Trabalho & Educação | v.29 | n.3 | p.69-74 | set-dez | 2020
Winnicott (1988), que me parece muito interessante e que coloca bem o problema que
assinalo. Ele escreve que a saúde não é algo somente positivo. Ela pode conter a
característica de dizer também respeito ao medo, de sentimento conflitual, de dúvida, de
frustração... e não somente algo positivo, porque a gente suspeita quando não está bem.
O essencial, escreve Winnicott, é que o homem e a mulher sintam viver sua própria vida,
sintam tomar a responsabilidade de sua ação, ou da inação, se sintam capazes de se
atribuir o mérito do sucesso ou a responsabilidade do fracasso. Poder se atribuir a
responsabilidade de um fracasso é também um critério de saúde.
Ora, em muitas atividades profissionais temos dificuldade para se atribuir as coisas.
Podemos saber muito bem de onde vem o que comprometeu o êxito: veio da prescrição
descendente, veio de si mesmo... Essa indiferenciação que se cria entre as dimensões
do métier, entre o pessoal, o impessoal, o coletivo... Podemos saber muito bem a
delimitação, mas a atribuição do êxito, ou do seu contrário, se tornou complicada.
Por vezes, e na verdade mais e mais – nós poderemos depois discutir se é pertinente
para o meio profissional docente, em todo caso é no campo profissional em sentido
amplo – nós agimos sem nos sentirmos ativos. E não se trata de simplesmente “agir”,
porque eu digo agir no sentido de um agir em relutância
. Eu tomo essa expressão quase
ao pé da letra, porque esse agir em relutância tem efeitos sobre o corpo.
Diante de um fazer face – promovedor de danos, não hesito em dizer nesses termos –
entre, de um lado, a inflação de procedimentos impessoais, que muda o script
comportamental, vestido de “boas práticas” e, de outro lado, o isolamento pessoal na
atividade face ao real. Esse face a face é devastador. Esse face a face é o risco maior
para a saúde. É o risco psicossocial maior.
Essa colisão no métier entre o pessoal – pois se é exposto ao real, pois ele [o trabalhador]
não tem escolha – e o impessoal sem a mediação de uma história transpessoal comum
da qual se possa se sentir partícipe é um processo que pasteuriza o real, que anula o
conflito. Esta impossibilidade de se sentir partícipe dessa história comum – onde se
possa aportar sua contribuição, na qual se possa depositar sua atividade – desvitaliza o
sujeito em cada trabalhador. Tudo isso impulsiona os enderaçamentos pessoais. Pode
ser que não seja desse jeito com vocês no ensino escolar... Mas no ensino superior
posso testemunhar que é assim.
Quando se instala enderaçamentos pessoais mais e mais fortes, quando há uma inflação
de enderaçamentos pessoais, há uma deflação de disputa do métier. Para dizer em um
termo popular, como não se pode discutir o até o fim o trabalho verdadeiramente feito,
isso termina nos afrontamentos pessoais. Pode ser que não seja assim nas escolas e
nos colégios, em todo caso na universidade é assim, mas nas empresas também.
Como disse, quando não se pode mais cuidar do trabalho, não resta que cuidar das
pessoas. Isto é o [modelo de intervenção] que se desenvolve massivamente hoje em
dia, pois se multiplicam as escutas do sofrimento no trabalho, para gerir os frágeis. Não
sei se com vocês é desse jeito, mas em muitos lugares é assim. Gerir os frágeis, gerir os
vulneráveis. Então que é o trabalho, a atividade que é frágil.
O autor faz uso da expressão à son corps défendant, sem equivalente na língua portuguesa. Considerando
o contexto em que é empregada no texto, a expressão aguarda o sentido de um agir fortemente contrariado
em relação ao que se faz, como se fosse um agir no qual é preciso empurrar o corpo para fazer o que precisa
ser feito. (N. do T.)