Trabalho & Educação | v.29 | n.2 | p.133-147 | maio-ago. | 2020
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DOI: https://doi.org/10.35699/2238-037X.2020.16344
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/
PRODUÇÃO ASSOCIADA, EDUCAÇÃO E CULTURA DO TRABALHO:
PRODUÇÃO DA VIDA NA COMUNIDADE TRADICIONAL SÃO MANOEL
DO PARI
1
Associated production, education and work culture: life production in the
traditional community São Manoel do Pari
CABRAL, Cristiano
2
CAETANO, Edson
3
RESUMO
A produção da vida na comunidade tradicional camponesa São Manoel do Pari se concretiza na produção
material e imaterial tanto na unidade produtiva familiar quanto na produção associada e de saberes
tradicionais e da experiência. Produções estas que determinam historicamente os fundamentos para uma
cultura do trabalho inerente a esta comunidade. Este presente artigo faz parte da pesquisa de doutorado do
Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Trabalho e Educação (GEPTE), o qual está vinculado ao Programa de
Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Ainda, esta
pesquisa se utiliza do todo materialismo histórico dialético e de elementos da pesquisa participante,
utilizando de instrumentos como entrevistas, observação, fotos, oficinas e documentos. O objetivo deste
artigo é refletir a produção da vida das falias desta comunidade tradicional, à qual possui uma organização
produtiva associada, coletiva e solidária, construindo e reconstruindo saberes tradicionais, da experiência e,
ainda, uma pedagogia da produção associada e uma pedagogia da solidariedade, determinações históricas
embasadoras da cultura do trabalho.
Palavras-chave: Produção Associada. Educação. Cultura do Trabalho.
ABSTRACT
The production of life in the traditional peasant community of São Manoel do Pari is materialized in material
and immaterial production in both the family production unit and in the associated production and traditional
knowledge and experience. This production historically determines the foundations for a work culture inherent
in this community. This article is part of the doctoral research of the Study and Research Group on Labor and
Education (GEPTE), which is linked to the Graduate Program in Education (PPGE) of the Federal University
of Mato Grosso (UFMT). Still, this research uses the dialectical historical materialism method and elements
of participant research, using instruments such as interviews, observation, photos, workshops and
documents. The aim of this article is to reflect the production of the life of the families in this traditional
community, which has an associated productive organization, collective and solidary, building and
reconstructing traditional knowledge, experience and also a pedagogy of associated production and a
pedagogy of solidarity. , grounding historical determinations of work culture.
Keywords: Associated Production. Education. Work Culture.
1
Para esta pesquisa, parte da pesquisa de doutorado, es seguindo os procedimentos éticos apresentados pelo Conselho Nacional de
Saúde (CNS), expressos nas resoluções 466/2012 e 510/2016. Sendo assim, esta pesquisa teve início após a autorização do Comitê
de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade federal de Mato Grosso (UFMT) e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP).
2
Doutorando em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso, Mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso,
Graduado em Filosofia pela Universidade Católica de Goiás. Professor de filosofia pela Secretária de Educação do Estado de Mato Grosso
e agente pastoral da Comiso Pastoral da Terra - MT. E-mail: crisprelazia@yahoo.com.br
3
Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas, Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Campinas,
Graduação em Ciências Sociais pela PUCCAMP. Professor do Instituto de Educação da Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail:
caetanoedson@hotmail.com
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INTRODUÇÃO
Este artigo
4
tem como objetivo refletir e discutir a produção da vida das famílias da
comunidade tradicional camponesa São Manoel do Pari, do município Nossa Senhora
do Livramento, Mato Grosso. Produção esta que possui organização produtiva tanto na
unidade produtiva familiar quanto na produção associada, as quais, por sua vez,
constroem e reconstroem os saberes tradicionais e da experiência das quais elaboram
uma pedagogia da produção associada e uma pedagogia da solidariedade.
As relações de solidariedade, de cooperação, de coletividade e de equilíbrio com o outro
e com a natureza fundamentam estas pedagogias. Toda esta produção material e
imaterial da vida tem como intencionalidade a satisfação das necessidades objetivas e
subjetivas das falias e associados.
É desta prodão material e imaterial que surge a cultura do trabalho produzindo e
reproduzindo sentido, significado, representação de mundo, percepção, ideia,
conhecimento e consciência que legitima e fortalece a identidade, o trabalho e os
saberes desta comunidade tradicional.
O presente artigo é organizado em três partes. Na primeira, se discute as características
de uma comunidade tradicional, a história desta comunidade e seus saberes e
organização. Na segunda, é abordado o trabalho tanto na unidade produtiva familiar
quanto na produção associada e sua pedagogia da produção associada e solidaria. Por
fim, na terceira parte, se reflete a cultura do trabalho constituída pela produção da vida
desta comunidade.
O método utilizado é o materialismo hisrico dialético, tendo como critério de análise a
fundamentação histórica e suas contradições, processos, dinâmicas embasadas pela
dialética marxista. Buscando compreender a relação entre o trabalho e a educação e as
conseqüências da existência desta comunidade. Quanto à metodologia, ou seja, os
instrumentos de pesquisa, foi utilizado elementos da pesquisa participante com análises
de documentos, entrevistas, observações, fotografias e oficinas.
Para a realizão desta pesquisa seguimos os procedimentos éticos apresentados pelo
Conselho Nacional de Saúde (CNS), expressos nas resoluções 466/2012 e 510/2016.
Sendo assim, esta pesquisa só teve início após a autorização do Comitê de Ética em
Pesquisa (CEP) da Universidade federal de Mato Grosso (UFMT) e pela Comissão
Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP).
COMUNIDADE TRADICIONAL CAMPONESA SÃO MANOEL DO PARI: SUA
PRODUÇÃO DA VIDA E SEUS SABERES TRADICIONAIS E DA EXPERIÊNCIA
A comunidade São Manoel do Pari, antiga sesmaria Parý-Aguassú, foi se tornando
desde o início do século passado não mais um aglomerado de unidades produtivas
familiares, mas uma comunidade e, posteriormente - a partir de seus costumes, crenças,
comportamentos, solidariedade, coletividade, equilíbrio com a natureza - uma
comunidade tradicional camponesa.
4
O presente artigo faz parte de uma pesquisa de doutorado que está sendo desenvolvida junto ao Grupo de Estudos e Pesquisas sobre
Trabalho e Educação (GEPTE), vinculado à Linha de Pesquisa Movimentos Sociais, Política e Educação Popular, do Programa de s-
Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Campus de Cuiabá.
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Para ser compreendida como comunidade tradicional é necessária, além de reconhecer-
se enquanto tal, consciência já presente às falias da comunidade, outras
características apresentadas por Diegues (1996, p.88), o que delimita o significado do
conceito comunidade tradicional. Eis as características: "dependência e até simbiose
com a natureza"; "conhecimento aprofundado da natureza e seus ciclos [...] transferido
de geração em geração por via oral"; "noção de terririo ou espaço onde o grupo social
se reproduz ecomica e socialmente"; "moradia e ocupão desse território por várias
gerações"; "imporncia das atividades de subsistência"; "reduzida acumulação de
capital"; "imporncia dada à unidade familiar doméstica ou comunal e às gerações de
parentesco ou compadrio para o exercício das atividades econômicas, sociais e
culturais"; "tecnologia utilizada é relativamente simples, de impacto limitado sobre o meio
ambiente"; "fraco poder político"; "auto-identificação ou identificação pelos outros de se
pertencer a uma cultura distinta das outras".
As famílias da comunidade tradicional camponesa São Manoel do Pari moram na região
de sesmarias do município de Nossa Senhora do Livramento, Mato Grosso, há
gerações. Tanto tempo que ao se perguntar a uma das moradoras sobre quando que
estas famílias chegaram à região, ela afirma: "parece que é assim, o pessoal brotou da
terra. Eu nunca ouvi falar que veio de outro lugar" (Roda de conversa com Miguelina,
06/09/19). Outro ainda afirma que "moram já na região uns duzentos anos. Por exemplo,
pessoa nova que já conhecemo morreu com cem ano, ele nasceu já aqui. Os pais dele,
os vô dele, que morreu com cem anos, era daqui, era deles aqui" (Entrevista com Nilo,
06/09/19).
Grande parte das famílias já morava desde quando era sesmaria Pary-Aguassú e outras
vieram de sesmarias ao entorno. Este tempo foi o necessário para o conhecimento da
natureza neste espaço: seu bioma cerrado, com sua fauna e flora, seus rios e paisagens,
seus limites e dinâmicas. Conhecimento este que gerão após geração é transmitida e
readaptada às demandas espaço-temporais singulares.
Algumas destas adaptações, na tentativa de equilíbrio com a natureza, são as
policulturas, os manejos, o tratamento com o solo, a utilizão de caldas agroecológicas.
Este equilíbrio com a natureza tem por causa e objetivo uma determinação sócio-
econômica tanto nas unidades produtivas familiares quanto na comunidade: a satisfação
de necessidades materiais e imateriais. Esta é a intencionalidade das unidades familiares
e comunitárias em sua organizão e produção da vida: a constituição do espaço em
espaço de produção e espo de consumo e o equilíbrio entre estes.
Ainda, como Diegues (1996) apontou, tanto as estruturas organizativas e produtivas
quanto as necessidades são mínimas em uma comunidade tradicional; na comunidade
São Manoel do Pari não é diferente. Um dos camponeses diz que às vezes passa uma
semana e somente se gasta dez reais. Isto porque os instrumentos de trabalho são os
mais rústicos e manuais, o único elétrico é o engenho, para moer cana; diversas matérias
primas existem na natureza da comunidade e diversos alimentos são produzidos pelas
falias, comprando somente o mínimo do qual a força de trabalho e a natureza não
suprem.
São estas determinações históricas que constituiu esta comunidade em espo cultural.
O seu modo de vida constrdo pela luta, resistência, relações de parentesco e com a
natureza, organizão produtiva, suas necessidades de consumo e produtos de
consumo e sua memória. A própria dinâmica da existência, em suas interações sociais
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e com a natureza, fundamenta a dinâmica cultural, uma dinâmica em que os costumes
são conservados, tornando-os guardiões e guardiãs da cultura.
A relevância de conservação desta sua cultura - construída em todo o tempo em que as
gerações passadas tornaram este lugar em lugar social, em lugar simbólico, isto desde
há mais de duzentos anos, segundo moradores - está intrinsecamente ligada à sua
história e à sua produção da vida. Thompson (2001, p.258-259) tem uma citação muito
apropriada a esta condição histórica da comunidade: "sem produção não há história [...].
Mas devemos dizer também: 'sem cultura não há produção'". Conservar a cultura é por
sua vez conservar a produção, conservar a história.
Por isso que o mesmo Thompson (1998, p.19) afirma que "a cultura popular é rebelde,
mas o é em defesa dos costumes". Sua rebeldia embasa-se na conservão de sua
cultura, à qual é a defesa de sua história e produção de sua existência. Negar sua cultura
é negar não somente seus costumes, creas, valores, visão de mundo,
comportamento, atitudes, sentidos, mas negar-se existencialmente.
Uma destas resistências é a preservação de seus saberes tradicionais e da experiência
à qual está intrinsecamente ligada à prodão e reprodução de sua existência. São os
conhecimentos sobre a natureza, sobre como transformá-la, sobre o solo e as
plantações e suas utilidades, os conhecimentos sobre o tempo e o clima, sobre as fases
lunares e seus impactos na agricultura que fazem estas famílias sobreviverem sobre a
terra. As estratégias para a sobrevivência dependem destes conhecimentos tradicionais.
Ah, é muito importante, porque se nós ficassemo só no saber da universidade então nós não
sabia nada porque nós não estudo, não estudo lá, então [...]. É importante porque se a gente
não saber a gente não sabe conviver né. Assim, vo não sabe, não sabe é.... como que eu
quero dizer, se não tiver essa sabedoria popular não tem cê agir, não tem como ... não
sabe mexer, cê não sabe fazer nada aí na comunidade, assim (Roda de conversa com
Miguelina, 07/06/19).
A compilação de conhecimentos passados de gerão a gerão, através da oralidade
direta, é enorme e diversificada. São saberes diretamente ligados aos problemas e
respostas continuamente vividas, ou seja, são saberes intrinsecamente ligados à sua
exisncia, à satisfação de suas necessidades materiais e imateriais. Toledo e Barrera-
Bassols (2015, p.97) apresentam a complexidade e diversidade destes saberes
necessários para responder à dinâmica de suas existências:
Dessa forma, o saber local abrange conhecimentos detalhados de caráter taxonômico sobre
constelações, plantas, animais, fungos, rochas, neves, águas, solos, paisagens e
vegetações, ou sobre processos geosicos, biológicos e ecogicos, tais como movimentos
da terra, ciclos cliticos ou hidrológicos, ciclos de vida, período de formação, frutificação,
germinação, cio ou nidação, e fenômenos de recuperação de ecossistemas (suceso
ecológica) e manejo de paisagens.
Estes saberes, mesmo tradicionais, surgiram das experiências de seus antepassados,
repassados na oralidade e retidos na meria. Contudo, estas experiências não se
reduzem ao passado, mas agem dialeticamente com os saberes tradicionais no próprio
processo da vida. Os saberes são dinâmicos tais como é a existência das falias desta
comunidade. Assim, se tal saber não responde à dinamicidade ele é reformulado para
dar conta da realidade, assim é o saber da experiência.
Estes saberes da experiência é o que provoca os saberes tradicionais a se manterem
sempre vivos e apropriados à contemporaneidade e cotidianidade. São saberes sempre
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em diálogo com as demandas da realidade da natureza, da prodão, das crenças e das
relações sociais. São saberes vivos, que transformam e são transformados pela
dinâmica do real.
Nesta dialogicidade entre saberes tradicionais e da experiência com a produção material
e imaterial da vida desta comunidade, do equilíbrio entre falias e natureza e entre
produção e consumo que se percebe uma pedagogia da solidariedade, que tanto
provém da inter-relação quanto da inter-dependência entre as famílias e a natureza, a
produção, as pessoas, as creas e o consumo. Solidariedade está que se apresentam
historicamente nos mutirões, troca de jornadas de trabalho, trabalho associado,
agroecologia, organização coletiva para festas e lazeres, troca de produções e troca e
gratuidade na troca de saberes.
TRABALHO E PRODUÇÃO ASSOCIADA: DE CATEGORIAS HISTÓRICO-
ONTOLÓGICAS DA PRODUÇÃO DA VIDA À PEDAGOGIA DA PRODUÇÃO ASSOCIADA
Para poder apreender a realidade da produção da vida, isto é, da produção material e
imaterial da vida é preciso, antes de tudo, partir da categoria trabalho como centralidade
tanto histórica quanto ontológica humana.
É o trabalho que torna o homem e a mulher humanos. É pelo trabalho, ou seja, pelo ato
de transformar a natureza, que homens e mulheres transformam a si mesmos
objetivamente e subjetivamente. Essa é a diferença humana de qualquer outro animal:
para satisfazer a necessidade, age sobre a natureza, objetivando-se e ao agir sobre a
natureza toda uma complexa subjetividade põem-se em ação: desejo, intencionalidade,
pensamento, sentidos, conhecimentos e consciência.
Subjetividades estas que se conectam com uma primordial intencionalidade: satisfão
das necessidades. Isto em um ato consciente sobre si, sobre a natureza, sobre os
instrumentos e sobre o que se quer. Lukács (2013) defendia que no trabalho existia um
pôr teleológico, isto é, na causa do trabalho já está presente a sua finalidade tal como na
finalidade do trabalho está intrinsecamente presente a causa.
O pôr teleológico no processo do trabalho, a necessidade de antecipar em pensamento os
resultados do trabalho já antes de sua efetuação, significa uma transformação do homem
inteiro, inclusive de sua sensibilidade original, de origem biológica (LUKÁCS, 2013, p. 593).
Como seu Miro disse, "trabalha pra se manter e não pesar pra ninguém". A manutenção
da própria existência, pela transformão da natureza, é o que faz do trabalho tão
fundamental aos camponeses e camponesas tanto individualmente quanto em suas
falias. É pelo trabalho que a casa se transforma em espo de produção (bolo, pão,
polpa, doces) tal como o quintal se torna produtivo (frutas, legumes, verduras, galinhas,
porcos) ou ainda nas festas da comunidade em que o trabalho se faz indispensável
(barracos, ornamentões, alimentos, utensílios). O trabalho faz parte da produção
material e imaterial da vida nas famílias e comunidade.
Além do mais, para seu Miro, o trabalho tem o significado para além do manter-se a si e
a família ele significa relação, cuidado, preocupão, solidariedade ao outro: "não pesar
a ninguém". O trabalho não se limita à satisfação das necessidades materiais, mas é a
base constituidora para a sociabilidade, ele é o fundamento histórico e ontológico do ser
social: "a própria exisncia é a atividade social" (MARX, 2001, p.140). É a segunda
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natureza humana que se ergue sobre a primeira (orgânica e inorgânica), mas nunca
separada desta (LUKÁCS, 2012).
Desta sociabilidade para a satisfação tanto das necessidades materiais quanto imateriais
que camponeses e camponesas da comunidade tradicional São Manoel do Pari
organizam-se na unidade produtiva em família e em comunidade, a qual possuem uma
totalidade de 15 falias, cuja maioria são adultos e idosos.
A falia enquanto unidade produtiva é essencial à produção ampliada da vida nesta
comunidade. Ela é a base para a satisfação de necessidade, aprendizados, preservar
os saberes tradicionais, a solidariedade, a cooperão e o associativismo. A força de
trabalho é familiar e pertence à própria família. Família esta que possui seus próprios
meios de produção, a própria propriedade de trabalho e, por fim, a próprio produto do
trabalho. São estas determinações que institui a singularidade desta classe, nem
burguesa e nem proletária, mas camponesa. Satisfazendo suas necessidades não a
partir da mais-valia e nem do salário, mas da ação direta de sua força de trabalho sobre
a natureza.
Desta forma, quando as necessidades determinam a intensidade do trabalho na unidade
produtiva familiar - ou comunitária - efetua o equilíbrio entre trabalho e consumo (PLOEG,
2016). Nesta, a qualidade e a quantidade de trabalho não poderá ser maior ou menor à
necessidade de consumo da falia.
As unidades produtivas familiares desta comunidade são de tal maneira relevante à
produção da vida que é a partir desta organização que a produção associada se efetiva.
Quando se perguntou ao seu Miro sobre o significado de trabalhar associadamente ele
prontamente respondeu:
Bom, esse tem um significado, assim, por que, nosso... na verdade a gente vem até de
uma falia né. A gente vem de uma falia assim que dos meus pai por exemplo... meus
avô, meus pai, tio... eles tinha esse habito né, de trabalhar no coletivo. Aí a gente
acostumou com aquilo, então a gente gosta do serviço, assim no coletivo né (Entrevista com
Miro, 07-06-19).
Não só os saberes são transmitidos pela falia, mas o fazer e o como fazer. São as
determinações da realidade - como limitações financeiras e sobre os meios de prodão;
como as relações afetivas e de parentesco; como os desejos e necessidades - que unem
estas famílias. A produção associada tornada hábito, costume é incorporada na
cotidianidade da vida que não é uma determinação produtiva fora do trabalho individual
ou familiar:
[...] quase que direto, mas na verdade assim, por exemplo, as vezes nós não passa dois ou
três dias sem tá fazendo o coletivo, se trabalha é no nimo uns dois dias da semana, esse
quase que direto é no coletivo. E aqueles horários também que a gente panhou desocupado,
a gente trabalha no coletivo, isso sempre tem (Entrevista com Miro, 07-06-19).
A presença do trabalho associado faz parte da própria constituição da exisncia desta
comunidade tradicional tanto que, mesmo em momentos em que não há o trabalho
associado, os mutirões, as trocas de jornadas de trabalho, a solidariedade em
diversos serviços e atividades. A coletivização e a cooperão são intrínsecas à
comunidade, como bem diz a dona Miguelina: "aí eu acho que é assim a comunidade
tem que ser solidário um com o outro né" (Roda de conversa com Miguelina,
06/09/2019).
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Para a Tiriba (2008, p. 81) este trabalho associado tem por seguinte definição:
A categoria 'produção associada' está relacionada a associativismo, entendido como um
conjunto de práticas sociais informais ou instituídas desenvolvidas por grupos que se
organizam em torno dos ideais e objetivos que compartilham. Podendo ser de abrangência
local, regional, nacional ou internacional, o associativismo caracteriza-se pela construção de
laços sociais calcados na confiança, cooperação e reciprocidade, o que confere aos seus
membros o sentimento de pertencimento ao grupo (TIRIBA, 2008, p. 81).
Na comunidade tradicional camponesa São Manoel do Pari quase tudo em relão à
produção material está vinculado a estas práticas que envolvem as famílias que
possuem os mesmo ideais e objetivos:
Na.. na coletiva, na produção por exemplo, quase que todas as coisas sempre... porque
quando é [inaudivel] para limpeza a gente faz mutirão né! E o mutirão a gente faz no coletivo,
onde um ajuda o outro. Dai depois que... que tá por exemplo produzindo, produzido, aí cê
depende... um depende do outro para coier e todas estas coisas no coletivo, um ajuda o
outro, coie, pra não apertar pra ninguem. E aí por exemplo, aqui memo, muitas das vez não
tem do que barbear aí, um barbea as coisas para o outro aí, aí para... ai isso tudo é no
coletivo . Não é particular.
Aí por exemplo, ai vem por estas partes que já é derivado da produção, isso aí é coletivo:
moer, fazer rapadura, fazer farinha, como ontem tava fazendo farinha, farinha da mandioca,
e depois ai vem da banana que é o derivado da banana: doce, banana frita, farinha da
banana, isso tudo é... isso mais é no coletivo (Entrevista com Miro, 07-06-19).
Os trabalhos no espaço coletivo da Associação de Pequenos Produtores Rurais das
comunidades de Aguaçu-Monjolo e São Manoel do Pari possuem uma diversidade
produtiva de legumes, verduras, frutas e raízes:
Lá já plantou mandioca, os canteiro né, de tudo... é a couve, alface, cebolinha, o coentro, é...
a pimenta e a batata doce, cará, quiabo, maxixe tudo essas coisa. É de tudo nós planta lá.
Agora por esses dia, agora memo tá com a mandioca lá que tá boa . A mandioca que foi...
essa mandioca interessante que foi porque daí juntou todo mundo daí limpo, no dia de planta
todo mundo tava junto, plantou; dia de limpa tá todo mundo lá. E aí assim, agora como tá
seco o tempo, agora tinha a batata doce (Roda de conversa com Miguelina, 07/06/19).
Uma cooperão entre camponeses para si mesmos com uma única intencionalidade:
satisfação de necessidades biológicas e sócio-culturais. Esta produção associada
fundamenta-se sobre os mesmos interesses, necessidades e perspectivas. É assim que
este sentimento de pertencimento ao grupo se efetiva em organização de forças de
trabalho e instrumentos para a produção à qual é ampliada e menos intensificada.
Os camponeses e camponesas associados sentem a diferença em relação ao se
trabalhar individualmente e associadamente:
O individual é mais pesado. Trabalhar no individual é bem mais pesado. Daí a carga sobrecai
tudo em cima da gente [risos]... não, o coletivo é o mais... facilita pra todo mundo. Hoje
memo se tá só um ai ia moer como? E é assim, no coletivo um ajuda o outro que fica leve
pra todo mundo, é mais cil né (Entrevista com Miro, 07-06-19).
Não somente o controle da prodão e o planejamento consciente, mas a solidariedade,
enquanto categoria ética e econômica é o que alicerçará a cooperação entre
camponeses e camponesas desta comunidade. A solidariedade é este fundamento
determinante à cooperação na produção associada.
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Chama-se cooperação a forma de trabalho em que muitos trabalham juntos, de acordo com
um plano, no mesmo processo de produção ou em processos de produção diferentes mas
conexos (MARX, 1988, p. 374).
O trabalho em equipe, conscientemente planejado, nos mesmos setores ou em setores
diferenciados, porém interligados, é o que se efetiva quanto cooperação. Reduzindo o
espaço e o tempo de produção, pela "força coletiva" (MARX, 1988, p.375), maximizando
a produtividade. Ainda, nesta mesma 'força coletiva' "a estreiteza e as deficiências do
trabalhador parcial tornam-se perfeições quando ele é parte integrante do trabalho
coletivo" (MARX, 1988, p.400).
Qualifica-se o trabalhador individual pelo trabalho coletivo, reduz o tempo de trabalho e
maximiza a produtividade. Eis as consequências da cooperação do trabalho associado.
Esta realidade objetiva só é possível quando necessidades, limitações, interesses e
intencionalidades são comuns e cotidianos à unidade produtiva familiar ou à produção
associada camponesa.
Para que esta produção associada se efetive os camponeses e camponesas da
comunidade se organizam ou na Associação ou na Igreja para discutirem como, quem
e quando se resultará o trabalho. Organizão está que a Tiriba (2001) chama de
autogestão, uma organização das forçar de trabalho e meio de produção efetivada pelos
próprios trabalhadores e trabalhadoras:
No sentido político, econômico e filosófico, autogestão é um conceito que encerra a ideia de
uma forma de organização social em que os sujeitos tem autonomia e autodeterminação na
gestão do trabalho e em todas as instâncias das relações sociais. Tem como pressuposto
a propriedade comum e a posse dos meios de produção da vida social e, por conseguinte,
o controle coletivo e soberana das relações que os grupos sociais estabelecem com a
natureza e entre si no processo de produção da existência humana. Nesta acepção, a
autogestão tem o ideário da superação das relações de prodão capitalista e a constituição
do socialismo, concebido como uma sociedade autogestioria (TIRIBA, 2008, p. 83).
Autonomia e autodeterminação são conceitos essenciais a uma produção
autogestionada pelos trabalhadores. São estas condições inerentes à autogestão que
afirma o controle coletivo de camponeses e camponesas sobre sua produção.
Ai por exemplo, a gente discute mais na reunião né. Por que a gente já tem sempre aqui
assim, queira ou não nós no mínimo quase que direto duas vez por mês a gente... quando
a gente não vai na reunião da Associação vai nos aviso da... dos culto dominical que é no
domingo, a gente já faz esses acordo né. Já entra nesse consenso (Entrevista com Miro,
07/06/2019).
Nestes dois espaços - Associação e Igreja - os camponeses e camponesas entram em
consenso sobre a produção associada, sobre quais produções irão trabalhar, quem
poderá estar presente na data decidida, sobre qual o objetivo da prodão e como se
fará: "cada um aceita a opinião de outros. Aí se um fala assim, vamos fazer desse jeito
que é melhor aí tudo vai... desse jeito" (Entrevista com Natalino, 07/06/2019).
Quanto à produção associada, que faz o que também é decidido coletivamente e
respeitada a singularidade de quem faz:
não, nós aqui... só assim quando por exemplo nós vai ajudar um que é na produção dele a
gente respeita o jeito dele né. Respeita o jeito dele. Mas assim, pra dizer que um chega e
manda nós não temos muito este costume não. A gente sempre discute ideia ne, discute
ideia ... tudo junto. Não separa assim, que um manda... (Entrevista com Miro, 07/06/2019).
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Novamente os costumes são apresentados na relão entrebitos e trabalho, dando
sustentação à produção ampliada da vida, tanto material quanto imaterial. A
aprendizagem - passada de gerão a geração, tornando-se costumes, tradições - é o
que embasa a pedagogia da produção associada, uma produção solidária com o outro,
com a natureza, constituídas pelos saberes tradicionais e saberes da experiência.
Quando se questionou a dona Miguelina sobre a importância destes saberes tradicionais
e saberes da experiência apreendida diariamente, prontamente ela respondeu:
também é muito importante. Porque por exemplo, assim ó só pra dar um exemplo nessa
criação assim se caí uma, um filhote doente, se cai uma... até nós memo né, se nós não
saber fazer um chá pra nós, um redio pra nós tudo as coisa precisar de médico, de ir
atrás de veterinário pra curar assim, cê nunca... porque cê não tem dinheiro, né. A gente não
tem dinheiro pra tá todo dia assim, então... Aí ajuda demais (Roda de conversa com
Miguelina, 07/06/2019).
Desta forma, o trabalho enquanto princípio educativo instituirá, na produção associada,
a produção de saberes associados: a unidade de produção associada pode ser
entendida como uma 'unidade de produção associada de saberes' na qual vão brotando
novos saberes e fazeres (TIRIBA; FISCHER, 2012, p. 615-616). Articulando saberes,
os quais são populares e tradicionais, experienciados no trabalho e na cotidianidade da
vida.
Uma pedagogia da solidariedade que se estende ao outro, à sua limitão produtiva, à
natureza, às necessidades de outras famílias e comunidades e aos consumidores. Um
exemplo é quando se pergunta como o preço dos produtos é decidido e logo se percebe
o quanto a valorização da força de trabalho e o respeito aos limites financeiros da própria
falia produtiva e da falia consumidora são primordiais:
é por que a gente faz uma pesquisa né, por exemplo, mercado, cê sempre tá passando no
mercado; aí você vê o valor do mercado, ai por que a gente é produtor vo (mais ou menos
no mesmo rumo?) até mais barato um pouco. Porque, por exemplo se acha que vc já ... não
vai explora o outro né, vc já tirou aquele valor, você tá contente com aquilo, não é igual a
atravessador que ele vai pra explorar né, e a gente não vai pra explorar, vai para tirar o
suficiente pra gente comer (Entrevista com Miro, 07/06/19).
Esta pedagogia da solidariedade - conseqüência lógica e existencial às relações entre
as falias, à agroecologia e à prodão associada e autogestionada - não se limita aos
espaços produtivos da comunidade tradicional camponesa São Manoel do Pari, mas se
estende às suas relões de comercialização. Uma produção da vida que se aprende a
ser solidário trocando saberes, fazeres e produtos.
CULTURA DO TRABALHO E EDUCAÇÃO: DESAFIOS TEÓRICOS E IMPLICAÇÕES NA
COTIDIANIDADE
O trabalho, enquanto categoria ontológica e histórica, está na centralidade não somente
na produção e reprodução da vida das unidades produtivas familiares ou associada, mas
na produção e reprodução da subjetividade desta comunidade tradicional. Isto porque,
pelo trabalho instituem-se determinações cognitivas, valorativas, representativas,
comportamentais, consciência, crenças.
Isso só é possível em razão da própria natureza da categoria trabalho. Uma categoria
histórico-ontológica e pedagógica em que homens e mulheres transformam a natureza
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e, simultaneamente, transformam-se a si mesmos. Em uma relação contínua e dialética
de objetivação de si e subjetivação do real.
Marx (1977, p.24) reconheceu que "o modo de produção da vida material condiciona o
desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral". Por esse motivo o
marxismo coloca a categoria trabalho na centralidade de suas análises. É neste que a
produção e reprodução da vida se efetiva.
Outras determinações têm por fundamento o trabalho, esta transformação objetiva da
natureza e realidade e da subjetividade humana. Brandão (1985, p.23) anuncia que "o
trabalho de transformar e significar o mundo é o mesmo que transformar e significar o
homem". Produz-se ideias, pensamentos, representações e consciência a partir da ação
objetiva sobre o mundo.
Agora, para entender a categoria cultura do trabalho, além do trabalho, é necessário
compreender a cultura. Para Brandão (1985), a mesma atividade que cria a história é a
mesma que cria a cultura. Além disso, ainda firma que,
de modo concreto, a cultura inclui objetos, instrumentos, técnicas e atividades humanas
socializadas e padronizadas de produção de bens, da ordem social, de normas, palavras,
ideias, valores, símbolos, preceitos, crenças e sentimentos. Destarte, ela abrange o universo
do mundo criado pelo trabalho do homem sobre o mundo da natureza de que o homem é
parte. Aquilo que ele fez sobre aquilo que lhe foi dado (BRANDÃO, 1985, p. 20).
Observa-se que a sua definição de cultura, aproxima-se à definição de cultura do
trabalho. Durham (2004, p. 231) segue a mesma aproximação: "a cultura constitui,
portanto, um processo pelo qual os homens orientam e dão significação às suas ações
através de uma manipulação simbólica que é atributo fundamental de toda prática
humana". Então, chega-se à conclusão que, para estes autores, cultura é esta
exteriorizão de si mesmo, tendo por interdio o trabalho, e - sua consequente e
dialética - a subjetivão do real. Ação e representão unem-se (consensual e
contraditoriamente) na constituição concreta material e imaterial da vida. Construindo
tanto padrões de perceões e comportamentais quanto instituições que tentam
cristalizar estes padrões na cotidianidade, ordenando assim as ações sociais a sua visão
de mundo.
Neste sentido, toda a análise de fenômenos culturais é necessariamente análise da
dinâmica cultural, isto é, do processo permanente de reorganização das representações na
ptica social, representações estas que são simultaneamente condição e produto desta
ptica. (DURHAM, 2004, p. 231).
Dado que a cultura o é somente a produtora de objetos ou valores presentes em
determinado grupo, mas é também a produtora de significões das ões (BRANDÃO,
1985). Estas significões sobre as ões é o que concede à cultura a sua dinamicidade
inerente. E, consequentemente, dinamicidade ao modo de vida, significando a si mesmo
e o mundo em sua volta.
Brandão (1984, p.78) elabora uma reflexão a partir de conceitos como cultura e chega à
afirmação: "afinal, é com uma nova maneira de recriar, combinar e utilizar símbolos e
valores de cultura, que o povo reconstrói a sua própria identidade popular, aquilo que
entre outros educadores corresponde, de algum modo, à consciência de classe". É pela
cultura que a identidade popular se constitui. Identidade esta objetivada na produção
concreta da vida, à qual faz com que estes camponesas e camponeses se reconham
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enquanto comunidade tradicional, que se organizam pelo trabalho, crenças, natureza,
espaços de produção e de vivências, por suas crenças, saberes tradicionais e da
experiência.
É isto que alguns autores (PALENZUELA, 1995; NAVARRO, 1997; TIRIBA, 2001)
chamaram de cultura do trabalho. Uma categoria antropológica e sociológica que amplia
a compreensão do mundo do trabalho na cotidianidade de trabalhadoras e
trabalhadores.
Entre estes autores e autoras que debatem esta categoria está Palenzuela (1995, p. 13),
que define a cultura do trabalho como:
conjunto de conocimientos teórico-práticos, comportamientos, percepciones, actitudes y
valores que los individuos adquiren y construyen a partir de su inserción en los processos de
trabajo y/o de la interiorizacion de la ideologia sobre el trabajo, tudo lo cual modula su
interacción social s allá de su prática laboral concreta y orienta su específica cosmovision
como miembros de un coletivo determinado.
E, dando continuidade à Palenzuela, a Tiriba (2008, p. 85), que define como:
Cultura do trabalho diz respeito aos elementos materiais (instrumentos, métodos, técnicas,
etc) e simbólicas (atitudes, ideias, crenças, hábitos, representações, costumes, saberes)
partilhados pelos grupos humanos - considerados em suas especificidades de classe,
gênero, etnia, religiosidade e geração. Determina em última instância pelas relações de
produção, nos remete a objetivos e formas sobre o dispêndio da força de trabalho, maneiras
de pensar, sentir e se relacionar com o trabalho.
O trabalho é esta determinação não somente à transformação da natureza, do homem
e da mulher e da sociedade. Esta categoria histórico-ontológica determina e condiciona
interiormente a exteriorizão desta subjetividade em comportamentos e atitudes, na
cotidianidade de trabalhadores e trabalhadoras.
É no processo dialético de objetivão-subjetivação no trabalho que a consciência,
sentido, significação, valores sobre si e sociedade juntamente com os comportamentos
e atitudes são constitdos e instituídos socialmente, estruturando-se enquanto cultura.
Palenzuela (1995, p.21) continua: "la cultura del trabajo 'operaria' sería el resultado de la
interdependencia entre el sistema técnico y el sistema cultural, entre el trabajo e su
representación". Ou seja, nada na produção material da vida é neutro. O trabalho, os
sistemas técnicos e instrumentos tecnológicos, a cultura e a representação de mundo
interagem dialeticamente constituindo a cultura do trabalho.
Um exemplo na comunidade foi quando estragou o engenho elétrico para moer cana, as
falias se organizaram a produção com o moedor manual, ajudado por dois cavalos. A
diferença do primeiro para o segundo foi que neste intensificou-se mais a utilização da
força de trabalho e ampliou-se o tempo de prodão, mas a cooperação e coletivização
nas decisões presentes no trabalho associado e autogestionado estavam presentes
tanto no engenho quanto no moedor manual. Organizar prodões de maneira
associada e autogestionada faz parte dos costumes da comunidade os quais foram
repassados de geração a geração.
Deste trabalho associado, autogestionado, com princípios agroecológicos (ALTIERI,
2012) transformou-se subjetivamente cada camponês e camponesa desta comunidade:
sua representação de mundo, sua percepção, seus valores. Uma solidariedade, senso
de cooperação e de equilíbrio surgiram.
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Eu entendo que a terra, na verdade, a terra é... ela é tipo assim, nos sustenta, ela dá o
sustento pra nós e ela cria, [...], ela cria, ela cuida, ela ama e ela leva a gente embora
também... mas não é por maldade da terra, é por que precisa chegar outras pessoa pra ela
dar o sustento pra ele também. Acho que essa é as função das terra né. Aí nesse sentido
só tem que cuidar dela né, senti assim que ela, a terra, ses não cuidar dela ela não dá
condições dela cuidar da gente, cuidar, porque se judio dela, assim agrido ela assim hum...
é cabo com a natureza dela daí, que sustento que ela tem? (Roda de conversa com
Miguelina, 07/06/19).
Ainda, a consciência surge a partir da realidade objetiva da produção material da
exisncia (MARX, 1977). Kosik (1976, p. 85) já o afirmava: o homem é antes de tudo
aquilo que o seu mundo é. Este ser que não lhe é próprio determina a sua consciência e
lhe dita o modo de interpretar a sua própria existência. Deste modo, trabalho e cultura
interagem para constituir uma cultura do trabalho. Trabalhadores e trabalhadoras
produzem cultura e, simultaneamente, o trabalho é condicionado ou determinado por sua
respectiva cultura (TIRIBA, 2006).
Outro ponto relevante ao entendimento da cultura do trabalho é a sua relão à categoria
espacial: o território. Palenzuela (2014, p. 68) exe seu raciocínio da seguinte forma:
Mediante el trabajo, el hombre transforma el espacio en territorio, en espacio socializado, con
intervenciones antpicas que modifican su morfología, pero que también, y esto interesa en
nuestro caso de estudio, le otorgan una función identidaria y simbólica, dialeticamente
articulada a su papel como base material de la reproducción social.
O homem e a mulher trabalham em um dado espaço
5
, o qual é construído
temporalmente e submetido à lógica de controle, contraditório, político e ecomico
determinando ou condicionando comportamentos, modalidades de utilização. Além de
estarem localizados geograficamente, transformam, com suas atividades, este espaço.
Antropomorfizam seu espo de trabalho e de existência.
O espaço é significante? Certamente. De que? Do que é necessário fazer ou não fazer. O
que remete ao poder. Mas a mensagem do poder é confusa, voluntariamente. Ela se
dissimula. O espaço não diz tudo. Ele diz sobretudo o interdito (o inter-dito). Seu modo de
existência, sua 'realidade' prática (incluindo sua forma) difere radicalmente da realidade (do
ser-lá) de um objeto escrito, de um livro (LEFEBVRE, 2000, p. 202-203).
A apropriação do espo, significando e valorizando-o, estabelece uma representação
cultural ao mesmo, influenciando na vida individual e social. Por conseguinte, estes
mesmos sujeitos, identificam-se localmente: "não sabia o que que era assim é apaixonar
por um espo comunitário e acho que com esse aqui nós conseguimo ter isso, paixão
por estas terra" (Roda de conversa com Miguelina, 07/06/2019). Contudo, para que isso
ocorra, é preciso que a presença espacial tenha, simultaneamente, uma extensão
temporal.
Os espaços são espaços de produção, de transformação objetiva e subjetiva, de
aprendizado, consumo e ensino. Desta forma que a casa não é somente para moradia,
mas é produtiva, o quintal da mesma maneira, um quintal produtivo. A roça, o pasto e o
5
Espaço não tem, portanto, nada de uma 'condição' a priori de instituões e do Estado que as coroa. Relação social? Sim, de certo, mas
inerente às relações de propriedade (a propriedade do solo, da terra, em particular), e de outra parte ligada às forças produtivas (que
parcelam essa terra, esse solo), o espaço social manifesta sua polivalência, sua 1realidade' ao mesmo tempo formal e material. Produto
que se utiliza, que se consome, ele é também meio de produção; redes de trocas, fluxo de matérias-primas e de energias que recortam o
espaço e o por ele determinados (LEFEBVRE, 2000, p.128).
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espaço coletivo da associão são espaço produtivos, em que interagem dialeticamente
os saberes e os fazeres, criando e recriando material e imaterialmente a realidade.
Deste modo, o lugar em que a vida é historicizada - no trabalho, no consumo, relações,
na rua, no campo - é o que faz sentido. É um espaço vivido em experiências em contínua
renovão. É o que possui significado. Tornando-se território, isto é, em espaço
identitário e simbólico, como bem sentiu a dona Miguelina: "eu acho que é assim,
sentimento nosso que tem aqui é um grande amor, um amor muito grande que nós
temos com esta, com essa comunidade, por essa terra, amor memo verdadeiro" (Roda
de conversa com Miguelina, 07/06/19). Isto pelo motivo do envolvimento em relões
simlicas entre os indivíduos.
Na compreensão de Santos (2001, p. 96-97),
o território não é apensas o resultado da superposição de um conjunto de sistemas naturais
e um conjunto de sistemas de coisas criadas pelo homem. O território é o chão e mais a
população, isto é, uma identidade, o fato e o sentimento de pertencer àquilo que nos
pertence. O território é a base do trabalho, da residência, das trocas materiais e espirituais e
da vida, sobre os quais ele influi. Quando se fala em território deve-se, pois, de logo, entender
que se está falando em território usado, utilizado por uma população.
O espaço não é neutro (SANTOS, 2012). Ele possui intencionalidade: os espaços da
casa, quintal, pasto, ra, associão, igreja possuem significados a partir do que se faz
nestes espaços. E destes significados se constituem os valores, as crenças, as
intencionalidades e objetivo para além destes espaços ou de suas atividades.
Assim, até aqui, compreendemos que a categoria cultura do trabalho não se limita ao
trabalho ou ao espo de produção. Mas se estende à reprodução da própria existência,
na cotidianidade da vida. E o controle social, a partir do controle da divisão do trabalho,
do controle espacial, do controle organizacional, do controle ocupacional é de maior
relevância ao enquadramento das atitudes e comportamentos sociais, legitimando as
formas de pensar, sentir, perceber, vestir, significar a si mesmo e ao mundo.
É esta legitimão, produtora e mantenedora de significados, constituída pela cultura do
trabalho, a justificadora do modus operandi da comunidade tradicional. Por esta razão, a
compreensão do território enriquece a compreensão da categoria cultura do trabalho.
Pois, o território, como se observou, é muito mais que a paisagem, os sistemas naturais
ou as estruturas criadas pelo trabalho.
A representação que o camponês e a camponesa fazem a partir do posicionamento de
seu corpo em um singular espo social - sentindo, percebendo, relacionando-se -
estrutura bases para a representação de si mesmos. Assim, podemos entender a
dinamicidade desta cultura quando se compreende que a cultura é territorializada. Ainda
mais, que a economia, a política, o discurso são territorializados (SANTOS, 2001). Nesta
territorializão, o simlico, os valores e a identidade são vivenciados na rotina, no
cotidiano da produção e reprodução da vida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na produção da vida na comunidade tradicional camponesa São Manoel do Pari a
relação histórica e dialética entre o bimio trabalho e educação, para além da produção
associada, agroecológica e de saberes tradicionais e da experiência, fundamenta bases
históricas para a formão de uma pedagogia da produção associada e uma pedagogia
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da solidariedade e para uma cultura do trabalho que fortalece a existência da
comunidade.
Esta reflexão tem sido relevante ao GEPTE/PPGE/UFMT tanto pela análise quanto pela
não neutralidade na prodão de conhecimentos de interesses dos povos e
comunidades tradicionais. Conhecimentos que apresentam a importância da produção
material e imaterial da existência destes povos e comunidades, valorizando sua tradição
e suas experiências e sua contraposição ao modelo do modo de produção capitalista, o
qual com sua divisão do trabalho, sua divio entre o trabalho intelectual e o manual, sua
alienação sobre o trabalhador, produção e produto está oposta à vivência nesta
comunidade.
Por este motivo, a cultura do trabalho, em seu fundamento histórico na produção
associada, solidariedade, saberes e pedagogias é contra hegemônica ao modo de
produção capitalista; e apresenta um alternativa de produção da vida, da exisncia aos
trabalhadores e trabalhadoras do campo e da cidade em que a solidariedade, a
cooperação, a coletividade e o equilíbrio entre trabalho e consumo, entre talhador/a e
natureza são essenciais.
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Data da submissão: 09/01/2020
Data da aprovação: 23/08/2020