Trabalho & Educação | v.29 | n.1 | p.15-32 | jan.-abr | 2020
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DOI: https://doi.org/10.17648/2238-037X-trabedu-v29n1-16240
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/
TRANSFORMAÇÕES NO MUNDO DO TRABALHO E POLÍTICA PÚBLICA
EDUCACIONAL NO BRASIL
1
Changes in the world of work and educational public policy in Brazil
SIQUEIRA, Leonardo Moura L. C. de
2
SOUZA, Laumar Neves de
3
RESUMO
O presente artigo objetiva questionar a proposta de investimento em capital humano como uma solão
para o iminente desemprego estrutural decorrente da adoção das novas tecnologias da robótica e da
intelincia artificial publicada em 2018 pelo Banco Mundial. Tendo por base (1) a alise emrica do
mercado de trabalho brasileiro a partir da perspectiva da evolução das credenciais educacionais da
classe trabalhadora, (2) os impactos das novas tecnologias sobre o trabalho e (3) os desafios
decorrentes das metamorfoses vivenciadas pela classe-que-vive-do-trabalho, o artigo conclui ser
oportuna a reflexão sobre uma alternativa de potica pública educacional que tenha por prosito o
desenvolvimento de uma compreeno crítica da sociedade brasileira, levando em consideração não
apenas a formação para o trabalho, mas, também para a atuação social e política.
Palavras-chave: Trabalho. Educação. Política blica.
ABSTRACT
This article aims to question the World Bank proposal published in 2018 of investment in human capital
as a solution to the imminent structural unemployment resulting from the adoption of new technologies
of robotics and artificial intelligence. Based on (1) the empirical analysis of the Brazilian labor market
from the perspective of the evolution of the working class's educational credentials, (2) the impacts of
new technologies on work and (3) the challenges arising from the metamorphoses experienced by the
working class, the article concludes that it is opportune to reflect on an alternative of educational public
policy that aims to develop a critical understanding of Brazilian society, taking into account not only the
training for work, but, also for social and political action.
Keywords: Labor. Education. Public Policy.
1
Parcela significativa deste artigo deriva da pesquisa de mestrado realizada pelo seu autor principal sob a orientação do seu segundo autor
e viabilizada graças à bolsa de estudos cedida pela CAPES ao pesquisador no período do curso, de abril/2016 a março/2018.
2
Doutorando em Economia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestre em Desenvolvimento Regional e Urbano pelo Programa
de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional e Urbano da UNIFACS. Graduado em Economia pela UNIFACS. E-mail:
leonardo.moura@gmail.com
3
Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Possui mestrado e graduação em Economia pela UFBA.
Professor titular do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional e Urbano da UNIFACS. E-mail: laumar.souza@unifacs.br
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1. INTRODUÇÃO
No final de 2018, o Banco Mundial, no seu periódico Relatório do Desenvolvimento
Mundial (World Development Report ou WDR), intitulado A Natureza Mutante do
Trabalho”, apresenta seu ponto de vista acerca das políticas públicas a serem adotadas
pelos governos, com vistas a preparar suas populações para as transformações
iminentes no mundo do trabalho, decorrentes da integração das novas tecnologias da
inteligência artificial e da robótica na produção de bens e serviços. Buscando conferir
matiz tranquilizador sobre o futuro da classe trabalhadora, o documento classifica como
infundadas as preocupações com tais mudanças, apontando para a criação de novos
tipos de trabalho para os quais as políticas públicas do campo técnico educacional
devem qualificar as pessoas. Investing in human capital is the priority to make the most
of this evolving economic opportunity (Banco Mundial, 2018, p. 3).
Com vistas a contribuir para este debate, o presente artigo objetiva questionar a proposta
do Banco Mundial e apresentar um possível embrião de ideia de política pública
educacional a ela alternativa. A construção deste se dá ao longo do texto, tendo por base
três processos: (1) a análise da inserção dos trabalhadores brasileiros no mercado de
trabalho do país a partir da perspectiva das credenciais educacionais destes
trabalhadores, por meio dos dados do IBGE na Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios (PNAD), para o período compreendido entre 2001 a 2015
4
; (2) a visão
apresentada por Teles e Caldas (2019) acerca dos impactos sobre o trabalho
decorrentes da adoção de novas tecnologias; e (3) o debate estabelecido entre Filgueiras
e Cavalcante (2019) e Standing (2015) sobre as transformações atuais do mundo do
trabalho.
Espelhando esta rota metodológica, o artigo está estruturado em três partes além desta
introdução e das considerações finais. Na primeira, são identificadas as principais
transformões da força de trabalho do Brasil na perspectiva da sua qualificação
mediante a conclusão de anos de estudos entre os anos de 2001 a 2015. Busca-se
nessa parcela mais longa do texto identificar em que medida, como apregoado pela
Teoria do Capital Humano, a expectativa de melhor inserção no Mundo do Trabalho foi
atendida em função da elevação das credenciais educacionais dos trabalhadores
brasileiros. Está dividida em cinco subpartes: (a) análise panorâmica da evolução da
populão economicamente ativa (PEA)
5
; (b) comportamentos dos seus dois
subconjuntos - ocupados e desocupados; (c) população ocupada, de acordo com as
cinco mais importantes posições na ocupação (empregado, doméstico, conta própria,
empregador e não remunerado); (d) o processo de flexibilização das formas de
contratão do trabalho; e (e) evolução da remuneração do trabalho.
Na segunda parte, discute impactos verificados e impactos temidos sobre o trabalho
decorrentes da adoção de novas tecnologias. Na terceira são, apresenta-se, com base
no debate travado sobre um suposto novo adeus ao trabalho, como os argumentos
4
Como a metodologia mais nova da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio (PNAD Contínua) somente passou a ser aplicada aos
dados levantados a partir de 2012, escolheu-se trabalhar com arie histórica da PNAD do período de 2001 a 2015, que abrange um
recorte temporal mais amplo.
5
Existem novas nomenclaturas definidas no âmbito da Organização Internacional do Trabalho durante a 19ª Conferência Internacional dos
Estasticos do Trabalho, realizada em 2013 e que já foram adotadas pela PNAD Connua. Entretanto, com vistas à manutenção do rigor
conceitual, foi imperativa a adoção das categorias da PNAD (ver Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - Notas metodolgicas,
disponível em:
ftp://ftp.ibge.gov.br/Trabalho_e_Rendimento/Pesquisa_Nacional_por_Amostra_de_Domicilios_anual/microdados/2015/Metodologia_2017
0517.zip).
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apresentados fortalecem a retórica sobre a necessidade de desregulamentação do
trabalho.
2. MERCADO DE TRABALHO E CREDENCIAIS EDUCACIONAIS DA FORÇA DE
TRABALHO NO BRASIL
Ao longo das últimas três cadas, o mercado de trabalho brasileiro tem passado por
transformões, pari passu com mudanças vivenciadas nos planos da economia e da
política do país que, a partir dos anos 1990, acelerou seu processo de integrão aos
sistemas produtivo e financeiro globais (ALVES, 2007; ANTUNES, 2005; POCHMANN,
2002 e 2008). Impulsionada pelas ondas de desemprego vivenciadas nesse período, a
competição entre os trabalhadores na cata pelas melhores oportunidades de inserção,
fenômeno típico de conjunturas dessa natureza, previsto por Offe e Hinrichs (1989, p.
61-66), se intensificou, fortalecendo-se a busca da qualificão por meio do estudo como
uma estratégia competitiva de diferenciação da mão de obra. De fato, uma das maiores
alterões que pode ser destacada no mercado de trabalho nacional é o incremento do
tempo de dedicação aos estudos por parte dos indivíduos da população trabalhadora,
fenômeno que, como ver-se-á por meio dos dados que aqui são analisados, se
processou especificamente nos primeiros quinze anos do século XXI.
2.1 Panorama da força de trabalho no Brasil nos anos recentes
Ao se analisar os dados da PNAD referentes à classificação dos grandes subconjuntos
populacionais brasileiros em relação ao mercado de trabalho, observa-se que a PEA
apresentou um crescimento de 24,3% entre 2001 e 2015 (Tabela 1). Por ser tal aumento
menor que o verificado no subconjunto que a contém (a Populão em Idade Ativa
PIA), a taxa de participação para o referido período caiu 1,8%, saindo de 60,5% para
59,4%. Entretanto, avaliando-se o espo de tempo em fragmentos de 5 (ou 6 anos,
entre 2009 e 2015), observa-se crescimento entre 2001 e 2005 (4,0%), leve redução de
2005 a 2009 (1,3%) e, a partir de 2009 uma queda mais acelerada, que até 2015 é de
4,3%, contrariada, em 2014, quando o indicador cresceu 2,2% em relação ao ano
anterior (Tabela 1).
Tabela 1 - Evolução da distribuição populacional em relação ao mercado de trabalho - Brasil, 2001,
2005, 2009 e 2015
Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD/IBGE), 2001-2009 e 2011-2015
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Essas variações observadas na taxa de participação resultaram das mudanças de
cenário do mercado de trabalho que, por sua vez, refletiram a dinâmica da economia do
país. Assim foi que, em períodos de retrão ou de baixa dinâmica econômica, como
entre 2001 e 2003, observou-se a manuteão de elevadas taxas de desemprego e um
concomitante aumento da taxa de participão, que representa a pressão demográfica
sobre o mercado de trabalho (Tabela 1). O período de maior crescimento da taxa de
participação, entre 2001 e 2005, corresponde ao mesmo em que a taxa de desocupação
se manteve em patamares mais elevados. Com efeito, apenas à medida que a
desocupação apresentou quedas sucessivas a partir de 2006, ou seja, depois que a
economia consolida seguidos incrementos reais, é que se verificou redução na taxa de
participação (Tabela 1).
Lançando o olhar sobre esta força de trabalho a partir do ponto de vista da sua
distribuição por faixas de anos de estudo, a evolução dos seus números evidencia uma
intensa busca por elevação de escolaridade por parte da força de trabalho. Em 2001, as
duas classes com menor tempo de estudo somada à daqueles sem instrão, ou seja,
o contingente de indivíduos que finalizaram no máximo os sete anos iniciais do sistema
formal de ensino perfazia mais da metade da PEA (54,1%), enquanto as duas últimas,
ou seja, a dos indivíduos com onze anos ou mais de estudo compunham 28,6% da PEA.
Em 2015, essa realidade praticamente se inverteu. Isso porque, o primeiro grupo passou
a corresponder a 31,2% da PEA e aquele com maiores credenciais educacionais
crescera para mais da metade da força de trabalho, somando 51,5% desta (Tabela 2).
Tabela 2- Evolução da distribuão da PEA e da taxa de participação por faixas de anos de estudo, Brasil - 2001,
2005, 2009 e 2015
Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD/IBGE), 2001-2009 e 2011-2015
Internamente tamm, no âmbito dos indivíduos com menor tempo de estudo, eles,
paulatinamente, entre 2001 e 2015, passaram a ingressar em quantidade relativamente
menor no mercado de trabalho. Tal fato pode ser observado na queda de 24,9% na taxa
de participação dos indivíduos sem instrução, que reduziu de 52,9% para 39,8%, e na
baixa de 24,5% deste indicador para os indivíduos com tempo de estudo de 1 a 3 anos
que decresceu de 49,4% para 37,3%. Ou seja, intensificou-se por parte das pessoas em
idade ativa a opção por ingressar no mercado de trabalho à medida que ampliavam seu
tempo de estudo acumulado. Este processo ainda foi corroborado, a partir principalmente
de 2005, pela melhoria na dinâmica ecomica do ps, que entre este ano e o de 2011
cresceu em média (3,95% a.a.), fato esse que trouxe reflexos positivos sobre o nível de
ocupação.
Dist. PEA Tx. Part. Dist. PEA Tx. Part. Dist. PEA Tx. Part. Dist. PEA Tx. Part.
Anos de Estudo 100,0% 60,5% 100,0% 62,9% 100,0% 62,1% 100,0% 59,4%
Sem Instrução 11,1% 52,9% 9,1% 52,6% 7,5% 48,0% 5,7% 39,8%
De 1 a 3 anos 13,5% 49,4% 11,2% 50,0% 8,9% 43,7% 6,4% 37,3%
De 4 a 7 anos 29,5% 53,9% 26,8% 54,0% 23,1% 51,2% 19,1% 45,8%
De 8 a 10 anos 16,9% 65,2% 17,4% 66,8% 17,2% 64,9% 17,3% 59,7%
De 11 a 14 anos 21,9% 78,1% 27,6% 80,5% 33,0% 80,1% 37,7% 76,3%
15 ou mais anos 6,7% 85,3% 7,6% 85,6% 10,1% 85,1% 13,8% 82,0%
o determinado 0,4% 70,3% 0,3% 73,1% 0,2% 70,4% 0,1% 62,2%
o informado 0,0% - 0,0% - 0,0% - 0,0% -
2015
2001
2005
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2.2 Evolução da (des)ocupação segundo o tempo de estudo
Sob o aspecto do tempo de estudo, é comum se pensar que quanto mais um indivíduo
se dedica aos estudos, maiores e melhores são suas oportunidades de inserção no
mercado de trabalho. Esse raciocínio, quando testado com base nos dados da taxa de
desocupação brasileira no período de 2001 a 2015, se mostra apenas parcialmente
verdadeiro, já que, dentre as três faixas com maior tempo de estudo, apenas no conjunto
da força de trabalho de indivíduos com quinze anos ou mais de formação a taxa de
desemprego se fez menor que a taxa geral de desocupação (Gráfico 1). Em relão à
taxa verificada em 2001, para o estrato com maiores credenciais escolares, a
desocupação cresceu 32,4%, saltando de 3,7% para 4,9% em 2015.
Considerando que, atualmente, o sistema de educação formal define o tempo mínimo
do ensino fundamental em nove anos e o do ensino médio, mais três, para entrar neste
estrato da PEA, em que a desocupação se faz menor, um indivíduo precisa fazer um
curso devel superior. Entre aqueles que venceram de 8 a 10 anos de estudo, tendo
no máximo finalizado o ensino fundamental, a taxa se apresentou nos seus mais
elevados patamares, em dia 49,7% maior que as taxas gerais de desocupação
registradas na Tabela 1. Em magnitude menor, mas, ainda assim, acima da média geral,
a desocupação afligiu o estrato de pessoas com tempo de estudo entre 11 e 14 anos,
com taxas de 0,6 a 1,5 p.p. maiores.
Gráfico 1- Evolução da taxa de desocupação por faixas de anos de estudo Brasil - 2001, 2005, 2009 e 2015
Fonte: IBGE/PNAD
A partir de outra perspectiva de análise, a do universo dos indivíduos ocupados, os dados
da PNAD deixam clara a elevão da escolaridade desse grupo populacional (Gráfico
2).
Gráfico 2- Evolução da distribuição relativa da ocupão por faixas de anos de estudo Brasil - 2001, 2005,
2009 e 2015
Fonte: IBGE/PNAD
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A parcela com 11 anos ou mais de estudo, que, no mínimo, finalizou o ensino médio, em
2001, abrangia menos de um terço do total (30,0%); já em 2015, perfez mais da metade
(53,2%). Por outro lado, o subconjunto dos indivíduos com a 7 anos de estudo que, em
2001, compunha 53,4% dos ocupados, registrou queda de 44,0%, totalizando, no último
ano analisado, 29,9%.
Além desses fatos, é importante que sejam levadas em conta as possíveis posições em
que se inseriram os trabalhadores no universo da ocupação. Isto porque cada vez mais,
como será observado na sequência, um maior número de anos de estudo finalizados
pode não representar garantia de inserção em uma posição desejada. Cada uma das
cinco posições de ocupação mais frequentes, quando consideradas sob a perspectiva
de faixas de anos de estudo, pode melhor revelar tal realidade.
2.3 O universo dos ocupados sob a ótica da posição na ocupação
Ao se analisar a evolão da distribuição relativa da ocupação por posição no interior do
seu conjunto, verifica-se que, dentre suas cinco mais significativas categorias
empregado, doméstico, conta própria, empregador e não remunerado, entre os anos de
2001 a 2015, duas delas, quais sejam, empregado e conta própria, tiveram variações
positivas (Gráfico 3).
Gráfico 3- Evolução da distribuição relativa da ocupão por posição ocupada Brasil - 2001, 2005, 2009 e 2015
Fonte: IBGE/PNAD
O conjunto dos empregados cresceu 11,2%, saltando de 54,3% para 60,4%; já o dos
conta própria, 2,7%, saindo de 22,3% para 22,9%. Os das demais três posições sofreram
redução relativa; a mais significativa se deu para o contingente doso remunerados,
que caiu 43,9%; o dos trabalhadores domésticos diminuiu 15,4%, e o dos empregadores,
11,9%.
Lançando-se olhar sobre a composição do subconjunto dos empregados do ponto de
vista das faixas de anos de estudo (Gráfico 4), observou-se significativas alterações
durante o período analisado: redões nas participações das faixas com até 10 anos de
estudo e efeito inverso nos dois subconjuntos com maior carga de tempo de estudo.
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Gráfico 4 - Evolução da distribuição relativa da posição ocupada empregado por faixas de anos de estudos
Brasil - 2001, 2005, 2009 e 2015
Fonte: IBGE/PNAD
De modo preciso, tem-se que a parcela com até 10 anos de estudo, que compunha
60,9% dos empregados, em 2001, passou, em 2015, a abranger 37,5%. Já a dos
indivíduos com 11 ou mais anos de estudo saltou de 39,1% para 62,5%. Este
crescimento se deu em função das expansões de 93,6% da parcela com 15 ou mais
anos de estudo e 49,0% da de empregados com tempo de estudo de 11 a 14 anos.
Em relação à escolaridade entre os ocupados na posição de trabalhadores domésticos,
esta deu claros sinais de elevação, já que, em 2001, apenas 7,0% possa 11 ou mais
anos de estudos e 23,6% apresentava-se com 8 anos ou mais. Quando feita esta
mesma avaliação para 2015, vê-se que as faixas com 11 ou mais anos de estudo haviam
mais que triplicado, perfazendo 24,3%; a dos trabalhadores domésticos com 8 anos ou
mais de estudo, a parcela quase que dobrou de tamanho, saltando de 23,6%, em 2001,
para o patamar de 46,7% da força de trabalho doméstica em 2015 (Gráfico 5).
Gráfico 5- Evolução da distribuição relativa da posição ocupada trabalhador doméstico por faixas de anos de
estudos Brasil - 2001, 2005, 2009 e 2015
Fonte: IBGE/PNAD
Embora percentualmente ainda baixo, é importante destacar o surgimento estatístico do
trabalhador doméstico de nível superior de escolaridade, com 15 ou mais anos de
estudo, nesta que é comprovadamente uma das posições na ocupação em que as
condições de trabalho se fazem mais precárias. Tal classe, que inexistia em 2001,
apresentou-se, em 2015, abrangendo 1,6% do subconjunto em questão (Gráfico 5).
Além do trabalhador doméstico, outra posição em que a precariedade do trabalho se faz
presente em diversos dos seus aspectos é a do trabalhador por conta própria. Em geral,
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os trabalhadores por conta própria têm jornadas mais extensas, apresentam
rendimentos inferiores àqueles que são empregados, não eso cobertos por boa parte
dos institutos da seguridade social, não se encontram associados ou sindicalizados e
suas condições de trabalho são altamente instáveis (PAMPLONA, 2001, p. 119). Entre
suas atividades econômicas, uma das que, atualmente, melhor pode servir de exemplo
desta realidade é a dos motoristas associados à Uber, com jornada de trabalho e
remuneração flexíveis, inexisncia de obrigatoriedade de contribuição para previdência
social e total incerteza quanto à possibilidade de permancia na realização daquele
serviço.
Entre 2001 e 2015, o subconjunto dos conta própria que apresentou uma tendência à
queda até 2013, cresceu (Gráfico 3). O comportamento das variações da sua
participação no global das ocupações, mesmo não apresentando alterações
quantitativamente similares, seguiu a cada ano, quase sempre, a mesma direção da taxa
de desocupação (Gráfico 6).
Gráfico 6- Evolução anual da taxa de desocupação e da participação da força de trabalho na posição na
ocupação conta própria, Brasil, 2001-2015
Fonte: elaboração própria
Em verdade, procedendo-se o teste de correlão entre os dados desses dois
indicadores, para o período estudado, verificou-se forte relação (0,817), positiva, entre a
variação da desocupação e a participação da posição por conta própria na ocupação,
permitindo-se afirmar que esse tipo de ocupação tende a crescer com elevações na taxa
de desocupação, não sendo necessariamente o inverso verdadeiro, já que o
crescimento da força de trabalho na posição de conta própria reduz a desocupação. Os
dados refletem a realidade de que, quando o desemprego se alastra, as pessoas
passam a ter mais dificuldade para garantir a sua reprodução material. Em função disso,
muitas delas são compelidas a desenvolver alguma atividade produtiva por conta própria,
especialmente no âmbito da informalidade, onde grassa a irregularidade da frequência
de realizão das atividades laborais e, consequentemente, dos rendimentos. Esta é,
em verdade, uma das faces do processo de precarização do trabalho: camuflar o
fenômeno do desemprego.
Analisando-se a composição da força de trabalho ocupada na posição conta própria a
partir do ponto de vista das faixas de anos de estudo, pode-se observar que, entre 2001
e 2015, a parcela dos que tinham de 11 a 14 anos de estudo mais que dobrou,
aumentando sua participação para 101,4%. A daqueles com maior tempo de vida
dedicada aos estudos cresceu 91,8%, saltando de 4,9% em 2001 para 9,4 em 2015
(Gráfico 7).
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Gráfico 7 - Evolução da distribuição relativa da posição ocupada conta própria por faixas de anos de estudos
Brasil - 2001, 2005, 2009 e 2015
Fonte: IBGE/PNAD
Direcionando a leitura para a avalião da evolução da categoria de posição na
ocupação com menor participação relativa, a de empregador, sob a ótica do seu tempo
de estudo, durante todo o período estudado, vê-se que ela reuniu os indivíduos com as
melhores credenciais educacionais (Gráfico 8). Isso porque, mais da metade dos
empregadores tinha no mínimo 11 anos de estudo em 2001 (51,8%). Já em 2015, esta
parcela havia aumentado para mais de 2/3 (69,4%).
Gráfico 8 - Evolução da distribuição relativa da posição ocupada empregador por faixas de anos de estudos
Brasil - 2001, 2005, 2009 e 2015
Fonte: IBGE/PNAD
Em relação à distribuição dos não remunerados por faixas de anos de estudo, embora
tenha se verificado para o período uma elevão na participação das pessoas com mais
tempo dedicado aos estudos, a grande maioria desses trabalhadores (68,4%) tinha até
7 anos de estudo em 2015 (Gráfico 9).
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Gráfico 9- Evolução da distribuição relativa da posição ocupada não remunerado por faixas de anos de estudos
Brasil - 2001, 2005, 2009 e 2015
Fonte: IBGE/PNAD
Em 2001, essa fragilidade educacional em termos formais era ainda mais acentuada,
posto que correspondia a 82,7% desse subconjunto dos ocupados. Para
contrabalancear esse movimento, a parcela com 11 anos ou mais de estudo que
representava 7,0% desses trabalhadores, em 2001, passou, em 2015, a responder por
16,2%.
2.4 A flexibilização do trabalho
Dentre as transformações verificadas sobre a ocupação no Brasil durante a última
década do século XX, podem ser destacadas a informalização e a flexibilizão das
formas de contratação do trabalho. No presente artigo, tendo por base a experiência de
Schneider e Rodarte (2006, p. 82-88) e do IPEA, que, a partir de dados da PNAD,
elaborou o indicador de grau de informalidade do trabalho (IPEADATA), denomina-se de
ocupações flexibilizadas o conjunto das ocupões sem carteira assinada, conta própria,
de produção para próprio consumo e não remuneradas, de forma a analisar, para o
período de 2001 a 2015, como o processo da flexibilização do trabalho no Brasil se
apresentou.
Observando-se a evolução da participão das ocupões flexibilizadas, verifica-se uma
queda de 17,3% nos quinze primeiros anos deste século, saindo de 57,9% das
ocupações em 2001 para 47,9% em 2015 (Tabela 3).
Tabela 3- Evolução da participação da ocupação flexibilizada no total da ocupão, Brasil - 2001, 2005, 2009 e
2015
Fonte: PNAD/IBGE, 2001-2009 e 2011-2015
Tal fato se deve às melhores condições de inserção decorrentes da queda verificada na
desocupação até 2013, à intensificação da fiscalização do Ministério do Trabalho e
Emprego (MTE) (SIMÃO, 2009), corroborada, a partir de 2014, pela implantação do
Sistema de Escrituração Fiscal Digital, SPED Social ou eSocial. Este sistema
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informatizou e unificou por completo as declarações trabalhistas acessórias que são
feitas pelos empregadores aos mais diversos órgãos governamentais, facilitando o
processo de fiscalização do trabalho.
Alternando a leitura das ocupações flexibilizadas para o recorte por faixas de anos de
estudo, verifica-se um grande crescimento da parcela percentual da força de trabalho
com maior tempo de instrução formal (Tabela 4). Os indivíduos com 11 a 14 anos de
estudo submetidos a condições flexíveis de trabalho aumentaram 103,8% sua
participação entre 2001 e 2015. Simultaneamente, a força de trabalho com maior
escolaridade ampliou sua fatia de 3,4% para 8,0% - incremento de 135,3%.
Tabela 4- Evolução da distribuão da ocupação flexibilizada por faixas de anos de estudo, Brasil - 2001, 2005,
2009 e 2015
Fonte: PNAD/IBGE, 2001-2009 e 2011-2015
2.5 A renda do trabalhador do ponto de vista do tempo de estudo
No que tange às condições de trabalho, a renda (preço da força de trabalho) é,
certamente, o indicador mais significativo. No período de 2001 a 2015, a classe
trabalhadora obteve emdia, uma elevão de 33,3% (ou 1,9% a.a.) do seu
rendimento real mensal. Tal processo de crescimento se deu primordialmente a partir de
2005 (Tabela 5).
Tabela 5 - Evolução anual do rendimento real médio mensal, Brasil 2001/2015
Fonte: PNAD/IBGE, 2001, 2005, 2009 e 2015
(1) A preços de 2015, com base no IPCA/IBGE
A evolução do rendimento médio mensal real quando analisada a partir do ponto de vista
do tempo de estudo dos trabalhadores apresenta pelo menos dois fatos curiosos. O
primeiro refere-se à queda das rendas médias das duas classes com mais tempo de
estudo (Tabela 6).
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Tabela 6 - Evolução anual do rendimento real médio mensal por faixas de anos de estudo, Brasil - 2001 a 2015
Fonte: IBGE/PNAD
A força de trabalho com 15 ou mais anos de estudo, que recebia em dia R$ 5.098,36
por mês, em 2001, fechou o ano de 2015 com renda mensal média real de R$ 4.008,55
uma redução de 21,4% do seu poder de compra. Movimento em direção similar, mas
de queda menos intensa, ocorreu em relação aos proventos dios mensais médios
daqueles que completaram de 11 a 14 anos de estudo, que decresceram 12,0%, entre
2001 e 2015.
No extremo oposto das classes desse recorte, entre os trabalhadores sem instrão, em
função da política de valorização do salário mínimo, o rendimento médio mensal teve
seu maior crescimento no período em análise (85,3%), fazendo com que, em 2015, uma
pessoa com menos de um ano de estudo ganhasse em média pouco mais que os
trabalhadores com até 10 anos de estudo (0,9%). Naquele ano, um trabalhador sem
instrução recebia em média 17,0% a mais que o trabalhador com 4 a 7 anos concluídos
de estudo. Sua renda também era 34,5% superior à do trabalhador com 1 a 3 anos de
estudos.
Importante destacar as grandes diferenças em termos de rendimento que existem entre
a força de trabalho com até 10 anos de estudo e os trabalhadores com tempo de estudo
de 11 a 14 anos, bem como dessa classe para aquela que lhe é superior. No ano de
2015, em dia, o indivíduo com ensino médio finalizado ou próximo desse patamar
recebeu em torno de 71,5% a mais que aqueles indivíduos com até 10 anos de estudo.
No mesmo ano, trabalhadores que ingressaram e terminaram o ensino superior
obtiveram proventos médios mensais três vezes maior que aqueles finalizaram até o 14º
ano de estudo.
Quando se leva em consideração o processo histórico de formação social do Brasil e do
seu mercado de trabalho, marcados pela herança escravista e pela negligência em
relação à qualificação da força de trabalho, é imperativo o destaque do fenômeno da
intensa elevação da escolaridade da força laboral brasileira no início do século XXI. Para
uma maior chance de inserção entre os ocupados, a chamada economia de mercado
força que o indivíduo busque por qualificação, sem, contudo, garantir-lhe a inserção
desejada. Por isso, verifica-se uma realidade que, em alguns aspectos, contraria as
expectativas constitdas de que uma maior dedicão de tempo aos estudos seria
sinônimo de uma melhor inserção no mercado de trabalho. Observando-se a força de
trabalho sob as perspectivas do desemprego, da precarização dos contratos de trabalho
e da renda da população ocupada, verificaram-se fatos surpreendentes ao senso
comum.
Efetivamente, o universo das ocupões passou a ser majoritariamente constitdo por
pessoas com pelo menos o ensino dio concldo. Tal fato resulta naturalmente, dentre
outros motivos, da amplião da oferta de força de trabalho com tal característica. Os
indivíduos com 11 a 14 anos concldos de estudo, em especial, enfrentaram uma maior
Se m Instrução De 1 a 3 anos De 4 a 7 anos De 8 a 10 anos De 11 a 14 anos 15 anos ou mais
2001 R$ 422,97 R$ 384,70 R$ 517,78 R$ 734,16 R$ 1.515,28 R$ 5.098,36
2005 R$ 493,71 R$ 426,96 R$ 520,55 R$ 664,21 R$ 1.329,39 R$ 4.549,07
2009 R$ 639,41 R$ 502,72 R$ 610,27 R$ 762,76 R$ 1.380,51 R$ 4.328,41
2015 R$ 784,48 R$ 583,33 R$ 670,42 R$ 776,61 R$ 1.333,01 R$ 4.008,55
Ano
Anos de Estudo
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concorrência, uma taxa de desocupação acima da média geral, flexibilizão dos
vínculos contratuais de trabalho e consequente tendência à queda da renda dia.
O desemprego se fez efetivamente menor entre os trabalhadores que ingressaram no
ensino superior. A renda desta classe é em média significativamente maior que a média
geral (232,8%), embora tenha apresentado, nos quinze anos analisados, uma queda
que, em termos absolutos (menos R$ 1.089,82), se aproximou da renda média da faixa
que lhe é imediatamente inferior (R$ 1.333,01).
Dentre as três faixas com maior tempo de estudo, apenas a dos trabalhadores com 15
ou mais anos de estudo apresentou em média taxa de desocupação abaixo dadia
geral entre 2001 e 2015. As outras duas, que compreendem os indivíduos com 8 a 14
anos de estudo, foram os que mais sofreram com o desemprego; mais que os
trabalhadores sem instrução ou que aqueles que finalizaram até 7 anos de estudos.
A estratégia de elevação das credenciais escolares por parte dos trabalhadores se traduz
em mais ampla inserção na ocupação e maiores rendas médias. Estas, entretanto,
embora mais elevadas, decrescem de forma significativa nos dois estratos com
credenciais escolares maiores, em que também crescem os vínculos flexibilizados de
trabalho. Assim que, hoje, no Brasil, não necessariamente, mais estudo se transforma
em menor taxa de desemprego ou maior seguraa social advinda dos contratos de
trabalho.
Alguns fatos demonstrados pelos dados da PNAD que chamaram a atenção estão
relacionados à classe dos trabalhadores sem instrução. No âmbito deste subgrupo
populacional, a taxa de desocupão foi a segunda menor, a maior valorização da média
salarial em termos absolutos e a participação entre as ocupações flexibilizadas foi a
segunda menor.
3. IMPACTOS VERIFICADOS E IMPACTOS TEMIDOS SOBRE O TRABALHO
Desde a Revolução Industrial a os dias atuais, os avanços tecnológicos geram temor
e questionamentos em relação a seus efeitos sobre o trabalho dos seres humanos.
Como nos momentos das críticas invenções do motor a vapor, dos motores a
combustão, do uso da energia elétrica, dos transportes e das comunicações velozes, as
novidades hodiernas guardam reconhecido potencial de reconfiguração dos processos
produtivos, com ganhos significativos de produtividade no trabalho, acompanhados,
consequentemente, de uma redução da necessidade técnica de determinadas
habilidades humanas incorporadas pelas máquinas. Como resultado, tem-se a
expectativa de que o mercado de trabalho apresente novas mudanças, com aumento
significativo do desemprego estrutural e redesenho da demanda por força de trabalho.
A despeito desse justificável temor, a abater trabalhadores dos mais distintos níveis de
qualificação técnica e profissões, Teles e Caldas (2019) chamam a atenção para o fato
de tal medo vincular-se a um evento futuro que, embora possível, ainda se encontra
indefinido no tempo e no espo, passível de sofrer influências de natureza sociopolítica.
Previsões nesta direção de um desemprego estrutural de grandes proporções feitas
tanto por Marx (1996) em sua crítica a teoria da compensação, quanto por Keynes (1963)
nas suas preocupações com nossos netos, não ocorreram, embora sigam sendo
recorrentesantecipões semelhantes de um desemprego tecnológico massivo [...] no
atual debate sobre o futuro do trabalho (CALDAS; TELES, 2019, p. 32).
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Neste sentido, é interessante destacar uma colocação feita por estes autores que
corrobora para a concepção do embrião de proposta de política pública de educação que
aqui será apresentada. Afirmam eles que:
O julgamento que possamos fazer dos futuros que nos o propostos, e a escolha daqueles
que desejamos (ou queremos evitar) para os nossos netos, dependem não só de
antecipações carregadas de incerteza quanto ao impacto que as novas tecnologias
podeo vir a ter no emprego, mas, fundamentalmente, do modo como concebemos o
trabalho humano e as quinas. Concepções do trabalho distintas transportam consigo
implicações políticas opostas (CALDAS; TELES, 2019, p. 32).
Assim sendo, já no presente, por razões caracteristicamente não tecnológicas, mas
essencialmente políticas, elevado desemprego estrutural, drástica redução da protão
social, queda persistente da renda laboral e precarização das condições do trabalho
configuram o mundo contemporâneo (TELES; CALDAS, 2019).
Nesse ambiente bastante adverso para a classe que vive do trabalho, é atribuído ao
surgimento de empresas que dão forma aos fenômenos da Gig-economy, sharing
economy, crowdsourcing, on-demand economy, plataformizão, uberização e outras
denominações um caráter revolucionário. As grandes transformações causadas pelas
indevidamente chamadas empresas plataformas seriam, para muitos, sinais
inquestioveis de que o emprego se encontra em extinção.
Entretanto, deixando esta reiterada retórica de lado e analisando as implicações práticas
das inovações em questão, em verdade, pode-se afirmar que o efeito delas sobre o
processo produtivo recaem quase que exclusivamente sobre o/a trabalhador/a. A título
de exemplo, a Uber, em termos técnicos, não alterou a forma nuclear do serviço de como
um(uma) motorista busca um passageiro e o translada de um ponto geográfico a outro
(TELES; CALDAS, 2019). A mudança principal reside nas relações que se estabelecem
entre o prestador (empresa), o/a executor(a) (motorista) e o/a contratante (passageiro/a)
do serviço. O poder por ser exercido por cada uma das partes durante o tempo que a
relação social se concretiza revela claramente que a plataforma digital não é a empresa,
mas sim uma ferramenta por ela utilizada para realizar, primeiramente, a comunicação
entre o/a contratante e a Uber, e entre esta e o/a motorista; em seguida, monitorar a
prestação do serviço; e, depois, avaliar executor(a) e contratante. Adicionalmente, o valor
do serviço prestado e a parcela que a cada um cabe são definidos pela Uber. Por fim, a
empresa de serviços de transporte tem o poder de, a qualquer momento, sem
necessidade de justificativas claras, desligar os motoristas nela cadastrados. De forma
análoga, com algumas variações decorrentes da natureza do serviço ofertado, relações
similares de poder são exercidas por empresas de serviços de delivery, de aluguéis de
imóveis, de tradução, etc. Dessa forma, a plataforma digital constitui factualmente uma
ferramenta de gestão do negócio e do trabalho (FILGUEIRAS; CAVALCANTE, 2018;
ANTUNES; FILGUEIRAS, 2019). Os algoritmos nelas programados registram, analisam
e direcionam as tomadas decisão tendo por norte os objetivos da empresa. Como
ferramenta que é, está longe de representar uma inovão radical na forma de produzir
um bem ou prestar um serviço.
Se por um lado, nesse contexto, a tecnologia possibilita o desenvolvimento de novas
formas de organização e gestão do trabalho, por outro, a quase nula regulamentão da
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atividade, que pode ser lida como um laissez faire, laissez aller, laissez passer
6
, gera
impactos degradantes sobre as condições de trabalho e vida da classe trabalhadora.
Sem maiores direitos a serem respeitados pelas empresas, os custos e riscos inerentes
a toda a prestação do serviço recaem sobre os trabalhadores (SLEE, 2017). Com
jornada e remuneração do trabalho flexíveis, trabalha-se cada vez mais, para se receber
cada vez menos (ANTUNES, FILGUEIRAS, 2019).
4. MUNICIANDO A DESREGULAMENTAÇÃO DO TRABALHO COM NOVOS
ARGUMENTOS
A recente história dos estudos do trabalho registra dois momentos em que foram
propostas teorias que sugerem o desaparecimento dos trabalhadores como classe
social e categoria central de análise da dinâmica do modo de vida e produção capitalista.
O primeiro deles, nos anos 1980, quando Gorz (1982) apresentou seu Adeus ao
proletariado e Offe (1989) pôs em xeque a centralidade do trabalho como categoria
chave da sociologia. Nesse primeiro debate, tal proposição encontrou, nos estudos
apresentados a partir de meados dos anos 1990 por Antunes (2006; 2009), seu
contraponto, indicando ser fundamental compreender as transformações pelas quais
passava a classe-que-vive-do-trabalho.
O segundo momento, muito recente, nasce da proposta de Standing (2015) que advoga
estar em processo a formação de uma nova classe social, o precariado, reflexo da
construção da sociedade global de mercado que resultaria numa nova estrutura de
classes sociais, na qual a classe trabalhadora haveria deixado de existir como unidade
de classe, se repartindo em distintas novas classes. Mais de duas décadas depois do
seu Adeus ao proletariado?, Antunes (2018, p. 63-64), após analisar as sugestões
conceituais de Standing, afirma:
[...] estamos desafiados a compreender sua nova polissemia [da classe trabalhadora], sua
nova morfologia, cujo elemento mais vivel é o desenho multifacetado, que faz aflorar tantas
transversalidades entre classe, geração, gênero, etnia etc. [...] Essa nova morfologia
compreende não só o operariado herdeiro da era taylorista e fordista, [...] mas deve incluir
também os novos prolerios precarizados de serviços, parte integrante e crescente da
classe-que-vive-do-trabalho.
Neste mesmo sentido, Filgueiras e Cavalcanti (2018), avaliando a proposta teórica de
Standing, mostram que esta é fruto de uma relativa superficialidade da observação da
realidade contemporânea do trabalho que, no campo das aparências, visto pela
perspectiva legal do vínculo contratual entre capital e trabalho, da delimitão da jornada
de trabalho e da definição prévia dos valores salariais, parecem desconstruir a classe
trabalhadora. Entretanto, se observadas suas características essenciais de
assalariamento, subordinação e consequente assimetria de poder entre capital e
trabalho, verifica-se que parcela significativa das modificações vivenciadas pelos
trabalhadores resultam da flexibilização dos parâmetros definidores da relão
contratual, que inexistiam no início da formação do mercado de trabalho com o advento
da Revolução Industrial e que foram conquistados paulatinamente, ao longo de cerca de
150 anos.
6
Deixai fazer, deixai ir, deixai passar, mote do liberalismo econômico clássico, herdado pela escola
neoclássica da economia.
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Os referidos pesquisadores enfatizam que a pseudo inexorabilidade do processo de
desaparecimento da regulação de proteção da classe trabalhadora se alimenta da
narrativa do novo adeus à classe trabalhadora. Diante de uma retomada do discurso
de redesenho da estrutura de classes sociais no atual contexto de uso de novo
ferramental tecnológico para gestão do trabalho, é argumentado que, a despeito dos
esforços no sentido de negar relações de emprego, as novas formas de trabalho seguem
predominantemente sendo assalariadas, com remuneração não mais pré-definida por
uma jornada de trabalho, mas sim para cada microtarefa realizada, tomando, assim, a
forma definida por Marx como sendo o salário por peça. Admitindo que existem, sim,
mudanças na gestão do trabalho por parte das empresas, tal processo integra
estratégias de dissimulação da relação salarial com vistas a reduzir as alternativas de
limitação à exploração do trabalho. Isto porque, como afirma Marx (2017, p. 624), dado
o salário por peça, é natural que o interesse do trabalhador seja o de empregar sua força
de trabalho o mais intensamente possível, o que facilita ao capitalista a elevação do grau
normal de intensidade.
Para demonstrar tal fato, são apresentados quatro argumentos centrais. O primeiro, com
bases em séries estatísticas abrangendo mais de duas décadas, assevera que o
trabalho assalariado cresceu por todo o mundo, de acordo com dados agregados que
cobrem as últimas décadas. O segundo afirma que as chamadas novas formas de
trabalho, que tratam os trabalhadores como produtores independentes, parceiros,
associados, etc., não passam de estratégias adotadas de gestão do trabalho,
incrementando a flexibilidade dos seus institutos e sua precariedade, negando a relação
de emprego em si mesma, para minar a imposição social de limites à explorão do
trabalho. O terceiro, também estatisticamente lastreado, indica que as variações sobre o
emprego por conta própria real ou disfarçado está fortemente vinculado à performance
do mercado de trabalho e às regulações sociais do trabalho. O quarto denuncia que a
narrativa do “novo adeus ao proletariado” fortalece a estratégia de ganho de poder do
capital, tornando o trabalho mais precário e sem condição de se opor aos atuais
patamares de exploração, legitimando, assim, formas precárias de contratação e gestão
de trabalho, por apresenta-las como inexoráveis.
Esse último argumento acaba por encorajar e ser encorajado pela ideia de que a
estrutura de classes mudou com o surgimento da nova classe do precariado ou o
surgimento de uma zona cinzenta no mercado de trabalho. Embora estas proposições
teóricas se apresentem a partir de distintas perspectivas políticas, ambas defendem que
há uma redução geral do trabalho assalariado, que teria sido substituído por outros tipos
de trabalho ou mesmo por outras classes.
5. CONSIDERACÕES FINAIS
A proposta apresentada pelo Banco Mundial sob influência das ideias propugnadas pela
Teoria do Capital Humano, em linhas gerais, sugere que o problema do desemprego, a
ser causado pela adão de novas tecnologias de produção, possa ser contornado com
medidas dentre as quais destaca-se a educação, a formação técnica e a qualificão
para o trabalho. Em sentido contrário à orientação dada, os dados da PNAD referentes
à inserção dos trabalhadores no mercado de trabalho brasileiro entre 2001 e 2015, vistos
a partir da perspectiva dos anos de estudo, demonstraram que o conjunto da força de
trabalho brasileira, embora tenha elevado suas credenciais educacionais, não teve
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garantido para boa parte dos trabalhadores um melhor posicionamento em nessa
instância social.
Esta realidade pode ser vista como oportunidade para se refletir sobre o papel da
educação na formação dos seres sociais que compõem a classe-que-vive-do-trabalho
no Brasil. Se hoje seus efeitos se afastam daquilo que originalmente se esperava (mais
elevado bem estar para o trabalhador), que alternativas existem para que o objetivo de
melhoria da qualidade de vida da população por meio do trabalho seja alcançado?
A partir dessa realidade, é possível identificar a necessidade de se repensar as funções
sociais do processo educativo, trazendo como questão final a proposta de se refletir em
que medida a educação não está sendo pensada tendo por finalidade quase que única
a formão para o mundo do trabalho, em detrimento da formação do ser social que,
além de trabalhar na produção de mercadorias e na prestação de serviços, também deve
exercer fuão social e política ativa. E se ao invés de serem vistos exclusivamente como
indivíduos trabalhadores, detentores cada um de uma parcela de capital humano que lhe
deverá ser fonte geradora de renda por meio do trabalho, fosse observado o coletivo de
seres humanos interdependentes entre si?
Nessa perspectiva, além de uma formação técnica, não seria importante que a
populão tivesse a oportunidade de desenvolver, no processo educacional formal,
desde os anos iniciais de formação, sua compreensão crítica sobre seu processo
histórico de formão social? Sobre o modo como se encontra organizada a sociedade
à qual pertence de forma a se reproduzir? Sobre os efeitos na própria sociedade dessa
sua forma de reprodução da vida social?
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Data da submissão: 20/12/2019
Data da aprovação: 14/05/2020