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DOI: https://doi.org/10.35699/2238-037X.2020.20227
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/
FINANCEIRIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR NO BRASIL:
INADIMPLÊNCIA E PROGRAMAS EDUCACIONAIS NOS ANOS 2000
Financialization of higher education in Brazil: default and educational
programs in the 2000s
CARVALHO, Maylla Soares de
1
SOARES NETO, Horígenes Fontes
2
PINHEIRO, Lessi Inês Farias
3
RESUMO
Apoiado nas discussões que se firmam a respeito do entrelaçamento da mundialização do capital às
políticas sociais educacionais no Brasil dos anos 2000, este trabalho busca analisar o processo de
financeirização do ensino superior brasileiro, com ênfase no crescente aumento da inadimplência dos
estudantes usrios do Fundo de Financiamento Estudantil (FIES). Para tanto, metodologicamente, a
alise adota pesquisa bibliográfica e utiliza estastica descritiva para discutir dados de incremento do
setor privado na educação superior e a inadimplência dos adquirentes do referido financiamento. Após
a alise do processo de financeirização e mercantilização da educação, assim como do
inadimplemento das dívidas dos estudantes beneficiários do FIES, o estudo constatou a vulnerabilidade
a qual são expostos os discentes usuários do programa, parcela significativa deles em situação de baixa
renda, e que adquirem uma vida para a conclusão do ensino superior sem qualquer garantia de
fundos para qui-la.
Palavras-chave: FIES. Inadimpncia. Financeirizão.
ABSTRACT
Based on the discussions that are taking place regarding the intertwining of the capital globalization with
the educational social policies in Brazil in the 2000s, this work seeks to analyze the process of
financialization of Brazilian higher education, with emphasis on the increasing increase of default by
students using the Fund of Financing Education (FIES). To this end, methodologically, the analysis uses
bibliographic research and uses descriptive statistics to discuss data about the increase of the private
sector in higher education and the default of purchasers of the referred financing. After analyzing the
process of financialization and commercialization of education, as well as the default of students debts
benefiting from FIES, the study found the vulnerability to which students using the program are exposed,
a significant portion of them in low-income situations, and that acquire a debt for the completion of higher
education without any guarantee of funds to pay it off.
Keywords: FIES. Default. Financialization.
1
Economista. Graduada em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC/BA). E-mail:
mayllasoares@hotmail.com.
2
Mestre em Economia Regional e Políticas blicas (UESC/BA). Especialista em Direito Público (FDJ/SP). Especialista em Prática
Trabalhista e Processual Civil (FAINOR/BA). Professor Titular do Departamento de Direito (UNIME Itabuna/BA). Advogado. E-mail:
horigenesfontes@hotmail.com.
3
Doutora em Servo Social (PUC/RS). Mestre em Economia Europeia e Políticas Comunitárias (Universidade de Coimbra). Graduada
em Ciências Econômicas (PUC/RS). Atualmente é professora nível pleno da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC/BA), onde é
vinculada ao Departamento de Ciências Econômicas. E-mail: lifpinheiro@uesc.br.
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INTRODUÇÃO
Não há consenso na literatura sobre o surgimento das políticas públicas sociais, mas
acredita-se que o fortalecimento do capitalismo, a partir da Revolução Industrial, tenha
sido o estopim de alguns movimentos sociais que as ensejaram. A cobrança dos
trabalhadores dasbricas por melhores condições de labor, diante de jornadas
exaustivas e em situações precárias, somado aos contornos históricos de urgência no
atendimento de necessidades básicas dos indivíduos como educação, sde, moradia
e segurança, determinaram ões positivas estatais para a salvaguarda, através de
políticas blicas, de uma espécie de bem-estar social (TEIXEIRA, 2012).
Entre as cadas de 1930 e 1960, nomeadamente, países capitalistas desenvolvidos
adotaram o modelo de bem-estar que promovia o conceito de intervenção do Estado no
desenvolvimento social. No entanto, em países periféricos, o Welfare State não causou
tanto impacto, fazendo com que crescessem cada vez mais as diferenças sociais no
contexto centro-periferia. No Brasil, um dos países subdesenvolvidos, a implantão do
Welfare State, em maior ou menor grau, ocorreu sobretudo com o governo Getúlio
Vargas e a expressividade dos direitos sociais trabalhistas e sindicais, trazendo
mudanças nas relações do Estado com a economia, a sociedade e o desenvolvimento
(DRAIBE, 1993).
Essa visão se transmuda e assume nova roupagem no fim dos anos 1980. Buscando
acompanhar as alterações ocorridas nas organizões sociais de outros países,
ocorreram modificações na compreensão do papel do Estado brasileiro para a promoção
do social, mormente em razão do impulso ofertado ao neoliberalismo pelos governos
estadunidense e inglês no período. A visão de Estado nimo repercutiu sobre as formas
de Estado de Bem-Estar Social, inclusive no Brasil. Assim, serviços públicos passaram
a ser, cada vez mais, de responsabilidade das famílias (GISI, 2006).
Nos anos 1990, seguindo a ideologia neoliberal, ocorreram aberturas comerciais e de
capital para investimentos externos, o que trouxe uma nova fase do capitalismo na qual
o mercado financeiro se expandiu, cunhada por Chesnais (2002) como mundialização
do capital, e precursora da substituição do capital produtivo pelo financeiro, em contexto
de financeirização da economia. A financeirização atingiu tamm as políticas sociais,
justificando as ações de liberação de crédito para falias de baixa renda, movimentando
a economia e incentivando o consumo de bens e/ou serviços com a alteração do poder
de compra destes grupos familiares (ROMA, 2013).
As tramas do mercado financeiro, do crédito e da bancarizão atingiram as políticas
sociais no Brasil, dentre elas a educação, especialmente de nível superior, apoiadas por
programas governamentais de financiamento educacional para acesso a instituições de
ensino privadas. Tais programas proporcionaram que mais brasileiros pudessem ter
acesso às faculdades e universidades, mas também podem ter contribuído para o
aumento da inadimplência das falias brasileiras causado pela tomada do crédito, em
especial para aquelas em situação de baixa renda (LAVINAS, 2017).
Neste ínterim, a pesquisa aqui proposta questiona o contraponto existente entre a
garantia de acesso à educação como forma de conquista de melhores condições de vida
e a eventual inadimplência familiar decorrente da impossibilidade de quitar as dívidas do
crédito estudantil. Para isto, analisa-se o processo de financeirização da educação de
nível superior no Brasil, a partir da observação de políticas públicas de crédito e
financiamento na seara educacional, aí compreendido o Fundo de Financiamento
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Estudantil (FIES), e sua contribuição direta para a ampliação do lucro de líquido de
empresas privadas, em detrimento da inadimplência familiar pela tomada do crédito.
Como objetivos específicos, o trabalho coteja o hisrico das políticas públicas
educacionais de nível superior no Brasil; observa o processo de financeirizão das
políticas educacionais brasileiras; e verifica a evolução da inadimplência dos estudantes
beneficiários do programa FIES. Nesta perspectiva, a produção se torna relevante em
função da necessidade existente de trabalhos que levantem dados e abram discussões
sobre o aumento da inadimplência de estudantes de ensino superior, questão que
caminha na contramão do acesso à educação entendido em sentido amplo e sob a
percepção constitucional de pleno desenvolvimento da pessoa (BRASIL, 1988).
Metodologicamente, utiliza-se de abordagem qualitativa para analisar o processo de
financeirizão das políticas de ensino superior no Brasil. No cumprimento dos objetivos,
além da revisão de literatura efetivada, buscam-se dados que verifiquem a elevação de
concessões de financiamento estudantil, compra de vagas e lucro líquido de Instituições
de Ensino Superior (IES) privadas, além da inadimplência eventualmente experimentada
pelas famílias receptoras de financiamento para acesso à educação superior.
Didaticamente, além da introdução, esta pesquisa é estruturada em dois capítulos. No
primeiro, realiza-se pesquisa bibliográfica, fundada em artigos científicos e livros de
acadêmicos que abordam o tema da inserção da finaa nos diretos sociais, à guisa de
Draibe (1993), Chesnais (1998; 2002; 2005) e Lavinas (2015; 2017). Pretende-se cotejar
os caminhos traçados pelas políticas sociais educacionais no Brasil, atrelados à
alavancagem do sistema de financeirizão recdo sobre estas políticas blicas, com
destaque para as gestões federais dos anos 2000.
No segundo, efetiva-se pesquisa pelo procedimento estatístico-descritivo com o uso de
subsídios emricos para explicar a expansão das matrículas em IES privadas nos anos
2000, alinhado à implementação e ampliação do FIES e, também, do Programa
Universidade para Todos (PROUNI). Aqui se veem, como já apontado no icio deste
traçado metodológico, número de bolsas e financiamentos concedidos, registros de
inadimplência dos tomadores de crédito educacional e a ampliação das IES Privadas no
Brasil, em razão da colateralização ofertada pelas políticas públicas de acesso ao ensino
superior verificadas.
As proxies em referência foram extrdas do sítio do Ministério da Educação e Cultura
(MEC) e as informações foram organizadas em gráficos e tabelas para melhor
visualizão. Deve-se frisar que o recorte temporal realizado se justifica em razão da
expansão das políticas blicas educacionais observadas nos anos 2000 no Brasil,
destacadamente o impulso ofertado pelos governos Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma
Rousseff.
POLÍTICAS SOCIAIS E FINANCEIRIZAÇÃO
O Estado do Bem-Estar Social, também conhecido como Welfare State, é resultado de
um movimento social que surgiu fortemente depois da Segunda Guerra Mundial, quando
os Estados capitalistas passaram a intervir em suas economias na busca de garantir os
direitos sociais à população como habitação, saúde, alimentação e educação. Essa
geração de círculo virtuoso entre a política econômica keynesiana e o bem-estar social
regularia e estimularia o crescimento econômico, aliado a redução de conflitos e tensões
sociais, promovendo a demanda efetiva e a produção.
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O objetivo do Welfare State era direcionar ões econômicas e sociais do governo a fim
de promover o bem-estar social, garantindo que houvesse desenvolvimento, ou seja,
crescimento econômico com geração de riquezas para o país e redução da
desigualdade social. A partir do surgimento deste modelo de Estado ampliaram-se os
direitos sociais, como a previdência, direitos trabalhistas e programas habitacionais. Daí,
compreende-se o papel do Welfare State como mecanismo de regulação da política
social, de organizão política dos trabalhadores e instrumento da política
macroeconômica (FLEURY, 2004).
No Brasil, o movimento do Welfare State não teve a mesma intensidade que teve em
outros países. Surgiu como modo de regulação e organização de trabalhadores da
economia e da burocracia na Era Vargas, moldando seu caráter sobrelevante no setor
político por meio de decisões autárquicas estatais. Era caracterizado, nesta medida, por
centralização política e financeira em nível federal, fragmentação institucional,
tecnocratismo, autofinanciamento, mercadorização e uso clientelístico das políticas
sociais (DRAIBE, 1993).
A partir do final da década de 1980, com o forte impacto neoliberal decorrente da
mundialização do capital, sobretudo ocasionado pelo Consenso de Washington,
ocorrem reformas no Estado de Bem-Estar Social brasileiro, o qual, contraditoriamente,
com a promulgação da Constituição Federal de 1988, firma um importante marco legal
na constitucionalização dos direitos sociais pelo artigo 6º da Carta Política. Pela primeira
vez houve um parâmetro de leis que garantiu, ao menos formalmente, o bem-estar social
para a populão como direito fundamental e universal, representado por diversas
garantias sociais.
A Constituição Federal de 1988 proporcionou os parâmetros para o Estado Social.
Contudo, o Estado Social não aconteceu em sua plenitude devido as políticas neoliberais
implantadas a partir de 1990 no governo de Fernando Collor de Melo, desenvolvidas no
governo Itamar Franco e concretizadas com mais intensidade no governo Fernando
Henrique Cardoso (FHC), em seus dois mandatos. Apesar de difundir o combate à
pobreza, as políticas neoliberais não obtiveram êxito em modificar a realidade social
brasileira. Contrariamente, o panorama de desigualdade se alastrou.
Neste período, as políticas focaram em programas sociais dedicados às classes mais
baixas da pirâmide populacional e que se encontravam em situação de pobreza e
extrema pobreza, surgindo programas de promoção de saúde da família e de renda
mínima (Bolsa Escola, Bolsa Alimentão e Auxílio Gás). Boa parte destes programas
foram concretizados por meio de transferências de renda e fomentados pelos ideais de
segurança e desenvolvimento social (PINHEIRO JÚNIOR, 2010).
Os anos 2000 foram marcados pela expansão das políticas compensatórias em maiores
proporções, políticas assistencialistas e intensificão dos programas de transferência
de renda. Quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (Lula) foi empossado, o principal
objetivo das ões sociais passou a ser a erradicação da fome e miséria no país,
voltando a atenção à promoção de condições mínimas de vida e cidadania à população
por meio do alívio imediato dos efeitos deletérios da pobreza. Para isso, o governo
apresentou um plano de ação e a crião do Programa Fome Zero (ARANHA, 2010).
Muito mais que o Programa Fome Zero, o Programa Bolsa Falia (PBF) é a ação
pública mais conhecida do governo Lula. O PBF unificou uma série de programas
assistenciais do governo de FHC, o que buscou permitir, por meio de transferência de
renda, a ampliação/aperfeiçoamento no atendimento aos beneficiários e a atuão
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governamental em quatro eixos: geração de renda; acesso a alimentos; fortalecimento
da agricultura familiar; articulação, mobilização e controle sociais.
Outra medida social importante nesse peodo foi a política de valorizão do salário
mínimo, implantada a partir do ano de 2004. Essa medida trouxe mudanças no padrão
de consumo dos brasileiros, consequente formalização e aumento dos postos de
trabalho e a ampliação do total de trabalhadores registrados no setor privado.
Economistas defendem que a política de valorizão do salário nimo foi a maior
contribuição que ocorreu nos governos petistas para a mudaa no padrão de renda das
famílias brasileiras. A criação de 20 milhões de postos de trabalho formais entre os anos
de 2003 e 2013 denotou o impacto redistributivo desta política estatal, mesmo que 84%
deles tenham se estabelecido na faixa de 2 salários mínimos (LAVINAS, 2015).
Contudo, apesar do forte impacto no setor social promovido durante os governos petistas
de Lula e Dilma Rousseff, não se afasta a discussão da ampliação exponencial da
presença do capital privado em diversos setores econômicos e na concretizão das
garantias sociais constitucionalmente previstas, como no caso da educação. Isto se dá
não só pela arena de debate e cessões feitas nas gestões Lula e Dilma Rousseff ao
capital privado, mas tamm pelo processo histórico de neoliberalismo, mundialização
do capital e financeirização das economias.
A partir da década de 1980, após um período de recessão econômica em que as
grandes economias passavam por instabilidade, com elevação de inflação e aumento
de juros, surgiu nos países capitalistas desenvolvidos, como Estados Unidos e Reino
Unido, buscando reestruturar e recuperar a economia, uma nova fase do
desenvolvimento do capitalismo mundial, a mundializão do capital. Este fenômeno
econômico é caracterizado pela expansão das operações do capital em sua forma
financeira (CHESNAIS, 2002).
A mundialização do capital trouxe um novo regime de acumulação capitalista e uma nova
fase do processo de internacionalizão do capital. Comparada a outras fases do
desenvolvimento do capitalismo, essa fase possui características particulares e próprias
que se desenvolveram em meio a uma densa crise de superprodução iniciada em
meados dos anos 1970.
O capital passou a ser mercadoria e circular entre nações. Em meados dos anos 1960,
o capitalismo mundial viveu sua idade de ouro. O crescimento da produção e do
corcio mundial eram resultados dos lucros auferidos em investimentos na própria
produção. As indústrias se ampliavam, transformando-se em grandes corporações
industriais. A recessão de 1974 a 1975, foi o icio da longa crise que se abateu sobre o
sistema financeiro mundial. Esse período é o marco histórico do início da mundialização,
momento em que o capital passa a procurar romper vínculos com fatores que de algum
modo buscavam civilizá-lo (ALVES, 1999).
A abertura comercial dos pses, não só de bens e serviços, mas também do sistema
financeiro, proporcionou mudanças nas estruturas de finanças e ampliou o recebimento
do investimento externo. Nos anos 1980 e 1990, economias do mundo experimentaram
a transformação de partes e todos de propriedades de empresas em ativos financeiros
vendáveis na bolsa de valores.
O que levou a esse resultado foi o processo de acumulação financeira, que é a
centralização do capital em instituições financeiras. O capital o é investido em
produção de bens e serviços, é investido em ativos financeiros, com a finalidade de gerar
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valorizão sua nesta esfera. Isso significa que pessoas com o poder aquisitivo maior
passaram a aplicar o excedente do seu capital em investimentos financeiros. A massa
de dinheiro líquido que escapava dos bancos foi a eles redirecionada, com o aumento
de operações de crédito, empréstimos e aplicações, facilitados pela desregulamentação
dos mercados (CHESNAIS, 2005).
Chesnais (1998) indica três tipos diferentes para o capital acumulado: o capital produtivo,
o capital comercial e o capital financeiro. O capital produtivo tratou-se do processo de
grandes empresas ou grupos capitalistas que expandiram filiais internacionalmente com
o objetivo de valorização e reprodução do capital. D surgem as multi e transacionais,
inclusive no setor educacional. O capital comercial representou, além, o processo de
concentração e centralizão do capital nas economias internacionais centrais, também
o uso da tecnologia para mudanças nos processos produtivos, além da constituição de
bloco econômico, determinando a postura dos países participantes com relação a dívida
dos países do Terceiro Mundo.
Por fim, o capital financeiro foi o que mais se expandiu, caracterizado pelas medidas de
liberalização e desregulamentação dos fluxos com as inovações financeiras, possuiu
como objetivo principal a apropriação de riquezas. Teve facilidade para se expandir por
causa das novas formas de centralização do capital, como os fundos de pensão e
investimento. A mudança mais importante a se considerar nas décadas de 1980 e 1990,
o que remanesce sobretudo na atualidade, é a assunção do capital portador de juros
(financeiro) ao posto de comandante do capital industrial, com o processo de valorização
do capital e transformão da finança no centro social e econômico.
Os dividendos se tornam, aos poucos, um mecanismo de acumulação de capital e de
transferência de riquezas. Com a incorporação dos mercados emergentes, estes foram
obrigados pelos capitalistas desenvolvidos, apoiados pelo Fundo Monetário Internacional
(FMI), a participarem da ciranda mundialização financeira. A análise feita sobre a
mundialização financeira proporciona o entendimento do processo de transição do
capital patrimonial para o capital portador de juros, ou seja, quando o dinheiro deixa de
ser apenas reserva de valor e passa a ser também um valor que produz. Há o incentivo
às privatizações, mercadorizão e supervalorização do setor bancário-financeiro, o que
se cunhou de financeirização das economias (CHESNAIS, 2002).
No Brasil, essa dinâmica atingiu as políticas sociais desde os anos 1990 e, de modo
esmagador, nos anos 2000. Caracteristicamente, o Estado brasileiro interveio na
economia como forma de acelerar processos e tentar se nivelar a países desenvolvidos.
Aí o Estado assume papel de garantidor das condições de acumulação geral de capital,
particularizando seu aspecto de economia dependente. Com a expansão econômica
que o Brasil passou na alavancagem neoliberal, houve mudaas no poder de compra
dos brasileiros, no nível de renda e no padrão de consumo. Como o governo não
conseguia suprir certas demandas, financeirizou algumas políticas sociais para que
suprisse essa carência. Então, foram implantados programas de transferência de renda.
Houve a financeirização da saúde, dos programas habitacionais, além da liberação de
créditos consignados e créditos estudantis.
A característica monetizada das políticas sociais permite o acesso a direitos
originalmente público por meio daquilo que se cunha de cidadania bancária, com a
ampliação e popularização do crédito, muitas vezes colateralizado por políticas de
transferência de renda, essência do sistema de financeirização promovido pelo
capitalismo (BRETTAS, 2017). Isto denota o aspecto contraditório da formulação das
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políticas sociais brasileiras, as quais em lugar de fornecerem os direitos básicos aos
brasileiros, protegendo os cidadãos de classes mais baixas e em situação vulnerável,
como demandam as premissas constitucionais, estimulam o crédito e consumo por meio
de programas sociais, como tem ocorrido no setor da educação.
A FINANCEIRIZAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR NO BRASIL
A política de inclusão financeira, fomentada nos governos Lula e Dilma Rousseff, visava
facilitar o acesso ao crédito, em suas variadas formas, à população de baixa renda. Esta
política teve impacto relevante na inserção das famílias brasileiras no circuito creditício e
foi crucial ao influenciar na expansão do consumo em massa destas falias e no
fomento às diversas modalidades de crédito que surgiram e se atrelaram à política social
para o financiamento do acesso a serviços e bens. Este cenário foi responsável por levar
o consumo das famílias a crescimento maior que o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro
no período dos governos populista em referência (LAVINAS, 2015).
Para tanto, algumas medidas foram tomadas, como a redução na taxa de juros ocorrida
no governo Dilma Rousseff para incentivar o consumo em massa e oportunizar pessoas
em situação de pobreza a fazerem parte das dinâmicas do mercado como mais um
tentáculo do sistema bancário-financeiro (CASTELLANO, 2015). Na área da educação,
o que interessa a este estudo, as modelagens promovidas nos governos petistas de Lula
e Dilma Rousseff fomentaram o acesso da população brasileira ao ensino superior.
Significativo o papel de programas de acesso à educação, dentre eles o FIES, já
existente como mecanismo de oferta de crédito para financiamento estudantil, mas que
toma novas formas nas gestões federais 2003-2015. No ano de 2010, houve alterações
no programa, passando a ser administrado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da
Educação (FNDE), o que proporcionou um aumento no seu alcance e uma redão na
taxa de juros aos beneficiários, sobretudo com a Medida Provisória nº 501/2010,
promovida para tornar desnecessária a exigência de fiador para alunos de baixa renda
ou de cursos de licenciatura.
Com as mudanças ocorridas no FIES, o programa passou a ser mais atrativo para os
estudantes, gerando o aumento no número de matrículas em instituições particulares. A
transferência da responsabilidade da oferta da educação superior para a inciativa privada
é perceptível nessa época, assim como o processo de financeirizão da educação
superior colateralizada pelo Estado. Ao se tornar beneficiário do FIES, o estudante
assume a responsabilidade do financiamento, adquirindo dívida junto ao sistema
bancário (CORBUCCI et al., 2016b).
O FIES é um exemplo da financeirizão da educação, no qual o governo libera crédito
aos estudantes de baixa renda para que possam ter acesso ao ensino superior. Trata-
se de política compensatória para cobrir falhas do governo em oferecer educação pública
para todos os estudantes, gerando dívida para os discentes que, ao concluírem o curso,
e passado o período de carência, terão de quitá-la. Este processo de financeirizão da
educação, que surgiu com a mundializão financeira, trouxe uma nova fase para o
capitalismo mundial, incrementando a livre circulação de capital.
Seguindo a doutrina do neoliberalismo, os Estados nacionais promoveram reformas que
geraram repartição de riqueza concentrada, privilegiando as instituições financeiras e o
ingresso maciço de capital e empresas privadas na promoção de direitos originalmente
públicos e de responsabilidade estatal. As reformas demostram a aproximação do
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governo com o mercado mundial, solidificando a renúncia do Estado de seu papel de
fornecedor dos direitos sociais, como no caso da educação, promotora do alargamento
dos ganhos líquidos das empresas de fundo privado.
A partir dos anos 1990, o sistema educacional brasileiro foi invadido pelo
empreendedorismo das IES, pela bolsa de valores, internacionalização, empréstimos e
fusões de empresas de educação. Isso tudo ocorreu através de órgãos internacionais
como a Organização das Nões Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(UNESCO), Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE),
Organização Mundial do Comércio (OMC) e os Tratados de Livre Comércio (TLC), os
quais incentivaram uma educação baseada na competição, competência, eficiência,
privatizão e regida pelas regras de mercado, em sistema de comércio, sobretudo em
países periféricos, por meio do crédito (COSTA, 2011).
A financeirizão da educação teve fortes gatilhos aceleradores que foram,
respectivamente, a crião do FIES e, também, o PROUNI, determinantes da ampliação
do lucro líquido de empresas privadas no ramo educacional. O crescimento da receita
líquida das empresas de educação superior com papeis na bolsa de valores
BM&FBOVESPA no período 2012-2015 é exposto na Tabela 1, constatando-se como a
educação superior passou a ser um negócio rentável e atrativo, o que explica o
crescimento da financeirizão sobre este direito social.
Tabela 1- Receitas líquidas de empresas educacionais com ações na BM&FBovespa, em R$ mi de
dezembro de 2015, Brasil, 2012-2015
Empresas
2012
2013
2015
Var % 2012-2015
Kroton
1.753,1
2.374,0
5.081,9
190%
Estácio
1.725,3
2.038,5
2.939,4
70%
Ser Educacional
353,3
538,0
1.020,3
189%
Anima
403,7
543,3
856,6
112%
Fonte: Corbucci et al. (2016a).
O crescimento das receitas líquidas das empresas educacionais é crescente ano a ano. A Kroton,
um dos braços da maior holding educacional do mundo, o grupo Cogna Educação, foi a empresa
que possuiu a maior VAR entre os anos 2012 e 2015, chegando a 190% (TABELA 1). Este
crescimento expressivo foi acompanhado (TABELA 1) por outros três grandes grupos
educacionais: Ser Educacional, com um crescimento próximo ao da Kroton, de 189%; Anima,
com 112%; e Estácio, com 70%, percentuais expressivos de elevação das receitas, todos em boa
medida incentivados pela financeirização (LAVINAS, 2017).
O alargamento nas receitas líquidas destas empresas privadas em muito se deu pelos incentivos
à educação superior brasileira, sobretudo durante as gestões federais de Lula e Dilma Rousseff.
De 2003 a 2010, geso do eno presidente Lula, embora tenha havido impactos expressivos na
dinâmica do ensino superior público, boa parte das principais ações para o ensino superior se
deram para o âmbito privado (LAVINAS, 2015).
A educação privada foi positivamente afetada pela criação do PROUNI, e, muitos mais, pelo
alargamento do FIES, o que representou porta aberta para o acesso de milhões de estudantes
no ensino superior, movimento que já se observava desde os anos 1980 com clareza, mas que
se reafirma e consolida nos anos 2000 (LAVINAS, 2017). Na Tabela 2, é apresentada a evolução
do número de matrículas no ensino superior de 1960 a 2010.
Tabela 2- Evolução das matrículas em cursos de graduação presenciais, segundo a natureza institucional,
Brasil, 1960-2010
Públicas
Privadas
Total
Ano
Matrículas
Total (%)
Matrículas
Total (%)
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1960
59.624
58,6
47.067
41,4
101.691
1970
210.613
49,5
214.865
50,5
425.478
1980
492.232
35,7
885.054
64,3
1.377.286
1990
578.625
37,6
961.455
62,4
1.540.080
2000
887.026
32,9
1.807.219
67,1
2.694.245
2010
1.461.696
26,8
3.987.424
73,2
5.449.120
Fonte: Corbucci et al. (2016a).
Destaca-se na Tabela 2 a participação da rede privada que já superava a rede pública
desde 1970 e, em 2010, alcançou 73,2% do total das matrículas de graduão. Os dados
da Tabela 2 ressaltam como a educação superior com o passar das décadas se tornou
cada vez mais mercantilizada e financeirizada. Nota-se também que a partir de 2000, até
2010, um aumento relevante no número de matrículas no ensino superior (102,25%, no
período), ocasião da implantação dos programas educacionais FIES e PROUNI,
justificadores do alargamento do lucro líquido das empresas privadas refletidos na gestão
Dilma Rousseff, como se denota da Tabela 1.
O FIES se trata de financiamento estudantil que fornece crédito aos discentes devel
superior que cursam faculdades particulares, desde que o estudante se enquadre no
perfil e a instituição de ensino possua avaliação positiva pelo MEC. Este crédito estudantil
substituiu o antigo Crédito Educativo (CREDUC), criado em 1975, com a finalidade de
fornecer financiamento para estudantes de baixa renda cursarem o ensino superior em
faculdades/universidades privadas. O CREDUC possuía juros indexados de 6% a.a., em
bolsas parciais (50%) ou integrais, com prazo de quitão em uma vez e meia o tempo
do curso, contados após doze meses de carência (GISI, 2006).
No entanto, o CREDUC foi desativado por razões de sua insustentabilidade econômica
causadas pelo alto índice de inadimplência. Cerca de 80 mil universitários foram
beneficiados em 1999 pelo FIES, número considerado muito superior aos registros de
1997 do CREDUC, em que apenas 29,3 mil estudantes foram selecionados. Ao contrário
do CREDUC, o FIES foi idealizado para ser autofinanciável e, para isso, o governo
federal tomou medidas protetivas, como a exigência de fiador, renda mínima e
compartilhamento de risco de inadimplência futura (ROMA, 2013).
A Portaria nº 1.386/1999, do MEC, estabeleceu que para participarem do FIES os
candidatos seriam selecionados de acordo a sua renda e condições de moradia, ou seja,
a prioridade seria para quem tivesse menor renda, mas, para isso, a parcela da
mensalidade não financiada não deveria comprometer mais de 60% da renda familiar
per capita. O prazo do financiamento é igual ao prazo de término do curso, a taxa de
juros é fixada no momento da assinatura do contrato para todo este período
(CORBUCCI, 2007).
Quando foi criado, o programa financiava 70% do valor da mensalidade do curso. Após
a conclusão do curso o beneficiário teria um prazo de doze meses para amortizar o
equivalente ao valor da mensalidade não financiada. O saldo devedor poderia ser
parcelado em até uma vez e meia o período em que o beneficiário participou do FIES.
No que se refere a inadimplência, Corbucci (2007) aponta que desde o ano de sua
criação, até 2005, a inadimplência atingiu 38 mil beneficiários, cerca de 10% do total de
contratos.
Após mudanças significativas já promovidas nos anos de 2007 e 2009, em 2010, a Lei
n.º 12.202/2010 efetiva mudanças estruturais, consideradas mais benéficas para os
estudantes. Os juros do financiamento passam a 3,4% a.a., com carência de dezoito
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meses e período para amortização três vezes o de durão do curso, acrescido de doze
meses. O FNDE passa a ser agente operador do programa, com percentual de
financiamento que se elevou para até 100% em inscrições. As mudanças ocorridas no
FIES proporcionaram uma expansão ainda maior no número de estudantes beneficiários
do programa, pois viabilizou que mais indivíduos tivessem acesso à política,
principalmente por causa da diminuição dos juros e da possibilidade de financiar 100%
do curso (BRASIL, 2019).
De outra sorte, o PROUNI, institdo em 2004, teve como objetivo de sua implantação
ampliar o acesso à educação de nível superior para aqueles que por vias normais teriam
poucas chances de acesso. Conforme suas normas, pode ser beneficiário o estudante
que curse o ensino médio em rede blica ou particular (desde que tenha sido
beneficiado por bolsa de estudo integral) e não seja portador de diploma de curso
superior (BRASIL, 2020).
O programa concede bolsas de estudo integral para beneficiários que possuam uma
renda per capita inferior a 1,5 salário mínimo e meia-bolsa para os que possuam uma
renda per capita de até três salários mínimos. Como contrapartida à oferta de bolsas
PROUNI, as IES participantes recebem isenção de impostos e contribuições incidentes
sobre a receita auferida por intermédio de atividades de educação superior. Somente no
ano de 2005 foram concedidas mais de 95 mil bolsas de estudos no PROUNI, sendo
que cerca de 64% foram bolsas integrais (BRASIL, 2020).
O PROUNI recebeu muitas críticas, uma delas é sobre o governo investir recursos em
instituições particulares comprando vagas, quando poderia investir esse recurso em
instituições públicas, aumentando a capacidade para atender a mais estudantes,
sobretudo pela ausência de arrecadação tributária ofertada a instituições prestadoras de
serviços educacionais de qualidade duvidosa (CORBUCCI, 2007). Apesar disso, os
números não negam a relevância de ambos os programas para o acesso ao ensino
superior (TABELA 3).
Tabela 3- Número de Bolsas do Programa Universidade para Todos (PROUNI) concedidas, do Fundo de
Financiamento Estudantil (FIES) concedidas, e número de ingressantes em cursos de graduação
presenciais nas Instituições de Ensino Superior (IES) Privadas, Brasil, 2005-2014
Ano
Bolsas PROUNI
Bolsas FIES
Total de bolsas
PROUNI/FIES
Ingressantes em cursos de
graduação IES Privadas
2005
95.580
77.212
172.792
1.108.600
2006
109.018
58.741
167.759
1.151.102
2007
105.574
49.049
154.623
1.183.464
2008
124.622
32.384
157.006
1.198.506
2009
161.369
32.654
194.023
1.157.057
2010
152.734
71.611
224.345
1.181.650
2011
170.765
153.570
324.335
1.260.257
2012
176.757
368.841
545.598
1.494.490
2013
177.324
557.192
734.516
1.494.490
2014
223.579
732.243
955.822
1.658.350
Fonte: Corbucci et al. (2016b).
Dos dados da Tabela 3 se infere o impacto dos programas educacionais de oferta de
bolsas e financiamento estudantil para acesso a instituições privadas pelo público em
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geral. É relevante observar que entre os anos de 2005 a 2014 há um crescimento de
133,9% no número de bolsas do PROUNI concedidas e 848,3% no mero de
financiamentos do FIES concedidos.
Estes fatores que denotam o grande reflexo destas ações públicas na esfera privada
ratificam o crescimento no número de instituições privadas de ensino superior no Brasil
e a ampliação em seus lucros líquidos. Imperioso também é destacar que da Tabela 3
se dessume o alargamento anual no número de ingressantes nas IES privadas
beneficiários dos programas governamentais em análise. O peso dos dois programas,
FIES e PROUNI no total de ingressantes é mostrado na Figura 1.
Figura 1- Percentual de ingressantes em Instituições de Ensino Superior (IES) Privadas beneficiários do
Programa Universidade para Todos (PROUNI) e do Fundo de Financiamento Estudantil (FIES), Brasil,
2005-2014
Fonte: Corbucci et al. (2016b).
Percebe-se na Figura 1 que, sobretudo após o ano de 2008, um crescimento
exponencial no número de estudantes beneficiados pelos programas estudantis em
análise, destacadamente pelo forte reflexo no setor ocasionado pelo FIES (LAVINAS,
2017). Neste sentido, a par do que se dessume da Figura 1, é claramente visível que no
ano de 2014 mais de 57% do número de alunos matriculados em IES privadas eram
beneficiários do PROUNI/FIES, o que designa a ampliação do acesso à educação
superior no período.
Ocorre, no entanto, que se de um lado houve ampliação inquestionável do acesso
populacional à educação superior em razão de programas de incentivo ao ensino
privado, de outro, efeitos deletérios não são relevados na análise destas ações públicas.
Sob este aspecto, a inadimplência recai pesadamente sobre os egressos destas IES
privadas, os quais assumem um risco real de não conseguirem saldar a dívida,
principalmente pelo fato de boa parte deles serem beneficiários possuidores de renda
inferior a 1,5 salário nimo, como demonstra a Figura 2.
15,6
14,6
13,1
13,1
16,8
19
25,7
36,2
49,1
57,6
0
10
20
30
40
50
60
70
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
%
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Figura 2- Distribuição dos contratos do Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) segundo o ano de
assinatura e a renda per capita familiar, em salários mínimos, Brasil, 2005-2008
Fonte: Vituri (2014).
Nota-se que a proporção de estudantes com renda inferior a 1,5 salário nimo no
período de 2005 a 2008 sempre foi mais elevado que em outros veis de rendimentos,
já que o objetivo do programa é oportunizar acesso ao ensino superior a estudantes de
baixa renda, repetindo-se o mesmo quadro em toda a série histórica até o ano de 2014
(VITURI, 2014). Com esta renda per capita, aliada ao fato de que após a conclusão do
curso muitos estudantes não conseguem de imediato ingressar no mercado de trabalho,
aumenta-se a chance de haver inadimplência por parte deles (OLIVEIRA, 2009). É este
o cenário que remanesce, muito embora haja a idealizão de que a conclusão do nível
superior mudaria de imediato a renda do estudante.
Voltando-se o olhar para o FIES, política que não se desvincula do estudante após a
conclusão do curso, chegada a fase de amortização do financiamento, etapa posterior
ao encerramento dos estudos em que é findado o período de carência, o saldo devedor
deve ser pago em até três vezes o período financiado da duração regular do curso. No
entanto, analisando os ciclos de amortizão desse programa de financiamento de 2013
e 2014, tem-se, na Tabela 4, o total de contratosem dia”, ou seja, em adimplência, e o
total dos contratos em inadimplência, divididos estes últimos por faixas de 60 a 360 dias
de inadimplência.
Tabela 4- Número de contratos do Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) em fase de amortização,
adimplentes e inadimplentes, Brasil, 2013-2014
2013
2014
Posição
Contratos em dia
173.929
166.532
Inadimplentes a 60 dias
55.184
51.645
Inadimplentes entre 61 e 180 dias
14.278
13.272
Inadimplentes entre 181 e 360 dias
12.569
9.072
Inadimplentes entre acima de 360 dias
65.596
74.550
Total de contratos
321.556
315.071
Fonte: Vituri (2019).
62,4%
70,7%
64,7%
71,2%
28,4%
22,0%
26,8%
20,6%
6,8%
5,0%
6,4%
7,0%
2,3%
1,7%
2,1%
1,2%
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
2005 2006 2007 2008
Até 1,5 salários mínimos De 1,5 a 3 salários mínimos
De 3 a 5 salários mínimos Mais de 5 salários mínimos
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Pela Tabela 4, tem-se que em 2014 houve uma diminuição no total de contratos em
situação de adimplência em torno de 4,25%, se comparado ao ano anterior, e um
aumento nos contratos de inadimplência na faixa acima de 360 dias de
aproximadamente 13,65%. A análise da inadimplência do FIES é importante para
manutenção do programa, pois gera impactos econômicos e sociais, principalmente ao
governo, aos beneficiários em situação de inadimplência e aos contribuintes brasileiros
(VITURI, 2019), mormente pela expressividade do número de egressos inadimplentes.
Em 2013, 54,09% dos contratos do FIES estavam em dia, ou seja, no total, 45,91%
dos contratos estavam em situação de inadimplência, destes, a maior parte está na faixa
de inadimplência superior a 360 dias, representando 20,4% do total. Neste ano, houve
aumento no número de contratos concedidos do FIES, em torno de 48,43% (TABELA
3), considerando o ano anterior, fator que sinaliza a projeção de crescimento da
inadimplência para anos vindouros.
Em 2014, o cenário não foi diverso, os contratos em adimplência representaram 52,86%
do total de contratos do FIES neste ano, comparado com o ano anterior, a queda foi de
4,25%. Dos 47,14% contratos em situação de inadimplência, número que supera
aqueles verificados para a competência de 2013, 23,66% estão com atraso superior a
360 dias, a maior parcela de inadimplentes. Em 2014, ainda, os contratos do FIES
tiveram aumento de cerca de 31,41% (TABELA 3), projetando para o futuro, assim como
ocorreu no ano de 2013, a possibilidade de inadimplência dos estudantes usuários do
programa que, como se viu, o representados em fatia mais significativa por membros
de famílias cuja renda gira em torno de 1,5 salário mínimo.
Dados coletados dão conta, entre os anos de 2009 e 2018, de expressivo contingente
de inadimplência anual dos créditos do FIES tomados. Entre os anos de 2009 e 2012, o
Relatório de Gestão FIES denota que a quantidade de contratos inadimplentes nestes
anos (mais de 360 dias de inadimplência) salta de 59.968, em 2009, para 74.700, em
2012 (BRASIL, 2012). De igual sorte, noticia-se que entre dezembro de 2014 e março
de 2018, o número de contratos com ao menos um dia de atraso teve percentuais de
acréscimo elevados, saltando de 35,5% dos contratos para 61,8% deles. Quanto a
inadimplência, em números absolutos, contratos do FIES em fase de amortização
inadimplentes em 2016 representavam 68.342, em 2017, 170.905, e, em março de 2018,
número surpreendente de 249.433, uma amplião na inadimplência de 264,9% entre
dezembro de 2016 e março de 2018 (MORENO et al., 2020).
Ao analisar os períodos acima, conclui-se que a inadimplência dos estudantes
beneficiários do FIES é real e expressiva. Concluir a graduação com a incerteza do
mercado de trabalho e possuindo uma dívida gera instabilidade financeira aos
estudantes, principalmente aos de baixa renda, os quais são o foco do programa. Neste
sentido, as políticas públicas verificadas, sobretudo o FIES, mais têm contribuído para a
efetiva inadimplência dos egressos do ensino superior, em especial os de baixa renda, e
incentivado o circuito da financeirização, que de fato promovido cidadania em seu sentido
amplo e igualdade de oportunidades, em especial pelas taxas de desemprego
alarmantes no Brasil que alcançam mais de 12 mi trabalhadores.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De fato, não há como negar a expansão de matrículas que o PROUNI e o FIES
proporcionaram no âmbito da educação privada, assim como o acesso de pessoas de
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baixa renda a tal nível de ensino. No entanto, a par disso, a mercantilização da educão,
com o aumento expressivo de IES privadas, a ampliação dos lucros líquidos por elas
adquiridos, o surgimento de grandes grupos de educação superior e a abertura de capital
desses grupos, fomentam o crescimento da iniciativa privada sobre um direito
originalmente público e dever do Estado.
A educação superior tem sido encarada como negócio rentável, mercadoria que gera
valor, sobretudo com o sucateamento promovido no setor após a Emenda Constitucional
n.º 95/2016, responsável pelo congelamento dos gastos públicos pririos, aí incluída a
educação. Com as isenções tributárias e as demais garantias que o governo oferece
para IES privadas participantes do PROUNI e FIES, o incentivo para a ampliação da
rede privada na educação é fonte de ouro.
Nesta toada, como característica do circuito da financeirizão, se de um lado amplia-se
o lucro do sistema privado, de outro castiga-se o vulnerável que precisa buscar neste
sistema o atendimento a uma necessidade vital, como é a educão
contemporaneamente. O cenário aqui o é satisfatório. A maioria dos estudantes
beneficiários do FIES possuem renda inferior a 1,5 salário mínimo. Um cenário futuro de
endividamento e inadimplência não se afasta, sobretudo em contexto de elevadas taxas
de desemprego no Brasil.
Como comprovado, a inadimplência na fase de amortização vem aumentando,
principalmente no período superior a 360 dias. Portanto, constata-se que a ampliação do
acesso ao ensino superior brasileiro, que tem tido caráter privado, gera, por via
transversa, efeitos deletérios pro-futuro àqueles que dela usufruem, auxiliados por
políticas sociais educacionais.
Os programas governamentais PROUNI e FIES são grandes aceleradores do
crescimento de números de brasileiros com acesso à graduação, inegavelmente, repise-
se. De fato, as universidades públicas existentes não atendem à demanda exigida para
o ensino superior. No entanto, tem-se ferido os objetivos implícitos e explícitos destes
programas educacionais, destacadamente o FIES, de promoção da cidadania,
igualdade de condições e melhoria de vida por meio da educão para populações
vulneráveis que, muito mais que isso, sofrem com a dívida que se avizinha as a
conclusão da educação superior.
É necessária uma reformulão nas políticas de acesso à educão para os estudantes
de baixa renda, essa reforma precisa começar pelo ensino básico da rede pública.
Fornecer uma base escolar de qualidade fará com que os estudantes de baixa renda
possam concorrer de uma forma mais igualitária por vagas em universidades públicas.
Não só isso, políticas de trabalho e emprego devem ser promovidas envidando esforços
para a promoção de renda àqueles que se encontram em situação de desemprego,
mesmo tendo se qualificado com o uso do PROUNI/FIES. Ou seja, o Estado está
servindo de colateral à acumulação capitalista, o que não é sua função.
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Data da submissão: 20/04/2020
Data da aprovação: 29/07/2020