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DOI: https://doi.org/10.35699/2238-037X.2021.25729
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/
PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E SAÚDE DO TRABALHADOR :
REVISÃO E PERSPECTIVAS
1
Precarization of work and health of worker: review and perspectives
CABRAL, Ivens Bruno Vieira
2
SILVA, Pedro Henrique Nobre da
3
SOUZA, Diego de Oliveira
4
RESUMO
O objetivo deste estudo foi analisar a literatura sobre a precarização do trabalho e a sde do
trabalhador, vislumbrando as perspectivas de investigação/intervenção. Para tanto, foi realizada uma
busca por artigos na Biblioteca Virtual da Sde (BVS), seguida de uma análise crítica. Definidos os
cririos de busca e seleção, foram selecionados 22 artigos para alise. A literatura consultada traz
importantes contribuições sobre a relação entre a precarização do trabalho e a saúde do trabalhador,
sobretudo para os trabalhadores da saúde, ratificando a amplificação desse femeno ante a
reestruturão produtiva. Destacaram-se produções das áreas da Psicologia, Enfermagem e Sde
Coletiva, mas com substancial incorporação de categorias teóricas da Sociologia do Trabalho. Por outro
lado, categorias teóricas de clássicos da Sde do Trabalhador e Saúde Coletiva de base marxista
podem, ainda, ser recuperadas com maior ênfase, a fim de elucidar os efeitos espeficos do mundo do
trabalho na sde. As investigações daqui em diante devem focalizar na questão da uberização, mas
sem isolar esse fenômeno da dimica geral de reprodução do capital. Faz-se necesrio o
fortalecimento de caminhos investigativos em uma perspectiva crítica, vislumbrando a transformação
do processo de degradão da sde, desde as suas rzes.
Palavras-chave: Precarização do Trabalho. Trabalho. Reestruturação produtiva. Sde. Saúde do
Trabalhador.
ABSTRACT
The objective of this study was to analyze the literature on precarization of work and health of worker,
with a view to the investigation/intervention perspectives. For this purpose, a search for articles in the
Virtual Health Library (VHL) was conducted. Search and selection criteria were defined, resulting in 22
articles for analysis. The literature consulted brings important contributions on the relationship between
precarization of work and health of worker, especially for health workers, ratifying the amplification of this
phenomenon before productive restructuring. Productions in the areas of Psychology, Nursing and
Collective Health were highlighted, but with substantial incorporation of theoretical categories of
Sociology of Work. On the other hand, theoretical categories of classics of Worker's Health and
Collective Health with a Marxist basis can be recovered with greater emphasis to elucidate the specific
effects of the world of work on health. The research from now on should focus on the question of
1
O texto não foi apresentado ou publicado anteriormente e o possui financiamento de órgãos e/ou agências de fomento.
2
Discente de Enfermagem e membro do Grupo de Estudo Trabalho, Ser Social e Enfermagem (GETSSE)/Universidade
Federal de Alagoas (UFAL). Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7804-110X. E-mail: brunoiivens@gmail.com
3
Discente de Enfermagem e membro do Grupo de Estudo Trabalho, Ser Social e Enfermagem (GETSSE)/Universidade
Federal de Alagoas (UFAL). Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1994-6480. E-mail: pehnobre@gmail.com
4
Doutor em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Mestre em Serviço Social pela
Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Especialista em Saúde do Trabalhador pela Fatec Internacional, Graduação em
Enfermagem pela UFAL. Professor do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, do Programa de Pós-Graduação
em Ensino e Formação Profissional e da Graduação em Enfermagem da UFAL. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1103-
5474. E-mail: diego.souza@arapiraca.ufal.br
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uberization, but without isolating this phenomenon from the general dynamic of reproduction of capital.
It is necessary to strengthen investigative paths in a critical perspective, with a view to transforming the
process of health degradation from its roots.
Keywords: Precarization of Work. Work. Productive restructuring. Health. Health of worker.
INTRODUÇÃO
Durante o período de acumulação primitiva do capital houve um processo de
desapropriação de terras, no qual homens e mulheres foram expropriados de seus meios
de produção e se viram obrigados a vender sua força de trabalho. Boa parte dos antigos
servos e camponeses autônomos passou a compor a força de trabalho disponível para
as oficinas que, a partir daquele momento, transformavam-se em grande indústria
(MARX, 1996). Este processo é denominado, consoante Alves (2007), de proletarização
do trabalho e, a partir dele, depreende-se a noção de emprego como uma suposta
mediação entre partes iguais, mas que, em sua essência, carrega os pressupostos da
desigualdade econômica. Essa relação se dá entre proprietários dos meios de produção
(capitalistas) e aqueles que apenas possuem sua força de trabalho (proletariado),
submetidos a uma relação de assalariamento pautada pelo contrato de trabalho.
Corroborando, Fontes (2017) afirma que a capacidade criativa, em algum vel presente
nas oficinas artesanais pré-capitalistas, é expropriada do trabalhador de forma contínua
e crescente. Desse processo decorre a alienação da classe trabalhadora, cada vez mais
alheia às necessidades balizadoras dos processos de trabalho, mas apenas deles
fazendo parte enquanto via de inserção nas relações mercantis e, nesse caso, vendendo
a si mesmo (enquanto força de trabalho). Para Alves (2007), aí reside o que pode ser
chamado de precariedade do trabalho, condição corolária à proletarização.
O trabalho subordinado ao capital assume o papel de mediador da reprodução social da
força de trabalho (ao menos, para parte dela) pelo acesso aos produtos, instituições e
esferas que atendem (algumas das) necessidades dos trabalhadores e que, assim, os
mantêm disponíveis enquanto fonte de mais-valia. Ideologicamente, esses mecanismos
de exploração e alienação comparecem, no ideário social, como naturais às relações
humanas, inclusive legitimados juridicamente e reafirmado[s] na educação escolar, na
educação profissional, nas empresas e na propaganda, onde se procura extrair uma
vocação, um impulso interno a cada ser singular que o justifique e conforte na tarefa que
deverá cumprir (FONTES, 2017, p. 47).
A despeito de tudo isso, o processo de exploração da força de trabalho não ocorre sem
tensões postas pelos próprios trabalhadores. Durante séculos, no bojo da luta de
classes, conquistaram-se limites para os contratos de trabalho (como a duração da
jornada de trabalho e os dias de folga), além de direitos como férias e aposentadoria,
ainda que absorvíveis pelo social metabolismo do capital. Todavia, ante a necessidade
de reprodução do capital em crise, algumas dessas questões soerguidas na luta de
classes são relegadas ou, até mesmo, suplantadas. Segundo Fontes (2017), nesse
processo, o Estado atua tanto ampliando as condições para o avao do capital,
diminuindo obstáculos legais, quanto na legalização de práticas que ignoram às próprias
leis da democracia burguesa (como as trabalhistas). Consoante Alves (2007), esse
processo consubstancia o que tem sido chamado de precarização do trabalho (enquanto
forma política de reposição da precariedade), condição que também possui caráter
estrutural, mas que ganha contornos dramáticos na mundialização do capital
(CHESNAIS, 2001), enquanto reflexo da política neoliberal.
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Surgem novas formas de trabalho, que aceleram a transformação da relação
empregatícia (com direitos) em trabalho isolado e diretamente subordinado ao capital,
sem mediação contratual e desprovido de direitos (FONTES, 2017, p. 55). A
consolidação do trabalho abstrato e a lógica do capital passam a organizar a vida
cotidiana do lar como local de trabalho; o tempo de trabalho e o tempo de vida se
mesclam, ambos sendo, então, possíveis fontes de mais-valia.
Dentro desse processo, contemporaneamente, a uberização comparece como uma das
principais formas de sua efetivão. O termo foi concebido em alusão a empresa Uber,
responsável pela popularização do tipo de relação na qual o trabalhador (no caso, um
motorista) detém um dos fatores do capital constante (o carro) e vende sua força de
trabalho por meio de um processo metamorfoseado em empreendedorismo. A empresa,
nesses termos, é responsável pela união entre o trabalhador e o mercado consumidor,
colocando seu aparato tecnológico como o fio condutor dessa relação precária. O
trabalhador, nesse cenário, não possui nenhum direito além de receber uma parcela
daquilo que ele produziu, a cada procedimento ou serviço executado. O processo
apresenta-se como a reunião de voluntários que prestam um serviço, casualmente
remunerado (FONTES, 2017, p. 58).
Além disso, a própria propaganda ideológica meritocrática desse modelo reforça a ideia
de que para ganhar mais o indivíduo precisa se esforçar mais do que os outros, a fim de
se sobressair. Forja-se a subjetividade de um trabalhador com anseios de empresário, o
que consiste em entrave ideológico à consciência de classe (ANTUNES, 2016).
Este é um processo que possui duas faces indissociáveis: se, por um lado, o trabalhador
agora como seu próprio chefe acredita que tem a liberdade de definir suas horas de
trabalho, por outro, para ele garantir sua reprodução, precisa trabalhar mais horas do que
trabalharia em um emprego formal, por exemplo. Esse esforço adicional, segundo
Oliveira (2002, p. 159 apud SILVA, 2013, p. 132), aciona o consumo das reservas de
energia da pessoa e provoca aceleramento da fadiga, que pode deixá-la exausta ou
esgotada”, e caso não haja o descanso necessário, essa fadiga pode virar crônica, e isso
acarretaria em outras doenças, além de fadiga cerebral e doenças mentais.
Considerando essas premissas históricas e teórico-metodológicas, bem como as
evidentes conseqncias para a saúde dos trabalhadores, surgiu o questionamento que
originou a presente pesquisa: qual o estado da arte sobre a relação entre precarização
do trabalho e a saúde do trabalhador? Ao respondê-la, o nosso objetivo foi, além de
sintetizar o que tem sido produzido sobre a referida relão, refletir sobre as perspectivas
de intervenção/investigação daqui em diante.
Para tanto, realizamos busca na Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) Brasil. Em um
primeiro momento, a busca ocorreu utilizando a combinãoprecarização do trabalho
AND sde, complementada, posteriormente, por busca com a palavra-chave
uberizão. Foram incluídos artigos publicados entre 2008 e 2018, disponíveis com
texto completo em português, espanhol ou inglês. Foram excldos teses, dissertações,
manuais, relatórios e legislações. Além disso, foram filtrados os artigos que possuíssem
como assunto principal saúde do trabalhador, condições de trabalho”, trabalho,
saúde mental, estresse psicológico e ambiente de trabalho.
Os artigos foram, então, agrupados segundo os seguintes núcleos temáticos,
viabilizando uma apresentação sistematizada dos principais resultados. A discussão dos
artigos se deu sob uma perspectiva crítica, sobretudo considerando o debate realizado
pela Sociologia do Trabalho marxista, com as categorias teóricas já apresentadas nesta
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introdução. Nas reflexões finais, analisamos algumas questões gestadas a partir da
revisão, buscando vislumbrar perspectivas de investigão/intervenção que podem se
consubstanciar no intercâmbio entre a Sociologia do Trabalho e o campo da Saúde do
Trabalhador.
A PRODUÇÃO SOBRE PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E SAÚDE DO TRABALHADOR EM
PERIÓDICOS DA BVS (2008 2018)
Na primeira busca, com a combinação precarização do trabalho AND saúde”, foram
encontrados 261 resultados, dos quais após a aplicação dos critérios de inclusão foram
reduzidos a 145. Com as exclusões, restaram 50 artigos. Já na segunda busca, que foi
realizada usando o descritor uberização”, foram encontrados dois resultados, porém
estes eram a repetição do mesmo artigo, logo, acrescentou-se mais um texto ao conjunto
dos revisados.
Somando as duas buscas, foram obtidos 51 artigos para a leitura dos resumos.
Excluídos os que não abordavam, de forma alguma, a saúde do trabalhador, restaram
33 artigos para serem lidos na íntegra e, nessa fase, ainda foram identificados 11 artigos
que tratavam a saúde do trabalhador como aspecto muito pontual, apenas com uma
breve menção. Ao final dessa última fase, obtivemos 22 artigos para a revisão.
Esses artigos foram categorizados a partir das suas temáticas centrais. Dois grupos
temáticos foram identificados, para posterior alise: 1) precarização do trabalho e saúde
do trabalhador em geral; 2) precarização do trabalho e saúde dos trabalhadores da
saúde.
A SAÚDE DOS TRABALHADORES EM GERAL
Inicialmente, apresentamos as principais características dos artigos classificados na
temática precarizão e sde do trabalhador em geral, conforme o Quadro 1.
Quadro 1 Artigos sobre precarização e saúde do trabalhador em geral, 2008 2018, Brasil.
Autor
Ano
Revista
Metodologia
Franco, Druck e
Seligmann-Silva
2010
Revista Brasileira de Saúde
Ocupacional
Ensaio teórico
Bernardo, Nogueira e Büll
2011
Arquivos Brasileiros de Psicologia
Estudo qualitativo
Takahashi, Silva, Lacorte,
Ceverny e Vilela
2012
Saúde e Sociedade
Estudo qualitativo
Traesel e Merlo
2014
Cadernos de Psicologia Social do
Trabalho
Estudo qualitativo
Arnaud e Gomes
2016
Barbarói (Revista do
Departamento de Ciências
Humanas da UNISC)
Estudo qualitativo
Praun
2016
Cadernos de Psicologia Social do
Trabalho
Estudo teórico
Frizzo e Bopsin
2017
Movimento (Revista de educação
física da UFRGS)
Estudo qualitativo
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Fonte: Elaborada pelos autores.
Entre os artigos presentes nessa categoria, a maioria é composta de estudos qualitativos
(cinco entre sete), que buscam contribuir para a problemática em questão com reflexões
sobre aspectos subjetivos apreendidos a partir dos sujeitos implicados nos processos de
precarização.
As publicações ocorreram a partir de 2010, mas com apenas um artigo nesse ano, sendo
2016 o ano de melhor resultado, com dois artigos. Destacaram-se as revistas da área de
Psicologia com três artigos, seguida da Saúde Coletiva com dois artigos e Educação
Física e Ciências Humanas em geral, cada uma com um artigo.
Em relação às discussões trazidas nos artigos, constatamos que o trabalho realizado por
Franco, Druck e Selligmann-Silva (2010) trata a questão sob um ângulo mais amplo, ao
realizar uma abstrão trica de suas dimensões. As autoras destacam o caráter
multifatorial e multidimensional da precarizão, uma vez quepassou a ser um atributo
central do trabalho contemporâneo e das novas relações de trabalho (p. 230), que não
afeta apenas a dimensão econômica, mas sim a sociedade como um todo, dentro ou
fora do trabalho. Nessa argumentação, destacam-se cinco dimensões da precarizão,
intimamente interligadas e que, pelo que constatamos, vão sendo ratificadas nos outros
estudos.
A primeira dimensão destacada por Franco, Druck e Selligmann-Silva (2010, p. 231) diz
respeito aos vínculos de trabalho e às relações contratuais, evidenciada através da
flexibilização dos vínculos, ainda mais notável pela terceirizão e que, conforme
destacado pelas autoras, acaba liberando a empresa das contrapartidas sociais
referentes aos direitos trabalhistas. Essa visão, em alguma medida, é compartilhada por
Bernardo, Nogueira e Büll (2011), ao afirmarem que essa prática leva à precarizão
dos vínculos empregatícios (p. 84) e desresponsabilização empresarial.
Além disso, Traesel e Merlo (2014, p. 234) também destacam outras práticas relativas a
essa dimensão:
Os contratos temporários, o tempo parcial e a quebra de nculos, oriundos da gestão
privada e amplamente disseminados na esfera pública, corroem as equipes de trabalho,
geram insegurança, intensa sobrecarga e desgaste físico e mental, repercutindo sobre a
saúde do servidor e, certamente, sobre a qualidade na prestação de serviços.
Trata-se de um processo genérico, mas que se particulariza no seio de cada categoria
de trabalhadores. Frizzo e Bopsin (2017) fazem apontamentos sobre essa dinâmica
precarizada no caso dos docentes da rede privada de ensino superior, quando há a
contratão por hora aula, provocando o constante sentimento de insegurança a cada
semestre muda a jornada e a remunerão (p. 1274). Essa insegurança, comumente,
tem sido associada à problemas psicoemocionais, como ansiedade, angústia e, em
casos mais graves, depressão (SOUZA, 2019).
Na sequência, a segunda dimensão [da precarização] concerne à organização e às
condições de trabalho (FRANCO; DRUCK; SELLIGMANN-SILVA, 2010, p. 231),
constituída a partir do modelo de gestão derivado da reforma gerencial. Sobre isso,
Traesel e Merlo (2014, p. 226), assinalam que o foco encontra-se no controle de
resultados e na primazia pela eficiência e efetividade dos serviços prestados, bem como
na flexibilização dos modos de contratão e remunerão dos servidores.
O discurso adotado pela gerência, conforme apontado por Bernardo, Nogueira e Büll
(2011, p. 87), busca apresentar-se de forma sedutora, com uma referência constante à
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ideia de que todos são iguais e teriam interesses convergentes, conformando a família-
empresa”. Praun (2016, p. 156), por sua vez, destaca o paradoxo criado por esse
modelo, no qual em meio à exaltação do trabalho em equipe, o que sobressai é o
indivíduo. Nesse sentido, a autora também sinaliza para o confronto entre a necessidade
de se tornar mais produtivo e a capacidade humana de suportar as demandas e ritmos
de trabalho maiores (PRAUN, 2016, p. 157).
De acordo com Franco, Druck e Selligmann-Silva (2010), essa situão ocorre de
maneira ainda mais violenta em contextos onde predominam trabalhadores pobres e de
pouca escolaridade, pois estas condições favorecem a intensificação da dominação e
dificultam as ações de vigilância em saúde do trabalhador, o que pôde ser constatado no
caso particular dos trabalhadores da construção civil, conforme o estudo de Takahashi
et al. (2012).
Takahashi et. al. (2012, p.986) destaca que a organização transfere ao trabalhador a
tarefa de gestar individualmente o risco evitando o acidente, o que é preocupante, tendo
em vista, por exemplo, que o setor da construção civil (investigado pelos referidos
autores) é um dos mais acometidos por acidentes fatais. Bernardo, Nogueira e Büll
(2011, p.90) ratificam a existência dessa prática, quando afirmam que existe um discurso
hegemônico que culpa o sujeito e suas escolhas individuais pelo adoecimento mental
expresso nas mais diversas patologias, além de culpabilizar o trabalhador pela sua não-
empregabilidade.
As duas dimensões anteriores possuem relação íntima com a terceira: a precarização
da sde trabalhador em específico (FRANCO; DRUCK; SELLIGMANN-SILVA, 2010,
p. 232). Segundo as autoras, com a criação de um ambiente marcado pela insegurança
e fragilizão dos laços coletivos, competitividade e supervalorização do trabalhador
polivalente, gera-se no trabalhador a necessidade de produzir mais, fazendo-o relegar,
por vezes, a própria saúde.
É consenso entre todos os autores dos textos revisados, nesse primeiro grupo, que as
transformações ocorridas no mundo do trabalho apresentam consequências para a
saúde. O texto de Arnaud e Gomes (2016, p. 117) exemplifica essa concatenação,
quando esclarecem que as transformaçõesincidem de forma destrutiva na saúde dos
trabalhadores (...), degradando a saúde física e mental dos mesmos e desencadeando
processos de adoecimento.
Conforme mencionado anteriormente, o ambiente de trabalho passou a ser um lugar
hostil para o trabalhador, seja pela violência (principalmente psicológica) a qual estão
sujeitos, porquanto são exigidos para além de suas capacidades, seja pela insegurança
dos vínculos contratuais. Arnaud e Gomes (2016), entretanto, destacam a importância
de elementos externos ao processo de trabalho, como as condições gerais de vida. Os
autores afirmam que a saúdeé resultado das condições de vida e trabalho dos sujeitos
sociais, logo: vários riscos, isoladamente ou em interação, podem contribuir para o
surgimento de problemas de saúde em geral e, notadamente, de sde mental
(ARNAUD; GOMES, p. 121). Frizzo e Bopsin (2017) ilustram isso a partir do universo
docente, demonstrando como o excesso de tarefas faz com que esses profissionais
enfrentem problemas no interior do processo de trabalho com os estigmas de
desvalorização, o que tem resultado, frequentemente, em desânimo e cansaço, com
agravamento de outros problemas de saúde correlatos.
Entre os problemas de saúde relatados estão os de natureza mental, como quadros
depressivos; esgotamento profissional (Burnout); o transtorno de estresse pós-
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traumático (TEPT) (FRANCO; DRUCK; SELLIGMANN-SILVA, 2010, p. 239), como
também o aumento de risco cardiovascular e aumento do uso de medicamentos que
somados a outros fatores aumenta o risco de adoecimento (TRAESEL; MERLO, 2014),
como no caso do consumo do álcool (BERNARDO, NOGUEIRA E BÜLL, 2011).
Praun (2016) recorre a Dejours para explicar que o sofrimento começa quando o homem
não pode modificar sua tarefa de modo a adaptá-la de acordo com suas necessidades
fisiológicas e desejos psicológicos, quando a relação homem-trabalho é bloqueada
(PRAUN, 2016, p. 149); ou seja, o sofrimento começa a partir do momento que o homem
tem sua subjetividade subsumida à dinâmica gerencial imposta na dinâmica de trabalho,
ante relações de exploração e dominação. Bernardo, Nogueira e Büll (2011), inclusive,
mencionam a própria falta de trabalho como fator causador de sofrimento e, portanto, de
adoecimento.
Também há uma concordância importante entre Traesel e Merlo (2014), Franco, Druck
e Selligmann-Silva (2010) e Frizzo e Bopsin (2017) no que tange ao fenômeno do
presenteísmo, que ocorre quando o assalariado não deixa de trabalhar mesmo sem ter
condições físicas e mentais para tal, escondendo seus sintomas e sem procurar seus
direitos previdenciários, pelo medo de perder o emprego em caso de afastamento. O
perigo desse comportamento consiste na possibilidade de os agravos evoluírem,
cronificarem e se agravarem (FRANCO; DRUCK; SELLIGMANN-SILVA, 2010), pois, na
maioria dos casos, os indivíduos ficam muito tempo sem procurar qualquer assistência
de saúde.
A quarta e a quinta dimensões da precarização também possuem uma relação muito
próxima. A primeira, compreende a fragilização do reconhecimento, da valorização
simbólica e do processo de construção das identidades individual e coletiva (FRANCO;
DRUCK; SELLIGMANN-SILVA, 2010, p. 232) e a outra afeta a natureza da
representão e organização coletiva (sindical) (FRANCO; DRUCK; SELLIGMANN-
SILVA, 2010, p. 232).
Num ambiente onde todos são medidos pelo seu valor monetário, certas qualidades
individuais passam a ser desconsideradas, isso gera uma crise de identidade
(TRAESEL; MERLO, 2014). Esse processo também causa impactos no ideário social,
consolidando a noção de que pessoas são descarveis, aprofundando a alienação do
trabalho e consolidando o processo de coisificão das relações humanas e de
personificação das coisas (FRANCO; DRUCK; SELLIGMANN-SILVA, 2010). Takahashi
et al. (2012) afirmam que a própria organizão do trabalho tamm afeta o processo de
identificação do trabalhador como classe (ou categoria específica) e, como isso interfere
no processo de organização coletiva:
A fragmentação do processo produtivo na construção civil dificulta a identificação dos
trabalhadores como categoria, repercute em índices baixos de sindicalização, afetando a
combatividade das entidades sindicais, favorecendo a permanência das relações
encontradas (TAKAHASHI et al., 2012, p. 985)
Arnaud e Gomes (2016) ratificam essa afirmação, dizendo que o modelo de produção
atual atinge tanto a base material da classe operária no processo produtivo quanto a
própria consciência de classe, valores e capacidade de organização
É importante, por fim, destacar a importância do trabalho na definição de um lugar social
para o indivíduo, ainda que segundo a lógica burguesa. Bernardo, Nogueira e Büll (2011,
p. 88) destacam queo fato de se afirmar enquanto trabalhador, ainda que em funções
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extremamente penosas, instáveis e precárias, oferece ao indivíduo o caráter de
humano, explicando assim o motivo de tantos trabalhadores permanecerem em
condições insalubres para sua sde física e mental, assim como se submetendo a um
processo de (des)humanização alienante.
Vejamos, na sequência, as continuidades dessas questões gerais no universo particular
dos trabalhadores da saúde, mas ressaltando, também, algumas peculiaridades.
A SAÚDE DOS TRABALHADORES DA SAÚDE
O segundo grupo de alise dos artigos revisados traz, como temática principal, as
relações e condições de trabalho no setor saúde, destacando os efeitos sobre a saúde
dos trabalhadores, especificamente, desse setor. O Quadro 2 traz um panorama dos
artigos que compõem esse grupo.
Quadro 2- Artigos sobre precarização e saúde dos trabalhadores da saúde, 2008 2018, Brasil.
Ano
Revista
Metodologia
2010
Trabalho, Educação e
Saúde
Estudo qualitativo
2010
Escola Anna Nery Revista
de Enfermagem
Estudo qualitativo
2011
Estudos e Pesquisas em
Psicologia
Estudo qualitativo
2013
Cadernos de Psicologia
Social do Trabalho
Estudo qualitativo
2014
Saúde e Sociedade
Estudo qualitativo
2014
Revista Enfermagem UERJ
Estudo qualitativo
2015
Trabalho, Educação e
Saúde
Estudo
quantitativo
2015
Revista de Pesquisa:
Cuidado é Fundamental
Online
Ensaio teórico
2016
Revista Enfermagem UERJ
Estudo qualitativo
2017
Trabalho, Educação e
Saúde
Estudo qualitativo
2017
Revista Distúrbios da
Comunicação
Pesquisa
bibliogfica
2018
Revista de Enfermagem da
UFSM
Estudo qualitativo
2018
Revista da Escola de
Enfermagem da USP
Estudo qualitativo
2018
Revista Enfermagem UERJ
Estudo qualitativo
2018
Enfermagem em Foco
Revio
integrativa
Fonte: Elaborada pelos autores.
Dos artigos que constituem essa categoria, a maioria também foi de estudos qualitativos
(onze entre quinze), com as duas primeiras publicações em 2010, sendo 2018 o ano de
melhor resultado, com quatro artigos. Os periódicos da Enfermagem foram os com maior
número de artigos publicados (oito) nesse grupo, seguida da Saúde Coletiva (quatro),
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Psicologia (dois) e Fonoaudiologia (um), o que, como veremos, reflete-se nas categorias
profissionais mais abordadas nos textos.
Sobre as discussões trazidas nos artigos, iniciamos destacando o estudo de Carvalho,
Paes e Leite (2010). Nele, são apresentadas as concepções de enfermeiros/docentes
sobre trabalho, educação e saúde, com destaque para a dualidade do trabalho discutida
no referencial teórico dejouriano, porquanto se relacione, dialeticamente, à satisfação e
ao sofrimento identificados, respectivamente, pela criatividade/autonomia e
obrigatoriedade/precarização. Com relão à saúde, as concepções dos docentes
entrevistados apresentaram conceitos de promoção da saúde e seus determinantes,
localizando estes últimos fora de processos curativos.
Nesse quesito, em específico, Souza et al. (2010) abordam as repercussões psicofísicas.
Entre elas, destaca-se o sofrimento causado pela necessidade de suprir a falta de
equipamentos e materiais, o que leva os profissionais à improvisação, mas também
insatisfão, sofrimento e desgaste. Silva e Muniz (2011) tamm trazem, em seus
argumentos, a questão de que os profissionais não dispõem dos meios necessários para
cuidar dos pacientes, levando-os a trabalhar em meio à precariedade e sem
resolutividade ante os indivíduos assistidos.
Já Bernardo, Verde e Pinzón (2013) compararam entrevistas de um servidor da saúde
admitido por concurso público há mais de 20 anos e uma trabalhadora com vínculo
terceirizado há três anos e que atuou no setor privado anteriormente. Observaram que
as vivências de trabalho de ambos são permeadas por características típicas da
dinâmica capitalista que se traduzem, no caso da funcionária terceirizada, em
precariedade objetiva (baixo salário e vínculo instável) e, no caso do servidor público, em
precariedade subjetiva (sensação de mal-estar em relão ao trabalho). Por sua vez,
Souza, Saldanha e Mello (2014) se dedicaram ao estudo do trabalho de fisioterapeutas,
ressaltando que as consequências do modelo atual de organizão do trabalho trouxe
perdas para a classe trabalhadora em geral, mas com repercussões particulares para os
fisioterapeutas não apenas do ponto de vista financeiro, mas também no
prolongamento e intensificação da jornada de trabalho, perda de identidade profissional
e instabilidade no trabalho, com pujante processo de terceirização e ausência de
contratos.
Outra categoria da saúde imersa nessa problemática é a dos fonoaudiólogos. Arce e
Araujo (2017) buscaram construir uma problematização da prática do fonoaudiólogo em
serviços de teleatendimento, revelando que esse serviço, em um primeiro momento,
organiza-se pelos modelos taylorista e fordista, mas, em seguida, incorpora os elementos
da fase contemporânea do capital, extremamente flexibilizado. Os autores argumentam
que é preciso novas abordagens da organizão do trabalho que sustentem o papel do
trabalhador da saúde de forma direcionada às efetivas necessidades de saúde.
A fase contemporânea do capitalismo possui seu catalizador ecomico-político nas
diretrizes neoliberais. Por exemplo, Gonçalves et al. (2014) evidenciaram que o modelo
neoliberal interfere negativamente na saúde dos profissionais de enfermagem, com
impacto nas esferas social, cultural, econômica e política. Destacam, em especial, três
elementos a sobrecarga de trabalho, o estresse ocupacional e as alterações
osteomusculares que se desdobram dos processos de trabalho flexibilizados e
dinamizados pelas ideias de produtividade, eficácia e eficiência.
Corroborando, Affonso e Bernardo (2015) abordam também as consequências da fase
neoliberal do capitalismo na vida dos trabalhadores de saúde, tais como: falta de
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condições estruturais básicas e hierarquização de poder na dinâmica interna dos
processos particulares de trabalho. Na mesma perspectiva, tem-se o estudo de Souza,
Passos e Tavares (2015), quando discorrem sobre as condições de trabalho no setor
saúde e, em específico, na enfermagem brasileira. Destacam que há a deterioração do
trabalho pela rígida conteão de custos, com salários cada vez mais baixos e jornadas
longas e sobrepostas.
O ambiente hospitalar parece ser o lócus da maior parte das relações precarizadas.
Sobre isso, Vieira et al. (2016) evidenciaram que a precarização do trabalho em hospital
de ensino é um fator que contribui para o presenteísmo na enfermagem, pois os
trabalhadores temporários (cada vez mais frequentes nesses ambientes), por não terem
garantidos os direitos trabalhistas previstos na lei, são pressionados a comparecer ao
serviço mesmo com a saúde debilitada, expondo-se ao risco de agravar uma afecção
preexistente.
Esse presenteísmo contribui para a evolução dos problemas tanto na organização
hospitalar quanto no sofrimento psíquico dos trabalhadores. A argumentação de Vieira
et al. (2016) conflui com o estudo de Silva, Souza e Teixeira (2017), especialmente por
destacarem a necessidade de luta pela implementação de uma política cuja finalidade é
desprecarizar o trabalho no serviço público, com realização de concursos e estruturação
de carreiras e serviços.
Ainda sobre os trabalhadores da enfermagem, Pimenta et al. (2018) identificaram
elementos como escassez de material, inadequação do quantitativo da força de trabalho
e aumento do ritmo como sendo as características marcantes do trabalho da categoria,
o que contribui para o desgaste psicoemocional e para a própria execução do cuidado.
Já Dias et al. (2018) salientam que as questões de gênero e socioeconômicas
influenciam negativamente na participação dos trabalhadores da enfermagem nas lutas
políticas por conquistas trabalhistas. Consideram que o fortalecimento das relações das
entidades de classe com os trabalhadores representados, assim como o
desenvolvimento de ações de formação de base política e educação em serviço são
capazes de contribuir no enfrentamento da precarização.
Encerrando a discussão sobre a enfermagem, Progianti et al. (2018) discorrem a respeito
da particularização da reestruturação produtiva no âmbito do SUS, destacando os efeitos
para as enfermeiras obstétricas, por ocasião dos baixos salários quando comparados
com trabalhadores homens na mesma fuão. Por consequência, a maioria das
enfermeiras entrevistadas por Progianti et al. (2018) possui longas jornadas de trabalho
e acumulam dois vínculos laborais para alcaar uma renda mensal mais próxima à
satisfão de suas demandas.
Por fim, ainda convém citar a revisão realizada por Júnior e David (2018), dedicada ao
conjunto dos trabalhadores da saúde. Nela, demonstrou-se a desregulamentação da
proteção social do trabalhador que está em curso no Brasil, acentuada no século XXI.
Os impactos da precarização na saúde do trabalhador descritos por eles foram: o
desgaste provocado pela sobrecarga de trabalho, sobretudo na saúde pquica, com o
sofrimento causado pelas péssimas condições de reprodução social, ratificando o
processo conforme já o descrevemos.
Diante disso, seja no caso do setor saúde, seja para a classe trabalhadora em geral,
percebe-se importantes reverberações do processo de precarização na saúde e, por
conseguinte, em todas as esferas da vida social. Trata-se da expressão mais aviltante
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da fase contemporânea do capitalismo, que tenta se reinventar às custas da sde dos
trabalhadores.
NOTAS REFLEXIVO-ANALÍTICAS FINAIS: PERSPECTIVAS DE INTERVENÇÃO/
INVESTIGAÇÃO
Com base nos estudos aqui revisados, ratificamos que a precarizão do trabalho é um
processo estruturalmente constituinte do capitalismo, sendo que se acentua na sua fase
contemporânea, em face da reestruturação produtiva. Não à toa, as consequências
desse processo incidem, sobremodo, na saúde psicoemocional dos trabalhadores, com
sua subjetividade emulada a serviço dos mecanismos empreendedores ou de uma
suposta modernizão das leis trabalhistas.
Constatamos, ainda, que há ênfase à saúde dos trabalhadores do setor saúde,
confirmando o que a sociologia do trabalho vem destacando sobre a hipertrofia do setor
de serviços no bojo da reestruturação produtiva e, consequentemente, amplificação de
seus efeitos, exatamente, nesse lócus.
A prodão científica reflete a preocupão de algumas áreas com a realidade que elas
mesmas enfrentam no cenário profissional, o que ajuda a explicar, por exemplo, a
quantidade de artigos produzidos pela Enfermagem. Esse processo, então, acaba por
retroalimentar à queso da saúde dos trabalhadores, uma vez que degrada boa parte
da força de trabalho dos serviços de saúde nos quais a classe trabalhadora poderia
procurar algum suporte contra o seu processo de adoecimento. Diante dessa espiral de
degradão, trazemos algumas notas sobre as perspectivas de
investigão/intervenção sobre essa questão, a serem perseguidas e/ou aprofundadas
daqui em diante:
1) A precarização do trabalho não pode ser entendida como fenômeno “inventado no
pós-crise estrutural do capital, mas algo intrínseco ao sistema do capital, consoante Alves
(2007). Sobretudo nos países de economia dependente, quando nunca se teve uma fase
de maior consolidação de direitos e políticas sociais, a precarização já era eminente
antes mesmo da reestruturação produtiva, embora avance mais alguns passos na
contemporaneidade. Com isso, o horizonte de luta não pode ser, simplesmente, no
sentido de fortalecer a esfera do direito trabalhista e defesa do emprego formal nos
moldes capitalistas (embora essa tarefa seja importante); mas, para além disso, deve-se
mirar em transformações de caráter estrutural. O horizonte último deve ser o da
superão do trabalho assalariado (alienado porque subordinado ao capital) e, não, a
sua consolidação enquanto oposto simétrico da relação-capital.
2) Ainda que a maioria dos artigos publicados tenha sido em revistas da sde, até
porque nossa fonte de pesquisa foi a BVS, as categorias que balizaram a discussão são
oriundas da sociologia do trabalho marxista. Tal condição permitiu avanços significativos
no debate, pois descortina movimentos importantes do mundo do trabalho
contemporâneo. Em relação aos efeitos desse processo na sde, acreditamos que
uma aproximação e/ou resgate de categorias próprias da Sde do Trabalhador/Saúde
Coletiva de base marxista pode constituir um profícuo caminho para elucidação dessa
questão. Categorias tricas como carga de trabalho e processo de desgaste (Laurell
e Noriega, 1989) são fundamentais para entender como a precarização se desdobra em
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materialidades internas (cargas psicológicas e fisiológicas) ao corpo do trabalhador ou
cria/reforça materialidades externas (cargas físicas, químicas, biológicas e mecânicas)
que acarretam implicações na saúde que não apenas o adoecimento, mas também a
processos de desgaste. Essa discussão pode, em alguns pontos, convergir com o
referencial djouriano que, também, fez-se constante nos textos. Nesse sentido, ganha
força a conceão de saúde como processo social, ou seja, que não se explica, somente,
pelos fatores biológicos (BREILH, 2013). É nessa perspectiva que a discussão do mundo
do trabalho pode tomar a questão da saúde dos trabalhadores como expressão do
antagonismo capital-trabalho, mas com suas particularidades (SOUZA; MELO;
VASCONCELLOS, 2015; 2017; SOUZA, 2019).
3) Como desdobramento do tópico acima, devemos radicalizar o princípio de
indissociabilidade entre investigação e intervenção, conforme posto por Melo (1993).
Desde o movimento operário italiano, das décadas de 1960 e 1970, a Saúde do
Trabalhador emerge como um novo campo, no qual a investigação dos problemas não
pode se dar sem o protagonismo dos próprios trabalhadores, trazendo suas
experiências. Obviamente, isso deve ocorrer mediante o intercâmbio orgânico com o
saber científico, mas desde que o saber dos trabalhadores não tenha seu protagonismo
expropriado. Nessa esteira, a investigação só faz sentido se for, ao mesmo tempo, base
para a transformão de situações concretas. Essa premissa se consubstancia no
princípio teórico-metodológico da não-delegação da saúde, o que deve ser resgatado no
sentido de concretizar o protagonismo proletário.
4) Para tanto, faz-se peremptório a reconstrução do movimento operário, cada vez mais
esfacelado pela própria lógica da reestruturação (ANTUNES, 2016). A postura ofensiva
contra o capital deve ser recuperada em detrimento da postura defensiva e,
majoritariamente, de conciliação daquilo que é inconciliável (interesses da burguesia e
do proletariado). Para Souza, Melo e Vasconcellos (2015; 2017), o campo da Saúde do
Trabalhador, na sua origem, traz esse horizonte, sobretudo pelo princípio de articulação
entre lutas por sde e luta de classes (contra o capital). Porém, para se legitimar
enquanto campo, incorpora os limites das arenas burguesas que frequenta (a ciência e
o Estado burgueses). É preciso, nesse sentido, reconstruir as entidades de organização
política para a luta, sobremodo em face da decadência das suas formas convencionais
(sindicatos e partidos), assim como vislumbrar investigação/intervenção para além dos
limites dos campos (sejam científicos, sejam institucionais) instituídos no capitalismo. São
urgentes as frentes mais amplas, que sejam capazes de, sem negligenciar as pautas
particulares, instigar e direcionar a classe trabalhadora para a luta prioritária contra o
capital, de caráter revolucionário. Trata-se de um árduo desafio, pois se deve mirar,
também, nas questões cotidianas, sem por elas ser aprisionado. No caso da
precarização, tal condição se expressa na continuidade da luta por direitos trabalhistas,
mas sem as ilusões de que elas trarão a superação do capitalismo.
5) Ademais, questões mais recentes, como a terceirização irrestrita, a reforma trabalhista,
a uberização/plataformizão e a indústria 4.0 devem compor a continuidade da agenda
brasileira de pesquisa. Ao que parece, uma nova fase da acumulação flexível se
desenha, com mecanismos ainda mais pujantes de controle da classe trabalhadora,
porque sustentados em intelincia artificial a serviço do capital. Tal questão converge
com a falácia do empreendedorismo, acentuando os efeitos negativos na consciência de
classe e travestindo de modernizão a retirada de direitos. Pelo seu caráter recente,
esse conjunto de femenos deve balizar as futuras investigões, o que pode favorecer
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a incorporação dos tópicos acima listados e de outras demandas/questões suscitadas
no processo.
Esperamos, com isso, contribuir para visualizar lacunas e possibilidades para que se
possa seguir questionando à precarização do trabalho, com vistas ao fortalecimento da
investigão de caráter crítico e transformador.
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Data da submissão: 07/10/2020
Data da aprovação: 30/12/2021