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DOI: https://doi.org/10.35699/2238-037X.2020.24871
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/
O OFÍCIO TÉCNICO COMO MEDIAÇÃO EDUCATIVA EM O CAPITAL DE
MARX: O PAPEL DOS MEIOS DE TRABALHO
1
The technical craft as educative mediation in Marx's The Capital: the role of
the working means
SILVA, Sabina Maura
2
ALVES, Antônio José Lopes
3
RESUMO
O presente artigo tem por objetivo discutir e explicitar o cater educativo geral da educação tecnológica
no pensamento marxiano. Deste modo, busca-se o exame categorial da significação ontogica dos
meios de trabalho. Esta alise se volta às mediões objetivas da atividade produtiva, tanto em seu
uso quanto, principalmente, em sua prodão pelos indiduos sociais vivos e ativos. Para tanto, a
exposição ctica se volta detalhadamente à parte na qual este tema é desenvolvido, no catulo 5 do
livro I de O Capital (Processo de Trabalho e Processo de Valorizão). Ademais, tem-se por finalidade,
a partir da compreensão acima delineada, abordar as formulões marxianas acerca da educação.
Objetiva-se, por conseguinte, demonstrar como as declarões de Marx, consubstanciadas em
documentos que se voltam à tetica no bojo das discuses sobre a atuação dos movimentos dos
trabalhadores e de suas organizões políticas, de certa maneira, traduzem como diretivas políticas um
conjunto de entendimentos teóricos formulados na crítica da economia potica.
Palavras-chave: Marx. Educação Tecnogica. Meios de Trabalho. Formação Omnilateral.
ABSTRACT
This article aims to discuss and explain the general educational character of technological education in
Marxian thought. Thus, the categorical examination of the ontological significance of the means of work
is sought. This analysis focuses on the objective mediations of productive activity, both in its use and,
mainly, in its production by living and active social individuals. For this purpose, the critical exposition
turns in detail to the part in which this theme is developed, in chapter 5 of book I of The Capital (Work
Process and Valuation Process). Furthermore, the purpose is also based on the understanding outlined
above to address Marxian formulations about education. The objective is, therefore, to demonstrate how
Marx's statements, embodied in documents that focus on the theme in the midst of discussions about
the performance of workers' movements and their political organizations, in a way, translate as a set of
political directives theoretical understandings formulated in the critique of political economy.
Keywords: Marx. Technological Education. Means of Work. Omnilateral formation.
1
Material inédito, proveniente de desenvolvimento de projeto de pesquisa ao qual se vinculam orientações em programas de pós-graduação
em educação.
2
Doutora em Educação (UFMG), Mestre em Filosofia (UFMG), Graduada em Filosofia (UFMG) e História (FAFIBH). Professora do CEFET-
MG. E-mail: sabinamaura@cefetmg.br.
3
Doutor (UNICAMP), Mestre e Graduado (UFMG) em Filosofia. Professor da UFMG. E-mail: filosofiaposfae@gmail.com.
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INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objetivo discutir o caráter educativo geral Marx confere à
educação tecnológica. O ponto de partida é o exame categorial do estatuto dos meios
de trabalho, tanto em seu uso quanto, principalmente, em sua produção pelos indivíduos
sociais vivos e ativos. Para tanto, se examina com mais vagar, aqui, a parte referente a
este tema desenvolvido no capítulo 5 do livro I de O Capital (Processo de Trabalho e
Processo de Valorização).
Pretende-se, portanto, explicitar o entendimento de Marx acerca da significação ampla,
de teor ontológico, que os atos de usar e fabricar ferramentas possui. Nesse sentido,
primeiramente, intenta-se, na mesma medida, demonstrar como a elaboração humana
de meios de trabalho supera o caráter estritamente instrumental, que pode ser observado
na produção feita pelos animais. A ferramenta porta em sua existência física e em sua
figura tangível a finalidade específica para a qual se destina. Essa discussão se
desdobra, por sua vez, na natureza dos processos tecnológicos integrados à produção
como uma das características mais peculiares da produção da vida no contexto produtivo
do capital. Assim, as tecnologias aparecem como formas de desenvolvimento da própria
relação ativa e transformadora que os seres humanos têm com o mundo. De certo modo,
as tecnologias aplicadas à produção desenvolvem igualmente, numa potência
aumentada, o teor categorial das ferramentas: a de serem, antes de tudo, expressões
das forças humanas de objetivação in actu.
Em segundo lugar, neste trabalho se almeja, igualmente a partir da compreensão acima
delineada, abordar as formulações marxianas acerca da educação. Objetiva-se, por
conseguinte, demonstrar como as declarações de Marx, consubstanciadas em
documentos que se voltam à temática no bojo das discussões sobre a atuação dos
movimentos dos trabalhadores e de suas organizações políticas, traduzem de certa
maneira, como diretivas políticas, um conjunto de entendimentos teóricos formulados na
crítica da economia política. Deste modo, as proposituras marxianas sobre a necessária
articulação entre a formação ominilateral por meio da educação formal podem aparecer
teoricamente arrimadas, superando sua aparência circunstancial, relacionada ao campo
das contendas político-partidárias.
Portanto, tem-se por fim demonstrar que a consideração positiva das virtualidades
formativas da educação integral de talhe tecnológico feita por Marx exprime seu
entendimento sobre o papel das tecnologias na produção do humano. Evidentemente, a
crítica da economia política, ao desvelar o caráter contraditório específico da produção
de riqueza como valor valorizado, assinala a sua negatividade formal. Ou seja, a forma
social de existência de meios tecnologicamente conformados como capital se constitui
numa forma desenvolvida da contradição entre valor e valor de uso.
É exatamente a partir da constatação desta contradição que Marx delineia como o
movimento dos trabalhadores pode atuar também na frente educacional. Para ele, a
educação tecnológica, mesmo nos quadros determinativos da produção capitalista, não
necessariamente tem de se cingir à produção de braços e pernas, cabeça e mãos
docilizados para o rito sacrificial da criação do mais-valor. Por óbvio, este caráter é
imanente à forma, ao eidos, da produção capitalista e isto não deve ser esquecido.
Entretanto, ao menos no pensamento marxiano, conceitualmente, a produção do mais-
valor o pode prescindir da produção do valor, assim como a valorização do capital não
pode prescindir da existência do valor de uso. Consequentemente, porquanto seja uma
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contradição inerente e performativa, produtora de efeitos de múltiplos sentidos objetivos,
cabe atuar sobre ela.
Com o fito de obter estes elementos categoriais e poder articulá-los no entendimento das
proposituras marxianas, o exame dos textos foi o procedimento adotado pela analítica.
Metodologicamente, abordaram-se os textos, tanto de Marx quanto de outros autores
chamados à discussão, na forma da leitura imanente (CHASIN, 2009, p. 25-27). Oão
metodológica baseada no reconhecimento da objetividade própria das construções
discursivas. Portanto, o padrão de leitura aqui exercitado tem por diretriz que o
entendimento conceitual do texto em sua tessitura própria, independentemente de sua
completude, é a condição para seu entendimento e posterior interrogação. Deste modo,
o texto é abordado em sua exisncia de complexo de enunciados argumentativos frente
ao qual é importante conseguir antes de tudo a apropriação de sua malha conceitual e
posterior reconstrução crítico-categorial como uma apresentação que esclarece
pressupostos e implicações nele contidos.
Por fim, é importante explicitar que o presente artigo constitui um dos resultados de
esforço de pesquisa levado a efeito por seus autores nas atividades do projeto Força de
Trabalho, Capital e Individualidade. Esta iniciativa de investigação é vinculada a
programas de pós-graduação em educação (UFMG) e educação tecnológica (CEFET-
MG). Por conseguinte, este projeto abrange igualmente atividades de pesquisa
orientadas no nível de mestrado, de iniciação científica e iniciação científica júnior.
OS MEIOS DE TRABALHO COMO POTENCIAÇÃO DO HUMANO
A análise do caráter dos meios de trabalho humano, e de sua produção, se conecta ao
importante tema das forças produtivas sociais. Malversado em grande parte das vezes
como problematizão da tecnologia, tomada de maneira unilateral e fetichista, a
questão do desenvolvimento das forças de objetivão se coloca como um dos eixos
fundamentais da compreensão marxiana do ser social. Potências que são, antes de
qualquer coisa, faculdades práticas de autoconstrução humana, forças de objetivação e
criação simultâneas do próprio ser dos indivíduos humanos. Forças as quais são, por
sua própria natureza, social e historicamente desenvolvidas, socialmente produzidas e
postas em movimento.
Neste sentido, as forças produtivas não são o mero conjunto dos instrumentos de
trabalho, ainda que se consubstanciem neles de maneira concreta. Diversamente, este
complexo abrange a totalidade do multiverso de capacidades e energias de
manifestação humana dos indivíduos sociais. Nele estão inclusos além de dispositivos e
meios materialmente dados também os protocolos de ação, de organização da atividade,
bem como o nível de aperfeiçoamento médio universalmente alcançado pelos
indivíduos. Os instrumentos da apropriação imediata do objeto da atividade se realizam
naquela plêiade de elementos como objetividade de forças humanas agora existentes
de modo efetivo frente aos indivíduos, reconhecidas e movidas por eles. São, antes de
tudo, modos expressivos de ser da prática, do fazer humano do mundo dos homens,
que simples utensílios ou coisas.
Neste sentido, nada mais humano que a técnica. Nada mais certeiro na esfera do ser
que a relação concreta com os entes. A posição de ser do ente humano se realiza no
mundo e para si como produção e desenvolvimento da produção. Assim, que outro
caminho resta a este ente para trilhar a senda do ser, de seu ser, senão o produzir
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meios e os incorporar à totalidade do mundo na sua produção? Por esta razão, Marx
considera, com acerto, o incremento e a sofisticação dos meios de configuração da
mundanidade como o indicativo de quanto esta poncia de apropriação dos indivíduos
se tornou humana. O nível em que ela se afasta progressivamente dos limites
inicialmente dispostos pela natureza e pela configuração biológica imediatamente
elaborada pela evolução. Tomar uma pedra como instrumental de proteção e/ou
atividade mesmo ainda na sua rusticidade imediata, de certo modo, já confere à pedra
um duplo sentido humano. De uma parte, ela está convertida em meio instrumental, ou
natureza instrumentalizada, de reagir ou responder a demandas humanas. De outra
parte, ao acrescentá-la a si, o indivíduo supera um limite de sua figura natural, uma
adstrição vincada na conformão das propriedades de seu organismo
evolucionariamente configurado. Nota bene, aqui ainda não se tem ferramentas
propriamente ditas, como se verá mais à frente, na medida em que se recolhe um pedaço
da natureza e o usa imediatamente. É interessante observar que, do ponto de vista da
evolução histórica, é permitido supor, retroativamente, o fato de que os seres humanos
(independentemente de pertencerem biologicamente à espécie homo Sapiens ou não)
começaram a trilhar um dado caminho diferenciado em relação aos seus parentes
primatas já ao manterem consigo tais insumos instrumentais.
De todo modo, para Marx, os meios de trabalho consubstanciam objetivamente um
poder-fazer alcançado pelos seres humanos em sociedade e exprimem também o
quanto e o como as finalidades objetivamente postas por eles vão se transmutando e
adquirindo formas mais complexas. Desta maneira, os meios são antes de tudo potência
objetivada de apropriação e de adequação da natureza à ordem do humano. Ordem cuja
matriz é sócio-histórica, pois não tem sua raiz apenas na conformação inicial de
músculos, ossos, membros e outras estruturas de natureza filogenética. Antes, radica na
ação dos indivíduos que, em conjunto e relação recíproca, reproduzem a cada momento
sua atividade e, por isso, seus meios, num patamar superior ao anterior. A este respeito,
basta-nos pensar numa atividade muita antiga, a agricultura. De certo modo, hoje como
ontem, é o lidar com a terra e as condições existentes ou não para o plantio e o cultivo.
No entanto, são muito diferentes a agricultura desenvolvida na dependência do
naturalmente encontrado e com o uso de maquinarias e de sementes manipuladas
cientificamente.
O desenvolvimento do meio revela, assim, como e em que estádio se encontra o
crescimento da potência humana de domínio e transformação da natureza. O próprio
meio passa a determinar, no decorrer da história, tanto o modo de organização quanto
os ritmos da atividade do trabalho, o que se verifica nas atuais modificações sofridas pela
esfera produtiva. O incremento de potência não é assim fruto de uma mágica misteriosa
produzida, segundo alguns, por um anjo torto que realizaria às avessas nossas
pretensões. Seria consequência, em verdade, da própria forma de ser da atividade
humana, na qual o ente humanoutiliza as propriedades mecânicas, sicas e químicas
das coisas para fazê-las atuar sobre outras coisas, de acordo com o seu propósito
(MARX, 2013, p. 256). Uma determinação decisiva reside exatamente na
operacionalização transformadora que converte elementos naturais em meios de
trabalho, nomeadamente, em ferramentas.
Na atividade se realiza concretamente a conexão entre a mobilização particular dos
meios e o propósito da operação técnica produtiva. Esta vinculação operante constitui o
momento preponderante da forma técnico-social da ferramenta. Algo de todo diverso da
operação instrumental de um galho ou de uma pedra para dar conta, pragmaticamente,
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de um desafio ou de um carecimento. A criação, e o somente o uso, de ferramentas
é um processo no qual a forma precisa e específica da finalidade particular é inscrita
diretamente na figura sica e/ou morfológica do meio de trabalho. Guardadas suas
especificidades reais, quebrar, lascar, raspar, talhar, configurar, formatar, são modos
diferentes de conformar a matéria como meio de realização de um objetivo funcional
característico, próprio. Visa-se amoldar o objeto de trabalho numa forma útil ao
carecimento humano.
É importante, além disso, atentar para o fato de que a produção mesma da ferramenta
passa a desempenhar um papel considerável no desenvolvimento das condições dos
sujeitos humanos. Alguns estudos, articulando neurociências e paleoantropologia, têm
levantado dados que permitem reconhecer o caráter formativo da elaboração dos meios.
A este respeito, observa Dietrich Stout
4
que, como mediação de desenvolvimento
cognitivo, na produção de meios o decisivo é o tipo de ferramenta que fazemos e como
aprendemos a fazê-las. Entre primatas, os humanos na verdade sobressaem em sua
habilidade de aprender um com o outro (STOUT, 2016, p. 26). Ademais, o pesquisador
aponta, também aqui, para a centralidade da mediação social no aprimoramento
cognitivo por meio da elaboração de ferramentas. Trata-se de uma aprendizagem
tipicamente social, que se arrima na imitação, mas a supera numa relação em que o
grupo assume em conjunto as formas de moldar o material.
A potencialidade formativa da atividade que formata materiais finalisticamente tornando-
os ferramentas é atestada, segundo o autor citado, por uma série de experimentos que
se servem de tecnologias de imageamento. Deste modo,(...) os circuitos para produzir
ferramentas vistos em nossos estudos com PET, MRI e DTI eram, na realidade, mais
extensos em humanos do que em chipanzés, sobretudo em conexões com o giro frontal
inferior direito (STOUT, 2016, p. 31). Estas investigações exploratórias funcionais têm
revelado um conjunto de evidências de desenvolvimento cumulativo resultantes de
diversas mudanças verificadas em momentos relevantes de inflexão na produção dos
meios de trabalho. Algumas destas evidências datam de 1,6 milhões a 200 mil anos atrás
(STOUT, 2016, p. 29).
Em tais ensaios, voluntários, monitorados por sensores de imageamento cerebral,
reproduziam os modos de entalhar típicos de épocas diversas. Verificou-se que quanto
mais sofisticadas são as técnicas de fabricação tanto mais áreas cerebrais são
envolvidas na realização dos movimentos. O que sugere uma conexão entre o tipo de
elaboração na qual o sujeito se engaja e o refinamento das funções de coordenação. Por
esta razão, Stout afirma que esta observação forneceum poderoso novo apoio para a
velha ideia de que a fabricação de ferramentas no Paleolítico ajudou a formar a mente
moderna (STOUT, 2016, p. 31). Neste sentido, o teor complexo que configura a
ferramenta em diferença com a simples instrumentalização de elementos do ambiente
ganha mais um indício proveniente da cientificidade contemporânea. A sofisticação
aludida pelo autor mais acima remete exatamente à configuração da forma material do
meio em correspondência ao telos específico que se busca em seu uso.
Por conseguinte, a figura, Gestalt, das ferramentas, desde momentos mais primevos da
produção humana, testemunha essa determinação, que se tornará no curso
evolucionário-histórico um ponto irreversível e peculiar ao humano. O exame da forma
propriamente humanizada do instrumento auxilia na percepção e explicitação de um
4
Professor de antropologia na Universidade Emory. Seu foco de pesquisa sobre a fabricação de ferramentas de pedra no Paleolítico,
integra métodos experimentais de diversas disciplinas, variando da arqueologia à imagem cerebral.
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dado modus operandi relativo exclusivamente aos indivíduos e grupos societários.
Permite, ademais, a evidenciação de aspectos que delimitam a prática típica do humano
e estabelecem na esfera ontológica uma diferenciação específica para com os demais
viventes; mesmo frente aqueles mais próximos no itinerário evolucionário àquele do
gênero Homo. A determinação propriamente social da atividade, que toma a forma da
cultura, ou seja, do cultivo, do desenvolvimento e diferenciação continuada no tempo, é
um aspecto essencial reconhecido amplamente fora das fronteiras do marxismo e das
ciências humanas:
Chimpanzés o muito hábeis no uso de ferramentas, quebram nozes com pedras,
absorvem água de ocos de árvores com folhas e desenterram raízes de plantas nutritivas
com varas de escavar, mas parecem incapazes de aumentar este conhecimento ou de
desenvolver tecnologia mais avançada. Os chimpanzés conseguem mostrar a outros
chimpanzés como caçar cupins”, observa Henshilwood, mas não melhoram nisso”, eles
não dizem: Vamos tentar isso de modo diferente apenas repetem a mesma coisa,
indefinidamente. (PRINGLE, 2013, p. 41).
Aqui se observa um tro distintivo entre as atividades humana e animal com relão à
mobilização de elementos materiais no enfrentamento de demandas e problemas. A
ação do animal é eminentemente reativa, situada numa dada circunstância e, em geral,
atrelada à temporalidade imediata da sua atuação. O desenvolvimento propriamente
técnico não se dá (menos ainda o tecnológico, em seus diversos sentidos possíveis) na
medida em que está em jogo a operação direta de propriedades dos elementos
conforme estes se acham anteriormente configurados. Não se verifica, neste nível do
vivente, o incremento continuado e variado das potências objetivas do animal, o
chimpanzé, por exemplo, apenas por ele conseguir tomar e usar um galho ou uma pedra.
A forma de existir da pedra e do galho não são objeto da atividade do animal, estes
materiais desempenham tão somente um papel mediadormudo, direto, da reação às
demandas da vida. Algo deveras diverso ocorreu na evolução para a modernidade
biológica da espécie e ainda ocorre historicamente no contexto humano, em que se
desenvolvem as mediações especificamente técnicas e de inovação. Desta maneira,
(...) os humanos modernos não sofrem essas limitações. Na verdade, diariamente tomamos
ideias dos outros e lhes damos o nosso próprio toque, adicionando uma modificação após
a outra, até chegarmos a algo novo e muito complexo. Nenhum indivíduo, por exemplo,
surgiu com toda tecnologia complexa incorporada em um laptop: essas conquistas
tecnológicas surgem de percepções criativas de gerações de inventores (PRINGLE, 2013,
p. 41).
A sociabilidade é uma delimitação essencial da atividade humana, que a determina e
possibilita o que se denomina propriamente de invenção, não somente como um
episódio localizado, mas como um padrão emergente de comportamento. Este caráter
imanente da atividade, que se expressa de maneira evidente no desenvolvimento das
ferramentas, é um traço inerente ao processo humano de objetivação, o que faz do
incremento um resultado determinado da forma da cooperação e não simplesmente da
existência ou não de atributos especiais a algum indivíduo tomado isoladamente (Cf.
PRINGLE, 2013, p. 41). O papel do viver em comum em padrão propriamente social, e
não meramente gregário, desempenhou, desempenha e desempenhará um papel
central neste desenvolvimento. Estar desde o início inserido, vinculado e crescentemente
integrado à rede complexa de relações multilaterais e variadas é uma componente
objetiva da inventividade, seja individual seja grupal.
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A MAQUINARIA CAPITALISTA E A MEDIÃO PRODUTIVA SOCIALMENTE
ESTRANHADA
No quadro do desenvolvimento dos meios de prodão, historicamente as comunidades
humanas, em suas relações ativas de apropriação da matéria natural sob uma forma
humana, vieram incrementando progressivamente estes meios e tornando-os mais
potentes e abrangentes. Neste sentido, mais os seres humanos se tornaram capazes de
converter o natural em receptáculo de sua atividade, criando, para tanto, um conjunto de
mediações cada vez mais distanciadas da forma imediata do instrumento.
A ferramenta emerge como modo propriamente humano do meio de trabalho ao ser
resultado da moldagem do natural segundo uma finalidade, ou grupo delas, particular e
determinada. A figura material imediata exibe esta conexão determinativa essencial que
a diferencia do instrumento animal. Neste diapasão, historicamente as próprias
ferramentas igualmente devieram objetos da elaboração ativa dos indivíduos sociais,
atingindo num itinerário social complexo e variegado uma miríade de formas e sentidos
objetivos.
O curso do desenvolvimento histórico propriamente moderno fez aparecer, determinado
e delimitado como forma objetiva de existência do capital, como mediação produtiva do
mais-valor, a máquina e seu sistema. O processo produtivo do capital realizou-se
plenamente na máquina, porquanto o desenvolvimento deste processo tecnológico
tenha sido impulsionado pela demanda de valorização ampliada. No processo de
reprodução da lógica social de produção, por sua vez, própria existência produtiva da
máquina também passa a impulsionar o processo de reprodução. E isto num roteiro de
retroalimentações cuja processualidade é, a princípio, indefinida em seu limite e em sua
extensão temporais. Assim, observa Marx (2013, p. 557) que: A indústria moderna
jamais considera nem trata como definitiva a forma
existente de um processo de
produção. Sua base técnica é, por isso,
revolucionária, ao passo que a de todos os
modos de produção anteriores era
essencialmente conservadora. Em cotejamento com
todos os demais, a differentia specifica do modo capitalista de prodão reside, em
termos técnicos, no fato de que estes estão continuamente sendo revolucionados. Tais
aspectos da objetividade da produção não podem ser tomados isoladamente, mas
sempre em conexão com o princípio social. Neste sentido, a reprodução ampliada do
capital, ou seja, a subsunção de seu caráter produtivo ao processo de valorização,
tornando o processo de trabalho uma mediação subordinada ao incremento de mais-
valor, exprime-se como impulso constante à inovação.
Comparado aos outros modos de produção da vida, o do capital exibe esta
particularidade real de não ser imediatamente dissolvido em seus limites internos pelo
desenvolvimento da força produtiva do trabalho, do incremento da riqueza social.
Diferentemente, integra-o, não obstante de maneira crescentemente contraditória, à
reprodução de seus pressupostos sociais objetivos materiais e formais:
Por meio da maquinaria, de processos químicos e outros todos, ela [a indústria]
revoluciona continuamente, com a base técnica da produção, as funções dos trabalhadores
e as combinações sociais do processo de trabalho. Desse modo, ela revoluciona de modo
igualmente constante a divisão do trabalho no interior da sociedade e não cessa de lançar
massas de capital e massas de trabalhadores de um ramo de produção a outro. A natureza
da grande indústria condiciona, assim, a variação do trabalho, a fluidez da função, a
mobilidade pluridimensional do trabalhador. (Marx 2013, p. 557).
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É importante assinalar igualmente que a integração da maquinaria ao processo de
produção, apesar de sua aparente exterioridade a ele, expressa, ao contrário, a
realização material de suas determinações sociais imanentes. Processo de produção
como processo de produção capitalista, em cujo desenvolvido ocorre a apropriação
determinada de formas operativas imediatas e de seus desdobramentos a cooperão
dos indivíduos trabalhando, os modos pelos quais suas tarefas e interações podem ser
ou bem articuladas ou bem desmembradas que se incorporam ao dispositivo técnico.
Esta apropriação é ela mesma uma transformação determinada destes elementos e
relações produtivos. A maquinaria como existência objetiva do capital in actu, na
produção de coisas e efeitos úteis na forma da mercadoria, é, ao mesmo tempo, uma
variável essencial do desenvolvimento da produção capitalista. Os caminhos da
inovação tecnológica correspondem à alteração de um conjunto de rotinas de
interatividade social, as diversas divisões técnicas e sociais que se mobilizam na
produção do mais-valor.
Este revolucionamento constante e progressivo, de um lado, transtorna continuamente
os modos de organização da força de trabalho em suas operações no processo de
trabalho real. Por outro lado, ao modificar os regimes relativos de produtividade dos
diversos ramos da produção, também altera a distribuição das forças de trabalho,
individualmente e em seu conjunto, pelos diferentes elos da cadeia produtiva. As
características mobilidade e versatilidade que são exigidas da força de trabalho viva não
são mais qualidades extraordinárias e sim componentes formais normais que se
tornam regra. Na época renascentista, por exemplo, onde a subsunção do processo de
trabalho ao de valorização era puramente formal, em que várias formas de produzir eram
assenhoradas pela capitalização sem que necessariamente elas fossem transformadas
em essência, o que se tornou versatilidade se expressava excepcionalmente como
polivalência do gênio. Muitas figuras individuais incorporavam a versatilidade na forma
duma integração sintica de capacidades num dado ofício. A versatilidade
autenticamente capitalista é, por conseguinte, de outra natureza: corresponde à
desarticulação da particularidade ativa dos indivíduos, regida por uma crescente
abstração com relação aos ofícios em sua efetividade.
A mudança constante do mercado de trabalho, do espaço de aquisição do usufruto das
capacidades produtivas, exprime esta delimitação essencial como movimento cotidiano
e constante de mutação das demandas do capital. Diferentemente da produção
medieval, na época do desenvolvimento das corporações, por exemplo, em que o sujeito
trabalhador estava diretamente subsumido a um ramo, cuja alterão correspondia à
alteração de seu caráter social como trabalhador. Na modernidade capitalista, na época
da subsuão real dos processos de trabalho como processos de valorização, esta
mudança constante entre vários loci de trabalho é um desdobramento da produção do
capital como tal.
Ademais, a mobilidade constante da força de trabalho existe não somente no sentido de
se dar entre os diversos nichos e unidades de produção e sua versatilidade em relão
aos diferentes capitais e seus loci. Esta fluidez, como a caracterizará Marx, também se
verifica no nível de uma mesma planta de produção. O lugar do operário passa a ser
determinado pela demanda efetiva e mutante do mais-valor, não se fixando mais, e
menos ainda principalmente, em razão da especificidade de um ocio ao qual a unidade
das capacidades de trabalho responderia. A particularidade da determinação material da
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força de trabalho tende a dissolver-se, mesmo quando o trabalhador permanece ligado
e submetido a um dado capital o tempo todo, em sua determinação formal de criadora
de valor/mais-valor. O comando do processo de produção, ao passar da operação dos
movimentos do trabalhador para aqueles da maquinaria, resulta na anulão virtual das
especificidades da força de trabalho em sua concretude.
Evidentemente, cada processo de trabalho subsumido como processo de valorização
no contexto da produção de mais-valor guarda sua peculiaridade real e exige do
trabalhador determinados movimentos e mobilizações operacionais. No entanto, o que
determina o lugar do trabalhador no processo não está mais determinado, como
inicialmente, pela natureza peculiar de suas capacidades. Ao contrário, são as
demandas do capital, o qual subsumiu de forma real o processo de trabalho, que se
afirmam como momentos preponderantes, acima das, e subsumindo a si, as mediões
objetivas de natureza técnica. Por conseguinte:
Por outro lado, ela [a indústria] reproduz, em sua forma capitalista, a velha divisão do trabalho
com suas particularidades ossificadas. Vimos como essa contradição absoluta suprime toda
tranquilidade, solidez e segurança na condição de vida do trabalhador, a quem ela ameaça
constantemente com privar-lhe, juntamente com o meio de trabalho, de seu meio de
subsistência; (...) (MARX, 2013, p. 557).
Há que se notar, entretanto, que a diferenciação essencial radicada na grande indústria
capitalista o seu constante revolucionamento, que, por isso, transtorna constantemente
as formas de trabalho e as delimitações que lhe são inerentes -, não significa, contudo,
o revolucionamento cabal da produção sob a égide da propriedade privada, ou seja, a
sua abolição. Aquelas formas, seus modos de divisão e distribuição técnica, se sujeitam
à heteronomia da força de trabalho viva particular da propriedade privada e assumem,
agora, o caráter capitalista. Algumas dessas formas de desmembramento do processo
produtivo, que são anteriores ao capital e/ou não capitalistas, são integradas sob um
novo princípio, o da produção do mais-valor e da valorizão do valor das condições
objetivas. Este é, segundo Marx, um aspecto histórico contraditório transitivo. As divisões
permanecem e se aprofundam, sem que tenham como princípio social sua
determinação propriamente técnica. Por este motivo,
(...) juntamente com sua função parcial, ela torna supérfluo o próprio trabalhador; como essa
contradição desencadeia um rito sacrificial ininterrupto da classe trabalhadora, o desperdício
mais exorbitante de forças de trabalho e as devastações da anarquia social. Esse é o
aspecto negativo (MARX, 2013, p. 557).
Em regra, as alterações trazidas pela integração de novos processos e mediações
tecnológicas resultam, em verdade, no aprofundamento do caráter estranhado da
relação do trabalhador com sua atividade, ao invés de tornar esta última um espaço
formal de autorrealização. Sua inserção no contexto do processo de trabalho estará
sempre em risco de ser ou continuadamente modificada ou de simplesmente cessar, em
razão de sua substituição potencial por uma parte do capital constante.
Este aspecto axiologicamente negativo, ocasionado pela vigência contraditória da
assimilação do desenvolvimento de força produtiva objetiva, é ao mesmo tempo um
brutal descarte de forças de trabalho que poderiam ir se reconfigurando livremente em
correspondência com a emergência de novas características da atividade. Estas não são
formas de estimulação do enriquecimento do sujeito que trabalha. Ao contrário disso, o
aprendizado, quando estimulado, exprime uma redução cada vez mais acentuada da
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composição complexa da capacidade de trabalho em benefício de uma simplificação
operatória. O que empobrece a individualidade do trabalhador e faz de sua conexão à
produção uma intermitência sôfrega oscilante. Por uma parte, a submissão destruidora
de sua capacidade criativa, o que transforma o próprio trabalho numa oblação ao tédio e
à falta de sentido. E, de outra parte, a iminência real de ver-se simplesmente convertido
em parte da população supérflua, indivíduos desempregados e virtualmente
descartáveis.
Assim, na medida em que a versatilidade não corresponde ao resultado de deliberação
livre dos indivíduos que produzem, mas, por assim dizer, corre acima deles como uma
lei transcendental, e abaixo deles como um curso que os sujeitos seguem
independentemente de sua capacidade de resistência, a naturalidade aparente ou a
aparência natural destas formas sociais se afirma vigorosamente frente a eles. A
polivalência existe somente como a imposição de um esvaziamento da personalidade
concreta do trabalhador frente às condições objetivas devindas em capital e às condições
sociais, o conjunto das relações de produção sociais, como algo diretamente decorrente
de uma destinação marcada na natureza das coisas.
Deste modo, não obstante o empobrecimento seja uma consequência ontologicamente
necessária do trabalho assalariado, este tende a tomar uma forma mais relativa que
absoluta. Não que a pura e simples miserabilidade do trabalho e de seu sujeito real se
veja revogada ou reduzida a uma mera circunstância ou, ainda, em efeito marginal.
Evidentemente, o caráter obrigatoriamente assimétrico imanente à relação capitalista de
assalariamento, que pressupõe antes de tudo a separação essencial entre a força de
trabalho e os meios de produção, faz com que o pauperismo, em suas formas mais
imediatas e pungentes, seja uma realidade virtualmente permanente, mesmo nos
momentos áureos da produção e dos ciclos de realizão. Entretanto, o empobrecimento
levantado aqui é de natureza relativa e denuncia a natureza contraditória da relão entre
os princípios do processo de produção capitalista e a existência determinada da força de
trabalho engendrada por este processo de produção. É uma processualidade que se
realiza normalmente na reprodução sistêmica da totalidade social orgânica do capital.
Desta maneira, à progressão contínua da forma de existência das forças produtivas
objetivas corresponde, para a força de trabalho, uma dupla consequência. Como
assevera Marx:
Ela transforma numa questão de vida ou morte a substituição dessa realidade monstruosa,
na qual uma miserável populão trabalhadora é mantida como reserva, pronta a satisfazer
as necessidades mutáveis de exploração que experimenta o capital, pela disponibilidade
absoluta do homem para cumprir as exigências variáveis do trabalho (MARX, 2013, p. 558).
De um lado, a expansão dos sistemas tecnológicos, no nível do processo de trabalho,
tem como consequência inevitável da substituição proporcional de trabalho vivo a criação
do exército industrial de reserva. Uma massa humana colocada em stand by seja para
uma eventual expansão da atividade, seja para se converter em dispositivo social de
regulação do preço da força de trabalho em épocas de pressão desfavorável ao capital
no contexto do mercado de trabalho. De outro, ao contingente que permanece inserido
no processo de produção, a demanda de reelaboração de suas capacidades de trabalho
emerge, tanto para os trabalhadores quanto para o capital, como um item necessário de
sua reprodução.
A Marx, entretanto, este lado do processo unitário de administração da força de trabalho
pelo capital aparece portando a virtualidade de tornar relativamente amplo o horizonte de
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elementos que fazem parte das capacidades de trabalho dos indivíduos, trazendo a
substituição do indivíduo parcial, mero fragmento humano que
repete sempre uma
operação parcial, mero portador de uma função social de
detalhe, pelo indivíduo
plenamente desenvolvido para o qual as diversas
funções sociais são modos alternantes
de atividade (MARX, 2013, p. 558). Apesar de seu conteúdo imediato mais limitado a
apenas tornar o trabalhador capaz de transitar entre os diversos nichos de um mesmo
processo produtivo, esta virtualidade se põe na medida em que a polivalência
necessariamente precisa contemplar um acervo extensivamente maior que aquele
relacionado ao ofício parcelado da manufatura. Deste modo, embora isso não se reverta
numa composição intensivamente diversificada na pessoa do trabalhador, como síntese
de aspectos multilaterais numa única atuação, relativamente à situação anterior, é um
momento de enriquecimento de capacidades para o indivíduo.
Obviamente, que esta mutação, ressalte-se, não se dá em nome da formação
multilateral do próprio indivíduo e sim em atendimento à demanda essencial do
desenvolvimento do processo de valorização. Por esta razão, o acento não es
colocado propriamente numa politecnia e sim numa polivalência. A primeira requer uma
integração de conhecimentos e aprendizados diversos numa competência criativa de
processos. A segunda indica uma qualidade da força de trabalho de se engajar em
tarefas diferentes a cada momento consoante as exigências do processo produtivo. No
primeiro caso, a elaboração de capacidades de trabalho que abrangem em si, num
mesmo exercício ou em atuações diferentes, insumos provindos das diversas áreas do
saber e do fazer humanos. Já no segundo caso, o sujeito se torna capaz de interagir com
a atividade produtiva em qualquer de seus componentes ou momentos isoladamente
considerados.
Os dois sentidos, porém, não são de per se excludentes. Pode-se ter uma formação
técnico-tecnológica que ao mesmo tempo habilite o sujeito a atuar em diferentes estágios
de um processo de produção específico, a partir de um acervo politécnico sinteticamente
dado em sua individualidade operativa. Da mesma maneira, igualmente se pode pensar
numa atuação mais direcionada a um aspecto do processo, na qual se mobilize
capacidades e conhecimentos de diferentes campos. No contexto da prodão
capitalista, contudo, está não é uma linha de tendência necessária; quando muito,
aparece como um efeito secundário. A multilateralidade é vivenciada limitadamente, seja
no sentido do quantitativo de trabalhadores, seja no sentido das situações concretas do
processo de trabalho.
MARX E A TÉCNICA COMO MEDIÃO PEDAGÓGICO-FORMATIVA
Em sua compreensão crítico-categorial do capital e do desenvolvimento das forças
produtivas do trabalho social que lhe corresponde, Marx chama a atenção para o fato de
que, virtualmente, o processo histórico da produção capitalista inaugura a possibilidade
de uma elaboração multilateral da força de trabalho. Ou seja, a possibilidade da
superação da individualidade compartimentalizada, mero fragmento humano que
repete
sempre uma operação parcial em direção ao indiduo plenamente desenvolvido para o
qual as diversas
funções sociais são modos alternantes de atividade. Neste diapasão, a
interatividade capitalista, conquanto na afirmação de suas contradições, na medida em
que coloca como essencial esta demanda de versatilidade da força de trabalho,
igualmente reivindica e impulsiona alterações de monta na formação do sujeito produtor.
Neste sentido é
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Uma fase desse processo de revolucionamento, constituída espontaneamente com base
na grande indústria, é formada pelas escolas politécnicas e agronômicas e outra pelas
écoles denseignement professionel em que filhos de trabalhadores recebem alguma
instrução sobre tecnologia e manuseio ptico de diversos instrumentos de produção
(MARX, 2013, p. 558).
Por conseguinte, a educação como ocio e ramo de atividade social passa a exprimir
esta modificação morfológica essencial da relação pela qual o capital subsume o
trabalho. Esta transformação é importante na medida em que corresponde a uma
reconfiguração do processo de produção que reverbera mediatamente sobre o terreno
constituído pelos contextos escolares. Tais alterações significam também mudaas de
monta nas formas como se entende e se organiza a vida escolar e suas atividades
educativas. Faz surgir, ademais, a figura de uma nova instituição social educativa
diferente daquela voltada ao ensino propedêutico e à educação de caráter mais geral.
Trata-se aqui de escolas cujo assunto principal é o desenvolvimento da técnica e a
preparação para o trabalho na grande indústria.
Evidentemente que Marx não as considera o ápice da formação humana possível nem
abstrai a questão decisiva de que tais estabelecimentos estão organizados de modo a
articular-se com as demandas da indústria capitalista e não propriamente por motivos
pedagógicos ou voltados para uma nova formação humana em geral, pois ainda não se
está a haver aqui com a superação do capital como tal, e sim com um seu
desenvolvimento contraditório. Neste sentido, a forma capitalista de produção e as
condições econômicas dos trabalhadores que lhe correspondem encontram-se na mais
diametral contradição com tais fermentos revolucionários e sua meta: a superação da
antiga divisão do trabalho (MARX, 2013, p. 588). No entanto, é ao mesmo tempo
possível e necessário entender tal processualidade social objetiva em seu talhe
contraditório mais amplo. Em outros termos, o processo social que assimila a ciência e a
tecnologia ao capital, por meio da integrão dos dispositivos e redes de máquinas ao
processo de trabalho, põe simultaneamente uma situação nova para o contingente
populacional que produz riqueza. Pela primeira vez na história, os avanços científicos e
tecnológicos, mesmo que em alíquotas reduzidas, devêm assunto da produção e do
sujeito. Algo impensado nas formas anteriores e diferentes de produção social da vida.
A produção da riqueza em larga escala e o conjunto de pressuposições que se tem de
responder e reproduzir em correspondência com ela trazem esta consequência social
importante. À inserção significativa dos processos tecnológicos no contexto produtivo,
corresponde também a emergência de uma nova figura do trabalhador. Trabalhador
livre, ontologicamente pauper, mas que não é mais uma mera condição de produção
entre outras. Defronta o proprietário dos meios de produção, com sua personalidade,
certamente em assimetria, na qualidade de pessoa. Não à toa, a perspectiva da luta
social pela representação junto ao poder é algo posto pelo próprio horizonte burguês ao
trabalhador. Esta determinidade especificamente moderna, para a qual Marx já chamava
a atenção em Sobre a Questão Judaica (MARX, 2010, p. 39-40), abre um espaço para
que este processo de reelaboração da força de trabalho poderia, não obstante os
estreitos limites do horizonte capitalista, ser redimensionada da perspectiva social
(Standpunkt) do trabalho:
Se a legislação fabril, essa primeira concessão penosamente arrancada ao capital, não vai
além de conjugar o ensino fundamental com o trabalho fabril, não resta dúvida de que a
inevitável conquista do poder político pela classe trabalhadora garantirá ao ensino teórico e
prático da tecnologia seu devido lugar nas escolas operárias (MARX, 2013, p. 558).
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Neste sentido, nada mais estranho ao pensamento marxiano que a redução da posição
crítica a um puro exercício discursivo niilista ou unilateralmente situado em relação aos
desenvolvimentos da sociabilidade concreta. A existência mesma de uma tessitura
contraditória na realidade social finita e determinada não convida a uma dissolução
dialética negativa, que derroga o existente em benecio de um pensamento cuja
criticidade residiria na simples denegação da objetividade, em nome somente de um
sistema valorativo a priori. Ao contrário, o caráter realmente crítico de um pensar se
desvela e se afirma na medida em que por este se é capaz de perceber, sem ilusões,
mas também sem a elegante aparência do auto-aniquilamento, possibilidades e
virtualidades de atuão e resposta sociais. Da diminuição da jornada de trabalho aos
sistemas, ainda quenimos, de seguridade social, as diversas conquistas gerais dos
trabalhadores tiveram por pressuposição dupla tanto o desenvolvimento contraditório
das formas do capital quanto o medrar da auto-organização das lutas.
É exatamente este o sentido preciso das diversas intervenções marxianas no curso dos
debates motivados pelo emergir e posterior avanço da atuação política dos
trabalhadores. Desde sindicatos a organizões políticas em sentido estrito, passando
pelas formas mediadoras da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), todos
os embates vivenciados pela classe produtora de riqueza contaram com o
acompanhamento e participação ativos de Marx. Dentre as diversas querelas e
demandas que requereram esclarecimento conceitual e ideológico respondidas por ele,
estão aquelas relacionadas às proposituras acerca da educação e de sua organização
a partir do Standpunkt social dos trabalhadores. Na sequência, alguns destes momentos
serão visitados com o fito de encontrar subsídios conceituais à compreensão do que,
marxianamente, poderia ser definido como formação humana tecnologicamente
mediada.
Em determinados documentos pelos quais se manifestou, bem como em certos
momentos analíticos de O Capital, Marx exprimiu o que considerava propriamente como
uma educação omnilateral. Tanto nuns quanto noutros, teceu uma série de comentários
e encaminhou discussões buscando articular quatro complexos determinativos.
Primeiramente, o entendimento crítico do modo de produção capitalista. Em segundo
lugar, a forma como, neste modo de produzir a vida, o desenvolvimento tecnológico é
integrado à produção. Em terceiro lugar, as relações que os sujeitos produtores têm com
as tecnologias e, por fim, como a formação do indivíduo pode ser abordada no
cruzamento destas determinações.
Ou seja, Marx não desenvolve propriamente uma teoria autônoma da educação. Ao
contrário, compreende a organização das formas de constituição educativa do sujeito,
tanto as formais quanto as informais, em conexão com as contradições da produção
capitalista. Entretanto, assim o faz não apenas para abordar criticamente os limites da
humanização dentro do quadro de categorias da produção do capital. Busca, além disso,
igualmente delinear um campo de virtualidades que podem ser tratadas pela ação
revolucionária dos grupos organizados do lado do trabalho em seus confrontos com os
do capital.
Desta maneira, os diversos aspectos que virtualmente podem encaminhar a superação
da estreiteza da formação humana no contexto capitalista são trazidos à luz e abordados
como elementos que portam um virtus emancipatório. Este caráter emancipatório virtual,
frise-se, não é existente diretamente como práxis de teor emancipador. Ou seja, na forma
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em que tais elementos se encontram articulados na atualidade social capitalista, estes
não possuem por si mesmos uma potência imediatamente transformadora. Deste modo,
é necessária uma atuão do movimento dos trabalhadores sobre estes elementos, no
sentido de interferir em sua funcionalidade imediata como educação formadora de força
de trabalho na direção de ir construindo espaços formativos para uma educação
omnilateral.
Nas Instruções aos Delegados do Conselho Central Provisório da AIT, de 1866, Marx,
demarcando a necessidade de se ir além da configuração formativa posta pelas
demandas estritas da produção capitalista, afirma que:
Por educação entendemos três coisas:
1. Educação Intelectual.
2. Educação corporal, tal como a que se consegue com os exercícios de ginástica e militares.
3. Educação tecnológica, que recolhe os princípios gerais e de cater científico de todo o
processo de produção e, ao mesmo tempo, inicia as crianças e os adolescentes no manejo
de ferramentas elementares dos diversos ramos industriais (MARX, 2004, p. 60).
Nesta enumeração de condições a serem satisfeitas por uma educação da posição do
trabalho, Marx indica os elementos necessários para pensar um processo formativo
diferenciado do sujeito humano. Ao elaborar este elenco determinado, busca mostrar
como uma nova organizão da atividade pedagógica deve ampliar os horizontes dos
indivíduos na medida mesma em que passa a abranger articuladamente os diversos
aspectos da atividade humana.
Marx pretende claramente aqui que a grade de conteúdos e práticas a serem
desenvolvidos juntos às crianças e jovens se estruture no sentido de oferecer uma gama,
não apenas variada, mas bastante abrangente de assuntos e temas. A educação
intelectual voltada ao conhecimento das ciências, artes e saberes permanece como
base. No entanto, a esta se aditam, adensando-a, outras modalidades de formão, com
o evidente sentido de: a) dirigir-se à totalidade do indivíduo vivo e não apenas à
intelectualidade como uma força isolada das demais da corporeidade; b) evidenciar ao
indivíduo em formação desde a mais tenra idade a riqueza e complexidade da relação
humana com o mundo; c) incluir na pauta educativa a experimentação formativa da
elaboração produtiva como mediação de conhecimento e autoconhecimento do sujeito
vivo. Estas diretrizes, evidentemente, vigem sob a condição estrita da correspondência
entre a seleção de conteúdos, materiais, assuntos e práticas e cada momento formativo
diferente de crianças e jovens.
A ominilateralidade da pessoa é uma meta, ao mesmo tempo que pressuposição
em construção concreta, da educação. Os seus diferentes momentos
integradores e etapas de desenvolvimento são pensadas no sentido de tornar o
sujeito capaz de se auto-apropriar na medida em que se apropria formativamente
do mundo. Neste sentido, com o fito se atingir a ominilateralidade, o trabalho
vigora como elemento central do processo educativo.
Trabalho que é entendido em sua significação mais ampla, superando o seu
entendimento como simples meio de sobrevivência imediata. A atividade
produtiva integra a totalidade de mediações como um momento preponderante,
porquanto é na atuação, na experimentação da realização concreta de si, que
os indivíduos podem ter uma noção exata da relação entre o humano e o mundo.
Assim, além de se articular o trabalho às dimensões intelectual e física, deve-se
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propiciar a integração entre saber e fazer por via da educação científico-
tecnológica.
Neste passo é importante compreender os motivos que levam a elaboração
marxiana a esta propositura. Afinal, como Marx entende as interconexões entre
tecnologia, processo de produção e desenvolvimento multilateral dos indivíduos?
Em O Capital Marx observa que, para além de seu caráter instrumental, a
“tecnologia desvela a atitude ativa do homem em relação à natureza”, ou seja,
trata-se da objetivação de um traço ontológico essencial do comportamento dos
indivíduos frente ao ambiente. Não é uma simples “relação” em abstrato, como,
por exemplo, “ser lançado no mundo” ou “um estar no mundo”, mas, sim, de um
estar no mundo que se realiza como atuação sobre o ambiente circundante,
sobre a materialidade natural. Neste sentido rico, os processos tecnológicos
exprimem, como ele continua nas linhas seguintes, “o processo imediato de
produção de sua vida e, com isso, também de suas condições sociais de vida e
das concepções espirituais que delas decorrem” (MARX, 2013, p. 446.). Por
conseguinte, o exercício produtivo incorporado, possibilitado e realizado nas
tecnologias, e como tecnologias, supera em sua essência, a aparência
meramente instrumental. É uma autorrealização expressiva que se desdobra
como mediação numa processualidade virtualmente infinita, na medida em que
cada ato mediado tecnologicamente como o era, no caso das ferramentas
mais simples se transforma num elo de uma cadeia cuja existência pode se
desdobrar indefinidamente. Deste modo, a produção tecnológica mediada é
também uma reprodução da tecnologia de mediação, num circuito de
retroalimentação contínua em correspondência, evidentemente, com as suas
condições reais de manutenção.
Marx vê na inserção, mesmo estranhada, da cientificidade como força produtiva
do trabalho social na figura da maquinaria e da grande indústria por ela
suportada alguns elementos virtuais de uma reformulação cabal da formação do
sujeito social. Isto porque, primeiramente, ao contrário da economia política
clássica, no pensamento marxiano se distinguem as existências concreta e
formal da força produtiva. A força produtiva objetiva não é, por natureza, capital,
tampouco o capital é uma coisa. Este último é uma forma de ser (Daseinsform)
particular de um dado período histórico humano, uma forma social de existir que
expressa, por sua vez, o modo como socialmente se organiza a produção e se
mobilizam suas condições. Em segundo lugar, e por este motivo, por mais que
as tecnologias usadas capitalisticamente se apresentem de modo concreto como
forças de subsunção do trabalho ao capital, esta forma de ser não simplesmente
anula sua existência de valor de uso. Ao contrário, as formas de valor da
mercadoria valor e valor de uso exprimem nos meios de produção sua tensão
constitutiva numa potência contraditória ainda maior. O fato de a forma capital
poder contornar suas contradições pela produção maciça de mais-valor não
destrói seus tensionamentos, apenas os transfere para a esfera da circulação e
da mensuração do valor medido como tempo socialmente necessário.
Por este duplo motivo, em sua analítica, Marx pode asseverar que a partir da
obra de Robert Owen, por exemplo, seria possível vislumbrar como no contexto
mesmo desta contradição “brota o germe da educação do futuro, que de
conjugar, para todas as
crianças a partir de certa idade, o trabalho produtivo
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com o ensino e a
ginástica” (MARX, 2013, p. 554). As tecnologias desempenham
aqui o papel de elemento de efetivação de uma propositura educativa integrada
e integradora das dimensões humanas reais. E é interessante que este
desempenho possível significa, no fundo, igualmente romper com a visão
reducionista da mobilização tecnológica na educação como mera formação de
mão de obra adequada à produção do mais-valor. A educação técnico-
tecnológica uma vez integrada, e o somente inserida, no processo educativo
formal apresenta-se, no fundo, “como
único método para a produção de seres
humanos desenvolvidos em suas
múltiplas dimensões” (MARX, 2013, p. 554).
É importante ressaltar que consoante o padrão de pensamento marxiano, a
busca por uma nova formatação do processo educativo não parte nem de um
posicionamento desiderativo, utópico, nem, ao contrário, de uma subsunção
direta da educação à forma da sociabilidade. Marx, evidentemente, estava
consciente do caráter necessariamente reprodutor da educação. Entretanto, isto
não significa a aceitação pura e simples deste papel mediador ao modo de uma
sujeição da atividade à forma da sociabilidade sem mais. Reproduzir é sempre
produção retomada num patamar diferente do anterior, seja num sentido
material, seja numa significação formal. Reproduzir não é repor. Por este motivo,
Marx está sempre atento aos aspectos virtualmente divergentes dentro da
própria totalidade social, mesmo que esta divergência normalmente não
ultrapasse o umbral do próprio modo.
A proposta assim se delineia a partir da realidade social, ainda que no sentido
de sua superação. Por isso, não se trata de uma utopia educacional.
Diferentemente, a inventividade das proposituras educacionais a partir do
Standpunkt do trabalho devem se arrimar nos elementos e relações contidos in
nuce dos processos tecnológicos e em suas mobilizações sociais. Formular e
elaborar intervenções no sentido de estruturar mediações educativas que
tensionem os limites do capital.
Este tensionamento possui ele mesmo um duplo significado. De um lado, é um
tipo de cisalhamento, uma ação pela qual as forças que agem sobre uma área
provocam um deslocamento em planos diferentes, mantendo o volume
constante. Ou seja, não obstante mantendo-se nos limites determinados pela
sociabilidade, provoca-se, num mesmo espaço socialmente configurado, um
efeito de transformação relativa, de deslocamento de ênfases da prática. De
outro lado, o tensionamento pode provocar uma diferença de potencial de saída
dos sujeitos formados. Esta, por mínima que seja, em sua diversidade pode devir
em subsídio de atuação com caráter diferenciado e divergente em relação às
formas preponderantes da interatividade social. Uma educação tecnológica
socialmente posicionada pelo trabalho, por exemplo, põe o acento não sobre o
controle externo e/ou administrativo do processo de produção e sim sobre as
formas de auto-organização tecnicamente racionais. Protocolos de atuação
conjunta e cooperativa que podem ser apreendidas e operadas de dentro do
processo.
De modo que, partindo do que até aqui se discutiu sobre as observações
marxianas, pode-se considerar como se daria uma efetiva formação científico-
tecnológica academicamente. Esta propositura é deveras diversa tanto da forma
da elaboração de braços e cabeças dóceis para a cooperatividade estranhada
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do capital, quanto daquela que pretende produzir elites intelectuais, cujas
erudição e disposição são esvaziadas de sentido. O tema da educação, em que
pese a consideração das possibilidades dadas no modo de produzir do capital,
corresponde, em termos marxianos, tanto quanto o das formas de sociabilidade
em geral, à identificação de determinadas virtualidades de desenvolvimento.
Virtualidades as quais caberia ao próprio movimento organizado dos
trabalhadores, dentro de suas delimitações reais, esforçar-se para trazer à cena
social de um modo rearranjado, como se pode depreender da leitura das
referidas Instruções aos Delegados do Conselho Central Provisório da AIT e da
Crítica ao Programa de Gotha, redigida por Marx em 1875 (MARX, 2012, p. 45-
46). O sentido do tomar a educação como problema social pela perspectiva do
trabalho supera necessariamente o viés imediato e canhestramente colocado
pelas demandas de apaziguamento político-estatal das contradições da
produção e dos antagonismos das classes.
O postulado desenvolvimento dos indivíduos inclui, pois, o momento da
experimentação da produção como item que abre a possibilidade de vivenciar o
trabalho como objetivação de si, de modo algum na forma de uma educação
somente para fornecimento de força de trabalho. A formação defendida por Marx
tem como fim a apropriação pessoal de uma totalidade de forças produtivas.
Dessa maneira, a organização do processo educativo deve cifrar-se pela
virtualidade da individualidade formada em sua integralidade possível. Cada um
dos pontos elencados pelo pensador alemão indica e conforma um telos prático
de reelaboração do ambiente educativo como um todo na direção daquela
construção. A ordenação serial, por exemplo, não tem mais como fundamento
apenas a identificação abstrata de fases estanques, mas antes pressupõe o
acompanhamento do ser humano em formação: “À divisão das crianças e
adolescentes em três categorias, de nove a dezoito anos, deve corresponder um
curso graduado e progressivo para sua educação intelectual, corporal e
politécnica” (MARX, 2004, p. 60). Os conteúdos e práticas, igualmente, passam
a abranger itens e composições nos quais a intencionalidade formativa de um
indivíduo integral e progressivamente consciente de sua integralidade em
elaboração é uma meta a ser buscada pelos meios disponíveis e pela criação
livre de outros tantos por parte do educador. Ademais, Marx evidencia com
argúcia, a partir da documentação existente à época (relatórios de inspetores de
fábricas e escolas, bem como de discursos proferidos por estudiosos), o quanto
uma educação baseada na conjugação entre conhecimento e produção pode ser
transformadora do processo de aprendizagem em geral. Neste sentido,
remetendo ao discurso de Senior, no Congresso de Sociologia de 1863, em
Edimburgo, observa que:
[...] a jornada escolar unilateral, improdutiva e prolongada das crianças das classes mais
elevadas e dia aumenta inutilmente o trabalho dos professores, "enquanto ele desperdiça
o tempo, a saúde e a energia das crianças de um modo não só infrutífero, como
absolutamente prejudicial" (MARX, 2013, p. 554).
A combinação pedagógica da formação geral de caráter teórico com aquela voltada ao
exercício educativo de ofícios e técnicas pode revelar-se uma estratégia que transforme
positivamente as rotinas escolares. Por meio desta integração se consegue
potencialmente mobilizar aspectos positivos, seja no que tange ao estímulo cognitivo,
seja na variação da exigência da atenção, que reciprocamente fortaleçam ambos os
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momentos. Cada um dos momentos desempenharia o papel de ser, em revezamento,
tanto a preparação intelectual e prática para o outro, quanto de promoção de intervalo de
aprendizagem e de consolidação de memórias intelectivas e práticas.
Este exemplo evidencia como a existência de muitos lados ou dimensões não precisa
mais existir como pura justaposição de papéis, presentes ou futuros, que se tenha de
desempenhar em excludência, absoluta ou relativa. Diversamente, a pressuposição é a
de que precisam ser integrados na figura de um indivíduo integralizado pela educação.
A apropriação de si no ato de apropriação das coisas se torna, assim, um repto
reconhecido, enunciado e delineado a se expressar na organização de uma prática
escolar que a realize deliberadamente.
REFERÊNCIAS
CHASIN, José. Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo: Boitempo Editorial, 2009.
MARX, Karl. O capital crítica da economia política, Livro I. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013.
MARX, Karl. Sobre a queso Judaica. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010.
MARX, Karl. Textos sobre educação e ensino Karl Marx e Friedrich Engels. São Paulo: Centauro, 2004.
PRINGLE, Heather. A evolução da criatividade. Scientific American Brasil, ano 11, n.º 131, p. 64-71, 2013.
STOUT, Dietrich. Contos de um neurocientista da Idade da Pedra. Scientific American Brasil, n.º 168, p.
25-31, maio, 2016.
Data da submissão: 21/08/2020
Data da aprovação: 27/08/2020