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DOI: https://doi.org/10.35699/2238-037X.2021.20392
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/
VIVÊNCIAS DE PRAZER E SOFRIMENTO NO TRABALHO EM
PROFESSORES DE KARATE
1
Experiences of pleasure and suffering at work in karate teachers
CAMILO, Juliana
2
RUBIO, Katia
3
RESUMO
Este estudo investiga as vincias de prazer e sofrimento com o trabalho de professores de Karate em
uma cidade metropolitana do estado de o Paulo. Para isso, como aporte epistemológico,
empregamos a psicodimica do trabalho. Foram feitas sete entrevistas individuais com os professores,
no ano de 2019. Os resultados indicaram a invisibilidade do trabalho desses educadores, laços
extremamente frágeis contratuais, condições prerias estruturais para que as aulas fossem
ministradas, alta demanda dos alunos quanto as competências dos professores e alta expectativa dos
alunos e seus cuidadores quanto aos princípios disseminados nas aulas. Ressalta-se as estratégias
defensivas que, por respeito a hierarquia e disciplina do Karate, am do receio de perder os postos de
trabalho (equivalente ao desemprego), submetem-se as organizações com o mínimo de
questionamento, aceitando condições prerias laborais. As vincias de prazer são maximizadas, ao
se atuar com alunos de projetos sociais, assim como pela possibilidade de auxil-los com outros
referenciais para am dos problemas sociais por eles vivenciados.
Palavras-chave: Psicodinâmica do trabalho. Psicologia do Esporte. Artes Marciais.
ABSTRACT
This study investigates the experiences of pleasure and suffering with the work of karate teachers in a
metropolitan city of the state of o Paulo. The work psychodynamics was used as a theoretical
approach. Seven individual interviews were conducted with the teachers in 2019. The results indicate
the invisibility of the work, extremely fragile contractual ties, poor structural conditions for the classes to
be taught, high student demand for teachers' skills and high expectations of the teachers. students and
their caregivers about the principles disseminated in class. It is important to stress the defensive
strategies that, out of respect for the hierarchy and discipline of karate, in addition to the fear of losing
the jobs (unemployment), organizations are submitted with the least questioning. The experiences of
pleasure are maximized by working with students of social projects, as well as by the possibility of
assisting them with other referential besides the social problems they face.
Keywords: Work psychodynamics. Sport Psychology. Martial Arts.
INTRODUÇÃO
1
Texto não publicado em encontros e/ou eventos científicos. Aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade
de São Paulo. Obteve financiamento parcial pelo PIPEQ/PUCSP. Resultante de pesquisa de pós-doutoramento da
primeira autora, intitulada de As modalidades esportivas de combate em uma cidade metropolitana do estado de São
Paulo.
2
Pós-doutorado em Educão Física e do Esporte pela Universidade de São Paulo. Doutorado e Mestrado em Psicologia
Social pela PUCSP. Psicóloga e Professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, no curso de Psicologia e
da Universidade Paulista (desde 2007). E-mail: julianacamilo8@gmail.com
3
Pós-doutorado em Psicologia Social pela Universidad Autonoma de Barcelona. Doutorado em Educação pela USP.
Mestrado em Educão Física e do Esporte pela USP. Psicóloga e Jornalista. Professora associada da Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo. E-mail: katrubio@usp.br
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O objetivo desta pesquisa foi investigar as vivências de prazer e sofrimento com o
trabalho em professores de Karate, na cidade de Cotia, região metropolitana do estado
de São Paulo. A cidade de Cotia, área remanescente do cinturão verde paulistano e local
protegido pela Lei dos Mananciais , apresenta realidades díspares em âmbito
socioeconômico e demográfico (DRENATEC ENGENHARIA S/C; INSTITUTO DE
PESQUISAS TECNOLÓGICAS, 2007). De um lado tem-se a urbanidade de
condomínios fechados e luxuosos na região da Granja Vianna, de outros territórios com
moradias precárias, permeado por desigualdades sociais e violências, como os bairros
Parque Manuel Mirizola e Lajeado. Ao redor há ainda condomínios menores e
horizontais, com casas voltadas para o público de padrão médio, como os bairros
Bosque Capuava e Jardim Belizário. A cidade conta com polos industriais, comércios de
pequeno e médio porte e área agrícola, administrada sobretudo pela comunidade
japonesa.
Ainda que as lutas tenham importância histórica em solo brasileiro, sendo parte da cultura
do país e, como tantas outras modalidades esportivas, fundamentais para fomentar a
Educão, a Saúde, o Desenvolvimento e a Paz (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES
UNIDAS NO BRASIL, 2016), seus educadores ou formadores, que em tese são
fundamentais nesse processo, parecem não receber o mesmo olhar, sobretudo, quando
se trata do reconhecimento do seu papel enquanto trabalhador. Neste contexto de
trabalho os professores são predominantemente atuantes em uma atividade não
regulada (sem um registro na carteira profissional ou minimamente um contrato formal),
que acabam por ficar à mercê de uma lógica hiperflexibilizada, na qual pouco se chegou
os direitos e conquistas históricas de outras tantas categorias profissionais (CAMILO;
SPINK, 2018; CAMILO, 2020).
Estamos aqui em um reduto marcado por relações de trabalho que se apoiam na
obediência e submissão, sublinhada ainda por padrões desiguais entre regiões e
trabalhadores, facilitada pela ausência de alguma organização reivindicatória de direitos
e melhores condições laborais. Tal como já postulava (ANTUNES, 2011) Antunes (2008,
2011), ao analisar a área de serviços, temos aqui igualmente, inúmeras pressões
competitivas, uma rede de subcontratação e deslocamentos, de modo a dispor de força
de trabalho que se adapta ao mercado consumidor. As consequências mais evidentes,
nas palavras de Antunes, é a heterogeneização, a fragmentação e complexificação
desta classe trabalhadora. Convergente a esta discussão Druck (2016), ao falar da
terceirização que assola imeras áreas como a de serviços, aponta o uso predatório da
força de trabalho dessas classes trabalhadoras na sua forma mais aguda. Para a autora
tem-se aqui o desrespeito dos limites físicos dos trabalhadores, expondo-os a riscos de
morte com as formas de trabalho que transgridem a condição humana.
Partindo da premissa que a Psicologia do Trabalho tem muito a oferecer em termos de
análise e proposições, se faz fundamental também que este campo do conhecimento se
aproprie desta e outras tantas realidades que envolvem o contexto esportivo, tal como
apontado em estudos anteriores. Ao se apropriar e se aprofundar neste mercado laboral
e de intenso consumo, a Psicologia do Trabalho poderá notar que se tem aqui modos de
produção que extrapolam (e muito) os contextos tradicionais (fábricas, áreas de
prestação de serviços, varejo, etc.), mas que, igualmente, criam ganhos, a partir da
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explorão dao-de-obra, gerando oportunidades de trabalho e vivências de prazer,
ao lado de sofrimentos, acidentes e adoecimentos diversos.
Assim sendo, a concepção adotada neste estudo parte do pressuposto que os
professores aqui analisados são trabalhadores. São pessoas que, como os diferentes
indivíduos assalariados inseridos em uma lógica tradicional, vendem o seu tempo, a sua
habilidade, emprestam os seus corpos, nomes e subjetividades para um determinado
fim, tal como os atletas de rendimento (CAMILO; RABELO, 2019; FERREIRA JUNIOR;
RABELO; CAMILO, 2019).
No entanto, a atividade laboral dos professores de lutas, quando comparada a outros
campos de atuação pedagógica, ainda é pouco visibilizada e problematizada,
especialmente quando se consideram, como no caso das lutas, as diferentes formações
de acesso ao patamar de instrutor ou professor. É importante contextualizar que há uma
questão importante no cenário brasileiro, que foi bastante explorada em âmbito jurídico
e debatida na coletividade das lutas, sobre a necessidade (ou não) dos professores
serem profissionais de Educão Física (com formação superior, licenciatura e/ou
bacharelado em Educação Física). Esta controvérsia parece minimamente ter sido
reduzida as o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do Recurso Especial
1012692/RS (2011), ter decidido que:
Quanto aos artigos 1º e 3º da Lei n. 9.696/1998, não se verificam as alegadas violações,
porquanto não há neles comando normativo que obrigue a inscrição dos professores e
mestres de danças, ioga e artes marciais (Karate, judô, tae-kwon-do, kickboxing, jiu-jitsu
capoeira etc.) nos Conselhos de Educação Física, porquanto, à luz do que dispõe o art. 3º
da Lei n. 9.696/1998, essas atividades não são caracterizadas como próprias dos
profissionais de educação física (Supremo Tribunal de Justiça, 2011).
A partir desta decisão, os Conselhos de Educação Física ficaram impedidos de fiscalizar
os instrutores de lutas, danças e ioga sob pena do cometimento do ilícito de abuso de
autoridade, previsto no art. da Lei 4.898/65.
É neste contexto que se insere os professores que serão aqui apresentados, envolvidos
com a periferia, com o gueto, com a negritude, com o aprendizado da defesa e do ataque,
que são muitas vezes fundamentais para a sobrevivência desde a infância em situações
sociais críticas (WACQUANT, 2003; SPENCER, 2014). Igualmente, atuam nas classes
mais abastadas, em que se destaca a modalidade como bem-estar, saúde, esporte e
toda a sua lógica competitiva, a tradição familiar ou cultural ou, ainda, como forma de
defesa pessoal, como pode ser o caso do jiu-jitsu (AWI, 2012), da esgrima ou kendo. Em
suma, se as lutas corporais podem ser um modo potente para o fomento da educação,
de contenção da agressão, da socialização, sobretudo nos bairros pobres em que o
acesso aos aparatos de lazer é escasso ou inexistente, também podem ser usados
como bem-estar, para a qualidade de vida ou para a defesa pessoal, como se nota
empiricamente nos bairros mais abastados.
As artes marciais orientais são um elemento constitutivo da cultura corporal do ps,
sendo a cidade de São Paulo um importante polo de fomento à atividade. Permeadas
por valores humanísticos, as artes marciais foram sendo desenvolvidas como uma forma
de sobrevivência e, mais tarde, repensadas enquanto práticas para desenvolvimento
pessoal e esportivo no mundo moderno (BARREIRA, 2014)
Nessa direção encontra-se o Karate-Dō, que é uma disciplina de desenvolvimento
pessoal com práticas de luta que foi originada em Okinawa (antigamente a principal ilha
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do arquipélago de Ryukyu) entre a China e o Japão. Okinawa era um reino independente
e vassalo da China no século XIV, sendo bem documentado apenas a partir de 1867,
embora haja registros anteriores de sua existência, mas insuficientes para um
detalhamento consistente de sua história prévia, período em que surgia o Karate- Dō
(OLIVEIRA; TELLES; BARREIRA, 2019). Na sua origem, essa disciplina chamava-se
Te (), mão, ou mão de Okinawa, vindo a denominar-se Tōde (唐手), em Uchināguchi
(o idioma de Okinawa) ou Karate (唐手), proncia japonesa para a mesma escrita, as
os contatos com as artes marciais chinesas, em especial o Quan Fa (FUNAKOSHI,
1973).
Desenvolvido sob a influência de diversas culturas, em especial da japonesa e chinesa,
o Karate-Dō se tornou uma disciplina híbrida, multicultural e pluritemática (Camps &
Cerezo, 2005). Seu conjunto de valores também representa essa pluralidade, pois se
alicerçou a partir dos ideais de inúmeros mestres antigos e modernos (BARREIRA,
2014).
A modalidade é permeada por princípios filosóficos que são entendidos como
fundamentais para polir o caráter. Nesse sentido, o praticante deve manter a mente
distante do egoísmo e da maldade, devendo buscar a pureza de pensamentos, reagindo
apenas quando em amea (BARREIRA, 2014). Tem-se aqui o significado filosófico do
sufixo "Kara" (vazio) e Tê (Mão), da palavra Karate, que significa a ausência de
pensamentos destrutivos ou inferiores, significando também, a Arte de Lutar com as
mãos vazias.
Os princípios do Karate são normalmente recitados no começo e no fim das aulas no
dojo (local de treinamento). O objetivo é reforçar para os praticantes a ideia de que a arte
marcial é antes de tudo um instrumento de aperfeiçoamento pessoal, um modelo de
perseverança e temperança, que se deve levar para a vida cotidiana. A seguir será
apresentado no Quadro 1 os princípios do Karate na língua japonesa, seguido de sua
tradução livre:
Quadro 1- Princípios do Karate
Hitotsu: jinkaku kansei ni tsutomuru koto
(Primeiro: Esforço para formação do caráter)
Hitotsu: makoto no michi wo mamoru koto
(Primeiro: Fidelidade para com o verdadeiro caminho da rao)
Hitotsu: doryōku no seishin wo yashinau koto
(Primeiro: Cultivar um espírito de esforço)
Hitotsu: reigi wo omonzuru koto
(Primeiro: Respeito acima de tudo)
Hitotsu: kekki no yū wo imashimuru koto
(Primeiro: Conter o espírito de agressão)
Embora os princípios estejam organizados em uma determinada ordem, nenhum é mais
importante que o outro. Essa comum imporncia fica evidente quando lemos Hitotsu
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(Primeiro) no início das frases, incluído para que os praticantes não entendessem algum
item do como mais importante do que o outro.
É importante ainda destacar a proximidade atual do Karate com a lógica da
esportivização trazida pelo olimpismo tal como proposto por Pierre de Coubertin (1863-
1937) tendo em vista sua inclusão nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020. Para Oliveira
et al. (2018), percebe-se que a espotivização do Karate tem gerado sua
descaracterização e afastamento dos objetivos e princípios originais, passando de uma
modalidade demãos vazias paramãos com luvas, em alusão a profissionalização e
adaptão da modalidade para a inclusão nos grandes eventos esportivos.
ASPECTOS CONCEITUAIS
Para discutir a complexa trama envolvida em torno destes trabalhadores, daremos foco
nas suas vivências de prazer e sofrimento, a partir do caminho epistemológico feito pela
psicodinâmica do trabalho (PDT), sobretudo vinculada a escola dejouriana de
pensamento (DEJOURS, 2004, 2011; DEJOURS; NETO, 2012; DEJOURS; BARROS;
LANCMAN, 2016). A psicodinâmica do trabalho desenvolveu-se a partir dos estudos em
psicopatologia do trabalho, entre os anos de 1950-1960, tendo como principais
exponentes: L. Le Guilant, C. Veil, P. Sivadon, A. Fernanadez-Zoïla e J. Bégoinda
(DEJOURS, 2011).
Um dos principais avaos propiciados por esta corrente de pensamento, foi o
reconhecimento da normalidade e do prazer envolvido no contexto do trabalho abrindo
caminhos para além da equação ofício-sofrimento. Neste sentido, a PDT busca
compreender como os trabalhadores podem manter um certo equilíbrio psíquico, mesmo
estando submetidos a condições de trabalho desestruturantes (DEJOURS, 2004). Além
disso, a PDT evidenciou o sofrimento psíquico desde o estado pré-patológico, permitindo
que se possa atuar na identificação das consequências das organizações do trabalho
sobre a saúde mental dos trabalhadores, assim como na possibilidade de se pensar em
interveões preventivas e transformadoras (MOLINIER, 2016). É importante ressaltar,
que nessa concepção, o sofrimento é o modo de evitar a patologia, já que o trabalhador
ao mesmo tempo que se angustia, busca o equilíbrio e modos de fazer (em seus
aspectos individuais e coletivos), fazendo frente as experiências de fracasso e tensão
decorrentes do contato com o trabalho real (MERLO; MENDES, 2009).
A abordagem adotada por essa disciplina permitiu tamm ultrapassar uma visão
reducionista e individualizante, que atribuída ao trabalhador única e exclusivamente os
impactos do trabalho sobre sua saúde. Nesse sentido, a saúde mental para a
psicodinâmica coloca-se entre a patologia e a normalidade, ou seja, resulta dos modos
como os sujeitos-trabalhadores reagem e agem frente ao sofrimento originado nos
constrangimentos impostos pela organização do trabalho (DEJOURS; BARROS;
LANCMAN, 2016).
Assim, falar em custo humano no trabalho, de sofrimento ou prazer, requer a
compreensão dos fatores objetivos e subjetivos envolvidos, capazes de afetar os
professores aqui estudados.
MÉTODO
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A discussão que será aqui apresentada parte de retratos obtidos por meio de entrevistas
abertas com os professores de Karate, localizados na cidade de Cotia/SP, em 2019.
De acordo com Merlo e Mendes (2009), predomina no Brasil os estudos em PDT que
primam pelo uso da abordagem para a leitura trica do fenômeno estudado, como é o
caso desta pesquisa, não adotando os aspectos metodológicos defendido por Dejours.
Ainda assim, para os autores, as diferentes perspectivas metodológicas assumidas pelos
estudos em psicodinâmica do trabalho, acabam por oferecer contribuições valiosas para
o crescimento do campo, refletindo as possibilidades da construção do conhecimento
em determinados locais e realidades.
PARTICIPANTES
As pessoas entrevistadas foram indicadas pelo principal professor de Karate da cidade
(sensei), em atendimento ao perfil solicitado pela primeira pesquisadora deste artigo: ter
mais de 18 anos e mais de 3 anos de experiência como professor de luta. Cabe dizer
que este professor foi um dos precursores da modalidade na cidade, tendo se formado
com o mestre japonês encarregado pela disseminação desse estilo de Karate no país,
sendo ainda o responsável pela formação da maior parte dos professores da cidade.
Assim, dentro dos critérios estabelecidos, foram indicados para entrevista 7 professores,
sendo 6 homens e 1 mulher, correspondendo a amostra total daqueles indicados pelo
sensei. Em relação à formação das pessoas entrevistadas, 4 eram profissionais de
educação física, 1 administrador de empresas e 2 não possuíam formação superior. Sete
deles relataram ter mais de 10 de experiência como professor(a) de Karate em várias
realidades (academias de ginástica, academia de lutas, escolas e projetos sociais) e 1
deles 4 anos de experiência em academia de ginástica. A idade dos professores variou
entre 30 e 56 anos. Todos eles já foram professores de diferentes públicos: crianças,
adolescentes, adultos e idosos.
INSTRUMENTOS
Este estudo se insere em uma pesquisa de pós-doutorado da primeira autora deste
artigo que buscou compreender as modalidades esportivas de combate em uma cidade
metropolitana na cidade de São Paulo, assim como o seu trânsito e seus sentidos, que
se iniciou em 2018 e teve seu término em 2020. Em um momento inicial foram realizadas
entrevistas semi-dirigidas com professores de lutas, vinculados a projetos sociais,
escolas, academias de ginástica, academias específicas de lutas e aulas particulares.
A pergunta desencadeadora era conte-me sua história de vida e como o Karate se
inseriu nela, compreendendo que, ao narrar a sua história, a pessoa seleciona eventos
e experiências que lhe são afetivamente significativas e que dão ao discurso contornos
particulares. A partir da narrativa das pessoas entrevistadas foram feitas intervenções
com o objetivo de clarificar alguma dúvida, tomando o cuidado de não trazer uma nova
probletica e desviar do aspecto amplo da fala. Em linhas gerais, cada entrevista teve
em média 40 minutos de duração, tendo sido gravada, transcrita e validada (confirmadas
pelos participantes, com partes incluídas pelos entrevistados a posteriori).
PROCEDIMENTO DE COLETA DE DADOS E CUIDADOS ÉTICOS
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As entrevistas foram feitas presencialmente, na academia em que a pessoa entrevistada
se vinculava, e em um local reservado, de modo a garantir a privacidade. Estas foram
agendadas previamente respeitando a disponibilidade de horário dos participantes.
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da
Universidade de São Paulo (USP), tendo seguido os procedimentos metodológicos aqui
narrados, garantindo o cumprimento integral da Resolução 510/16 do Conselho Nacional
de Saúde. Sendo assim, todos os participantes foram esclarecidos e assinaram um
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido antes da participação no estudo. Para
garantir o sigilo na identificação dos sujeitos, apresentaremos o nome apenas a partir da
letra inicial dele.
PROCEDIMENTO DE ANÁLISE
As entrevistas foram lidas em profundidade pelas pesquisadoras responsáveis para a
posterior localizão de categorias em comum, seguindo a proposta de Mendes (2007)
de construção de Análise dos Núcleos de Sentido (ANS). Assim, os dados foram
coletados e categorizados por meio da identificação dos temas abordados nas narrativas
e identificados pelas pesquisadoras. Esses núcleos formaram categorias que orientaram
a análise dos dados conforme a proposta teórica da Psicodinâmica do Trabalho: a saber:
condições de trabalho, sobre o sofrimento no trabalho e sobre o prazer no trabalho.
Chamou-nos a atenção que, ao narrar a história de vida e a presença da arte marcial
nela, todos os entrevistados trouxeram espontaneamente questões que se vinculavam
ao trabalho, suas vivências de prazer e de angústia com o seu ofício. Por este motivo,
recortamos das falas todos os trechos que discorriam sobre as vivências profissionais e
o modo como elas eram experienciadas. Após leitura densa delas chegou-se a três
categorias principais: condições de trabalho, vivências de prazer e de sofrimento com no
trabalho.
RESULTADOS
SOBRE AS CONDIÇÕES DE TRABALHO
Para efeito de delimitação, entendemos aqui por condições de trabalho, as diferentes
consequências que um trabalhador pode sofrer em função da execução de seu ofício,
podendo ser em decorrência do aparato físico disponível, da organização e
dimensionamento do trabalho ou ainda da relação contratual estabelecida (salário,
benefícios, bônus).
Neste sentido, é importante retomar que todas as pessoas entrevistadas relataram
experiência no ensino do Karate em diferentes bairros da cidade, tanto aqueles
considerados classe alta ou média alta, quanto os de classe média ou que vivem em
situação de extrema pobreza. Há, no entanto, um fio condutor quando se pensa em
condições de trabalho à luz das diferentes realidades. Ainda que a condão
socioeconômica seja extremamente desigual entre os bairros, este é minimamente
convertido em melhores condições de trabalho aos professores: Para o aluno eles se
apresentam de uma maneira, que é melhor academia, o melhor espaço, mas
internamente conversando é só a redução de custo. Chegaram até na última academia
que eu trabalhei, na reunião, chega lá e falar da água que os alunos bebiam. A água é
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essencial, o cara está pagando mensalidade. E eu vou defender o meu aluno”.
(Professor R. 47 anos. 12 anos como professor de Karate. Fevereiro de 2019).
Ao relatar o que ocorre em academias localizadas em bairros de classe média o
professor R. aponta o descompasso entre o que é apresentado ao aluno e o que de fato
ocorre nos bastidores destes espaços. O controle exercido pelos proprietários sobre o
seu trabalho, as reuniões de alinhamento para contenção de gastos que chegam ao
limite do suportável, versando até sobre o improvável: o racionamento da água bebida
pelos alunos. Neste sentido a fala de H. é igualmente impactante, quando se analisa a
discrepância entre as condições de trabalho, ao analisar bairros com alto poder aquisitivo
e outros que vivem em pobreza ou extrema pobreza: A diferença quando você chega
num bairro que tem um poder aquisitivo alto, que hoje em Cotia nós podemos falar da
Granja Viana, é que quando você chega lá, e a pessoa olha para sua cara te esnobando.
A partir do momento que você entra como várias vezes eu fui dar aula: Você veio a pé?
Você não tem carro? Como você não tem carro?’ ou ele chega lá: ah, me dá aula
particular, eu te dou um carro, não tem problema, é para você vir. Ele mostra que tem
condição de comprar você inúmeras vezes. Mas ele não entende que você compra o
Curriculum, não o caráter. (Professor H. 30 anos. 16 anos como professor de Karate.
Fevereiro de 2019)
Como tolerar o intolerável? Para Dejours (2006) um trabalhador invisibilizado não suscita
a indignação, cólera ou ação coletiva. Isso só poderá ocorrer quando se estabelece uma
associão entre a percepção de sofrimento alheio e a convicção que este sofrimento
resulta em uma injustiça (DEJOURS, 2006, p. 19). Concordando com o autor
entendemos que nem todos partilham do mesmo ponto de vista, segundo o qual as
vítimas da pobreza, excluo social, desemprego, são também vítimas de uma injustiça
social ampla. Para aqueles que naturalizam o mal, na fala do professor H. os moradores
dos bairros da Granja Viana e Alphaville (que fica em outra cidade), o sofrimento é uma
adversidade e, obviamente, não reclamação reação política. Vê-se aqui também que, tal
como discorre Dejours (2006), por condições de trabalho, há não somente o espo
físico e os contratos de trabalho, mas as relações subjetivas implicadas neste processo.
As estruturas físicas também colocam em xeque a segurança dos(as) alunos(as) e
exercem significativa pressão nos professores: Teve 6 anos que eu dei aula como
voluntaria em escola municipal, só que dava aula em local externo. O chão era de barro,
de terra e de pedra. Então você não podia ficar descalço, porque se machucava. Era
mais de 100 alunos, uma turma enorme. E eu dava aula lá, sempre com a promessa de
que ia abrir uma sala e um tatame, e aí passou 1 ano, passaram 2, 3, eu fui conseguindo
graduar a turma, só que chega uma época que para graduar você precisa saber cair, por
exemplo, e a falta de tatame inviabilizava. As condições de lá não eram favoráveis.
(Professora E. 44 anos. 15 anos como professora de Karate. Fevereiro de 2019).
Na fala da professora E. as estruturas físicas colocaram em xeque a segurança dos
alunos sob sua responsabilidade, o que acabou por exercer significativa pressão na
mesma. Ainda que a professora tentasse criar novos modos de trabalhar, que é um
importante elemento para a manutenção ou desenvolvimento da saúde mental
(DEJOURS; BARROS; LANCMAN, 2016), a falta de reconhecimento e de sinceridade
da instituição, para a criação de um local físico mínimo para o desenvolvimento das
aulas, foi ao longo dos anos se tornando insuportável.
Em nome de um ideal de transformação social, muitos professores se vinculam aos
inúmeros projetos sociais voluntários pela cidade. Buscando dar a sua contribuição”
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para o desenvolvimento de determinado território. No entanto, a atuação aparentemente
inofensiva e que poderia se ligar a noção de bem-estar psicológico, tanto dos
professores-voluntários, quanto dos alunos receptores deste trabalho, podem disfarçar
as violências e o abuso das instituições: Agora a decepção que eu tive assim no Karate,
é quando você vai atrás de um político, e você vai organizar um torneio, igual aconteceu
comigo, fui atrás de um certo político aqui de Cotia:será que você poderia ajudar? Eu
vou organizar um torneio para as crianças de trabalho social, eu vou precisar de umas
medalhas e tal...Não são tantas medalhas ou tantos troféus assim. Aí o político falou
assim: poxa G. você pede demais! Eu falei: político, esse evento, não é para mim, é um
trabalho que vocês poderiam estar fazendo para essas criaas e o fazem..
(Professor G. 56 anos. 40 anos como professor de Karate. Março de 2019).
As implicações da falta de organização e de engajamento da geso pública
concomitantemente com os limites que a falta de recurso financeiro impõe, podem
acarretar a sobrecarga, assim como as dificuldades em se manter o equilíbrio psíquico.
Esse professor, preterido pela possibilidade de reconhecimento simbólico no trabalho,
perde as vias de gratificação que o trabalho possibilita: a gratificão pelo julgamento de
utilidade e pelo julgamento estético.
Para Dejours (2011) é o julgamento estético que confere o reconhecimento de quem
trabalha por seus pares, sendo severo e exigente, mas que oferece um sentimento de
pertencimento a um coletivo que só pode ser proferido pelos colegas de ofício. Já o
julgamento da utilidade é ainda mais evidente, já que é realizado não somente pelos
superiores (neste caso o mestre da modalidade praticada de Karate), mas também pelos
alunos, pais e sociedade de um modo geral: Agora a prefeitura, por ser o ano antes das
eleições, eles estão mais interessados, então eu fiz um pedido de equipamento, eles me
disseram que a semana que vem entregam, mas é bem mais complicado. Em prefeitura
eles não ligam muito, são só números. A hora que vai chegando à eleição aí é
interessante, 52 alunos. Então são 52 famílias, né?”. (Professor L. 39 anos. 28 anos
como professor de Karate. Março de 2019).
As seduções que são feitas na campanha eleitoral, parecem usar da legitimidade do
trabalho voluntário e engajado socialmente dos professores para potencializar os seus
códigos, linguagens e aproximações com a comunidade. Ainda assim e, mediante o
cenário de tamanha falta de estrutura, não é possível renunciar às poucas benesses que
são típicas do período eleitoral. Resta aos professores a dose de cordialidade necessária
para captar os parcos recursos e a esperança de um novo cenário com uma nova
gestão.
SOBRE AS VIVÊNCIAS DE SOFRIMENTO
Segundo Dejours (2012) trabalhar é enfrentar o fracasso, já que os trabalhadores são
colocados frente a frente com a necessidade de realizar uma determinada atividade, e
sua possibilidade de não conseguir realizá-la, de não saber fazê-la, de não dar certo. Por
esta razão, a psicodinâmica do trabalho se debruça em duas vertentes perante este
sofrimento inerente ao trabalho. Na primeira, teríamos o sofrimento criador, que
possibilita a engenhosidade e os novos modos de fazer. Tal sofrimento é chamado de
sofrimento criativo. Já na segunda via, teríamos o sofrimento patogênico, vivenciado pelo
trabalhador quando a sua relação com a organização do trabalho e/ou fatores externos
impede-o de exercer seu ofício e utilizar sua criatividade (DEJOURS, 2011).
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Dejours, Barros e Lancman (2016) destacaram que os esforços para realizar uma
atividade, se reconhecidos, conferem ao trabalhador a possibilidade da realização de si
mesmo, gerando vivencias de prazer. Contudo, quando não há o reconhecimento (seja
dos pares, da hierarquia ou dos subordinados) o sujeito fica exposto ao sofrimento
patogênico.
Três importantes entraves estão postos na fala dos professores, geradores de
significativo sofrimento. O primeiro deles é vinculado as questões políticas, de falta de
investimento no esporte, no lazer e na educação, versando sobre a exploração dos
projetos sociais em épocas de campanha eleitoral (como apresentado anteriormente). O
segundo entrave é com relação a relação das academias (de ginástica ou especializada
em lutas) e escolas (privadas, aulas direcionadas para o blico infantil) perante a gestão
dos professores. Sobre este segundo foco temos os seguintes apontamentos: Nas
academias eles querem ver o resultado, e o resultado que eles querem ver é financeiro
e não resultado de transformação. (Professor R. 47 anos. 12 anos como professor de
Karate. Fevereiro de 2019). Já o professor H. aponta que: Porque quando você está
dando aula numa academia o cara quer saber quantos alunos você tem e como você
vai catar mais atletas, mais alunos. (...). Daí eu não posso falar que ele (o aluno) não
está preparado, se ele vai trazer retorno financeiramente para a academia. (...) em
academia, para ganhar mais tem que ter mais aluno. Essa é a linguagem. Teve esse
desconto aquifulano parou de vir, se você não tem condições de manter esse aluno,
você não tem condições de manter esse salário, é bem isso, é bem financeiro, é a base
de troca. E a qualquer momento que você seja flexível, você sai perdendo, é muito difícil.
(...) Teve academias que eu cheguei e o recebia um bom dia do dono. (Professor H.
30 anos. 16 anos como professor de Karate. Fevereiro de 2019).
Tal vivência narrada pelo Professor H. é convergente a situações de assédio moral. Para
Heloani e Barreto (2018) é preciso enfatizar a violência presente nos assédios, seu
tratamento judicial; suas práticas na administração, na intensificação do trabalho; seus
elementos causais, seus riscos psicossociais, sua história, suas expressões em
diferentes contextos. São nuances que muitas vezes passam desapercebidas aos
trabalhadores, gerando culpabilização, solidão e adoecimentos diversos.
Convergente a este relato temos a fala da professora E.: Eu dou aula em 4 escolas, três
delas estão me cobrando uma porcentagem sobre o meu trabalho, que eu acho alta, de
20% a 25%. Uma delas eu uso ainda a energia elétrica, porque a aula é mais a noite,
então a luz eu uso, eu acabo usando por causa do horário da aula, que é das 5h30 às
6h30. E outra, eu só uso o local que ele fica à disposição o tempo todo, ele não é usado
pelos alunos, é um local já para aulas de Karate, sica e balé. Eu uso esse local, não
uso energia, não uso luz, mas eles me cobram 20%. Então uma escola está cobrando
25% e essa outra escola, cobrando 20% sobre o meu trabalho. O que aconteceu? O que
eu estava ganhando o ano passado, mesmo eu aumentando o valor da mensalidade,
eu vou ganhar menos que o ano passado, por causa dessa cobrança que as escolas
estão fazendo em cima da mensalidade. (Professora E., 44 anos. 15 anos como
professora de Karate. Fevereiro de 2019).
Nestes retratos, vê-se a extrema precariedade, as pressões para a busca e a
manuteão do aluno em sala, as contradições da organizão de trabalho e a ausência
de regulamentação do ofício (nenhum professor tinha a carteira profissional assinada ou
contrato registrado). O cenário é de total abandono de fiscalizações laborais. Tal
realidade de sofrimento, de falta de rede de apoio e fiscalizões é convergente a outros
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tantos campos de atuação, como já mapeados pela Psicodinâmica do Trabalho
(BUENO; MACÊDO, 2012; DEJOURS, 2017; PONTES et al., 2020).
Quando se pensa na atuação em projetos sociais o sofrimento se debruça nas limitações
impostas pela falta de condições mínimas estruturais. Atuar em projeto social é muito
mais do que doar sua força de trabalho, é também ter despesas diversas extras, tal como
expresso na fala a seguir:O meu trabalho era voluntario, eno, alguns alunos que eu
sentia que gostavam muito, que se esforçavam muito, eu pagava para eles para eles
poderem fazer os exames. E tinha muita gente que doava kimono, e daí a doação de
kimono eu segurava até a época de fazer exame. (Professora E., 44 anos. 15 anos
como professora de Karate. Fevereiro de 2019).
Em razão disso, tem-se sempre uma fala reivindicatória, ainda que sempre
acompanhada de feições tristes e com doses de desesperança: A própria cidade em si,
ela o se preocupa tanto com esporte, ela não tem uma visão tão ampla com o esporte
como a gente pensa, então eu acho que as crianças têm pouco espo. Esse projeto
que a gente tem a gente sobrevive, a gente tenta manter, mas já pensou se tivesse o
apoio de um governo? De uma prefeitura ou algo assim que pudesse estar caminhando
junto com a gente?. (Professor M. 43 anos. 14 anos como professor de Karate.
Fevereiro de 2019).
Há ainda um entrave da ordem do ensino em si, da didática, da disseminação do
conhecimento: Ter a responsabilidade de dar aula, no começo, foi bem difícil, até eu me
acostumar a ter uma linguagem diferente. Porque uma coisa que eu identifiquei, é que
realmente você começa a aprender mais quando você tem que ensinar, porque começa
a vir perguntas novas, as dúvidas dos seus alunos, muitas vezes são as nossas também,
só que quando é uma dúvida particular, pelo menos para mim eu não buscava saber o
que era. Saber por que o soco é de uma forma, porque não pode ser de outra forma.
Mas , quando seus alunos começam a te perguntar, você fica naquela obrigação, e de
saber, poder passar a informação correta, é uma outra responsabilidade. (Professor
R.H. 32 anos. 4 anos como professor de Karate. Fevereiro de 2019).
-se aqui que não basta a aplicão fria das técnicas de Karate, já que se trata de um
trabalho em que o contato humano é essencial, que requer sensibilidade, liderança e
conhecimento. O sofrimento narrado pelo professor talvez também decorresse do fato
de sua formação não ser em Educação Física, mas sim em Administração de Empresas,
tendo até então pouco manejo com a prática de ensino. Além disso, o referido professor
gerenciava um empreendimento familiar, fato que dificultava seu engajamento com a
prática do ensino e sua performance nas competições de Karate. Vive-se, neste último
caso, as limitações de seu saber técnico que não possibilitava traduzir na prática de
ensino a existência do saber prático construído através da experiência.
SOBRE AS VIVÊNCIAS DE PRAZER
Habitualmente se atribui a noção de prazer a associação entre a descarga gerada após
uma situação de aumento de tensão. Nessa concepção, o prazer viria como uma
situação desejada, ou a ser conquistada, como um estado de plenitude. No entanto, ao
se pensar tal tetica associada ao trabalho é importante entender que as vivências de
prazer com o ofício estão inseridas dentro de um processo contínuo de invenção de
novas regras. Da possibilidade em se poder atuar ativamente no seu trabalho, colocando
a inteligência prática em ação. Nesse sentido Dejours, Barros e Lancman (2016),
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apontam que quando a relação entre o trabalhador e a organização do trabalho permite
o livre jogo do funcionamento psíquico do sujeito, o trabalho consegue ocupar um lugar
estruturante, que propicia o equilíbrio pquico e construção permanente da identidade.
Se nos chama a ateão as condições precárias de trabalho ou ainda as inúmeras
dificuldades dos professores para a execução do seu ofício, destaca-se com semelhante
vigor, nas entrevistas aqui realizadas, o prazer com o ensino do Karate, sobretudo aquele
vinculado aos projetos sociais: Desde o começo tem uma academia que eu estou, eu
estou há 12 anos lá. Então eu tenho liberdade, eu já deixo bem claro para os donos da
academia que o trabalho tem que ser feito do meu jeito o é, senão eu não consigo
desenvolver, senão eu prefiro não trabalhar. (Professor L. 39 anos. 28 anos como
professor de Karate. Março de 2019).
Nessa mesma direção o professor M. nos aponta:(...) se eu for trabalhar de personal,
se eu for trabalhar numa academia eu tenho que reservar um tempo para o meu projeto.
Se eu for dar aula em algum condomínio, personal em alguma empresa, eu tenho que
separar um tempinho para fazer os meus treinos de Karate, então está sempre envolvido
comigo, como se fosse o número 8, um caminho sem fim, acho que é nisso que eu
resumo, minha história no Karate. (Professor M. 43 anos. 14 anos como professor de
Karate. Fevereiro de 2019). Ainda nessa direção o professor R. nos agrega: (...) as
meninas que eu dava aula lá na ONG, tinham sido molestadas, tinham sido estupradas,
e aí eram tímidas, retraídas, e quando eu notava, lá vinha na ONG, os carros do
ministério público: O que é que você faz com elas professor. Como conseguiu essa
transformação?. Daí eu falava,Quem faz é o esporte, eu sou só o professor delas!. E
é por isso que eu acredito, o esporte, a luta e na transformação. (Professor R. 47 anos.
12 anos como professor de Karate. Fevereiro de 2019).
-se nessas falas que os professores não se limitam à execução estrita das
prescrições, isto é, a disseminação do conhecimento, ou a manutenção dos alunos em
sala. Eles estão a todo momento se reajustando a prescrição, transformando as
normativas e usando toda a sua inteligência prática para que o trabalho seja executado.
Temos aqui o claro comprometimento da subjetividade com o bem-fazer no trabalho, por
isso concebemos que este jamais pode ser neutro diante do eu e da sde mental
(DEJOURS, 2012). Assim, o zelo no trabalho está diretamente associado ao
engajamento afetivo da subjetividade em conflito com as realidades laborais, tão
duramente vividas (DEJOURS, 2017).
Convergente a esta discussão Segnini(2020) localizou em sua análise o trabalho de
bailarinos e atletas de rendimento, permeados em seus cotidianos pelo zelo e
engajamento com a atividade. Para a autora é o corpo que labuta cotidianamente nesses
contextos: o corpo biológico, técnico e erógeno; sendo este último palco da subjetividade,
do sofrimento e do prazer. Para a autora, bailarinos e atletas são assim trabalhadores do
corpo, que implica um longo e doloroso trabalho que, normalmente, se inicia na infância
e pressupõe um engajamento pleno com a atividade.
Observa-se assim que a construção singular de trabalho dos professores, passa pela
sua relão com o outro, entendido aqui com o coletivo do qual es inserido, igualmente
consigo próprio, o que requer a constante e intensa mobilização psíquica.
DISCUSSÃO
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Diante do percurso investigativo realizado até aqui sobre as condições de trabalho e
equação do sofrimento e do prazer, na atuação dos professores de Karate na cidade de
Cotia, pode-se dizer que muitas são as exigências colocadas pelas academias, escolas,
alunos, projetos sociais. Assim como os abusos feitos em épocas eleitorais para captar
votos, se beneficiando de uma atuação longa e da dura realidade enfrentada pelos
trabalhadores.
As realidades aqui apresentadas contribuem para que estes professores fiquem atentos
à necessidade urgente de articulação entre si, dos modos de pensar coletivamente sua
categoria profissional, unindo forças para além da disseminação técnica dos movimentos
do Karate ou da filosofia em si. Daí a importância das relações sociais entre os pares,
assim como tamm o fomento de um olhar permanentemente crítico sobre as
exigências que lhe são colocadas pelos diferentes contextos de trabalho. Por meio desse
olhar, é possível compreender que a subjetividade está fundamentalmente presente no
cotidiano do professor, tendo em vista a natureza de sua função, diretamente vinculada
à formão educacional dos(as) alunos(as).
Podemos considerar que a falta de condições nimas e estáveis de trabalho,
acarretam, por vezes, maiores expressões de sofrimento, se sobrepondo ao prazer com
o ofício. Ainda assim, no final das contas, algo escapa da lógica dura do sofrimento, já
que os professores, em sua maioria, compreendem um papel social vigoroso e tentam
costurar novos modos de contornar as mazelas encontradas. Esse enfrentamento fica
visível quando consideramos que a maioria dos entrevistados possuíam mais de dez
anos de experiência na função, tendo vivido toda uma série de problemas e assédios,
mas que, no final das contas insistiram nesta carreira.
O distanciamento da psicologia do trabalho no contexto do esporte reforça o não
reconhecimento de que esta é uma atividade produtora de valor ecomico, que
ultrapassa os regimes formais de emprego ou às organizações, com suas demandas
por performance, que pode propiciar prazer e sofrimentos de diversas ordens. Ao se
apropriar deste debate, em uma engajada postura ético-política, visamos explicitamente
contribuir para a transformação destes contextos laborais, propiciando o questionamento
das tensões inerentes à relação capital-trabalho, posta no mercado que envolve o
esporte.
Por fim, destacamos aqui a importância de considerar o quanto o processo de
disseminação do conhecimento envolve uma dimensão política, aliada a dimensão
pedagógica, tanto no aspecto individual, quanto coletivo. Por esta razão, este artigo
também convida a Psicologia do Trabalho a unir forças à Psicologia Social do Esporte,
visando a compreensão e o enfrentamento coletivo, das realidades laborais que
envolvem o contexto esportivo e da atividade física, colocando tais pautas na necesria
e urgente ampliação e diversificação da agenda de pesquisas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o auxílio dos pressupostos epistemológicos e metodológicos da psicodinâmica do
trabalho foi possível compreender as principais questões que se vincularam as
condições de trabalho, as vivências de prazer e de sofrimento com o trabalho em
professores de lutas em uma cidade metropolitana do estado de São Paulo.
Nessa pesquisa foi possível notar que o trabalho dos professores estava rodeado por
dificuldades básicas quanto a uma estrutura física mínima, que pudesse garantir a
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integridade dos mesmos e de seus alunos. As condições de trabalho enfrentadas pelos
professores foram descritas como precárias, tanto em termos dos espaços físicos, como
dos demais elementos mínimos (como água para beber). Como paliativo, esses
trabalhadores utilizam sua inteligência astuciosa, buscando modos de lidar com a falta
de recursos, os problemas da gestão, da falta de investimentos nos projetos sociais e
dos assédios vividos nos bairros mais abastados.
Notou-se uma intensa mobilizão psíquica dos professores, sobretudo quando eles se
identificam pelas necessidades dos alunos que adm de situões sociais críticas. Esse
funcionamento gerou desgaste e adoecimento, sendo estes aspectos quase sempre
negados por eles.
Esta investigação científica também evidencia lacunas, abre espaços para novas
pesquisas e reflexões acadêmicas, considerando o mesmo campo trabalho no
contexto do esporte, seja ele voltado para o lazer, bem-estar, formação educacional ou
no alto-rendimento - fundamentadas em perspectivas críticas do trabalho. Salienta-se
aqui a necessidade de se pensar as questões denero e de raça, bem como futuros
aprofundamentos que versem no assédio moral que pode ocorrer em diferentes
situações.
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