexo
social não contou com a aprovação das pesquisadoras francesas principalmente em
razão da polissemia e da indefinição que seu uso trazia em diversas esferas. Já relões
sociais de sexo permitia mostrar como a dominão masculina resulta de um duplo
processo: a biologização do social e a socialização do biológico, ou seja, que o social
interpretava o sexo biológico, conferindo-lhe um determinado sentido.
Independente da corrente teórica adotada, se gênero conforme as pesquisadoras anglo-
saxãs ou relões sociais de sexo, como proposto pelas pesquisadoras francesas, é
imprescinvel sexuar o sujeito, não desprezando esta categoria de análise.
Continuando a construção deste conhecimento situado e corporificado, e a imporncia
do recorte de gênero para as discussões acerca da divisão social do trabalho, Helena
Hirata e Danièle Kergoat (2007), representantes domovimento feminista frans [que]
se definiu profundamente marcado pelo marxismo como teoria de referência (QUIRINO,
2015), formulam a teoria das relões sociais de sexo e postulam o trabalho, com sua
divisão entre os sexos, como a base material das desigualdades entre homens e
mulheres a partir de sua separação e hierarquização das atividades realizadas por eles.
Porém, antes de adentrar no conceito de divisão sexual do trabalho, torna-se relevante
tecer algumas considerações sobre as obras de Marx e Engels. Na visão de Ribeiro e
Hanashiro (2016), apesar de não fazerem alusões claras à relevância da situação da
mulher na sociedade, eles as percebiam em duas situações, como operária - equiparada
às crianças, em um trabalho quase escravo -, ou como mão de obra não remunerada
em casa, dado que,
em A ideologia ale (1999, p.17), referem-se à escravatura latente, já no período da
propriedade tribal e Engels, em A origem da falia, da propriedade privada e do Estado
(1984), à “escravidão dostica”, destacando a condição de exclusão social a que estava
submetida a mulher (RIBEIRO; HANASHIRO, 2016, p. 95).
Já Alves e Pitanguy (1991, p. 40) relatam que a partir da análise das relações de
produção do sistema capitalista, entende-se a condição da mulher como parte das
relões de exploração na sociedade de classes, e destacam a contribuição de Friedrich
Engels com o livro A Origem da Falia, da Propriedade Privada e do Estado, iniciando
assim o debate acerca do tema com base nos movimentos socialistas.
Tomando como referência a teoria marxista, que se volta para a desconstrução das
hierarquias tidas como naturais, Ribeiro e Hanashiro (2016) descrevem que as relações
sociais não são as únicas relações importantes, sendo o gênero um exemplo, dentre
tantas outras. No entanto, aos olhos de Marx, as relões de classes sociais ganhavam
destaque à medida que criam um campo de atuação em que as outras relações operam.
Essa perspectiva teórica é interessante para as questões de gênero, já que o ponto mais
importante da teoria mostra que as hierarquias entendidas como naturais não o são,
mas que elas são, acima de tudo, social e politicamente constrdas e preservadas pelo
poder (RIBEIRO; HANASHIRO, 2016, p. 95).
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As hierarquias aparecem e desaparecem em determinados momentos históricos e
sociais e isso vale tanto para o gênero como para as classes sociais. Marx e Engels
(1999, p. 17 apud RIBEIRO; HANASHIRO, 2016, p. 160) avocam a escravatura latente
que tomava a forma dentro da falia repousando sobre a supremacia dos homens
sobre o trabalho de suas mulheres e de suas crianças.
A noção moderna de trabalho, conforme preconizada pela economia clássica, traz uma
dupla definição. Na primeira o trabalho é uma característica geral e genérica das ações
dos homens e, na segunda, considera as trocas entre homens e natureza produzidas
em condições sociais determinadas. Essas definições partem de um modelo assexuado
de trabalho, portanto fixo, e uma vez conjugado com relações sociais, sempre muveis,
faz com que essa dupla definição não seja apropriada considerando as relações situadas
em um contexto histórico, tornando possível considerar o sexo social como uma das
variáveis nas reflexões sobre o trabalho (HIRATA; ZARAFIAN, 2009).
Na década de 1970 as discuses sobre o desenvolvimento histórico do conceito de
trabalho, conforme relatam Hirata e Zarafian (2009), começaram a trazer a dimensão
sexuada para as suas análises, considerando a inclusão do sexo social e do trabalho
doméstico no conceito de trabalho. Essa reconceitualização abarcou também o trabalho
não assalariado, não remunerado, não mercantil e informal. Trabalho profissional e
trabalho doméstico, produção e reprodução, assalariamento e falia, classe social e
sexo social são considerados categorias indissociáveis (HIRATA; ZARAFIAN, 2009, p.
254).
No intuito de acrescentar mais um ponto de vista à discussão, Saffioti (1985, p. 98)
argumenta que a justaposição entre os sexos e as relações de classe tem
consequências dramáticas para os trabalhadores, em virtude de práticas políticas ou de
objetivos conflitantes. Posto isso,a divisão sexual do trabalho está na base da
subordinação da mulher ao homem, relão de dominação esta que coloca o fenômeno
da reprodução como subordinado da produção.
O termo divisão sexual do trabalho pode ser utilizado tanto para contextualizar a variação
de profissões no tempo e espaço entre homens e mulheres, como para analisar a divisão
desigual do trabalho dostico entre os sexos. Hirata e Kergoat (2007) partem da
segunda acepção do termo, demonstrando que as desigualdades são sistemáticas e
geram processos de hierarquização de atividades e do sexo a elas relacionadas,
explicando assim a origem das desigualdades entre homens e mulheres no mundo do
trabalho.
Partindo desse pressuposto, conforme Kergoat (2009), a divisão social do trabalho se
organiza a partir de dois princípios: o da separação entre trabalhos de homens e de
mulheres; e o da hierarquia, no qual o trabalho do homem vale mais que o da mulher.
Tais princípios são observados em todas as sociedades, independente do tempo e
espo, e legitimados pela ideologia naturalista querelega o gênero ao sexo biológico
e reduz as práticas sociais a papéis sociais sexuados, os quais remetem ao destino
natural da espécie (KERGOAT, 2009, p. 68).
Hirata e Kergoat (2007) descrevem que a divisão sexual do trabalho acompanha a
própria diferença social de relacionamento entre os sexos, que privilegia o homem na
esfera produtiva e a mulher na esfera reprodutiva, ficando os homens com as fuões
de maior valor social. Desse modo, algumas configurões de gênero assumem o lugar
do real ou natural em detrimento de outras, instituindo e consolidando regimes de poder
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e opressão (DINIZ, 2016, p.144). Evidenciam-se aí situações de opressão e exploração
contra a mulher.
Nesse contexto, Quirino (2011, p. 64) traz os conceitos e a distinção entre opressão e
exploração. A opressão surge quando as diferenças entre seres humanos são utilizadas
para desqualificar uma das partes em detrimento de outra, gerando uma situação de
desigualdade de direitos, de discriminão social, cultural e ecomica, enquanto a
exploraçãoé um fato econômico assentado sobre a submissão de um ser humano ao
outro e dá origem à divisão da sociedade em classes.
Apesar dos dois princípios organizadores, da separação e hierárquico, serem
encontrados em todas as sociedades conhecidas e legitimados pela naturalização da
ideologia, isto não significa, para Hirata e Kergoat (2007), que a divisão sexual do
trabalho seja vista como imutável. Pelo contrário, suas modalidades concretas
demonstram ampla variação no tempo e no espaço, percebendo-se que o que é estável
não são as situações (que evoluem sempre), e sim a distância entre os grupos de sexo,
trazendo a reflexão de que essa distinção entre princípios e modalidades e a insistência
sobre a noção de distância é que permitem desconstruir o paradoxo [...]: tudo muda, mas
nada muda (HIRATA; KERGOAT, 2007, p. 600).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A proposta deste trabalho foi fomentar a discussão acadêmica sobre a importância da
divisão sexual do trabalho e das relações sociais de sexo nas abordagens clássicas
sobre a divisão do trabalho. Partindo de uma revisão da literatura acerca da divisão do
trabalho nos estudos de Adam Smith, Émile Durkheim, Karl Marx e Friedrich Engels, no
intuito de apreender de forma sucinta a dimensão do tema para cada um dos
pensadores, evidenciam-se aproximações entre os pensamentos de Smith, Marx e
Engels, e distanciamentos entre Smith e Durkheim.
O trabalho figura-se como a base material formadora da sociedade nas teorias de Smith
e de Marx, haja vista que para ambos a divisão das atividades distingue os indivíduos,
separando-os em classes conforme a natureza das atividades que exercem. Apesar dos
apontamentos de Smith sobre classe não serem profundos, nesse ponto o marxismo
deu um salto vindo a embasar toda a sua teoria: a exploração e alienão de uma classe
pela outra
Por outro lado, Smith inova, conforme Rubin (2014), ao pensar no individuo dentro de
um processo de troca constante, posicionando-o como produtor e consumidor dentro do
mercado, e mostrando a união gerada a partir dessa troca. Entretanto pensou em uma
sociedade harmônica, em que o próprio movimento de trocas pudesse gerar o equilíbrio
do sistema.
Já entre Smith e Durkheim observa-se uma aproximação com relação à divisão de
tarefas, porém um antagonismo em relação à divisão social advinda desta mesma
divisão de tarefas. Enquanto Smith descreve a formação de grupos sociais com base na
destreza com a qual cada indivíduo executa as tarefas, Durkheim entende que o
amalgama que reúne essas pessoas é a solidariedade orgânica que surge da retomada
de consciência da sua condição dependente perante os outros. Se para Smith a
vocação para a troca une os homens, para Durkheim a moral é a responsável por essa
mesma união.
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Neste ponto percebe-se dois caminhos advindos da crítica de Durkheim, Marx e Engels.
Enquanto Durkheim (1999) esclarece que a divisão do trabalho faz com que as pessoas
tenham consciência da sua relação de interdepenncia, já que parte do trabalho de um
complementa a do outro. Marx e Engels corroboram com a visão das trocas de mercado
como um elo de ligão da sociedade, porém sem que haja equilíbrio porque há uma
classe que detém o capital e explora a outra, essa alienada da sua condição
(GORENDER, 2001).
Apesar de refletirem sobre a formação e reprodução social a partir da divisão do trabalho,
os autores acima o elaboram nenhum pensamento acerca das especificidades do
trabalho da mulher, que é a principal responsável pelas tarefas domésticas e crião dos
filhos, tarefas essas que não são valorizadas socialmente, e muitas vezes acumulam
essas funções com o trabalho remunerado.
Isso posto, os movimentos feministas e a epistemologia feminista trazem à tona a
importância de se considerarem as demandas específicas de determinados grupos que
integram a sociedade, não em detrimento do caráter universal do conhecimento, mas
justamente para abarcar camadas que possuem pouca representatividade não só no
cenário científico, como também politico, econômico e social.
Desta forma, a divisão sexual do trabalho vem agregar aos estudos a subjetividade
sexuada dentro das classes, o que influencia diretamente a forma como o trabalho e a
sua organizão se o. As relões sociais de sexo, tendo como base material a divisão
sexual do trabalho, demonstram que o fato de socialmente haver trabalhos ditos para
homens e para mulheres, e o trabalho do homem ser mais valorizado, perpetua a
desvalorização social e econômica da mulher, mantendo-a em uma posição subalterna,
e dificultando a equidade entre os gêneros.
Os movimentos feministas e a epistemologia feminista trazem à tona a importância de
se considerarem as demandas especificas de determinados grupos que integram a
sociedade, não em detrimento do caráter universal do conhecimento, mas justamente
para abarcar camadas que possuem pouca representatividade no cenário científico.
Desta forma, a divisão sexual do trabalho vem agregar aos estudos sobre a sociedade
alicerçados na divisão de classes. Embora considere o trabalho como a base material
da formação social, a divisão sexual do trabalho aborda a subjetividade sexuada dentro
das classes, o que influencia diretamente a forma como o trabalho e a sua organização
se o.
Por fim, apesar da especificidade feminina ser pensada como epistemologia somente a
partir da década de 1970, recente em comparação com os demais pensadores descritos
neste texto, acredita-se que a divisão sexual do trabalho seja tão importante quanto as
demais teorias para refletir sobre a produção e reprodução da sociedade, sem perder a
base material ontológica da formação do ser social.
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