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DOI: https://doi.org/10.17648/2238-037X-trabedu-v28n3-13891
FORMAÇÃO DOCENTE E A PEDAGOGIA DO APRENDER A
APRENDER”: AS REFORMAS DA EDUCAÇÃO NA ERA DA INFÂMIA DO
CAPITAL
1
Teacher Education and the Pedagogy of Learning to Learn: education
reforms in the age of capital infamy
ARAÚJO, Renan
2
IWASSE, Lilian Fávaro Alegrâncio
3
RESUMO
Este artigo exe o resultado parcial de dissertação de mestrado defendida em abril de 2018. Apoiado
em fontes bibliogficas, em dados empíricos e na análise documental, discorre-se sobre as
Confencias “Educação para Todos” realizadas em Jomtien (1990), Dakar (2000) e Incheon (2015) e
busca-se compreender como seus compromissos m se inserido nos documentos nacionais, a
saber: os Planos Nacionais de Educação (2001-2011 e 2014-2024), leis, decretos, orientações,
programas e políticas blicas. Esses documentos disseminadores das teses da Pedagogia do
Aprender a Aprender sugerem uma formação docente cujo perfil formativo dos professores deve ter
como referência as premissas das novas competências e habilidades. A partir das análises, conclui-se
que a sociedade do conhecimento apresentada nas Confencias Educação para Todos, por ser a
antítese do conhecimento científico, promove o esvaziamento da formação docente na medida em
que reduz o contdo ensinado à lógica útil e instrumental dos aprenderes, tendência que nega o
acesso à formação plena ancorada no conhecimento científico historicamente produzido.
Palavras-chave: Confencias Educação para Todos”. Compencias. Formação Docente.
ABSTRACT
This paper exposes the partial result of a Masters thesis defended in April 2018. Drawing from
bibliographical sources, empirical data and documentary analysis, the “Education for All” Conferences
held in Jomtien (1990), Dakar (2000) and Incheon (2015) are discussed, and it seeks to understand
how their commitments have been included in the national documents, namely: National Plans of
Education (2001-2011 and 2014-2024), laws, decrees, guidelines, programs and public policies. These
documents disseminators of the Pedagogy theses of the “Learning to Learn suggest a teacher
education whose teacher educational profile should be based on the premises of the new skills and
abilities. From the analysis, it is concluded that the knowledge society presented at the Education for
All Conferences, being the antithesis of scientific knowledge, promotes the emptying of teacher
education in so far as it reduces the content taught to the useful and instrumental logic of “learning”, a
trend that denies access to full education anchored in historically produced scientific knowledge.
Keywords: “Education for All” Conferences. Skills. Teacher Education.
1
O presente artigo expõe o resultado parcial de dissertação de Mestrado defendida em abril de 2018, intitulada Educação e Trabalho:
políticas públicas de ensino e formação de professores no Brasil, pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino Formação de Docentes
Interdisciplinar PPIFOR, da Universidade Estadual do Paraná Campus Paranavaí.
2
Doutor em Sociologia pela Faculdade Estadual Paulista Unesp/ Campus Araraquara. Graduado em História pela Faculdade Estadual
Paulista Unesp/ Campus Assis. Professor do corpo docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Ensino, Formação
Docente Interdisciplinar PPIFOR, Universidade Estadual do Paraná Unespar/Campus Paranavaí. Professor Associado junto ao
Colegiado de História, Unespar/Campus Paranavaí. E-mail: renanbandeirante@gmail.com.
3
Mestre em Ensino pela instituição Universidade Estadual do Paraná Campus Paranavaí, Graduação em Pedagogia pela instituição
Universidade Estadual do Paraná Campus Paranavaí e Letras Inglês pela Universidade Estadual de Maringá. Professora/Pedagoga,
ocupação atual em professora colaboradora na Universidade Estadual do Paraná Campus Paranavaí. E-mail:
coordlilianfavaro@gmail.com.
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INTRODUÇÃO
A acumulação por espoliação constituiu-se no principal tro do capitalismo no início do
século XXI. O capital financeirizado, as petroleiras e as indústrias de armas conformam
a tríade hegemônica dessa nova modalidade de ampliação do capital que, em
processo, repercute sobremaneira nas esferas sociais e políticas (HARVEY, 2004). No
bojo dessas transformações, é que devemos situar o conjunto das reformas
conduzidas pelos Estados, particularmente as reformas da educação cujas propostas
de reorganizão implicam, de modo geral, na adão de estratégias focadas nas
metodologias de ensino e de aprendizagem, o que corrobora para o esvaziamento do
espo escolar na qualidade de instituição adequada para o ensino do conhecimento
científico historicamente acumulado.
A partir da promulgação da Lei de Diretrizes e Base da Educação No 9.394/1996, as
reformas da educação objetivaram democratizar o acesso à educação pública. De fato,
ao observarmos os dados estatísticos sobre o aumento no número das matrículas
disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira (INEP), verifica-se significativo aumento nos números das matrículas em todos
os veis do ensino básico. É revelador desse processo que o número das matrículas
de 22.212.999 encontrados no ano de 1980 salta para 48.608.093 em 2017 (INEP,
2018).
No entanto, ademocratização assentada tão somente no incremento do número das
matrículas ocorreu sem o necessário aumento dos investimentos na educação. Com
efeito, se, por um lado, permitiu corretamente maior acesso ao ensino; por outro, não
implicou a oferta de uma educação de qualidade para os segmentos sociais que
passaram a frequentar a escola pública. Assim sendo, ocorreu uma brutal alteração em
relão ao entendimento do papel social da escola pública na medida em que ganhou
azo discussões assistencialistas, uma tentativa de encontrar resposta para dilemas
relacionados às diversas formas de esgarçamento social na contemporaneidade como
o desemprego; estudar para ter emprego virou o principal mote na educação blica.
Com isso, tivemos um rebaixamento na qualidade do ensino ofertado ao segmento que
frequenta a escola pública.
Ainda que o termoqualidade seja polissêmico, no caso em tela, refere-se ao
afastamento da possibilidade que a instituição escolar cumpra o papel de servir de
acesso à aquisição do conhecimento existente, mais ainda, da construção de novos
conhecimentos a partir da compreensão dos conhecimentos científicos já elaborados
pela humanidade.
Desse modo, a expansão sem a devida preocupação com a qualidade engendrou um
processo de massificação que gradativamente foi deslocando a escola do seu carácter
formativo em favor de uma escola focada no cuidar conforme os pressupostos do
aprender a aprender. Neves (2008) aponta que, na década de 1990, a educação
seguiu dois caminhos distintos, [...] ora aproximando-se do projeto liberal-corporativo
de educação, ora reforçando a proposta democrática de massas, atualizada pela
temática da qualidade de ensino, em face das mudanças na organização do trabalho e
da produção (NEVES, 2008, p. 6).
A temática qualidade de ensino permaneceu atrelada ao discurso do advento da
sociedade do conhecimento cujo foco é engendrar um conjunto de ideias úteis e
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aplicáveis, uma exigência do pragmatismo de mercado incorporado à educação.
Krawczyk (2011) demonstra que a tese da sociedade do conhecimento ganhou azo
como uma variável relevante na medida em que esta nos remete às características
ecomicas da sociedade. Dessa forma, a autora enfatiza a necessidade em
reestabelecer-se o debate sobre a qualidade do ensino, dos saberes necessários em
meio a uma realidade cambiante e complexa (KRAWCZYK, 2011, p. 757).
Nesse sentido, temos que as mudaas do mundo contemporâneo impulsionam
múltiplos e complexos fenômenos sociais. No bojo desse processo, particularmente no
que dizem respeito às mudanças educacionais, estas procuram atender à demanda
por um novo perfil de docente flexível capaz de encontrar respostas às novas
exigências, em especial, ser capaz de aplicar as novas políticas definidas pelos
organismos internacionais no ambiente escolar. De forma correlata, o novo professor
deve ser capaz de instruir no sentido de formar uma nova força de trabalho flexível,
em consonância com alguns dos aspectos do modelo de prodão toyotista de
organização e gestão da produção.
Assim sendo, as premissas consubstanciadas pelas habilidades e pelas competências
presentes na Base Nacional Comum Curricular procuram atender a essa necessidade.
Os aprenderes - o aprender a conhecer, a fazer, a conviver e a aprender a ser -
remetem-nos à racionalidade do sistema de produção flexível toyotista. As premissas
dos aprenderes parecem inspiradas nos métodos como o Kaizen/melhorias-contínuas
que, combinados ao 5s - Seiri/Separar, Seiton/Organizar, Seiso/Limpar,
Seiketsu/Padronizar, Shitsuke/Sustentar - objetivam alcançar o ponto ótimo da
produção (ARJO, 2012). Dessa forma, a emulação proveniente da fábrica passou a
balizar as reformas da educação, e os aprenderes” constitram-se na referência
basilar que motiva esse processo no ambiente escolar.
Para Alves (2000), o toyotismo sistêmico define-se com a disseminação das
tecnologias microeletrônicas e das novas estratégias de gestão da força de trabalho.
De modo mais preciso, o toyotismo sistêmico implicou a conjunção do uso de
tecnologias de base microeletrônicas associadas às novas técnicas de organizão da
produção capitalista, mas é principalmente da manipulação das técnicas de gestão de
pessoal conformando o espírito do toyotismo que objetiva capturar a subjetividade do
trabalhador. A década de 1990 iniciou-se com uma nova lógica de racionalização do
trabalho, com características de superexploração, [...] é o que poderíamos destacar
como início de um novo complexo de reestruturação produtiva, que assumia maior
impulso apenas nos anos 1990, indicando a constituição de um toyotismo sistêmico
(ALVES, 2000, p. 113).
Se, por um lado, tivemos novas formas de organização e de produção do trabalho; por
outro, ocorreu a intervenção dos organismos multilaterais na educação. Esses novos
direcionamentos econômicos e produtivos desenvolvimentistas (FONSECA, 1998)
foram resultados das influências dos organismos multilaterais tais como: Banco
Mundial (BM); Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BIRD);
Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID); Comissão Econômica para a
América Latina e o Caribe (CEPAL); Organização das Nações Unidas para a
Educão (UNESCO); Fundo Monetário Internacional (FMI); Fundo das Nações
Unidas para a Infância (UNICEF); Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD); Organizão Internacional do Trabalho (OIT); e
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Ecomico (OCDE) todos
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organismos internacionais de assistência técnica e financeira (FONSECA, 1998).
Conforme analisou Kuenzer (1999, p. 169), [...] a mudaa da base eletromecânica
para a base microeletrônica, ou seja, dos procedimentos rígidos para os flexíveis, que
atinge todos os setores da vida social e produtiva nas últimas décadas.
Esse processo apresentado pela autora relaciona-se às políticas públicas da educação
inauguradas a partir de 1990, momento que a UNESCO coordenou vários eventos
destinados à universalizão da educação fundamental e à eliminão do
analfabetismo, em especial o dos adultos, entre os anos de 1980 e 2000: a) Projeto
Principal de Educação para América Latina e o Caribe (PPE); b) Programa Regional
para a Erradicação do Analfabetismo na África; c) Programa de Educação para Todos
na Ásia e no Pacífico (APPEAL); d) Programa Regional para a Universalização e
Renovação da Educação Primária e a Erradicação do Analfabetismo nos Estados
Árabes no ano de 2000 (ARABUPEAL) (MELO, 2004).
Todos esses programas propunham políticas educativas balizadoras para essas
regiões, expressando diagnósticos, elencando prioridades, ofertando direcionamentos
e orientações aos países envolvidos, transformando-se em [...] poderoso instrumento
de integrão regional de ações políticas educacionais e de formação de consenso [...]
conformando-as aos objetivos das reformas neoliberais que se realizaram em todo o
mundo (MELO, 2004, p. 180), em sintonia com as orientões contidas no relatório
Jacques Delors intitulado Educação: um tesouro a descobrir. Em essência, o
documento encomendado pela UNESCO procurou apontar os caminhos da
educação pautada no lema Aprender a Aprender, cujos quatro pilares são: aprender a
conhecer, aprender a fazer, aprender a viver com os outros e aprender a ser.
Em consoncia com essas políticas para a educação anteriormente indicadas, a partir
dos anos de 1990, renovam-se e superam-se [...] seus direcionamentos no sentido de
uma educação seletiva para as massas” (MELO, 2004, p. 180). Esse foi o sentido da
Conferência Mundial sobre a Educação para Todos, promovida pela Unesco em
Jomtien - Tailândia, evento cujas resoluções converteram-se na referência para a
educação mundial, principalmente para a Educação Básica.
Destaca-se, nessa linha, a atuão central do BIRD na organizão da Conferência
Mundial de Educão para Todos, realizada na Tailândia, em 1990. Sob os auspícios
de organismos transnacionais, como BIRD, PNUD, UNICEF, UNESCO, a magnitude
do evento evidenciou-se pela inclusão de 155 nações e 150 entidades não
governamentais (FONSECA, 1998, n.p.).
Vale destacarmos que as Conferências Mundiais sobre a Educação para Todos
totalizaram três encontros, sendo o primeiro na década de 1990, conforme abordamos.
O segundo ocorreu no ano 2000, em Dakar (Senegal), que resultou no documento
intitulado Educação para Todos: o compromisso de Dakar. O encontro contou com a
presença de 164 governos, os quais firmaram compromissos para serem cumpridos
a o ano de 2015. A terceira e última Conferência realizada em Incheon (Coreia do
Sul), no ano de 2015, divulgada como Educação 2030 Declaração de Incheon -
Rumo a uma educação de qualidade inclusiva e equitativa e à educação ao longo da
vida para todos, resultou em um documento que tem por objetivo estabelecer uma
nova visão para a educação nos próximos quinze anos.
Assim, com os direcionamentos das Conferências, foram definidos compromissos
pautados nas políticas internacionais para serem praticados na educação nacional,
cujo eixo principal da discussão era a garantia de Educação para Todos, firmando,
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além do assistencialismo, uma educação com orientações para a preparação para o
trabalho e para a cidadania. Desse modo, termos empregados nos compromissos e
nos objetivos das Conferências, como os encontrados nos documentos: preparado
para o trabalho, condições de acesso, aumento do tempo de instrução”, oferta do
livro didático, capacitação dos professores, apoio da sociedade” e solidariedade
internacional, confrontam-se com o direcionamento voltado a uma educação de
qualidade, capaz de conduzir o indivíduo a sua emancipão, o que, corretamente
podemos afirmar, leva à condução da educação para o atendimento de critérios
assistencialistas e uma formação para o trabalho tal qual indicamos anteriormente.
Schults (2012) aponta que as políticas do programa Educação para Todos do Banco
Mundial, disseminado pelos organismos multilaterais UNESCO e OCDE, difundem a
linguagem do capital humano cujas [...] pessoas, quer nomeadas como cidadãos ou
migrantes quer como adultos ou criaas, o desacopladas de suas localidades
sociais, culturais ontológicas e epistêmicas e são vistas como indivíduos autônomos
com graus de potencial e capacidade” (SCHULTS, 2012, p. 29). A relação que envolve
a formação de capital humano e a educação com características assistencialista tem
sintonia com o conteúdo do documento, que também contou com uma relação de
indicações de ões, pautadas em objetivos, compromissos e requisitos, focados na
premissa demelhorar a qualidade de vida ou levar o indivíduo aaprender a
aprender. Schults (2012, p. 29-30) salienta que [...] o trabalho da educação é então
visto como o da constrão da capacidade desses indivíduos, preparando-os para
serem eternos estudantes, que precisarão ser credenciados para seus pais em
ocupações muveis.
Nas Conferências Mundiais sobre a Educação para Todos, verificamos que todos os
compromissos definidos por elas se desenrolam buscando atender às regras do
Consenso de Washington. Gentili (1998, p. 24) afirma que [...] as políticas de ajuste
educacionais promovidas pelo Consenso de Washington fundamentam-se numa
vigorosa descentralização de funções e responsabilidades no âmbito educacional [...].
A educão vista por esse viés, seguindo esses compromissos e regras, contribui para
a formão do cidadão flexível, cooperativo e produtivo, aderente à ideia de qualidade
total. Em suma, o sentido histórico das mudanças educacionais com base no lema
Educão para Todos, bem como a permanência atualizada das teses da pedagogia
do Aprender a Aprender buscam a adequação do ensino à lógica do mercado e a
constituição de um perfil de professores correlatos, conforme veremos a seguir.
1 O PROFISSIONAL DOCENTE E O LEMA APRENDER A APRENDER
Por meio do relatório Educação; um tesouro a descobrir, dissemina-se a concepção
da educação calcada no lemaaprender a aprender. De modo mais preciso, nos seus
quatro pilares, encontramos a afirmão de que [...] a educação ao longo de toda a
vida torna-se assim, para nós, o meio de chegar a um equilíbrio mais perfeito entre
trabalho e aprendizagem bem como ao exercício de uma cidadania ativa (DELORS,
1998, p. 105).
Inicialmente, é forçoso reconhecer que o referido relatório, concebido há quase duas
décadas, ainda orienta os rumos da educação no Brasil. Trata-se de um documento
que matiza o processo connuo de adequão da educação às novas necessidades
do capital em processo, d sua perenidade. Uma ligeira leitura da Base Nacional
Comum Curricular aprovada para a Educação Infantil e Ensino Fundamental, em 2017,
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e para o Ensino Médio, são exemplos nítidos da influência do escrito de Delors (1998)
nas áreas do ensino e da educação.
As orientações elencadas na Base alicerçaram-se sobre o desenvolvimento de
competências e habilidades, temas apresentados no texto introdutório da BNCC e
assim definidos: [...] a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos),
habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver
demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo
do trabalho (BRASIL, 2017a, p. 8). Indubitavelmente, essas questões relacionam-se à
tese dos aprenderes tais quais foram elaborados por Delors (1998).
De forma mais precisa, vale destacarmos que tanto a aprendizagem ao longo da vida
quanto o desenvolvimento de competências e de habilidades, temas amplamente
disseminados por meio do lema aprender a aprender e inseridos no documento
norteador das Bases Curriculares, estão em consonância com a aprendizagem calcada
no senso comum e na reprodão espontânea do cotidiano estanhado. Desse modo, o
imediatismo e o individualismo que permeiam a vida cotidiana são impulsionados pela
necessidade de respostas rápidas, resultando em concepções fragmentadas e
espontâneas cuja capacidade de apreensão não ultrapassa os aspectos fenonicos
da realidade concreta (HELLER, 2008).
Nessa mesma perspectiva de análise, Caldas (2007, p. 8) salienta que[...] esta forma
de pensar e agir, a partir das necessidades imediatas e particulares, que caracteriza a
consciência cotidiana ou o senso comum, tende à aceitação do mundo e das normas
sociais e presta-se à alienão do homem. Marx (2010) relaciona o processo de
alienação do homem identificando as condições com que o trabalhador se reproduz,
pois [...] o trabalhador tem a infelicidade de ser um capital vivo e, portanto, carente
(berftig), que, a cada momento em que não trabalha, perde seus juros e, com isso,
sua exisncia [...], a sua vida, se torna e é concebida como oferta de mercadoria, tal
como qualquer outra mercadoria [...]” (MARX, 2010, p. 91, grifos do autor).
No campo educacional, essa alienação implica na perda do sentido do trabalho
docente. Esse contexto que relaciona trabalho e alienação igual à naturalizão da
cotidianidade, tal qual encontramos subsumidos no lema aprender a aprender, ao
propor uma formação para toda a vida, propiciando o equilíbrio para o exercício de
uma cidadania ativa”, corrobora para a ênfase no imediatismo e no individualismo. Isso
porque: O objetivo a ser alcançado com a educação escolar não é o de formar um
indivíduo que possua determinados conhecimentos, mas um indivíduo disposto a
aprender aquilo que for útil à sua incessante adaptação às mutações do mercado
globalizado (DUARTE, 2011, p. 138).
Schults (2012) afirma que, seguindo as orientações dos organismos internacionais, a
educação passa a desempenhar um trabalho direcionado à construção da capacidade
desses indivíduos, da sua preparação no sentido de que se convertam em eternos
estudantes; em outros termos, sujeitos pró-ativos, aptos às exigências do novo e
precário mundo do trabalho (ALVES, 2000), a considerar a necessidade de que se
credenciem para ocupar postos de trabalho permanentemente mutáveis.
Ao inserir esse direcionamento para a formação dos sujeitos, voltado à formação de
competências, encontramos em Fleury e Fleury (2001, p. 184) que: Competência é
uma palavra do senso comum, utilizada para designar uma pessoa qualificada para
realizar alguma coisa”. Os autores discorrem que uma pessoa competente é aquela
capaz de realizar qualquer tarefa, ou seja, [...] a competência é percebida como
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estoque de recursos, que o indivíduo detém” (FLEURY; FLEURY 2001, p. 185) e a
problemática consiste em que, se o sujeito não continuar aprendendo por toda a vida,
em pouco tempo será excluído do mundo do trabalho, daí a flexibilidade concebida pelo
sistema toyotista de produção sendo empregado no ensino em sentido pleno.
Por fim, os autores asseveram que, com esses direcionamentos, o conceito de
competências se define [...] como conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes
(isto é, conjunto de capacidades humanas) que justificam um alto desempenho,
acreditando-se que os melhores desempenhos estão fundamentados na inteligência e
personalidade das pessoas (FLEURY; FLEURY, 2001, p. 184). Na guisa da análise,
Schults (2012, p. 32) afirma que [...] aprender e ensinar se tornaram commodities
dentro do sistema econômico global; em outras palavras, a educação dentro da lógica
mercadológica transforma-se em serviço que pode ser comprado, condição esta que
contribui para a amplião da lista de cadastro de reserva, ou, como classifica Kuenzer
(1999), professor sobrante, o qual precisa apenas dominar meio dúzia de técnicas
pedagógicas.
Com esse perfil docente, atualmente, é comum a contratação de estagiários/auxiliares
para realizarem trabalho em sala de aula ocupando o lugar de docente, dos quais
muitos se encontram em processo de formação em nível médio ou cursando
licenciatura em nível superior. As condições tendem a precarizar ainda mais se
considerarmos a recente reforma do Ensino Médio. A Lei Nº 13.415, de 16 de fevereiro
de 2017, em especial seu Art. 6º, que alterou o Art. 61 da Lei de Diretrizes e Bases
(LDB 9394/96), passou a admitir:
IV - profissionais com notório saber reconhecido pelos respectivos sistemas de ensino,
para ministrar conteúdos de áreas afins à sua formação ou experiência profissional,
atestados por titulação específica ou prática de ensino em unidades educacionais
da rede blica ou privada ou das corporações privadas em que tenham atuado,
exclusivamente para atender ao inciso V do caput do art. 36 [...]. (BRASIL, 2017b, p. 2,
grifos dos autores).
Conforme afirmou Kuenzer (1999), qualquer um pode ser professor, desde que tenha
um notório saber reconhecido”. O que se sugere com esses encaminhamentos é a
constrão de um determinado perfil docente que contribua para melhorar a
qualidade da educação em atendimento ao novo modelo de formação. É nesse
contexto que as teses disseminadas por autores como Jacques Delors, Philippe
Perrenoud e Edgar Morin, particularmente as proposições direcionadas ao
aperfeiçoamento do perfil docente do século XXI, ganharam novo destaque nos dias
atuais.
Esse processo guarda sintonia com os direcionamentos dos organismos internacionais,
em especial à UNESCO ao vaticinar que os docentes [...] devem despertar a
curiosidade, desenvolver a autonomia, estimular o rigor intelectual e criar as condições
necessárias para o sucesso da educação formal e da educação permanente”
(DELORS, 1998, p. 152). As indicações por hora apresentadas, se vistas
superficialmente, soam coerentes; no entanto, observamos que não há referência do
professor como formador, somente como um sujeito que desperta, desenvolve”,
estimula e cria. Nesse caso, o perfil docente indicado pelo autor, ao considerar o
aumento do número de matrículas e a conversão da escola em instituição promotora
de ações assistencialistas, em detrimento do ensino/conhecimento, deve[...] esforçar-
se por prolongar o processo educativo para fora da instituição escolar [...]
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estabelecendo ligação entre as matérias ensinadas e a vida cotidiana dos alunos
(DELORS, 1998, p. 154).
Mais uma vez o texto supõe coerência, porém, em uma análise mais profunda, temos
que cotidianidade diz respeito aos aspectos espontâneos da reprodução da vida
estranhada, à dimensão fenomênica da vida no interior da realidade complexa, cuja
compreensão torna-se inatingível sem o domínio do conhecimento cienfico mais
apurado. Conforme assevera Heller (2008, p. 49): O pensamento cotidiano orienta-se
para a realização de atividades cotidianas e, nessa medida, é possível falar de unidade
imediata de pensamento e ação na cotidianidade”. Para Delors (1998), essa relação
aparece invertida na medida em que os saberes ensinados na escola não servem para
explicar a sociedade, mas deve ser uma extensão desta.
Nesse caso, o indivíduo também se encontra imerso nos problemas sociais típicos da
sociedade contemporânea, e é exatamente por isso que verificamos incoerência
analítica na tese do autor, pois ele desconsidera esse aspecto social relevante ao
sugerir que
[...] os problemas da sociedade envolvente, por outro lado,o podem mais ser deixados
à porta da escola: pobreza, fome, violência, droga entram com os alunos nos
estabelecimentos de ensino, quando até há pouco tempo ainda ficavam de fora com as
crianças não escolarizadas. (DELORS, 1998, p. 154).
Como verificamos, questões como a pobreza, a fome, a violência e a drogadição são
problemas sociais presentes no âmbito escolar que, de acordo com Delors (1998),
configuram situações em que os professores devem desenvolver
aptidões/competências e habilidades para saber enfrentá-las.
Nessa mesma perspectiva, na relação com o aluno, o autor argumenta que [...] o
professor deve estabelecer uma nova relação com quem está aprendendo, passar do
papel de solista ao de acompanhante (DELORS, 1998, p. 155). Mais ainda, [...] a
importância do papel do professor enquanto agente de mudaa, favorecendo a
compreensão mútua e a tolerância [...] (DELORS, 1998, p. 152), pois[...] são enormes
as responsabilidades dos professores a quem cabe formar o caráter e o esrito das
novas gerações (DELORS, 1998, p. 153), ou mesmo:
Espera-se que os professores sejam capazes,o só de enfrentar estes problemas
e esclarecer os alunos sobre um conjunto de questões sociais desde o
desenvolvimento da tolerância ao controle da natalidade, mas também que
obtenham sucesso em áreas em que pais, instituições religiosas e poderes públicos
falharam, muitas vezes. Devem ainda encontrar o justo equilíbrio entre tradição e
modernidade, entre as ideias e atitudes próprias da criança e o conteúdo dos programas.
(DELORS, 1998, p. 154, grifos dos autores).
De acordo com essas indicações descritas, o perfil docente a ser constrdo molda-se
como mero reprodutor, sujeito tolerante, mediador de situações de conflito, indicador de
caminhos, acompanhante, pronto para atender a uma educação proposta pelo lema
aprender a aprender. Para Apple (2015, p. 181), [...] a educação não passa de um
fornecedor de capital humano para o setor privado.
É nesse mesmo campo teórico que devemos apreender as teses apresentadas por
Perrenoud (2000). A obra Dez novas competências para ensinar [...] acentua as
competências julgadas prioritárias por serem coerentes com o novo papel dos
professores, com a evolução da formação contínua, com as reformas da educação
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inicial e com as ambições das políticas educativas (PERRENOUD, 2000, p. 14). O
autor apresenta dez competências reconhecidas por ele como prioritárias para os
docentes. Dentre as competências de referência, constata-se, de forma correlata, a
relão delas aos pilares do Aprender a Aprender, visto que ao docente cabe o papel
de conformar-se como mediador de conflitos, descaracterizando-o como formador.
Em uma perspectiva crítica, Caldas (2016) indica os atributos considerados, por
Perrenoud, indispensáveis para o exercício da atividade docente na atualidade:
A partir desse enfoque, o professor atual deve saber colocar as suas competências em
ação em qualquer situação, ‘refletir em ação, ‘adaptar-se, dominando qualquer situação,
ser admirado, por sua eficácia, experiência, sua capacidade de resposta e ajuste a cada
demanda e, ainda saber jogar com as regras e manter uma relação com os
conhecimentos teóricos que não seja reverente e dependente, mas, ao contrário, crítica,
pragtica e oportunista, em resumo, que este profissional seja autônomo e responsável.
(PERRENOUD, 2001, p. 25 apud CALDAS, 2016, p. 173).
Novamente, apresenta-se o perfil docente para atender a esse novo modelo
educacional construído sobre os pilares da educação para o século XXI, sendo um
profissional resiliente - aprender a ser, autônomo em sua formação aprender a
aprender, adaptável e dominar as situações - aprender a conviver e jogar com as
regras e manter uma relação com os conhecimentos teóricos - aprender a fazer,
atendendo às orientações internacionais calcadas na tese dos aprenderes. Apple
(2015, p. 182) adverte que [...] sob muitos aspectos, na situação atual, isso pode ser
enganador, pois trata-se de novas provocações que buscam a preservão da ordem
vigente em meio ao contundente processo de desagregação social.
Dito isso, ganha relevância a crítica elaborada por Duarte (2011) ao analisar os
direcionamentos propostos pela tese do aprender a aprender: [...] a educação escolar
deve desenvolver no indivíduo a capacidade e a iniciativa de buscar por si mesmo
novos conhecimentos, a autonomia intelectual, a liberdade de pensamento e de
expressão (DUARTE, 2011, p. 40). Compartilhamos de suas ideias quando o autor
apresenta o ponto de discordância em relação à [...] valoração contida no aprender a
aprender das aprendizagens que o indivíduo realiza sozinho como mais desejáveis do
que aquelas que ele realiza por meio da transmissão de conhecimentos por outras
pessoas (DUARTE, 2011, p. 40).
Em consonância com as teses de Delors e Perrenoud, Morin (2000), no livro Os sete
saberes necessários à educação do futuro, defende ser imprescindível os saberes
anunciados na obra, moldando, assim, o perfil dos docentes que pensam e fazem
educação como agentes preocupados com o futuro dos alunos.
O perfil docente exigido dentro dessas políticas esvazia as características de professor
formador e transforma-o em mero reprodutor, ou seja, cabe ao profissional que atua na
escola pública atender à necessidade de formar a força de trabalho para o ingresso no
mundo do trabalho precário. Em meio a esse processo, entre os docentes, é gerado
[...] um sentimento compartilhado de que tanto as políticas educacionais quanto a
própria sociedade o valorizam o professor, ao mesmo tempo em que se encarregam
de novas tarefas” (CALDAS, 2016, p. 179).
A esse processo, soma-se o aumento da fadiga do trabalho, as doenças
psicossomáticas, ou seja, o professor envolto em inúmeros dilemas, um tempo na sua
maior parte consumido para gerenciar problemas/conflitos em sala de aula. Um
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professor cuja síntese do drama vivido relaciona-se ao fato de reduzir-se à condição de
mediador de conflitos, tal como é defendido pela pedagogia do aprender a aprender.
De acordo com Kuenzer (1999), o professor, ao perder seu perfil de formador, reduz-se
ao professor tarefeiro, reconhecido como profissional. O profissionalismo desqualifica
o professor, pois este, ao ser executor das ordens geralmente impostas por instâncias
superiores, perde a sua autonomia e, consequentemente, o controle sobre o trabalho
que executa.
Em ato contínuo, da mesma forma que se esvazia o papel do professor formador,
como tendência, retira-se da educação pública aquilo que deveria ser sua principal
função: formadora e disseminadora de conhecimentos produzidos historicamente e
essenciais para a formão humana. Desse modo, a educação pública é pensada
como um projeto social, uma vez que abriga comportamentos hegemônicos em
atendimento às necessidades urgentes da sociedade capitalista, pois [...] o público
agora é o centro de todo o mal; o privado é o centro de tudo o que é bom (APPLE,
1985 apud APPLE, 2015, p. 185).
2 A LÓGICA MERCADOLÓGICA E SEUS REFLEXOS NO CAMPO EDUCACIONAL
Diante do exposto, tal qual temos procurado demonstrar neste artigo, os novos
direcionamentos pedagógicos assentados nos pilares da pedagogia do aprender a
aprender foram incorporados aos documentos educacionais brasileiros. Com isso, as
reformas do ensino visaram uma educação capaz de reproduzir as relações sociais
alienadas, pois transforma o espaço escolar em território reprodutor de cidadãos
responsáveis aptos a integrar o estoque de força de trabalho precário excedente, em
consoncia com as novas exigências do mundo de trabalho em transformão.
Para tanto, requer-se um perfil de docente resiliente, mediador de conflitos e autônomo,
um professor que conheça os seus alunos, que tenha [...] competência para suprir, em
uma escola precarizada, com condições de trabalho cada vez piores, as deficiências
culturais e cognitivas decorrentes da origem de classe da maioria dos alunos
(KUENZER, 1999, p. 173). Em outras palavras, o professor deve assumir
responsabilidades próprias da falia e do Estado, em detrimento da sua função
formadora capaz de contribuir para o aprimoramento do gênero humano, isso
corrobora para o carácter assistencialista da escola e do foco do ensino calcado na
valorizão da espontaneidade em detrimento do conhecimento.
Com isso, tivemos uma maior segmentação dos trabalhadores em educação,
intensificação da precarizão do trabalho/ensino. Assim, os direcionamentos para a
formação de um professor sobrante neste século XXI culminou com a difuo sem
precedentes da oferta de cursos flexíveis, com formão rápida e com custo baixo,
prioritariamente em instituições privadas. Krawczyk e Ferretti (2017) exemplificam como
ocorrem as parcerias público-privadas.
OEnsina Brasil teve sua primeira atuação no Rio de Janeiro, em 2012, e atualmente vem
ampliando parcerias com outros governos estaduais e municipais, contando com a
parceria de importantes organizações nacionais e estrangeiras, tais como a Fundação
Lemann, Instituto Natura, Fundação Estudar, Insper, Bain & Company, Vetor Brasil,
Geekie, Instituto Sonho Grande, Itaú Social, entre outros. (KRAWCZYK; FERRETTI, 2017,
p. 41).
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Nesse mesmo sentido, Frigotto (2015) indica que as condições da produção flexível,
permeando a relação entre o público e o privado, tendem a transformar tanto o
professor quanto o aluno em empreendedores, empregáveis de acordo com as suas
competências conforme as exigências requeridas pelo mercado de emprego. O
trabalhador que busque, individualmente, atentar-se ao que o mercado espera dele.
Como consequência desse processo, [...] quem deve, de forma gradativa, orientar,
inclusive as escolas estatais públicas, os currículos, os conteúdos e os todos de
ensino e de avalião são institutos vinculados aos setores produtivos privados
(FRIGOTTO, 2015, p. 221). No estado do Paraná, por exemplo, em 2019, o processo
de seleção para a escolha dos dirigentes regionais de educão que irão ocupar os 32
cargos atualmente existentes, es sendo realizado em parceria entre o Seed-PR e a
Fundação Lemann.
O empreendedorismo passa a ser apresentado como sinônimo de autonomia,
resultado de muito esforço e compencia. Vale destacarmos que, quanto mais
avaou a história, mais profundas foram as transformações e a intensificão das
condições de exploração da força de trabalho, processo reforçado com a inserção das
novas tecnologias na produção no início do século XXI, resultando em uma formão
rápida de custo reduzido, estritamente técnica.
O processo educacional, inserido na lógica mercadológica, conduz à
pseudoespecializão, ocasionada pela exigência do trabalhador polivalente e
multifuncional, e resultou em trabalho desprendido de qualquer conteúdo, ou seja, a
fragmentação a qual Alves (1999) denominou de fragmentação sistêmica ou
toyotismo sistêmico (ALVES, 2000). Dessa forma, [...] apesar dos avaos
educacionais inegáveis, nas últimas duas décadas, a visão mercadológica está
instalada e promove um modelo que vem se sobrepondo à garantia de direitos sociais
(GUIMARÃES-IOSIF; SANTOS, 2012, p. 105).
Sguissard (2015) afirma que, no Brasil, a educação vivencia um intenso processo de
transformão, onde passa de um direito ou serviço público para um serviço comercial
ou mercadoria. O autor ainda acrescenta [...] um processo de massificação
mercantilizadora que anula as fronteiras entre o público e o privado-mercantil e impede
uma efetiva democratização dosubsistema. Ao menos no nível da graduão
(SGUISSARDI, 2015, p. 869).
Ainda que o autor tenha feito referência ao Ensino Superior, a Reforma do Ensino
Médio, em seu parágrafo 11, abre a possibilidade de se firmar convênios: §11 - Para
efeito de cumprimento das exigências curriculares do ensino médio, os sistemas de
ensino poderão reconhecer competências e firmar convênios com instituições de
educação a distância com notório reconhecimento” (BRASIL, 2017b, p. 2). Para Branco
et al. (2018):
Configura-se, desse modo, que a Reforma do Ensino Médio está em consonância com os
ideais neoliberais, uma vez que, além de redirecionar o ensino para as demandas do
capital, transforma a Educação em mercadoria, abrindo novos nichos de mercado a serem
disputados, prioritariamente, pelo Sistema S e pelo empresariado, que por coincidência
são parceiros” que participaram ativamente na elaboração da BNCC. (BRANCO et al.,
2018, p. 63).
Com tais direcionamentos, aprofunda-se o processo de esvaziamento da escola como
espo de formação, local de exercício de atividades laborais complexas, pois, dentro
da lógica mercadológica, procura-se obter mais lucro com menos gastos, fato
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consumado por meio da Emenda Constitucional nº 95, conhecida originalmente como
PEC do Teto dos Gastos Públicos, onde se propôs alterar[...] o Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras
providências (BRASIL, 2016, p. 2). O referido documento, ao instituir um novo regime
fiscal, determina que as despesas primárias não deverão ultrapassar o índice da
inflação; desse modo, teremos contenção dos reajustes salariais para funcionários
públicos, cortes nos recursos para políticas públicas em todos os setores, com
destaque para a Educão Básica.
Destacamos que o corte de repasses para a educão pública implica em retrocesso
no campo educacional, perda de direitos por parte dos profissionais, bem como a não
garantia de permanência dos alunos nos bancos escolares, em especial os alunos que
frequentam a última etapa da Educação Básica, ou seja, o Ensino Médio, uma vez que
o aumento das desigualdades sociais constitui-se na razão primordial do maior índice
de evasão nesse nível de ensino. De acordo com os dados disponibilizados pelo
Censo Escolar realizado pelo MEC, entre os anos de 2014 e 2015, tivemos uma
evao de 12,7% dos alunos matriculados na primeira série do Ensino Médio, seguida
por 12,1% dos matriculados na segunda série e 6,7% de evasão na terceira série
(BRASIL, 2017c). Dentre as principais razões, destacam-se a incompatibilidade entre
estudos e a necessidade de obter emprego, ainda que precário, com vistas ao
complemento da renda familiar.
Nesse sentido, ao considerarmos os direcionamentos da Reforma do Ensino Médio, a
Emenda Constitucional Nº 95 e a implantação da Base Nacional Comum Curricular,
temos que se tratou de medidas com vieses que atenderam à lógica do mercado,
processo que, como tendência, contribui para o aprofundamento dos dilemas da escola
pública atual, de modo a intensificar o grau de excluo daqueles que já se encontram
excluídos do sistema de ensino público regular.
Nesse contexto da Educação para Todos, Arroyo (2012, p. 123) aponta alguns
conteúdos imanentes desse modelo educacional classificando como o lugar da
sobrevivência,[...] o mundo letrado, onde a burguesia e seus intelectuais se propõem a
introduzir o povo via escola, não é mais o mundo das letras, das artes liberais e da
cultura; é apenas o mundo natural da sobrevivência. Por conseguinte, a degradação
das políticas públicas como as da educação constituiu-se em uma das características
das formas de acumulação por espoliação na era da infâmia do capital.
Assim sendo, para distinguir os diferentes tipos de escolas e classificá-las como de
qualidade ou sem qualidade, em consonância com as orientações das políticas
disseminadas pelos organismos internacionais, os governos nacionais realizam
avaliações para alunos, professores, escolas, gestores, entre outros profissionais
inseridos no espaço escolar, objetivando a obtenção de índices para a formulão de
políticas para a educação brasileira. Silva (2012, p. 93) assevera que [...] nessas
trilhas, as agências, organizações e instituições internacionais atuam num circuito
supranacional, estão a serviço do capital e dos mercados, captam dados estatísticos,
estabelecem um padrão de qualidade universal para a educação obrigatória”.
Os organismos internacionais estimulam uma política de avaliação em que todos
alunos, professores e escolas são avaliados igualmente, descartando as
particularidades de cada um, pois aplica-se uma avaliação homogênea quando as
realidades e as condições vivenciadas são consideravelmente heterogêneas. A partir
das avaliações, adotam-se padrões de qualidade internacionais que,
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contraditoriamente ao discurso oficial disseminado, não contribuem para uma
educação com qualidade, apenas direcionam ataques às instituições e aos docentes,
ocultando interesses que objetivam a privatização e/ou terceirização da educação, em
todos os níveis e em todas as modalidades.
Diante do exposto, verificamos a tenncia à culpabilizão docente e dos profissionais
que atuam na atividade de ensino, processo que visa retirar a responsabilidade do
Estado e dos organismos internacionais que atuam como gestores externos das
políticas educacionais nacionais. Em consoncia com a lógica do mercado, parece-
nos que o objetivo é fixar a tese na qual a esfera pública é um verdadeiro fracasso,
razão pela qual se justificaria recorrer-se ao setor privado como sendo a solução
adequada para superação dos males típicos do setor público.
3 CONCLUSÃO
A partir da análise das propostas das políticas públicas nacionais e internacionais, os
encaminhamentos culminaram no processo de esvaziamento da escola como espaço
privilegiado para o ensino do saber científico e do professor formador. Essa tendência
resulta das orientões e dos compromissos Educação para Todos, especialmente
os propostos pelo lema apreender a aprender, disseminados por organismos
internacionais e multilaterais.
A sociedade do conhecimento disseminada por essas políticas conduz a um
conhecimento esvaziado, útil e instrumental incapaz de levar o sujeito a uma formação
emancipatória, sustentada por conhecimentos sólidos produzidos historicamente.
Nessa perspectiva, o docente perde seu caráter formativo e insere-se em um campo
onde viceja a alienação e o conformismo. Sua função é transformada, basta ser capaz
de enfrentar e mediar os dilemas socialmente impostos. Diante da complexidade de
problemas, exige-se que o docente seja competente e tenha habilidade para solucionar
tais dilemas.
Em suma, ao considerarmos a maneira com que as políticas determinadas pelos
organismos internacionais m incidido sobre a educão pública brasileira em todos os
níveis e modalidades, cabe aos atores envolvidos no processo, sejam eles, docentes,
profissionais, discentes ou comunidade, mobilizar-se de forma contrária a esses
direcionamentos políticos educacionais e a essa nova forma de barbárie social na era
da infâmia do capital, em defesa da educação pública laica e gratuita.
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