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DOI: https://doi.org/10.35699/2238-037X.2021.21992
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/
RUMO A UMA FORMAÇÃO SOCIAL DO ENGENHEIRO: CRÍTICA ÀS
NOVAS DIRETRIZES CURRICULARES DE ENGENHARIA
1
Towards a Social Formation of Engineers: Criticism of the New Engineering
Curriculum Guidelines
ARAVENA-REYES, José
2
RESUMO
As novas Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Engenharia o uma recente conquista dos
setores governamentais, industriais e acadêmicos do Brasil. O amplo acordo alcaado revela a
existência de uma perspectiva consensual de sociedade que, embora o explicitada na normativa,
aparece de forma autoevidente. As novas diretrizes parecem equacionar vários endêmicos problemas
da formação, ao mesmo tempo em que apontam para outras demandas oriundas da atual realidade, a
qual exige a formação de mais e melhores engenheiros mediante, entre outras medidas, o
desenvolvimento de compencias soft skills. Este artigo propõe uma discussão crítica no espaço
estabelecido entre o modelo de sociedade que implicitamente consideram as diretrizes e as demandas
por uma ampla formação social dos engenheiros, para favorecer o desenvolvimento adequado dessas
compencias, ditas comportamentais. Se argumenta que, sem uma formão social ampla, a formação
do engenheiro pode ajudar a consolidar um modo cognitivo atrofiado, impedindo à Engenharia Nacional
promover seus pprios caminhos. Conclui-se sobre a necessidade de uma formão social que
favoreça o surgimento da inventividade engenheiril como forma de ampliar as possibilidades de
promover modos de vida alternativos aos modos de vida hegenicos que, implicitamente, promovem
as novas diretrizes.
Palavras-chave: DCN. Instria 4.0. Formação Social.
ABSTRACT
The new National Curricular Guidelines for the Engineering Undergraduate Course are a recent
achievement of the governmental, industrial and academic sectors in Brazil. The broad agreement
obtained reveals the existence of a consensual perspective of the society that, although not explained in
the normative text, appears in a self-evident way. The new guidelines seem to solve several formative's
endemic problems, while are pointing to other demands arising from the current reality, which requires
the formation of more and better engineers through, among other actions, the development of soft skills.
This article proposes a critical discussion in the space established between the model of society implicitly
considered by the guidelines and the demands for a broad social formation of the engineers, in order to
promote the adequate development of these competencies. It is argued that, without a broad social
formation, the formation of the engineer can help to consolidate a stunted cognitive mode, preventing
National Engineering from promoting its own paths. It is concluded about the need for a social formation
that encourages the emergence of engineering inventiveness as a way to expand the possibilities of
promoting alternative ways of life from the hegemonic one that, implicitly, the new guidelines promote
Keywords: DCN. Industry 4.0. Social Formation.
1
Este texto não foi apresentado ou publicado, anteriormente, em encontros e/ou outros eventos científicos; não teve financiamento de
órgãos e/ou agências de fomento e não é resultante de pesquisa cadastrada.
2
Mestre e Doutor em Engenharia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Engenheiro Naval pela Universidad Austral de Chile,
atualmente Professor Titular da Faculdade de Engenharia da Universidade Federal de Juiz de Fora, ministrando as disciplinas Engenharia
e Sociedade, Gerenciamento de Projetos e Projeto e Desenho Auxiliado por Computador. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas em
Educação e Tecnologia - NETEC, Pós-doutorando em Filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná. E-mail:
jose.aravena@ufjf.edu.br.
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INTRODUÇÃO
As novas Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Engenharia (BRASIL, 2019b)
são resultado da articulação de um vasto conjunto de interesses representados tanto por
instituições do setor público quanto do setor privado. O esforço de quase cinco anos se
traduz em um texto que embasa uma proposta de novas diretrizes que fora encaminhada
pela Associão Brasileira de Educação em Engenharia ABENGE ao Conselho
Nacional de Educação CNE. A leitura da resolução final mostra que a proposta
encaminhada foi de grande ajuda para a elaboração do texto final sancionado pelo
Ministério da Educação. Dentre as entidades que participaram da ampla articulação
encontram-se o Conselho Federal de Engenharia e Agronomia CONFEA, a ABENGE,
a Confederação Nacional da Indústria CNI, representada pelo Movimento Empresarial
pela Inovão MEI e a própria comissão do CNE. O histórico das articulações obriga a
pensar no caráter representativo da escuta que fora empreendida, mas alerta, também,
para um amplo acordo com base em premissas e perceões de mundo mais ou menos
consensuais que parecem sustentar, implicitamente, uma ideia parcial da realidade
contemporânea.
O que as diretrizes estabelecem como horizonte é uma melhoria dos processos
formativos face às atuais condições dos sistemas produtivos globais. As novas diretrizes
substituem as anteriores (BRASIL, 2002b) que pautaram, até recentemente, a dirão
formativa da Engenharia Nacional. Poder-se-ia pensar em um avanço, uma nova etapa
de amadurecimento, porém, existem questões que não se erguem sobre uma
perspectiva temporal: há alguns problemas no processo formativo da Engenharia que
parecem endêmicos. Depois de todos estes anos pode-se constatar que os esforços
devotados a implantar as diretrizes anteriores não foram suficientes para tratar da
reteão e de certa inadequão metodológica no ensino. Dessa perspectiva, mais do
que um avanço, parece haver certa reorientão na direção da formação em
Engenharia. Nas diretrizes 2002 o foco era a qualidade do processo de ensino; já nas
diretrizes 2019 o foco passa a ser o atual cerio das grandes transformações globais.
Embora não seja simples estabelecer se houve ou não avanço em alguns dos aspectos
formativos considerados nas diretrizes, isso não significa uma crítica radical às antigas
diretrizes, pois não é possível identificar explicitamente alguma análise sobre elas.
Nesse sentido, mais do que avanços, as novas diretrizes parecem marcar essa espécie
de reorientação necessária para adequar a formação dos engenheiros aos novos
desafios da sociedade atual: os problemas formativos continuam a ser mais ou menos
os mesmos, mas a realidade mudou, e é ela que deve ser considerada agora como
referencial significativo. Isto implica, sobretudo, abandonar uma perspectiva de melhoria
do puramente operacional do processo formativo para enfatizar o estabelecimento de
um perfil diferente e adequado aos novos tempos que, de forma similar, parece estar
plenamente orientado às atuais demandas da sociedade por um novo profissional.
O estabelecimento de um perfil profissional também não é algo novo, senão algo que
agora é explicitamente direcionado para garantir a coerência entre a parte operacional
do processo formativo e o perfil profissional almejado. De fato, no perfil anterior também
existia uma adequão à realidade da época (BRASIL, 2002b).
Considerando-se que, para ver seus primeiros frutos serão necessários, no nimo, oito
anos (aproximadamente dois ou três na implantação e outros cinco para as primeiras
turmas formadas, sem considerar aspectos de uma cultura institucional conservadora e
resistente às mudaas), as antigas diretrizes deveriam ter sido adequadas para a
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segunda década do século XXI. Assim, mesmo quando é natural que as novas diretrizes
incorporem as deficiências e limitações ou mesmo a identificação dos equívocos que as
anteriores promoveram durante estes quase vinte anos de vigência, parece que as
novas diretrizes tentam corrigir um tipo de problema que já existia nas suas
predecessoras.
Pensar as diretrizes como um puro processo natural de mudança resulta um
evolucionismo um pouco ingênuo. As diretrizes parecem incorporar uma crítica pouco
explícita às antigas diretrizes, e ainda, de forma implícita em relação aos
desdobramentos sociais que elas tiveram no interior das instituições formadoras,
reproduzindo um dos endêmicos problemas da educão em Engenharia que
fundamentam a crítica social (MITCHAM, 1998). Inúmeros estudos e textos críticos
apontam diversos problemas nos processos formativos da Engenharia nacional nas
últimas cadas, mas argumentando maioritariamente desde o contexto operacional:
crítica das metodologias de ensino, estrutura curricular ou infraestrutura material. Com
isso, tem-se a impressão de que, nas diretrizes, os problemas dos processos formativos
são bem equacionados. Porém, essa percepção exige certo cuidado, tanto em relação
à antiga quanto à nova resolução porque se fundamentam em pelo menos duas
premissas questionáveis: a premissa metodológica e a normativa. A primeira consiste
em pensar que o principal problema que influencia nos altos índices de retenção e
evasão dos estudantes tem origem nas práticas conservadoras de ensino, enquanto a
segunda aponta para a distância entre os projetos pedagógicos dos cursos e as reais
práticas que acontecem na vida institucional, as quais parecem não se pautarem nas
orientações nem das diretrizes nem dos projetos pedagógicos. Com isto, é importante
alertar para o fato de que essas premissas estabelecem um solo epistemológico que
ordena o entendimento do problema da formação em Engenharia e aponta,
consequentemente, para a sua solão: mudaa nas formas metodológicas e
burocrático-estrutural dos cursos, desconsiderando as estruturas micro e macro políticas
que se instauram no interior dos campi em função da implantação das próprias solões.
Poder-se-ia pensar que o papel das diretrizes é exatamente o de ordenar esses aspectos
operacionais dos cursos (formato curricular, metodológico, burocrático-estrutural),
objetando assim a crítica social. Todavia, tal afirmação é inconsistente dado que não
considera a dimensão social e política que outorga ao engenheiro um papel de extrema
relevância e poder para influenciar os rumos da sociedade (FOUREZ, 1995). Dessa
perspectiva, as diretrizes deveriam ser sempre vistas como um conjunto de sugestões
que ordena tanto os aspectos operacionais do curso quanto a dimensão política dos
profissionais como agentes ativos da vida em sociedade.
Nesse sentido as novas diretrizes cumprem seu papel, pois apresentam um par de
mudanças substanciais que colocam a Engenharia no caminho de uma transformação,
mas também de uma transformação específica, alinhada com uma categoria de
sociedade autoevidente, que não precisa de qualificativos, já que está subentendida no
texto normativo e que, portanto, não requer de explicações nem de questionamentos.
Este entendimento autoevidente da ordem social e, obviamente, do seu próprio devir é
uma das características que tem ordenado o perfil do Engenheiro tanto nas antigas como
nas novas diretrizes.
A REALIDADE INDUZIDA NAS NOVAS DIRETRIZES
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As diretrizes 2019 obedecem a uma ampla articulação que concluiu sobre a necessidade
de promover mudanças em duas direções: a) aumentar a oferta de profissionais, e b)
elevar a qualidade dos processos formativos. Tais preocupações se resumem no slogan
formar mais e melhores engenheiros.
Segundo o parecer, entende-se que os setores envolvidos com a Engenharia nacional
desejam mais e melhores engenheiros e, dado que há um juízo de valor é importante
estabelecer o referencial sobre o qual devem operar as melhorias: mais, é uma
quantidade maior de engenheiros formados em relão ao indicador atual e, melhor,
significa engenheiros formados, mediante o desenvolvimento de soft skills, com um viés
mais humanista e empreendedor do que anteriormente. Em relação à demanda por uma
sólida formação técnica, a Engenharia sempre optou por ela, como pode mostrar
qualquer análise da alta porcentagem desse tipo de conhecimentos nos conteúdos
elencados nas diretrizes 2002.
A questão aqui levantada inaugura um tipo de discussão que não tem sido parte dos
grandes argumentos que permeiam os debates sobre as diretrizes. A dimensão de valor
dada à profissão também parece ser autoevidente e, em nenhum lugar, se informa
detalhadamente sobre a dimensão social do que devemos entender por esse estágio
aprimorado da Engenharia ou pela demanda de mais engenheiros. A condição social
autoevidente do porquê se deveria pensar em mais e melhores engenheiros reside em
uma leitura implícita de um modelo de sociedade que não faz parte dos questionamentos
das diretrizes. Com isto, por mais que seja representativa a inteão de caracterizar o
processo de elaboração das novas diretrizes, o que subjaz na diversidade de atores é
uma mesma e única perspectiva da ordem social e econômica vigente. A ideia de
participação parece se sustentar num mero mecanismo burocrático que, de fato, não
reconhece as diversas fontes de pensamento que existem em torno da tecnopolítica, e
que precisam ser consideradas para constituírem uma ampla ideia de país.
O intuito de trazer este tipo de discussão crítica em torno das novas diretrizes não é
destruir o esforço coletivo que levou ao anunciado consenso, senão evidenciar a forma
como se constitui a realidade que embasa tais consensos e que determina a direção
formativa dos engenheiros no Brasil, sobretudo quando não se tem certeza de quais
caminhos tomará a sociedade face aos recentes episódios pandêmicos.
As discussões e textos que antecederam a publicação da resolão do MEC são uma
fonte importante de informações, pois nela está o raciocínio que sustenta essa visão
parcial de mundo para a qual se redefine o papel do engenheiro. Por exemplo, o texto
introdutório que inicia o relatório do parecer das diretrizes (2019a) opera como o contexto
sobre o qual se ergue uma visão de mundo para a formação de engenheiros no Brasil;
uma espécie de prolegômenos para o correto entendimento das sugestões incorporadas
na resolução final. Nesse sentido, pode-se observar o motivo de determinados assuntos
aparecerem enquanto outros não formam parte da nova normativa.
Sem dúvida, pode-se concordar com a ideia de que a realidade mudou e exige uma
adequação dos processos formativos ao novo cenário, mas também se deve ter clareza
sobre quais são as referências consideradas para enunciar a direção de mudança: aquilo
que aqui se indica como a visão de mundo incorporada. Por exemplo, no interior dos
campis universitários algumas práticas não mudaram, e o fato delas continuarem a se
reproduzir indica que alguns aspectos que foram caracterizados no passado como
dimensões para a ação de melhorias não tiveram resultados satisfatórios, o que não
significa que a ação reparadora foi ineficiente, pois nessa situão também cabe pensar
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que o enunciado do problema não estava correto. De forma similar, ao se afirmar que o
problema da retenção é de ordem metodológica, fica imediatamente fora do campo
problemático tanto a dimensão micropolítica das práticas institucionais quanto os motivos
do rígido modelo mental que existe em grande parte do corpo docente. Ataca-se o
problema promovendo-se capacitações em metodologias que dificilmente terão
sucesso, uma vez que o problema, mais do que configurar uma desinformação ou falta
de competência técnica em metodologias de ensino, está nos componentes
psicossociais da cultura institucional das faculdades de Engenharia (ARAVENA-REYES,
2014).
A realidade mudou, e a inteão das diretrizes é formar mais e melhores engenheiros
para um mundo que é considerado (e talvez compreendido) parcialmente, definindo,
mais do que orientações neutras para a formão dos engenheiros, uma condição muito
específica da realidade futura: as diretrizes dirigem a Engenharia nacional para um
mundo específico que incorpora valores que entram em franco confronto com muitas
outras perspectivas de mundo para as quais a Engenharia tamm poderia contribuir.
A realidade mudou, e a inteão das diretrizes é se adequar a essas mudaas. No
entanto, um exame detalhado do que se propõe nelas pode indicar a qual modelo de
mundo esta nova engenharia serve.
COMPETÊNCIAS DOS NOVOS E ANTIGOS PROBLEMAS DA FORMAÇÃO
PROFISSIONAL
Recentemente, um grupo de pesquisadores produziu um interessante conjunto de
contribuições sobre as novas diretrizes (OLIVEIRA, 2019a). Entre essas contribuições
encontra-se um estudo entre as antigas e novas diretrizes que apresenta um quadro
comparativo com as principais mudanças incorporadas às novas diretrizes, dentre elas,
a concepção de curso (baseado em compencias em vez de conteúdos), os campos
de atuação (engenheiro inovador, empreendedor e professor) e o perfil do egresso
(agora mais abrangente). Especificamente em relação ao novo perfil, Oliveira escreve:
Ao inserir a vio holística, a aptidão para a pesquisa, a atuação inovadora e
empreendedora, a atenção ao usuário, além da preocupação com a cidadania e a
sustentabilidade, a nova resolução atualizou o perfil do egresso em acordo com as atuais
necessidades de formação em Engenharia (2019, p. 80, grifo nosso).
Esta afirmão é extremamente relevante, pois sintetiza todo o esforço empreendido
com as novas diretrizes. A realidade mudou, e exige um novo perfil apropriado a essa
nova realidade, o que se traduz em uma maior abrangência que passa pela formação
de soft skills para atuar na inovação, no empreendedorismo e na educão da profissão.
Este novo perfil aponta para uma atuação profissional ordenada sob um prisma de
modelo econômico, o que não configura um equívoco, mas alerta sob a perspectiva de
formação social que promovem as diretrizes.
Uma das grandes críticas feitas à atual forma de prodão técnica no Brasil refere-se à
ideia de que a política de ciência e tecnologia no Brasil é uma das coisas que “menos
mudou depois que exorcizamos o fantasma do neoliberalismo: continua orientada à
tecnologia convencional, a serviço do capital e da empresa, da exploração, do lucro,
como argumenta Renato Dagnino (2014, p. 15-16). A partir desta colocação, não resulta
difícil observar que faz muito tempo que a formação do engenheiro está influenciada por
uma orientação econômica que, embora não explicitada, pode ser verificada no subtexto
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das suas diretrizes. De fato, é possível verificar que há a mesma perspectiva econômica
tanto nas novas quanto nas antigas diretrizes, o que configura certa continuidade na
perspectiva de mundo que forma a subjetividade dos engenheiros, cuja dimensão dita
mais abrangente do novo perfil deve ser interpretada como um modo de consolidar a
perspectiva econômica criticada por Dagnino em contraposição, por exemplo, à ideia de
uma Tecnologia Social, defendida pelo mesmo autor.
As diretrizes orientam para uma provável forma produtiva dos novos tempos, mas
atrelada, sem dúvida, a um modelo econômico colocado como uma condição própria da
ordem social atual, sendo que inúmeros atores sociais, alertando sobre as nocivas
consequências que tal modelo produz ao planeta e a todas as suas vidas, promovem
outras alternativas (SOLÓN, 2019). Enquanto isso acontece, o texto das diretrizes
promove um subtexto com uma interpretação de mundo, aparentemente inquestionável,
que fundamenta os principais elementos que orientam o novo processo formativo
atras de sotf skills e de um perfil inovador e empreendedor.
Esta relação é evidente e se desprende de várias passagens das diretrizes 2019 e do
parecer que as sustenta. O art. 6º das diretrizes orienta que as atividades de
aprendizagem assegurem o desenvolvimento das competências estabelecidas no perfil
do egresso”, ora o Art. 3º orienta que o perfil do egresso deve compreender [considerar],
entre outras, as seguintes características (listadas do item I ao VIII). É evidente que as
competências necessárias para obter as características do perfil podem ser enunciadas
a partir das últimas e, de fato, é isso que se transparece tanto nas diretrizes como no
documento consensual apresentado pela ABENGE, dado que ambos os textos são
muito próximos, diferindo-se em alguns elementos de redação e organizão. Por
exemplo, muito do que se entende por competência ou base para competência no
documento consensual da ABENGE é organizado como competências no artigo 4º das
diretrizes.
O que se deseja mostrar aqui é que este amplo consenso em relação às competências
a serem desenvolvidas ao longo do processo formativo apontam para um perfil
profissional que não é (e nunca seria) neutro em relação ao papel do desenvolvimento
da tecnologia face às demandas da sociedade. O novo perfil aponta a existência de uma
perspectiva hegemônica que, além de fundamentar o solo epistemológico da formação
em Engenharia, induz a prestigiar certas práticas da profissão em detrimento de outras
que, por terem menos valor em relação ao hegenico marco epistemológico, serão
ofuscadas. Pode-se afirmar serenamente que as diretrizes orientam, sim, o
desenvolvimento da profissão, considerando uma política de manutenção de
determinados valores sociais. A crítica, nesse sentido, é que as discussões universitárias
nunca assumem estar promovendo esses aspectos da ordem social vigente nem que
existem outros modos de existência para os quais a Engenharia bem poderia estar
contribuindo, mas que não são prestigiados. Por tal motivo, resulta de altíssima
importância a demanda por uma formação que equilibre apropriadamente a perspectiva
humanística e técnico-científica.
Embora seja possível pensar que essa é a intenção da normativa recente, ao analisar
algumas competências, como aquela que incumbe os profissionais de terem uma visão
holística e humanista (Art. 3º, Item I), o marco epistemológico dominante pode levar a
sérias distorções conceituais.
No corpo introdutório que embasa o parecer da comissão sobre o perfil do egresso e as
competências esperadas (item 5.1), começa-se argumentando sobre a necessária
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verificação do contexto institucional local, que, por sua vez, deve também considerar o
cenário nacional e mundial de uma Engenharia globalizada com o intuito de estabelecer
um perfil com visão sistêmica e holística, desde a perspectiva profissional e cidadã, de
modo a firmar compromissos com os valores fundamentais da sociedade na qual se
insere o profissional.
Não é a primeira vez que o processo formativo é orientado a considerar as demandas
da sociedade. No parecer das antigas diretrizes indica-se a necessidade de se articular
a profissão e a[...], preocupação com a valorização do ser humano e preservão do
meio ambiente, integração social e política do profissional (BRASIL 2002a, p. 1).
É comum colocar como demanda para o profissional em formão certo tipo de
competência que a maior parte dos formadores sequer tem desenvolvido. O solo
epistemológico do docente em geral é outro. De certa forma, esse tipo de exigências
considera de forma tácita que o docente possui essa competência, restando-lhe somente
inseri-la no processo de ensino-aprendizagem para que o estudante possa adquiri-la, ou
melhor, apren-la dos seus mestres. O que realmente se constata é que essas
preocupações com a sociedade já foram pautadas nas antigas diretrizes, mas a partir
daí, o corpo docente elaborou precariamente as questões de ordem didática para
atender essa diretriz.
Fosse somente esse aspecto, poder-se-ia entender que as novas diretrizes alertam,
indiretamente, para a necessidade de capacitão e aperfeiçoamento do corpo docente,
como descrito no item VI do texto do relator (em que se anuncia a valorização da
formação do corpo docente), mas como não se citam explicitamente quais devem ser as
dirões de melhorias, torna-se difícil esperar que uma capacitação vá superar esse tipo
de problemas. Sem ir mais longe, o texto laa o de dois conceitos (visão sistêmica e
holística) que, explicitamente, nada dizem em relação aos desafios que a sociedade
coloca como fundamentais para os próximos anos. Trata-se, apenas, de uma diretriz
contextualmente abstrata que, por falta de qualificação será instanciada no contexto da
produção técnica globalizada.
Certamente, isto o quer dizer que esses aspectos estejam equivocados; ao contrário,
o alerta vai para o fato de que a falta de qualificação para os conceitos citados nas
diretrizes deixa à mercê das forças políticas dominantes no interior dos campi a definição
do estatuto do real, da moral e, obviamente, da ordem social a ser promovida. Assim, a
formação do engenheiro é deixada numa esteira de obediência e submissão que torna
pertinente questionar que tipo de totalidade se pretende construir com a visão sistêmica
e holística, pois, sem dúvida, considerar uma totalidade metafísica é
epistemologicamente impossível, o que pode sugerir que o sistêmico ou holístico das
diretrizes seja um puro direcionamento metodológico. Se as diretrizes se debruçam
sobre a formação do engenheiro no dio e longo prazo, é arriscado promover uma
perspectiva sistêmica e holística de um mundo cuja interpretação se restringe ao atual
cenário global de produção técnica e seus evidentes rumos; um risco, por exemplo, está
na falta de orientações explícitas sobre a possibilidade real e concreta dos afazeres
técnicos produzirem efeitos altamente nocivos para o planeta e todas as suas vidas.
Outra das grandes preocupões em relação às mudaas que se querem promover é
que as mesmas não parecem senveis ao amplo leque de demandas da sociedade. Há
muitas e variadas demandas sociais que permitem questionar se aquilo que as diretrizes
propõem obedece à reais demandas da sociedade: a qual delas, a quantas delas, de
que setor, com quais prioridades? Essas seriam só algumas das perguntas que
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poderiam ser feitas. A sociedade, implicitamente considerada nas diretrizes, é uma
abstração, um recorte do corpo social e, portanto, uma forma tendenciosa de definir quais
problemáticas serão atacadas nos cursos de Engenharia. Sem um fundamento claro
sobre qual modelo civilizatório se deseja promover através da Engenharia, sem dúvidas,
as forças políticas dominantes no interior dos campi atuarão como linha de base ou
referencial implícito de todo e qualquer perfil sistêmico e holístico que se queira dar aos
futuros engenheiros, com grandes prejuízos na formação social destes.
A formão social dos engenheiros tem tido pouca atenção nos projetos pedagógicos e,
frente a essa realidade, seria plausível tratar explicitamente desse problema, pois a sua
raiz pode ser atribuída à falta de enunciação apropriada sobre suas causas. De fato, não
seria equivocado pensar que a maior parte da base comportamental e cognitiva da nova
proposta já era promovida nas antigas diretrizes.
Por exemplo, no primeiro item das novas diretrizes (ter visão holística e humanista, ser
crítico, reflexivo, criativo, cooperativo e ético e com forte formação técnica) praticamente
se encontra a mesma redação que consta no perfil das diretrizes anteriores, a não ser
pela incorporação dos termos holístico, cooperativo e pela ênfase dada à forte formação
em aspectos técnicos. Sobre o termo holística pode-se dizer, inicialmente, que este se
assemelha à ideia que subjaz na diretriz de formação generalista presente nas
normativas 2002, claro, sem chegar a se confundir com ela; sobre a necessidade de um
engenheiro cooperativo observa-se que nada constava nas diretrizes anteriores e que,
portanto, resulta ser algo novo; finalmente, em relação à maior ênfase dada à formação
técnica pode-se dizer que tal ênfase é uma ênfase que, diga-se de passagem, vai de
encontro com toda a ideia de que o engenheiro deve desenvolver uma visão mais
equilibrada (socialmente) da sua atuação profissional. Assim, neste primeiro quesito
pode-se entender que não há muita informação nova ou significativa sobre uma grande
mudança no perfil do egresso.
De forma similar, o segundo item do perfil (estar apto a pesquisar, desenvolver, adaptar
e utilizar novas tecnologias, com atuação inovadora e empreendedora) encontra uma
grande similitude com parte do perfil (capacitado a absorver e desenvolver novas
tecnologias) e das competências (desenvolver e/ou utilizar novas ferramentas e técnicas)
das antigas diretrizes. Embora se possa observar que a redação empregada não é a
mesma, o novo e relevante parecem ser a inclusão da pesquisa, a adaptação de novas
tecnologias e a incluo da atuação inovadora e empreendedora. Sobre as duas
primeiras não se pode argumentar tão facilmente de modo a que estas justifiquem uma
mudança de perfil no egresso de Engenharia, mas das últimas, sim, é possível dizer que
trazem algo de diferente para o novo perfil.
O terceiro item (ser capaz de reconhecer as necessidades dos usuários, formular,
analisar e resolver, de forma criativa, os problemas de Engenharia) também está
contemplado no texto do perfil e das competências das diretrizes 2002, com uma
pequena ressalva: antes os problemas da Engenharia eram relacionados às demandas
da sociedade; nas novas diretrizes, os engenheiros devem ser capazes de reconhecer
necessidades de usuários, isto é, a partir de uma qualificão que reduz o entendimento
dos sistemas técnicos à sua condição utilitária; tudo isso sem considerar que o termo
necessidade está completamente distante da maior parte dos estudos que explicam qual
o papel da técnica contemporânea na vida em sociedade.
O quarto item (adotar perspectivas multidisciplinares e transdisciplinares em sua prática)
e o sexto item (atuar com isenção e comprometimento com a responsabilidade social e
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com o desenvolvimento sustentável) estão plenamente contemplados nas diretrizes
anteriores incorporando somente diferenças de grau e não de natureza. De fato, enfatizar
a prática transdisciplinar sobre a interdisciplinar parece mais um acerto conceitual do que
uma constatação real de que é necessário incorporar alguma mudança significativa
nesse quesito. De forma similar, o sexto item pode ser plenamente resumido nas
preocupações em torno do contexto social e ambiental do perfil 2002; a ênfase na
conduta isenta e comprometida é redundante, pois já faz parte do primeiro item das
novas diretrizes, além de, que o uso de termos como desenvolvimento sustentável e
reponsabilidade social restringe o entendimento amplo do contexto social e ambiental
sobre conceitos, que, embora pertinentes para a vida profissional dos engenheiros,
também são objeto de crítica (ARAVENA-REYES, 2018b).
O quinto item (considerar os aspectos globais, políticos, econômicos, sociais, ambientais,
culturais e de segurança e saúde no trabalho) é muito similar ao encontrado nas diretrizes
anteriores, pois os elementos do item estão considerados no perfil das antigas diretrizes,
e as únicas novidades trazidas pelas novas diretrizes são o aspecto global e o de
segurança e saúde no trabalho (podendo muito bem estas duas últimas ser entendidas
como parte do texto das antigas diretrizes que incorpora as responsabilidades
profissionais como outra competência). Aqui, só o aspecto global se apresenta como um
novo elemento nas diretrizes atuais. Entretanto, pode-se entender também que
considerar o global deve ser feito, necessariamente, considerando-se os aspectos
políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais. Isto gera certa redundância no
enunciado, pois, de certa forma, entende-se que se trata de considerar esses aspectos
desde a perspectiva do mundo globalizado.
A alise anterior de todas as competências elencadas para atender a formação do novo
perfil do engenheiro permite considerar que as novas diretrizes são similares às
anteriores e o solo epistemológico que promovem orientam a elaboração dos novos
projetos pedagicos muito mais na dimensão operacional da formão dos
engenheiros (foco no processo formativo por competências, em metodologia e políticas
institucionais inovadoras, na gestão do processo de aprendizagem, nas relações com
organizações, na valorização do corpo docente e no tempo de integralização) do que na
relão desses com a sociedade.
Em relação às melhorias na dimensão operacional, observa-se que elas continuam
sendo um esforço de longa data e que ainda o produz os resultados esperados, quer
dizer, ainda se atribui majoritariamente aos problemas metodológicos de ensino os altos
índices de evasão e à rígida estrutura curricular as deficiências de adaptação aos novos
problemas da Engenharia e, se propõe como solução, a adoção de certas metodologias
mais eficientes e uma flexibilização curricular.
Já em relão às demandas por profissionais socialmente mais engajados, observa-se
que, efetivamente, há alguns elementos relevantes na especificação do novo perfil, dos
quais muitos desses já se encontravam nas anteriores, sem que isso tivesse gerado um
agir socialmente mais engajado dos engenheiros formados. Os aspectos que realmente
são uma novidade em relação às antigas diretrizes orientam o desenvolvimento de
competências para promover um perfil de egresso capaz de atuar de forma cooperativa,
inovadora e empreendedora em um ambiente globalizado, fato que corrobora a
perspectiva desenvolvida ao longo deste trabalho de que o subtexto das diretrizes 2019
promove um maior alinhamento com o atual modelo de crescimento econômico, pois as
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outras preocupações (incluindo as socioambientais) continuam a ser muito similares
daquelas que já se encontravam presente nas diretrizes anteriores.
A formação social do engenheiro pode ser vista como uma recente demanda dos setores
produtivos: soft skills representam, de fato, um conjunto de competências
comportamentais que visam uma nova atitude do engenheiro perante a realidade
profissional. Porém, sabendo que o humanismo é sujeito a críticas severas ou que o
cooperativismo é um modo da economia solidaria que exige muito mais do que
competências para o trabalho cooperativo ou, ainda, quando a inovação e o
empreendedorismo são muito mais amplos do que noção de inovão tecnológica ou do
empreendedorismo social, a demanda por um pensamento social amplamente
fundamentado na formação dos engenheiros continua sendo uma das prioridades dos
novos tempos.
ELEMENTOS PARA UMA FORMAÇÃO SOCIAL DO PROFISSIONAL ENGENHEIRO
A ideia de uma formão social do engenheiro exige um grande esforço formativo que
toma mais força à luz das novas diretrizes. Iniciativas existem, mas as diretrizes oferecem
um novo fôlego para pensar estruturalmente a formação social do engenheiro e
considerá-la como parte importante dos novos projetos pedagógicos a serem
implantados. A postura crítica elaborada até aqui não intenciona se posicionar contra o
novo esforço coletivo que resultou nas novas diretrizes, mas apropriar-se dele para inserir
um pensamento social na Engenharia que pode ser útil, tanto para as demandas do
mundo contemporâneo do trabalho quanto para os cuidados que os próprios
engenheiros devem ter perante fenômenos, também contemporâneos, como o burnout
(HAN, 2018) e o Antropoceno (CRUTZEN, 2002).
Inicialmente, poderíamos considerar que o novo alinhamento das diretrizes inclui
aspectos relativos a fatores humanos e ambientais, não apenas mediante a inclusão das
chamadas soft skill, senão também através de recomendações tais como incluir a
perspectiva dos usuários, formação cidadã e sustentabilidade. Porém, essa leiturao
representa a totalidade da complexa condição social na qual se insere a Engenharia hoje:
há, nas diretrizes, certa perspectiva que limita o entendimento do humano, em termos de
cidadania e sustentabilidade, pois se circunscreve na figura de o usuário.
Sem dúvida, enfrentamos uma lacuna que faz com que todas as preocupações sobre
os efeitos sociais e ambientais da Engenharia estejam num domínio de pré-
compreensão tal que parece não ser necessário qualificar de forma mais precisa o social
e seus agentes. Porém, é exatamente essa pré-compreensão que requer cuidados, não
de ordem terautica, mas fática, como fora expresso por Martin Heidegger (2000) e já
incorporado como preocupão técnica (ARAVENA-REYES; KRENAK, 2018a). Este
cuidado se exprime como forma de olhar com atenção aquilo que configura o mundo em
que se vive.
O cuidado exige uma autêntica atenção com o que somos. Ao fundir-se no social sem
se questionar se está sendo autêntico, produz-se uma alienação acerca do projeto de
outros; de certa forma, uma obediência e disciplina que leva a realizar, mediante o
ordenamento de outros, aquilo pelo qual se deverá responder individualmente diante da
sociedade.
Portanto, para ter uma ideia de até onde se pode concordar com a leitura do social que,
implicitamente, oferecem as diretrizes, é necessário desvelar essa leitura e conhecer
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como ela inclui o engenheiro, em termos dos autênticos desejos que se tem quando se
escolhe essa profissão, pois inevitavelmente serão engenheiros em sociedade.
Com efeito. O pano de fundo que instruirá o processo formativo insere a produção técnica
contemporânea naquilo que geralmente se qualifica mediante conceitos tais como o de
sociedade da informão ou sociedade do conhecimento. Estas categorias são as que
impõem o programa de desenvolvimento global que exige um novo leque de
competências apresentadas sob o tulo de soft skills e que representaram no setor
produtivo uma guinada para aspectos de geso e negócios que, até recentemente,
foram negligenciados no processo formativo, ainda quando a mesma sorte de
competências fora anunciada muito tempo atrás como requisito do setor produtivo para
a manutenção e desenvolvimento do modelo econômico vigorante. A saber, Daniel Bell
(1977) já anunciara que o conhecimento técnico científico teria um papel central nos
processos produtivos da era pós-industrial, e Joseph Schumpeter (1988) colocou o
capitalismo sobre a base da inovação.
Estes dois economistas ajudaram a entender que o novo modo de produção capitalista
se afastava da ideia de que a produção de riqueza descansava na posse dos meios de
produção fabril e colocaram o intelecto humano e a inteligência como motoras da
geração de riqueza. O homem se tornava o próprio ente produtivo, pois era da sua
capacidade intelectual inventiva de onde surgiam as novas formas de geração de
riqueza; em função dos constantes avaos e aperfeiçoamentos da fábrica, o capital
humano passou a ser o elemento que permitiria produzir e diversificar as novas
mercadorias, ao ponto de estarmos hoje perante um novo ciclo econômico inspirado na
criatividade de alta tecnologia para reconfigurar os processos produtivos e,
consequentemente, alimentar os novos ciclos de desenvolvimento social baseando-se
amplamente no consumo.
É o que se costuma denominar de sociedade altamente tecnologizada e de consumo.
Isto é, uma ordem social completamente permeada pelo uso intensivo de tecnologia e
orientada principalmente a produzir objetos e infraestrutura para o consumo, a tal ponto,
que o amplo conjunto dos fenômenos que provoca leva a pensar toda a realidade sob a
perspectiva da tecnologia, e é isto que inspira a recente disciplina Filosofia da Tecnologia
(ARAVENA-REYES, 2016). É nesse contexto que as diretrizes convocam os
engenheiros a assumir os desafios destes novos tempos, os quais se apresentam
principalmente sob um ideário técnico de origem europeia: a chamada Indústria 4.0
(SCHWAB, 2019).
Neste novo modelo industrial, cientistas e engenheiros são considerados peças-chave
para operacionalizar suas componentes produtivas. Isto quer dizer que se conta com o
trabalho e conhecimento desses agentes para produzir os bens e serviços sobre os quais
as relações econômicas irão se fundar. Cientistas e engenheiros são os operadores
qualificados do progresso técnico que sustenta a sociedade pós-industrial e, obviamente,
de ambos são exigidas as competências que lhes permitem desenvolver eficazmente
esse papel (BAZZO; COSTA, 2019).
Se essa é a novidade do social que subjaz nas diretrizes, sabe-se que nada disso é novo
para os países que, em meados do século vinte, já possuíam características de
sociedade pós-industrial. Esses pses fizeram grandes investimentos na formação dos
seus quadros e elevaram significativamente a sua capacidade de produzir tecnologia.
Para constatar isso, basta olhar o próprio dado que serve de argumento para a
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reorientação das diretrizes: o baixo valor da média de engenheiros por habitantes dos
países desenvolvidos e de alguns outros emergentes (BRASIL, 2019a).
Olhar criticamente a Instria 4.0 implica considerar que o mais relevante para o
anunciado novo mundo não deve ser pensado exclusivamente em torno da tarefa de
produzir os recursos humanos para implantar o novo modelo industrial no país, pois de
fato esse já é o pensamento dominante após a feira de Hannover e, nesse contexto,
Brasil começou tarde. A ênfase, hoje, deveria ser na organização do setor produtivo no
sentido de antecipar as consequências sociais e ambientais dos altos níveis de
automação e controle que se anunciam. Este fato exige uma forte formação social no
engenheiro, principalmente em ética da produção tecnológica. Este tema o ético
representa uma forma concreta de abordar os valores ditos neutros que a produção
técnica global poderá tomar no futuro próximo, dado que está aproximando os
profissionais técnicos e científicos de uma perspectiva social mais engajada desde
meados do século XX.
Como o quadro desenhado pelas novas diretrizes envolve elevar os graus de
competitividade no Brasil perante a nova ordem produtiva global (o que requer, em
média, oito anos), a Engenharia das novas diretrizes se encontrará plenamente
implantada em um cenário extremamente competitivo e acirrado, principalmente se o
país toma uma direção de apertura econômica de mercados. Nesse contexto, talvez seja
necessário encurtar os caminhos através da reflexão ética, de modo que, ao se chegar
a um grau de maturidade produtiva apropriada às demandas da nova ordem, seja
possível, ao mesmo tempo, chegar com um diferencial competitivo significativo. A
demanda será na inovação e no empreendedorismo, mas a discussão já se encontrará
em torno dos efeitos sociais e ambientais da nova ordem produtiva.
Assim, pode-se pensar que, enquanto a generalidade do texto das diretrizes parece
deixar aberta a possibilidade de uma formação mais humanista e socioambientalmente
engajada, o subtexto ordena as possibilidades de engajamento à aceitação quase
determinística da nova condição técnica global. Ora, é exatamente esse um dos grandes
debates atuais. Portanto, é pertinente questionar a direção implícita para a qual apontam
as diretrizes quando a sociedade reconhece estar em uma séria encruzilhada humana,
produto dos rumos que a própria produção técnica global tem tomado nos últimos
tempos.
O rumo da escola de pensamento técnico predatório e de domínio da natureza para
extrair suas riquezas, levou os técnicos a degradarem o planeta a patamares
preocupantes. Hoje, nos encontramos perante grandes desafios nessa matéria, mas não
exclusivamente de ordem técnica; a formão profissional deveria incluir uma forte
formação social, tomando o social não como o simples contexto dos usuários da ação
engenheiril, senão como a condição de onde emerge toda a capacidade inventiva e
produtiva da Engenharia e, portanto, os rumos que a sociedade toma em fuão dela.
O recorte proposto nas diretrizes é perigoso, pois instala condições epistemológicas que
limitam o entendimento da realidade e induzem uma dinâmica tecnológica que recebe
críticas e desperta temores. As diretrizes não explicitam no devido nível de importância
o entendimento do social; ao contrário, o reduz ao contexto do uso.
Qualificar claramente o social e os parâmetros que orientam a formação dos engenheiros
com um entendimento mais amplo é mais do que uma demanda dos tempos modernos:
é uma urgência. Torna-se preocupante quando a relação entre engenharia e sociedade
é enfatizada em termos de usuários, processos inovadores e perfil empreendedor, pois
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certamente o olhar para o processo formativo ainda se encontra em um patamar muito
ecomico-operacional, demonstrando que o social que se inclui nas diretrizes se inspira
em uma leitura muito estreita, que reduz o potencial inventivo-produtivo que existe e
espera para ser desenvolvido nos estudantes de Engenharia.
As recomendações assumem uma ordem social e econômica que direciona os
estímulos para a vocação inventiva da Engenharia segundo essa ordem, enquanto um
amplo leque de estímulos para a invenção surge de uma leitura ampla da ordem social,
da intenção de modificá-la ou mesmo de instalar uma nova ordem, pois todas essas
condições promovem o projeto de outros sistemas técnicos, os quais, obviamente,
obedecem a outras formas de análise da realidade, muito além daquelas que se obtêm
ao se reticular a realidade em termos de função e uso. Se a formação social do
engenheiro não alerta para a nociva forma que toma a prodão técnica contemporânea,
inevitavelmente se consolidará tanto um perfil de engenheiros obedientes ao novo
modelo produtivo (que, por sua vez, promove uma ordem social baseada no consumo
exacerbado), quanto ao próprio modelo de crescimento econômico predatório que o
ampara.
ENGENHARIA E PSICOPOLÍTICA: O FANTÁSMA DO BOURNOUT NA VIDA
PROFISSIONAL
Comar com quase dez anos de atraso num modelo produtivo altamente competitivo e
que, por sua vez, é global, exigirá que o ps desenvolva altos índices de produtividade,
os quais serão obtidos, inicialmente, mediante altos níveis de esforço e estresse. O
burnout é o fantasma que pode assolar os mais esforçados, mas antes dele, outros
sintomas da nocividade do modelo podem aparecer.
Para ter acesso a níveis plenos de consumo da nova ordem, será necessário ter um alto
poder aquisitivo, o qual, em uma economia de viés liberal, exige desempenho, e esse é
obtido com muito trabalho. A opção dos novos engenheiros por esse modelo produtivo
será premiada remunerando bem alguns deles para que também, através das suas
realizações, defendam e promovam a nova ordem social emergente.
No meio de um planeta em que a degradação ambiental é alarmante, as desigualdades
sociais já são preocupantes (BAZZO, COSTA, 2019, p. 29) e levam a acreditar que a
condição psíquica dos engenheiros também passará por processos de deterioração
acentuados, todos os quais evidenciam as contradições desse modelo social e
profissional.
Daniel Bell alertou sobre uma contradição que se instala no seio deste modelo produtivo:
enquanto é necessário o esforço contínuo do sujeito que produz, o consumo o empurra
para uma vida que exige gratificações. O prazer como princípio fundamental da
recompensa pelo esforço do trabalho se compra com dinheiro, e o dinheiro advém do
crescimento do consumo. No limite, o sujeito da nova ordem deverá dividir a sua vida
entre os longos momentos produtivos e os singelos lapsus de descanso, quando, à custa
de qualquer coisa, deve-se garantir a prazerosa recompensa prometida. Concretamente
isso significa prazer a qualquer preço. Se isso já soa alarmante, fica ainda mais alarmante
se considerarmos que aquele que não consegue atingir o prazer compensatório do
modelo, seja por falta de oportunidades ou por falta de qualificação, inicia um processo
de frustrão que, na sociedade atual, também já parece estar equacionado na forma de
uma política do ódio, em que o outro passa de simples concorrente existencial a inimigo,
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como uma forma política de autoafirmação. Se o modelo não funciona para um sujeito,
a culpa não é do modelo; sempre poderá se laar mão de um culpável que canalize a
frustração do prazer inalcançável. Esta política do ódio prepara o sujeito produtivo para
rejeitar psiquicamente toda e qualquer condição que mostre as fragilidades da nova
ordem e ameace tornar consciente o verdadeiro mecanismo da sociedade de consumo:
a autoexploração, a manipulação do Eros; aquilo que Byung-Chul Han chama de
Sociedade do Cansaço (2018) e Bernard Stiegler de economia libidinal (2017).
Sem dúvida a frustrante situação de não alcançar as recompensas do processo torna
até psiquicamente necessária essa operação de objetivação do concorrente existencial
em inimigo para neutralizar a improdutiva depressão e esconder o rosto perverso do
processo de autoexploração e manipulação dos desejos e das recompensas
organizados em função do esforço profissional.
Deve-se ter consciência de que, se por um lado, as diretrizes parecem apropriadas para
o atual momento porque exatamente na neutralidade do seu texto não são anunciadas
as dificuldades e perigos de reduzir a complexidade do social ao usuário, por outro,
atras delas também não se pode ter acesso à lógica que incorpora aspectos perversos
de uma ordem social em que desejo e frustração caminham de mãos dadas. Aqui ainda
vale a máxima de Heidegger: se a técnica moderna descansa sobre o cálculo da ciência
moderna, então o homem virou cálculo; ele é calculável, previsível e, portanto, uma coisa,
um objeto; no texto das diretrizes, uma categoria abstrata: o usuário (Heidegger, 1997).
Desde a perspectiva da sociedade do cansaço a questão é igualmente preocupante;
embora hoje possamos dormir tranquilos graças aos avanços técnicos que criam
ambientes imunológicos em várias dimensões, também sabemos que são outras as
preocupações que nos impedem de dormir em paz. Han alerta que o esgotamento do
homem contemporâneo não provém de resistir às situações que não se desejam, senão
à pressão do desempenho, isto é, àquilo que é incorporado voluntariamente como valor
positivo do fazer: tanto se quer fazer e fazer bem, que se adoece.
Paradoxalmente, nem sendo submissos ou escravos, nem decidindo os próprios
caminhos dentro da nova ordem produtiva, se chega a um estágio libertário de
realizações plenas, pois o engenheiro sempre é chamado a avançar: à melhoria
contínua, ao aprender a aprender ou ao empreendedorismo constante da inovação
shumpeteriana (BRASIL, 2019a, p. 26, 36 e 38). Nessa ordem produtiva não há
descansos: há competições. Sem tempo, se industrializa, se condensa e se intensifica o
prazer, de modo a, em pouco tempo, repor o ânimo do sujeito produtivo e dispô-lo para
as novas empreitadas.
O pouco tempo disponível exige também a condensação de todas as dimensões da
realidade e, de fato, esta é uma das tantas direções da nova ordem produtiva: oferecer
sínteses da realidade: recomendações, compilações, sinopses, todos esses percursos
previamente avaliados pela inteligência artificial dos sistemas produzidos para agilizar a
experiência de um real que não pode ser mais vivido: precisa ser condensado, des-
realizado e colocado em uma lógica de atalhos existenciais para evitar a esgotante
condição de viver um real que multiplicou demais seus sinais.
Então, poupa-se de viver a realidade plena ao mesmo tempo em que se faz entrar em
uma realidade sintetizada, e como se sabe, o estatuto do sintico reside no artificial. De
fato, não interessa mais o real, interessa a experiência realística. Colocada a experiência
no seio das relações existenciais, a nova ordem produtiva traz, implicitamente, um modo
de existir realístico, mas não real.
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Em face destas inquietações é caterico perguntar: se na nova ordem produtiva não há
tempo para a experiência com o real pleno, quem, por que e como se estão decidindo
as sínteses de realidade nas quais seremos inseridos? Em outras palavras, quem está
pensando e induzindo as novas modalidades existenciais de onde surgiram os
problemas da Engenharia?
O que se pode observar desde meados do século vinte é que o desenvolvimento
tecnológico parece impor um rumo evolutivo, mas isso não significa que existe algo como
um determinismo tecnológico que obrigue a espécie humana a evoluir em uma dada
dirão. O homem pode ser entendido como o determinante ou o determinado da
tecnologia, dependendo de qual seja o ponto de vista. Assim, o que existe não é uma
determinão, senão uma incapacidade de produzir alternativas tecnológicas aos
modelos produtivos hegemônicos, porque esses últimos também se sustentam em
processos de poder e dominão. O desenvolvimento tecnológico não determina a
engenharia do futuro, mas a condiciona através dos agentes do atual projeto evolutivo
humano.
A falta de tempo e de contato com a realidade plena levará, necessariamente, a recortes
do real, tanto em extensão como em profundidade. Porém, embora se aceitem
interessadamente os sistemas de recomendações da maior parte dos aplicativos do
mundo digital, neles há vigilância e controle do desejo que implicam em uma redução
das capacidades operativas mentais e uma consequente espécie de atrofia cerebral;
certa redução da atividade neuronal que se traduz diretamente em uma incapacidade de
decidir à margem das recomendações dos sistemas. Nas palavras de Bernard Stiegler
(2017), os homens são transformados em proletarizados cognitivos.
Nosso cérebro está sendo modificado para aceitar recomendações mais do que para
promover oões. No modelo implícito de sociedade que orienta as diretrizes, os
engenheiros estão sendo transformados em sujeitos superficiais, com poucas
possibilidades de alterar a evolão filogenética do homem. O real sempre se configurará
como um já dado não-alterável, ou, no melhor dos casos, como um já dado com
possibilidades de modificão, podendo até ser realizáveis, mas mediante muito esforço:
os engenheiros serão desestimulados a promoverem suas próprias oões de
existência; a vida do profissional que as diretrizes promovem é uma vida recheada de
contradições que podem provocar muito canso, frustrações e em função disso, talvez
alienação e ódio.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: ENGENHARIA EM SOCIEDADE
Neste adverso contexto, uma alternativa é possível. Uma formação social ampla
permitiria que a Engenharia retomasse seu papel inventivo para muito além das
demandas do mercado profissional que, através dos seus agentes, instrram
ativamente o entendimento das atuais diretrizes. A condição inventiva é essencial para
promover novos modos de produção e novos objetos técnicos por um profissional que,
em contato com uma realidade social sem recortes, poderá oferecer soluções técnicas
aos modos de vida que serão ocultos pela hegemônica Indústria 4.0. De fato, o mercado,
esse sujeito invisível que ime as condições de empregabilidade dos futuros
formandos, é considerado como referência implícita e absoluta da nova ordem produtiva.
Para esse segmento não há holismo nem social amplo; há recortes: funções e usuários;
a inventividade deve ser liberada do ordenamento que realiza esse sujeito invivel.
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A formação do engenheiro deve ser crítica às novas diretrizes, pois de certa forma o que
está em jogo é a espécie humana como um todo, e isso significa que toda a expressão
social deve ser pauta da crítica, não para se contrapor a segmentos empresariais e
corporativos, senão para sempre ter possibilidades de desvios, de produção de novos
territórios existenciais e, obviamente, de novos sistemas técnicos para essa finalidade.
Promover uma forte condição inventiva nos estudantes de Engenharia é imprescindível,
devendo se articular mediante uma formação que permita um amplo acesso à realidade
e a todas as formas de apreensão da realidade. A inventividade engenheiril não
corresponde àquilo que se denomina criatividade e inovação nas diretrizes. Inventar traz
para o território do real o novo, que, como tal, epistemologicamente é inacessível a ele
se tornar presente. A formação social do engenheiro visa mais do que o desenvolvimento
ético ou cidao do profissional; ela deve promover mudanças no ambiente técnico,
onde a inventividade técnica possui um papel fundamental.
Não há receita para promover uma aproximação ao novo. O que se pode fazer é
multiplicar as suas possibilidades de emergência, e isso pode ser obtido abrindo,
ampliando, expandindo a capacidade de captar os sinais informativos do real para além
das condições representáveis, o que, por sua vez, significa mergulhar para além do
modelo, para além da representação e para além do simbólico. Existe um nome para
esse tipo de mergulho: a intuição, isto é, a apreensão imediata da realidade, a qual
poderá ser representada e calculada, mas só após ela ter sido intuída e presentificada
pelo pensamento. Inventar, portanto, implica uma sorte de superar o domínio da
representão que tanto agrada à tradição da Engenharia para gerar condições de
mergulhar profundo no território do sensível, do variável e, assim, poder operar na base
da intuição, da antecipação e do projeto.
Gilles Deleuze nos oferece referenciais para abordar a inventividade; trata-se da
diferença, ou melhor, da diferenciação produtiva do desejo (DELEUZE, 1992). Nessas
circunstâncias, como destaca Tzvetan Todorov (2014), é de frente para os sinais de um
outro legítimo que não é a projeção do eu, onde se pode encontrar o pertinente sem cair
na tentação de homogeneizar a diversidade, submetendo o outro às próprias
pertinências. Ainda quando as pertinências próprias invadem o espaço de pertinências
do outro estabelecendo o conflito de quem é o letimo usuário, pode-se inferir que a
negatividade que o outro promove é um polo inventivo em nós, tanto como forma superar
os impasses e agir comunicativamente em torno dos consensos, quanto para dissentir e
promover outras novas pertinências. Com isto, torna-se mais claro que o outro e seus
sinais sempre forma parte da condição inventiva porque ela sempre se defronta com o
lugar onde se é no mundo, que também é o lugar do outro: o usuário é um outro em
construção.
A forma de apreender o usuário de um sistema técnico o pode ser realizada desde um
lugar de onde não se conheça e reconheça esse outro. Tampouco se deveria erguer o
conhecimento sobre o outro em um campo de ação puramente subjetivo, de um eu
isolado, nem de um eu que constrói o mundo à sua imagem e semelhança; para
desenvolver a condição inventiva da Engenharia, como parte de uma formação social, a
empatia passa a ser fundamental (RIFKIN, 2010). A demanda pelo empático não
significa construir o outro desde um eu solitário ou exclusivamente a partir do relato que
esse eu faz do outro; a empatia se fundamenta na compreensão do devir-no-mundo-
com-o-outro; de compreender como devimos em um mundo que devém com um outro
que também devém, o que torna possível o surgimento do outro como um diferente, e,
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portanto, no processo inventivo da Engenharia é a plenitude das diferenças do mundo
em devir o que interessa para a obracnica e essa pode ser uma direção para a sua
formação social.
Por essa vantagem em entender da forma mais ampla possível o mundo é que aqui se
defende uma sólida formação social do engenheiro, como por exemplo, mediante o
desenvolvimento da empatia, tão importante nos tempos atuais de reorientão do
processo formativo.
CONCLUSÕES
As diretrizes curriculares nacionais para os cursos de Engenharia resultam de um grande
esforço coletivo que coloca como tarefa principal elevar a quantidade e a qualidade da
formação dos futuros profissionais. Suas bases se inspiram na necessidade de adequar
a formação profissional à realidade atual. O foco se dirige a melhorias dos aspectos
operacionais e burocráticos institucionais, mas também ao perfil profissional necessário
para os novos tempos.
Um exame detalhado mostra que os problemas endêmicos da engenharia podem não
estar sendo bem direcionados, principalmente em relação à necessária formão social
do Engenheiro. Aparentemente uma perspectiva parcial e instrumental da realidade é
utilizada para, implicitamente, colocar o contexto que circunda a profissão. Diante desse
recorte há uma necessidade de alertar para os efeitos de uma formação social baseada
principalmente em uma dimensão específica da atual forma produtiva global.
Preocupações em torno da Indústria 4.0 são pertinentes, mas nos próximos anos o
debate estará centrado nos efeitos psicossociais e ambientais das realizações da
Engenharia. O fantasma do burnout emerge e preocupa a própria saúde mental dos
futuros engenheiros, pois o mundo contemporâneo que amplificou seus sinais opera
economicamente sobre o desejo, o que, na esfera profissional, faz caminhar junto
recompensa e frustração.
Uma alternativa para esta situação é uma sólida formação social (por exemplo,
considerando o desenvolvimento da empatia) que permita criar condições de
emergência para a inventividade engenheiril, de modo a criar novos objetos técnicos
capazes de potencializar todos os potenciais territórios existenciais que podem surgir nos
próximos tempos. O tema da empatia pode ser pauta para novos estudos sobre a
relão entre a educação do engenheiro e vida profissional.
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Data da submissão: 15/06/2020
Data da aprovação: 03/08/2021