Trabalho & Educação | v.28 | n.3 | p.179-195 | set-dez | 2019
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DOI: https://doi.org/10.17648/2238-037X-trabedu-v28n3-14670
ATIVIDADE, SIGNIFICADOS E SENTIDOS: MEANDROS NA DOCÊNCIA
DA EDUCAÇÃO INFANTIL
1
Activity, meanings and reasons: meanders in early childhood education
FERREIRA, Mônica Baldiotti Campolina
2
MACHADO, Lucília Regina de Souza
3
RESUMO
Como entender os motivos pelos quais professoras concursadas da educação infantilm se demitido
voluntariamente dos seus cargos? Podem os conceitos de atividade, significado social e sentido
pessoal advindos da teoria hisrico-cultural contribuir para responder a essa pergunta? Para entrever
tal possibilidade realizou-se uma revisão teórica em textos de Vigotski e Leontiev, que abordam tais
conceitos. Os resultados obtidos o apresentados neste artigo e se mostraram pertinentes para
apoiar o desenvolvimento de pesquisa empírica sobre a exoneração volunria de professoras da
educação infantil municipal. Trata-se de uma investigão destinada a analisar as referências dessas
professoras sobre significados sociais a respeito dessa docência e os sentidos que essa atividade tem
para elas.
Palavras-chave: Atividade de magistério. Motivação do professor. Valor social do trabalho.
ABSTRACT
How to understand the reasons why early childhood teachers have resigned their tenure in public
schools? Could the concepts of activity, social and personal sense stemming from the historical-
cultural theory contribute to answering this question? In order to understand this possibility, a
theoretical review was made in texts by Vigotski and Leontiev, who deal with such concepts. The
results obtained are presented in this article and have been proved relevant to support the
development of empirical research on the voluntary exoneration of early childhood teachers in public
schools. It is an investigation designed to analyze the references of such teachers about social
meanings in teaching and the relevance that this activity has for them.
Keywords: Teaching activity. Teacher motivation. The social value of work.
1
O texto não foi apresentado ou publicado, anteriormente, em encontros e/ou outros eventos científicos; o projeto de pesquisa que deu
origem ao texto passou e foi aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa; não houve financiamento de órgãos e/ou agências de fomento;
é resultante de pesquisa para fins de conclusão de curso de mestrado.
2
Mestranda em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local do Centro Universitário UNA, Especialista em Práticas Escolares de
Alfabetização e Letramento pela PUC Minas, Pedagoga pela FaE-UFMG. Professora da EJA. E-mail: monicabaldiotti@yahoo.com.br.
3
Pós-doutora em Sociologia do Trabalho pelo Institut des Recherches sur les Sociés Contemporaines - Iresco, Doutora em Educação
pela PUC São Paulo, Mestre em Educação e Socióloga pela UFMG. Professora titular aposentada da FaE-UFMG e Coordenadora do
Programa de Pós-Graduação em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local do Centro Universitário UNA. E-mail:
lsmachado@uai.com.br.
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INTRODUÇÃO
O presente artigo, resultado de revisão teórica conceitual, reúne e discute conceitos e
abordagens sobre atividade humana, atividade docente, motivos, significado social e
sentido pessoal, realizada para balizar uma pesquisa sobre o que moveu professoras
concursadas da educação infantil à exoneração voluntária de seus cargos.
O quadro teórico do material coletado para análise tem como referência a teoria
histórico-cultural e o materialismo histórico-dialético e se refere, basicamente, às
contribuições de Lev Vigotski
4
e Alexis Leontiev.
Ao discorrer sobre as condições de trabalho que dizem respeito à docência na
educação infantil, Pinto, Duarte e Vieira (2012) remontam aos três elementos
constituintes do processo de trabalho conforme estabelece a teoria marxista, a saber: o
trabalho em si (a atividade adequada a um fim); o objeto sobre o qual o trabalho é
realizado; os meios, a matéria, os instrumentos que se aplicam ao trabalho.
Tais autoras valem-se das considerações de Silva (2007) para exemplificar que, no
campo da educação, o objeto de trabalho do professor é o aluno (a quem a atividade
pedagógica se dirige) e os instrumentos são as habilidades e conhecimentos
adquiridos no processo de formação.
A professora da educação infantil, no Brasil, tida por muito tempo como tia, educadora,
cuidadora, ba, crecheira, monitora, é a figura formalmente encarregada do trabalho
docente na primeira etapa da educação básica nacional, tendo que zelar pelo processo
educativo, pelo desenvolvimento integral das crianças e pelo desempenho da
instituição. Para tanto, assume várias fuões e acaba por responder a demandas
pelas quais muitas vezes não está preparada.
Mesmo após a criação da lei
5
que determina o magistério como a formação mínima
necessária para o exercício dessa docência, o emprego ainda não raro das
denominações acima mencionadas retrata a manutenção do desprestígio de que
padece a profissional que educa e cuida de criaas pequenas em espos não
domésticos, revelando a dificuldade em conceber o caráter profissional do seu trabalho.
Ideias que infantilizam essa atividade docente fazem parte desse processo de
desvalorização.
Entretanto, a simples verificão das prescrições em lei para a docência na educão
infantil evidencia a complexidade dessa atividade. Por exemplo, a Lei n. 10.572, de 13
de dezembro de 2012, da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte MG, que dentre
outras estabelece as seguintes atribuições para essa profissional:
I - atuar em atividades de educação infantil, atendendo, no que lhe compete, a criança que,
no início do ano letivo, possua idade variável entre 0 (zero) e 5 (cinco) anos e 8 (oito)
meses;
II - executar atividades baseadas no conhecimento científico acerca do desenvolvimento
integral da criança de até 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses, consignadas na proposta político-
pedagógica;
4
Foram encontradas na literatura nacional e internacional, diferentes grafias para nomear este autor, tais como Vigotski, Vygotski, Vigotsky
e Vygotsky. No presente artigo, optou-se pela adoção da forma Vigotski. Nas citações e referências, serão mantidas as originais.
5
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei 9394, de 1996, em vero atualizada de março de 2017, determina, no inciso I do
Art. 61, que, para atuar na educação infantil, o profissional deve ser professor habilitado em nível médio ou superior.
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III - organizar tempos e espaços que privilegiem o brincar como forma de expressão,
pensamento e interação;
IV - desenvolver atividades objetivando o cuidar e o educar como eixos norteadores do
desenvolvimento infantil;
V - assegurar que a criança na educação infantil tenha suas necessidades básicas de
higiene, alimentação, saúde, segurança e bem-estar atendidas de forma adequada;
VI - propiciar situações em que a criança possa construir sua autonomia;
VII - implementar atividades que valorizem a diversidade sociocultural da comunidade
atendida e ampliar o acesso aos bens socioculturais e artísticos disponíveis;
VIII - executar suas atividades pautando-se no respeito à dignidade, aos direitos e às
especificidades da criança de até 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses, em suas diferenças
individuais, sociais, econômicas, culturais, étnicas, religiosas, sem discriminação alguma;
IX - colaborar e participar de atividades que envolvam a comunidade;
X - colaborar no envolvimento dos pais ou de quem os substitua no processo de
desenvolvimento infantil;
XI - interagir com os demais profissionais da instituição educacional na qual atua, para
construção coletiva do projeto político-pedagógico;
XII - participar de atividades de qualificação proporcionadas pela administração municipal;
XIII - refletir e avaliar sua prática profissional, buscando aperfeiçoá-la;
XIV - planejar e executar o trabalho docente dentro da especificidade da educação infantil;
XV - acompanhar e avaliar sistematicamente o processo educacional, fazendo os registros
necessários, inclusive apurar a frequência diária;
XVI - desincumbir-se de outras tarefas espeficas que lhe forem atribuídas. (BELO
HORIZONTE, 2012).
Espera-se, assim, das professoras em questão conhecimentos e habilidades, amplos e
interdisciplinares, que excedem as possibilidades oferecidas pela formão exigida
para o cargo. Tais requerimentos abrangem abordagens do cuidado e da educação de
maneira indissociável, de planejamento, operacionalizão e avaliação do trabalho,
dentre outras.
Conforme Mangini e Mioto (2009, p. 2012) o apelo à interdisciplinaridade não deixa de
ser uma estratégia do capital em busca de sua legitimão. Isso [...] quando tomada
como uma atitude de abertura do sujeito individual ou coletivo (equipe), disposto à:
integração, interação, coordenação, colaborão, e à cooperação”. Em face dessas
expectativas, o trabalhador é chamado a se mostrar flexível às transformações e
inovões na organizão do processo de trabalho.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil - DCNEI (BRASIL, 2010)
também definem para as professoras desse nível educacional conhecimentos e
habilidades complexas, que dizem respeito à elaboração e o desenvolvimento de
propostas pedagógicas, que considerem a criança como o centro do planejamento,
sujeito histórico e de direitos. Ou seja, são demandas que precisam corresponder ao
entendimento de que a criança, nas interações e práticas do dia a dia, experimenta e
constrói sua identidade pessoal e coletiva por meio de ações diversas. Ela é um ser
que brinca e faz de conta, mas que também deseja, pensa, aprende, observa,
questiona, produz cultura, elabora sentidos sobre a natureza e a sociedade.
O trabalho prescrito, tal como o estabelecido acima pela legislão educacional,
corresponde à atividade que é esperada do trabalhador e em conformidade com as
regras e determinações que lhe são designadas. Porém, há também outra realidade,
que é aquela referente ao trabalho real ou à atividade realizada pelos sujeitos a partir
de normas e modus operandi que ele acaba, de um modo ou de outro, impondo ao
processo de trabalho. (SCHWARTZ, 2006).
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Toma-se, aqui, por referência a premissa do trabalho como a transformação da
natureza pelo homem para satisfazer as suas necessidades de sobrevivência,
transformando-se simultaneamente. Nesses termos, o trabalho docente é definido
como [...] todo ato de realizão no processo educativo”. (OLIVEIRA, 2010, s/p).
Assim, considera-se o caráter educativo do trabalho já que trabalho e educação são
elementares basilares da condição humana.
A atividade docente é permeada pelo trabalho prescrito (estabelecido previamente) e
trabalho real (carregado de variáveis que não podem ser previstas). É orientada por
valores que a coloca em movimento e produz saberes. O trabalho pode ser, assim,
determinado como:
[...] unidade probletica entre a atividade humana, as condições reais de trabalho e os
resultados efetivos obtidos. De um lado, as situações de trabalho condensam as marcas
da história humana. Por outro lado, as situações de trabalho trazem sempre a novidade
das renormalizações impetradas pelos sujeitos do trabalho nos usos que eles fazem de si
mesmos. E eles o fazem segundo suas próprias normas, seus valores e saberes, mesmo
que em dimenes ínfimas e pouco viveis (CUNHA, 2010, s/p).
Pereira Junior e Oliveira (2016) levantaram indicadores do Censo Escolar da Educão
Básica de 2012 e 2013 sobre a reteão e a rotatividade docente. Esse último
fenômeno, frequente nos estabelecimentos de ensino do Brasil, é explicado
observando-se da mobilidade interna às redes até ao abandono da profissão. Eles
identificaram que na rede municipal a taxa de rotatividade é mais elevada,
comparando-a com as das redes estadual, federal e privada. Outro dado importante
apresentado pelos pesquisadores diz respeito à etapa de atendimento, tendo a
educação infantil maior dispersão docente quando comparada ao ensino fundamental
e ensino médio. Confirma-se, portanto, a necessidade de análises criteriosas sobre os
motivos para o abandono da docência por parte de professoras concursadas da
educação infantil municipal.
1 CONTRIBUIÇÕES DE VIGOTSKI PARA A PESQUISA SOBRE A DOCÊNCIA NA
EDUCAÇÃO
Para iniciar esta revisão, é necessário apresentar à moda de um panorama geral,
elementos das contribuições de Lev Semyonovich Vigotski para o tema da docência na
educação infantil. Para tanto, utilizou-se a introdução ao livro A formação social da
mente, desse autor, escrita por Cole e Scribner (1991) e o texto Sobre o
Desenvolvimento Criativo de Vigotski escrito por Alexis N. Leontiev, que serve de
prefácio ao volume 3 das Obras Escolhidas de Vigotski, publicado em 1989.
Vigotski viveu e trabalhou na Era da Grande Revolão Socialista de Outubro.
Escreveu, em menos de dez anos cerca de cento e oitenta trabalhos de grande
importância para a psicologia. É um pesquisador presente na contemporaneidade pela
relevância e atualidade de seus aportes tricos e metodológicos.
No icio do século XX, contexto em que a psicologia na Rússia e na Europa se
referencia em escolas que ofereciam explicações parciais para os fenômenos
psíquicos, Vigotski, juntamente com seus colaboradores, procurou desenvolver uma
teoria do funcionamento mental humano sob bases marxistas.
A Rússia estava, naquele momento, arruinada pela guerra e clamava por enfoques de
análise dos problemas considerando os aspectos aplicados, práticos. Esse cenário
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incitou os questionamentos à psicologia em vincia e a mudança paradigmática, a
qual não ocorreu de imediato.
Vigotski surge nesse contexto em que psicólogos soviéticos pretendiam-se ser
pioneiros no desenvolvimento de uma psicologia nova, de base marxista. Ele,
convidado a trabalhar no Instituto de Psicologia da Universidade de Moscou em 1924,
pronunciou uma palestra que causou forte impacto. Tinha apenas 28 anos de idade e
pouco tempo na carreira de psicólogo.
Sua formação inicial foi em Direito, mas havia se enveredado por diversas áreas, da
dramaturgia, economia política, filosofia à literatura, mas sempre por uma via de
tematizão psicológica. Sua dissertação, Psicologia da Arte, o moveu para a
exploração efetivamente científica desse domínio do conhecimento.
Crítico do reducionismo fisiológico e de descrições da consciência humana que
considerava inadequadas percebeu a urgência da crião de uma psicologia com uma
nova compreensão. Essa tarefa contou, a partir de 1924, com a adesão de Leontiev e
Luria.
Leontiev informa que, para Vigotski, a consciência deveria ser vista [...] como uma
realidade psicológica que possui importância tremenda para toda a atividade vital da
pessoa e que deve ser estudada e analisada concretamente”. (LEONTIEV, 1989, p. 7).
Entendia que uma psicologia para lidar com fenômenos complexos da vida mental só
poderia ser traçada tendo como referência o marxismo, suas bases filosóficas, ou seja,
por meio de um tratamento materialista da consciência. Por conta disso, Vigotski
defendeu que a psicologia do trabalho tinha papel central no desenvolvimento de uma
psicologia cienfica. Segundo Leontiev (1989), a criação das bases metodológicas e
teóricas de uma psicologia marxista precisa, então, se iniciar com a análise psicológica
da atividade de trabalho, pois é nesse plano prático que residem regularidades da vida
mental do homem.
De acordo com Leontiev (1989), Vigotski trouxe uma nova hipótese para o problema da
relão entre funções mentais elementares (pensamento imagético, atenção
involuntária, memória mecânica) e superiores (pensamento por conceitos, atenção
voluntária, memória lógica).
As funções elementares, inferiores, ele conectou com o estágio dos processos mentais
naturais e os superiores com o estágio dos processos mediados, culturais, explica
Leontiev (1989, p. 13). Tais mediações seriam exercidas por instrumentos de dois tipos,
os técnico-materiais e os psicológicos, também chamados por ele de signos.
Logo, o que determinaria o desenvolvimento da mente humana não seria a maturação
biológica na ontogênese e nem a adaptação biológica na filogênese, se não a atividade
concreta na relão dos homens entre si e desses com o mundo, sendo a principal [...]
a atividade de trabalho mediada por instrumentos. (LEONTIEV, 1989, p. 16).
A consciência não teria, é o que afirma a teoria histórico-cultural, uma gênese a-social.
Ela proveria de internalizações feitas pelo sujeito na sua atividade e gras ao concurso
dos instrumentos culturais. A linguagem, constituídas pelos signos, representações
simlicas ou conceitos com significado social compartilhado, seria o instrumento
psicológico mediador do pensamento. (LEONTIEV, 1989).
Vigotski distinguiu duas categorias de conceitos (os cotidianos e os científicos),
destacou as origens sociais da linguagem e do pensamento humano e defendeu a tese
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de que as funções psicológicas superiores são produto de uma atividade humana
específica, a mental.
Sua teoria hisrico-cultural dos processos psicológicos superiores corresponde à
expressão do materialismo hisrico e dialético na psicologia, ao entendimento dos
fenômenos da psique como processos reais em movimento, em constante
transformação.
Isso significa que mudanças históricas na sociedade e na vida material propulsionam
transformações no agir e na consciência e, por conseguinte, na natureza humana
sendo ela própria uma construção social. Vygotski (1991) correlacionou tais
proposições a questões psicológicas concretas.
Nesse sentido, e na esteira das produções de Marx e Engels, elaborou análises sobre
o trabalho e o uso de instrumentos como meios empregados pelo homem para
transformar a natureza em busca da satisfação de suas necessidades e, assim,
transformar a si próprio.
Vigotski pôde, dessa forma, expandir o conceito de mediação na interação homem-
ambiente, para contemplar o uso de instrumentos técnico-materiais e dos signos, todos
produzidos pela e em sociedade, o que tem se traduzido por alterações nas formas
sociais e na cultura. Portanto, como parte desse processo, o desenvolvimento humano
se origina e ocorre historicamente por conta da atividade do homem em sociedade e
por meio da mediação da cultura.
Das contribuições deixadas por Vigotski tem-se um método para traçar a história do
desenvolvimento das funções psicológicas, que passa pela história da sociedade e da
cultura. Nesse contexto, compreende-se o desenvolvimento da criança. Diz ele queAs
funções superiores diferentemente das inferiores, no seu desenvolvimento, são
subordinadas às regularidades históricas. (VYGOTSKI, 2000, p. 23).
Contradiz, assim, o pressuposto de que a função existe no indivíduo ou na criança em
forma pronta ou embrionária, exercitando-se e desenvolvendo-se no coletivo. Vigotski
afirma outra tese, a de que a função primeiramente se constrói no coletivo pela relação
entre as crianças e, depois, se constitui como função psicológica da personalidade: em
Resumo: a personalidade é o conjunto de relões sociais. As funções psíquicas
superiores criam-se no coletivo. (VYGOTSKI, 2000, p. 35).
Vigotski questionou assim tanto o axioma de que a criança pequena é um ser que não
atingiu a fase adulta quanto o de que ela é um adulto em miniatura. Porém, apenas
recentemente as legislações educacionais reconheceram a criança como sujeito único
e de direitos, em desenvolvimento, em formação e permanente transformação.
Confirma-se aí a importância das suas contribuições para a pesquisa sobre a docência
na educação infantil que motivou a presente revio teórica. Há que se considerar, no
caso estudado, a enorme diferença em termos de cuidados e de educação das
crianças que são objeto de trabalho das professoras da educação infantil: há os bebês
com quatro meses de idade que são os ingressantes, aqueles que já possuem dentes,
os que conseguem arrastar-se pelo chão, os que se sentam com firmeza, outros que
começaram a falar. Esses, então, muito diferem em desenvolvimento daquela criaa
que se alimenta com autonomia, que já não usa mais fraldas. Assim, cabe a essas
professoras compreender todo esse universo diferenciado e as mudanças de caráter
físico e psicológico - indissociáveis, diga-se de passagem - da criança, que é o objeto
de sua ação pedagógica.
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O conceito de zona de desenvolvimento próximo, que traça [...] a diferea entre o que
a criança é capaz por si mesma e o que pode se tornar capaz com a ajuda de um
professor (LEONTIEV, 1989, p. 25) contribui para a professora analisar o nível
potencial de desenvolvimento cognitivo de cada uma. Esse conceito se configura como
outro importante legado de Vigotski para a psicologia e, especialmente, para a
educação infantil.
O fundador da teoria histórico-cultural faleceu jovem, aos 38 anos, em decorrência da
tuberculose. O problema da consciência, chave dessa teoria, não foi concldo, mas o
objetivo de inaugurar uma psicologia marxista foi concretizado, tendo a atividade
objetiva humana como categoria central. (LEONTIEV, 1989).
2 CONTRIBUIÇÕES DE LEONTIEV PARA A PESQUISA SOBRE A DOCÊNCIA NA
EDUCAÇÃO INFANTIL
Leontiev foi um psicólogo soviético interessado no estudo da psicologia do
desenvolvimento. Ainda jovem, no contexto da Revolução Russa, foi convidado a
integrar a equipe de Vigotski e Luria na Universidade de Moscou, trabalhando na
sistematização de uma psicologia que ultrapassasse as correntes por eles
consideradas simplistas e reducionistas sobre o desenvolvimento humano.
Ele é o autor da teoria da atividade humana, segundo a qual há aspectos constantes
da estrutura geral da atividade conforme explica: En todas las etapas del desarrollo
histórico la actividad se realiza mediante acciones conscientes, en las cuales se efectúa
el transito de los objetivos a productos de la actividad y se subordina a los motivos que
la originan.” (LEONTIEV, 1983, p. 123).
O que se altera na atividade, conclui, é o caráter das relações que vinculam os
objetivos das ações e os motivos da atividade. Por exemplo, o motivo da atividade de
professoras da educação infantil pode ser o mesmo, a finalidade de promover o
desenvolvimento da criança. Porém, os objetivos das suas ações, que dizem respeito
ao que fazer para materializar esse motivo ou finalidade, podem variar de uma para
outra.
Ao discorrer sobre a gênese da consciência, Leontiev (1983) afirma que o reflexo
psíquico da realidade regula e canaliza a atividade do sujeito. Adepto das ideias de
Marx, Leontiev lembra que este teórico trouxe um método assertivo para a análise
científica da origem e funcionamento da consciência humana, social e individual. Como
consequência, o objeto da investigação da consciência passou do indivíduo subjetivo
para os sistemas sociais de atividade.
Com o intuito de ilustrar os postulados marxistas sobre atividade e consciência na
psicologia, Leontiev (1983) afirma que a natureza da consciência se encontra nas
particularidades da atividade humana e que La actividad una vez realizada es más
rica, s verdadera, que la concebida anteriormente en la conciencia” (LEONTIEV,
1983, p. 105).
2.1 LEONTIEV: O DESENVOLVIMENTO HUMANO E A EDUCAÇÃO INFANTIL
Em O homem e a cultura, Leontiev (1978) retoma as ideias de Engels sobre o
decurso da hominizão, marcha da vida do homem em sociedade organizada na
base do trabalho, que vem transformando a natureza, um desenvolvimento que se faz
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submetido a regularidades sócio-históricas e não a leis biológicas, tal como ocorre com
os animais.
Por conta disso e pelo fato de os homens já se distinguirem pela atividade com caráter
produtivo e criador, ocorrem a fixação e a transmissão dessas aquisões às próximas
gerações. Tais possibilidades são [...] antes de mais o caso da atividade humana
fundamental: o trabalho. (LEONTIEV, 1978, p. 265).
Isso significa que o desenvolvimento social do homem passou a depender cada vez
menos dos ritmos da evolução biológica até chegar à[...] era del dominio único de las
leyes sociales (LEONTIEV, 1989, p. 252).
O uso da linguagem e a capacidade de empregar instrumentos e ferramentas
dependem da transmissão social. No homem que vive, desde pequeno, sem contato
com as formas objetivas que encarnam a história humana como a comunicão com
as pessoas, não se forma o pensamento lógico.
A acumulão e a fixação das realizões do desenvolvimento histórico-social da
humanidade apresentam, segundo Leontiev (1989), formas diferentes daquelas que
dizem respeito ao desenvolvimento filogenético da espécie humana. Por outro lado,
também se diferenciariam, de geração a geração, as transmissões aos indivíduos dos
marcos do desenvolvimento histórico da humanidade.
De acordo com Leontiev (1989), no processo de desenvolvimento ontogenético, que
diz respeito às singularidades de cada um, o homem entra em relações especiais com
o mundo dos objetos e fenômenos circundantes, criados por gerações prévias. Essa
especificidade decorre da natureza desses objetos e desses fenômenos e, tamm,
das condições em que se formam essas relações.
Logo, o desenvolvimento psíquico das pessoas é produto de um processo peculiar.
Comparativamente ao que se sucede com os animais, por esses não realizarem a
adaptação e a objetivação de suas capacidades em produtos de sua atividade, esse
processo seria convergente entre as pessoas. Mas, seria marcado por grandes
diferenças na comparação entre elas.
Em Uma contribuição à Teoria do Desenvolvimento da Psique Infantil, Leontiev (2001)
comenta que não é simples quando uma criança em idade pré-escolar passa a
frequentar o jardim de infância. Explica que, nesse período, o mundo ao redor da
criança se decome em dois grupos: o primeiro, mais restrito, composto por pessoas
inteiramente relacionadas com ela e, o segundo, mais amplo, formado por todas as
demais pessoas, tendo suas relações com essas mediadas pelas relações
estabelecidas no primeiro grupo.
Logo, essa dualidade seria já um desafio para a atuação da professora. Isso posto ele
diz: Todos nós sabemos [...] quão necessária é para as crianças a atenção da
professora e qo frequentemente elas recorrem à sua mediação em suas relações
com outras crianças de sua idade. (LEONTIEV, 2001, p.60). É importante retomar o
que ele afirma sobre a aquisição do desenvolvimento histórico das apties humanas
pela criaa. Segundo ele, ela precisa [...] entrar em contato com os fenômenos do
mundo circundante através doutros homens, isto é, num processo de comunicão
com eles. Assim, a criança aprende a atividade adequada. (LEONTIEV, 1978, p. 272).
A professora da educação infantil é atribuída essa responsabilidade de favorecer às
crianças as aquisições da cultura humana. O problema é que [...] Quanto mais
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progride a humanidade, mais rica é a prática sócio-histórica acumulada por ela, mais
cresce o papel específico da educão e mais complexa é a sua tarefa [...].”
(LEONTIEV, 1978, p. 273).
O autor conclui que a relão entre progresso histórico e progresso da educação é tão
estreita que se pode julgar o nível do desenvolvimento histórico da humanidade pelo
nível do desenvolvimento educativo e vice-versa.
Vale mencionar que, ao nascer, o homem possui somente uma aptidão que o distingue
dos antepassados: a aptidão para formar aptidões humanas. Logo, a importância da
docência na educação infantil, que tem possibilidades infinitas no que tange a
promoção do desenvolvimento da criança pequena, mas também desafios e
dificuldades de grande envergadura.
Dentre as contingências da atividade do docente da educação infantil está o que
Leontiev (1978) nomeou por alienação econômica, o distanciamento das camadas
populares da cultura intelectual e as limitações das possibilidades humanas por conta
da divisão social do trabalho e das relações de propriedade privada, que promove a
divisão da sociedade em classes sociais.
De acordo com Leontiev (1978), na sociedade de classes, mesmo o pequeno grupo
que usufrui das aquisições da humanidade, apropria-se delas de forma limitada pelo
caráter restrito da sua própria atividade. Para a grande maioria, a apropriação das
aquisições é quase inalcançável,
[...] isto é consequência do processo de alienação que intervém tanto na esfera econômica
como na esfera intelectual da vida; que a destruição das relações sociais assentes na
exploração do homem pelo homem, que engendram este processo, só ela pode pôr fim e
restituir a todos os homens a sua natureza humana, em toda a sua simplicidade e
diversidade. (LEONTIEV, 1978, p.283).
A problemática que instigou a proposição da pesquisa sobre o tema da exoneração
voluntária de docentes da educação infantil e que deu ensejo a esta revisão trica
advém da busca de respostas por condições e possibilidades de desenvolvimento
humano, seja dessas professoras quanto das criaas que estão sob sua
responsabilidade, sem cris bloqueios e sem perda do sentido pessoal da atividade.
Dentre essas condições estão as que são indispensáveis à apropriação e transmissão
das conquistas do desenvolvimento hisrico-social da humanidade e à capacidade de
generalização, característica do gênero humano, para o que é decisivo saber usar
instrumentos, a linguagem como instrumento psicológico fundamental à formação do
pensamento e à interação social, e os técnicos de intervenção sobre a matéria.
Daí, o importante papel da professora da educão infantil, pois, nas palavras de
Leontiev (1989, p. 259) [...] las relaciones del niño con el mundo objetal inicialmente
están siempre mediatizadas por las acciones del adulto”. Porém, para Leontiev, é
preciso não se esquecer da necessidade de se criar condições:
[...] que permitam libertar realmente os homens do fardo da necessidade material, de
suprimir a divisão mutiladora entre trabalho intelectual e trabalho sico, criar um sistema de
educação que lhes assegure um desenvolvimento multilateral e harmonioso que dê a cada
um a possibilidade de participar enquanto criador em todas as manifestações da vida
humana. (LEONTIEV, 1978, p. 284).
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2.2 LEONTIEV: ATIVIDADE, MOTIVO, SIGNIFICADO SOCIAL, SENTIDO PESSOAL
O processo de hominização diz respeito à história do metabolismo estabelecido entre
os homens e a natureza por interdio da atividade, mediante a qual modificam o
meio, inventam objetos e formas de produzi-los, movidos pela busca da satisfão de
suas necessidades. Produzem a materialidade das suas existências e, com isso,
promovem o desenvolvimento da cultura. No curso da atividade, as aptidões e os
conhecimentos humanos desenvolvidos são cristalizados nos produtos, passando-os
de geração a geração por meio do trabalho.
A atividade possibilita, igualmente, que as aptidões humanas, a linguagem articulada, o
pensamento e o saber sejam desenvolvidos. (LEONTIEV, 1978). Em resumo, pode-se
dizer que é pela atividade realizada por intermédio da apropriação da cultura criada por
gerações precedentes que as aptidões e os caracteres propriamente humanos se
desenvolvem e não por mera hereditariedade biológica.
Ao se apropriar das riquezas acumuladas ao longo do desenvolvimento histórico,
multiplicando-as e aperfeiçoando-as pelo trabalho, o homem aprende a ser homem.
Mas, para que a aproprião dos objetos ou dos femenos ocorra, é preciso que ele
desenvolva uma atividade reprodutora das marcas da atividade acumulada ou
encarnada no objeto. É o que ocorre nas aquisições referentes ao uso de instrumentos
técnicos e da linguagem. Outro aspecto a considerar é que, no processo dessa
apropriação, a atividade deve ser adequada, reproduzindo as marcas da atividade
cristalizada no objeto, no fenômeno ou nos sistemas que cria. (LEONTIEV, 1978).
Leontiev (2001) diferencia os conceitos de atividade, ação e operação. Por atividade
designa [...] apenas aqueles processos que, realizando as relações do homem com o
mundo, satisfazem uma necessidade especial correspondente a ele. (LEONTIEV,
2001, p. 68). E designa ação como[...] processos psicologicamente caracterizados por
aquilo a que o processo, como um todo, se dirige (seu objeto), coincidindo sempre com
o objetivo que estimula o sujeito e executar essa atividade, isto é, o motivo.
(LEONTIEV, 2001, p. 68). Por operação define o modo de execução de uma ão,
seus meios de execução, [...] o conteúdo necessário de qualquer ação [...]
(LEONTIEV, 2001, p. 74).
Segundo ele, é possível que uma mesma ação (por exemplo, memorizar um poema)
seja efetuada por operões diferentes (escrevendo-o, lendo-o em voz alta, recitando-o
etc). E também, numa mesma operação, podem ser realizadas diferentes ações, pois
uma operação depende das condições em que o alvo ou meta da ação se dá e o alvo
é que determina a ação. Além disso, os atos tamm são caracterizados por métodos,
técnicas e conjunções exigidas pela ação.
A organização da sociedade em classes estipula que os sujeitos se encontrem em
relões opostas e desiguais também quanto aos meios de produção e não apenas
com respeito aos produtos sociais. Sendo assim, a consciência é reflexo também
desse contraste e das contradições que dele emergem, pois, de acordo com Leontiev
(1983), só é possível compreender as particularidades psicológicas da consciência por
meio da análise de seus nexos com as relações sociais em que o indivíduo está
imerso.
É nesse sentido que se faz pertinente recuperar as contribuições desse autor (1975,
1983 e 2001) a respeito dos conceitos sobre significado social, sentido pessoal e
motivos para analisar a compreensão que professoras exoneradas voluntariamente
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têm sobre a atividade docente na educação infantil e os sentidos que transparecem nos
motivos alegados por elas para se demitirem, questão da pesquisa que enseja esta
revisão teórica.
De acordo com o autor, esses conceitos se estabelecem na atividade humana. Os
significados sociais são definidos por ele como generalizações que expressam um
sistema de relações sociais e que se constituem no curso histórico das sociedades.
Destaque importante é o fato de que [] las significaciones reflejan el mundo en la
conciencia del hombre”. (LEONTIEV, 1983, p.115).
De acordo com Leontiev (1983), da apreensão de significados historicamente
elaborados decorre a formação de conceitos e operações lógicas mentais em uma
criança, processo que se dá em comunicação com as pessoas que a rodeiam: Al
instruirse en la realización de unas acciones u otras, el niño llega a dominar las
operaciones correspondientes, que están contenidas en ellas en forma condensada,
idealizada y dotada de significacion. (LEONTIEV, 1983, p. 116).
Porém, segundo Leontiev (1983), a consciência como forma de reflexo psíquico não
pode se reduzir ao funcionamento de significados apreendidos de fora, pois esses só
se convertem em objeto da psicologia quando tomados dentro das relões vividas
pelos sujeitos.
Os significados, como femenos da consciência individual, se encontram em relão
de adequação, que não se mantém, todavia, com o surgimento da divisão social do
trabalho e da propriedade privada. Essa relação se desfaz paralelamente ao
desdobramento da relação dos indivíduos com respeito às condições materiais e meios
de produção, fazendo com que os significados passem a ter vida dupla na consciência
deles.
Exemplificando essa duplicação de significados na relação interna ao movimento de
valores na consciência individual, Leontiev (1983) menciona que estudantes
compreendem claramente os significados sociais que possuem as notas das provas e
as consequências delas derivadas. Porém, as notas podem ter sentidos bastante
diferentes para cada um, a saber: um passo ou obstáculo no caminho para a profissão,
uma forma de auto afirmar-se, dentre outros.
Outro exemplo é dado por Leontiev (2001) quando menciona que uma pessoa pode
conhecer um fato histórico, compreender a significão da data a ele correspondente,
mas esse ter um sentido diferente para ela. Assim, cabe diferenciar o significado
objetivo consciente e o sentido atribdo pelo sujeito, o qual é chamado por Leontiev de
sentido pessoal quando se refere direta e especificamente ao objeto da atividade.
Trazendo para o tema da pesquisa que dá oportunidade a esta revisão teórica, pode-se
dizer que o significado social da atividade docente na educação infantil pode não
encontrar correspondência no sentido pessoal que a professora dessevel de ensino
lhe confere.
La significación es aquella generalización de la realidad que ha cristalizado, que se ha
fijado en su portador sensitivo, por lo general una palabra o combinación de palabras. Esta
es la forma espiritual, ideal de cristalización de la experiencia social, de la praxis social de la
humanidad. El conjunto de las representaciones de una sociedad dada, su conciencia, su
propio lenguaje, todo en suma, constituye la esencia del sistema de significaciones. Y así,
la significación pertenece primordialmente al mundo de los fenómenos ideales
sociohistóricos, de carácter objetivo. (LEONTIEV, 1983, p. 225).
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O significado social da docência na educação infantil pode resultar da cristalização ou
fixação de representações associadas à divisão social do trabalho, às condições da
alienão do trabalho, à suposição de que a professora da educação infantil executa
somente trabalho pouco qualificado.
Tais juízos, sobretudo em se tratando de professoras que lidam com bebês, são ainda
muito presentes e expressam uma forte desvalorização dessas trabalhadoras, como se
as exigências motoras, o cuidado, o banho, as trocas de fralda e as brincadeiras não
fossem fundamentais para o desenvolvimento de funções psicológicas extremamente
complexas no neném e na criança pequena. Por sua vez, os sentidos conferidos pelas
professoras à sua atividade docente podem externar percepções e justificativas
convergentes com tais significões ou nada parecidas com elas.
Leontiev (1975) expõe que a diferenciação entre significado social e sentido pessoal na
consciência individual é determinada por condições objetivas:
Si la sensitividad externa relaciona en la conciencia del sujeto las significaciones con la
realidad del mundo objetivo, el sentido personal las relaciona con la realidad de su propia
vida dentro de ese mundo, con sus motivaciones. El sentido personal es también lo que
origina la parcialidad de la conciencia humana (LEONTIEV, 1983, p. 125).
Dessa diferença entre significados e sentidos na consciência individual, Leontiev (1983)
se reporta a Marx quando esse trata do rompimento da unidade existente entre a
representação social da utilidade de um objeto como meio de satisfação de
necessidades e as possibilidades reais de sua apropriação, dissociação promovida
pela produção mercantil, [...] la qual genera la contraposición entre el trabajo concreto y
abstracto y la enajenación de la actividad humana. (LEONTIEV, 1983, p.120).
Leontiev (1983) analisa a dualidade dos significados, ora como produto da sociedade
(e como tal, tem sua história no desenvolvimento da língua e das formas da
consciência social, subordinadas que estão a leis histórico-sociais) ora submissa à
lógica interna de seu desenvolvimento.
Na consciência dos indivíduos, esse movimento dos significados teria duas facetas: a
primeira consiste no regresso deles ao mundo objetal sensível e, a segunda, na
particular subjetividade que se manifesta na parcialidade que adquirem para cada
indivíduo. Esse último aspecto diz respeito ao sentido pessoal.
A não coincidência de sentidos e significados na consciência individual se manifesta,
como lembra Leontiev (1983) e tem a ver com a situação de cada pessoa na estrutura
social. Pessoas situadas em polos sociais distintos dessa estrutura tendem conferir
sentidos diferentes a significados compartilhados socialmente.
É o caso do trabalhador assalariado que tem no salário o sentido de seu trabalho e não
propriamente no produto da sua atividade. Essa indiferença em relação ao que produz
foi descrita por Marx nos seus Manuscritos Econômico-Filosóficos (MARX, 2004) como
alienão em relação ao produto.
Nas etapas elementares de formação da consciência, os significados parecem
fundidos com os sentidos pessoais, mas logo a não coincidência entre eles se torna
explícita. Os significados refletem para o indivíduo os objetos independentes das
relões que esses tenham em suas vidas, suas necessidades ou motivos. Na
consciência individual do sujeito,
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[] las significaciones apreendidas desde afuera en cierto modo desarrolan y
simultáneamente unen entre ambos tipos de sensitividad: las impresiones sensitivas de
la realidad exterior, dentro de la cual transcurre la actividad, y las formas de vivencia
sensitiva de sus motivos, de la satisfacción o no satisfacción de las necesidades
encerradas en dichos motivos. (LEONTIEV, 1983, p. 125).
Contrariamente aos significados sociais, os sentidos pessoais não possuem uma
existência própria supra-individual. O ser no nível individual não possui significados
elaborados por ele mesmo, somente por interdio de significados, conceitos,
conhecimentos e pontos de vista elaborados a partir do exterior, mediante a
comunicação e relacionamentos com as pessoas, o que não quer dizer que o indivíduo
se encontre estagnado frente aos significados a ele expostos, podendo exercer
resistências e confrontações em condições de luta pela consciência. (LEONTIEV,
1983).
A docência na educação infantil tamm se estrutura com base em significações
sociais construídas externamente à professora. Mas, conforme a relação social
vivenciada nessa sua atividade, ela pode conferir a elas sentidos coincidentes ou não
com esses significados sociais. Isso vai depender do motivo que impulsiona essa
professora a essa atividade e a faz se manter nela.
Se toda atividade é motivada, quando não motivo para que ela seja realizada, ela
deixa de existir, não acontece. Assim, para Leontiev, [...] o conceito de atividade está
necessariamente relacionado com o conceito de motivo. A atividade não pode existir
sem um motivo [...] (1983, p. 83).
Entretanto, há motivo real, entendido como genuíno e autêntico, que é o que se
encontra no objeto da atividade e outros que não guardam essa correspondência. No
caso da educação infantil, o motivo real, objeto da atividade, é o desenvolvimento da
criança. Mas, para a professora, o motivo ou a necessidade que a move à atividade
pode ser outro, extrínseco a ela.
Leontiev (2001) oferece o seguinte exemplo: quando um colega de um estudante
afirma que o livro que ele está lendo não é necessário para a prova, o estudante
poderá: parar de ler, continuar a leitura ou desistir de ler com pena. Nos últimos dois
casos, o contdo do livro foi o motivo real, logo, a leitura era uma atividade com razão
intrínseca, própria. Já, no primeiro caso, o motivo que levou o estudante a ler o livro não
era o contdo em si, mas a necessidade de sair-se bem na prova. Conforme
esclarece Leontiev (2001, p. 68), [...] aquilo para o qual sua leitura se dirigia o
coincidia com aquilo que o induzia a ler. Neste caso, por conseguinte, a leitura não era
propriamente uma atividade. A atividade, neste caso, era a preparação para o exame.
(LEONTIEV, 2001, p. 68). Neste exemplo, a leitura é somente uma ão dessa
atividade de se instrumentar para a prova.
Com base nesse exemplo, Leontiev (2001) esclarece que o objetivo de uma ação, por
si mesmo, não estimula a agir e que, para que essa ão ocorra, é preciso que seu
objetivo esteja relacionado com o motivo da atividade da qual ela participa.
Leontiev (2001) designou como motivos compreensíveis os que não coincidem com o
objeto da atividade, que atuam como fatores impulsionadores da atividade, mas não lhe
conferem um sentido pessoal para o sujeito. Por exemplo, exercer a docência na
educação infantil para conseguir uma renda pessoal mesmo que pequena. Já os
motivos eficazes são os que coincidem com o objeto da atividade, com seu contdo
objetal. No caso, exercer essa docência para responder à necessidade social de
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promoção do desenvolvimento infantil. Os motivos eficazes são os que tornam o objeto,
no caso o desenvolvimento infantil, em motivo da atividade, os que estimulam a
atividade e conferem sentidos pessoais a ela.
Para Leontiev, os motivos são transformáveis; os compreensíveis, no decorrer da
atividade, podem se tornar eficazes, mas isso somente em determinadas condições. A
transformação do motivo[...] é uma questão de o resultado da ação ser mais
significativo, em certas condições, que o motivo que realmente a induziu. (LEONTIEV,
2001, p.70).
A esse respeito ele narra o exemplo da criança que começa a fazer a tarefa indicada
pela professora para cumprir em casa após dizerem a ela que só sairia para brincar
caso a tivesse concluído. A criança passa a fazê-la porque quer sair para brincar.
Acontece, então, uma nova objetivação das necessidades da criança: o objeto que a
move, o motivo, é se divertir; cumprir a tarefa escolar se converte em ação para realizar
a atividade de recreação.
Para que a ação ocorra, é preciso que seu objetivo seja compreendido em sua relação
com o motivo da atividade. Como conseguinte, o objetivo de um mesmo ato / ação
pode ser compreendido de modo diferente, conforme o motivo que surge em conexão
com ele, mudando também o sentido da ação para quem a executa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta revisão teórica teve o objetivo de recuperar contribuições da teoria histórico-
cultural importantes para a compreensão da docência na educação infantil.
O entendimento da natureza social do homem e da sua constituição ou hominizão
em função da organização da sociedade baseada no trabalho, por meio da qual a
cultura material e intelectual vem se constituindo, é um ponto de partida fundamental
para essa compreensão.
Nesse sentido, tomou-se a atividade como categoria central para o entendimento do
desenvolvimento humano, o como os homens se tornaram humanos. Ao buscarem
satisfazer suas necessidades, eles se submeteram à atividade de produção de
utilidades e, para isso, vêm modificando a natureza, se adaptando a ela, produzindo
cultura, ciência, arte e diversificando a fonética das línguas.
A educação se insere nesse processo de aproprião e objetivação, pois cada gerão
inicia a vida num mundo de objetos e femenos criados por gerações precedentes.
Vigotski (1991) esclarece a importância das mediações por instrumentos e pela
linguagem para que ocorram as aquisições e as concretizões humanas.
A escola se junta a essa dinâmica ao se propor à transmissão às novas gerações da
herança cultural, tarefa cada vez mais complexa em função do aumento da variedade e
da riqueza da prática sócio-histórica acumulada.
O processo da apropriação culturalo é dado, porém, para todos, pois depende das
condições materiais e da riqueza, distribdas desigualmente em decorrência da
divisão social do trabalho (MARX, 2004) e dos processos de alienação a ela
associados.
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A professora da educação infantil, como todo trabalhador, tem sua consciência formada
por internalizões histórico-culturais, pelo seu ser social procedente da sua atividade
de trabalho.
A atividade é a base da história, pois o corpo do trabalhador (no caso da professora) é
histórico, cultural, biológico, psíquico; está imerso em saberes e normas, apresentando-
se atravessado por normas inscritas no trabalho prescrito e no trabalho real.
O trabalho é uma atividade produtiva especificamente humana. Seguindo essa linha, a
consciência individual, também como forma especificamente humana, pode ser
entendida como produto das relações e mediões decorrentes do surgimento e
desenvolvimento da sociedade.
A atividade se constitui por uma corrente de ações e cada qual tem seus objetivos. A
professora da educação infantil se defronta, assim, com maneiras e meios de
realização ou operacionalizar cada ação, condições determinadas socialmente.
O objeto, motivo ou necessidade move e controla sua atividade, seja na sua forma
externa, material, sensorial, prática ou na sua forma interna, mental. Assim, sua
consciência se produz como retrato do mundo desdobrado para ela, no qual suas
ações e estados estão incluídos e reproduzidos por meio de significados veiculados
pela linguagem.
A professora da educação infantil encontra nesses significados reproduções das
contradições que existem na sociedade, assimiladas através da atividade externa que
realiza. Os significados se apresentam de uma forma dual para ela: são objetos de sua
consciência e, ao mesmo tempo, meios e mecanismos para a compreensão do
mundo.
A formação da consciência da professora da educação infantil envolve, assim, um
drama devido à internalização das contradições reproduzidas pelos significados. Por
outro lado, segundo Leontiev (1977), nem sempre há coincidência entre significado
social e sentido pessoal.
Ele explica que os sentidos intrínsecos à atividade, aqueles que dizem respeito ao
real motivo dela, e os extrínsecos, que se referem a impulsões externas. Assim, a
professora da educão infantil que está nessa atividade movida pelo salário,
estabilidade do cargo e compensões assessórias confere sentidos externos à sua
atividade e se mostra susceptível à alienação, ao distanciamento em relação ao seu
motivo original e autêntico. Já aquela que assume a atividade porque quer contribuir
com o desenvolvimento das crianças e ensiná-las conhece o sentido intrínseco e se
completa com seu objeto, se une a ele, vê nele a razão de ser professora, se realiza
como pessoa, experimenta o sentido pessoal da atividade.
Esses são postulados inspirados pela revisão teórica realizada. Eles se mostram
importantes para o desenvolvimento da pesquisa empírica, que se propôs realizar junto
a professoras exoneradas voluntariamente. Com essa investigação, pretende-se
analisar as referências dessas professoras sobre significados sociais da docência na
educação infantil e os sentidos que essa atividade tem para elas.
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Data da submissão: 02/07/2019
Data da aprovação: 23/08/2019