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DOI: https://doi.org/10.35699/2238-037X.2021.26556
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/
A POLÍTICA DE COTAS RACIAIS NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS DO
BRASIL, DUAS DÉCADAS DEPOIS: UMA ANÁLISE
1
The racial quotas policy at public universities in Brazil, two decades later: an
analysis
GUIMARÃES, Eder DArtagnan Ferreira
2
ZELAYA, Marisa
3
RESUMO
A política de cotas raciais foi adotada nas primeiras universidades públicas do Brasil em 2002 e
sancionada como política governamental dez anos depois, fundamentada em um amplo processo de
discussão envolvendo organizações do governo e da sociedade civil. Duas décadas após as primeiras
iniciativas, implementadas em meio a polêmicas, disputas e reações contrárias, é possível analisar os
impactos desta potica, considerando informações históricas, pautas defendidas por movimentos da
população preta e parda, dados empíricos das universidades e reflexões posteriores acerca das opções
políticas que originaram esta ão afirmativa. Neste artigo de revisão bibliográfica, a retomada histórica
aprofunda as raízes das situações de vulnerabilidade social que vitima a maioria da população negra
hoje, analisa criticamente a escravio no país e aponta lacunas no suporte do governo aos escravos
e seus descendentes. Informações do Censo Demográfico e da Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios (PNAD) evidenciam os meros e a cor da desigualdade racial, reconhecendo negros e
pobres praticamente como sinônimos. E dados sobre a potica de cotas possibilitam constatar o
aumento significativo no acesso de estudantes pretos e pardos ao ensino superior; a manutenção da
qualidade acadêmica, com a presença dos cotistas; a ampliação das oportunidades de escolarização
e inserção social da população negra e pobre; e maior representatividade da sociedade brasileira nas
universidades blicas. Por fim, esta ação afirmativa é situada no contexto mais amplo das opções
políticas necessárias ao processo de aperfeiçoamento da democracia no Brasil.
Palavras-chave: Política de cotas raciais. Racismo no Brasil. Ações afirmativas.
ABSTRACT
The racial quotas policy was adopted at the first Brazilian public universities in 2002 and sanctioned as
a government policy ten years later, based on a wide-ranging discussion process involving government
and civil society organizations. Two decades after the first initiatives, implemented in the midst of
controversies, disputes and contrary reactions, it is possible to analyse the impacts of this policy,
considering historical information, guidelines defended by movements of the black population, empirical
data from universities and further reflections on the political options that gave rise to this affirmative
action. In this literature review article, the historical recovery deepens the roots of situations of social
vulnerability that victimize most of the black population today, analyses critically the slavery in the country
and points gaps in government support for slaves and their descendants. Information from the
1
Este artigo, produzido a partir do trabalho final da disciplina Políticas universitárias, do programa de Doutorado em
Humanidades e Artes com menção em Ciências da Educação da Universidade Nacional de Rosário UNR, Argentina,
não foi apresentado em eventos cienficos nem submetido a outra publicação. Os autores não contaram com apoio de
órgãos de financiamento.
2
Doutorando em educação pela Universidade Nacional de Rosário UNR, Argentina. Mestre em Gerontologia pela
Universidade Católica de Brasília UCB. E-mail: ederdarta@gmail.com
3
Professora, mestra e doutora em Ciências da Educação da Universidade Nacional do Centro da Província de Buenos
Aires (UNCPBA); docente da área de Política e Administrão da Educação da UNCPBA. Docente no Mestrado em
Educação Superior da Universidade Nacional de La Matanza e pesquisadora do NEES-UNCPBA. E-mail:
marisazelaya@gmail.com
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Demographic Census and the National Household Sample Survey (PNAD) show the numbers and
colors of racial inequality, recognizing the blacks and the poor ones practically as synonyms. And data
on the quota policy make it possible to see a significant increase in the access of black students to higher
education; the maintenance of the academic quality, with the presence of quota holders; the expansion
of educational opportunities and social insertion to the black and poor population; and greater
representation of Brazilian society in public universities. Finally, this affirmative action is situated in the
broader context of the political options necessary for the process of improving democracy in Brazil.
Keywords: Racial quota policy. Racism in Brazil. Affirmative actions.
INTRODUÇÃO
A política de cotas começou a se tornar realidade nas universidades brasileiras
no início do século XXI. Em 2002, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), a Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) e a Universidade
do Estado da Bahia (UNEB), apoiadas em legislações estaduais, incluíram em
seus vestibulares uma porcentagem de vagas destinadas a estudantes egressos
das escolas públicas. Em 2004, a Universidade de Brasília (UnB) tornou-se a
primeira universidade federal a adotar o mesmo procedimento. Dez anos após a
primeira experiência, organizações do governo e da sociedade civil, com
destaque para os grupos ligados ao movimento negro, finalizaram um processo
de análise e discussão sobre o tema e levaram a então presidenta Dilma
Rousseff a instituir o sistema de cotas como uma política do Governo para todas
as universidades federais do Brasil
4
(CAVALCANTE, BALDINO e HAMÚ, 2013).
Adotada progressivamente pelas instituições de ensino superior públicas, a
política de cotas nasceu e foi implementada em meio a polêmicas e discussões
sobre seu valor, necessidade e justiça. De um lado, argumentos de que a adoção
das cotas era injusta com os estudantes que ingressavam na universidade
pública por meio da aprovação no concorrido vestibular tradicional; de outro, a
defesa desta ação afirmativa em favor das pessoas negras, vítimas históricas da
exclusão social no país e minoria absoluta no ensino superior. As discussões
foram permeadas por alertas sobre possíveis riscos embutidos na política de
cotas: diminuição da qualidade acadêmica das universidades públicas, devido a
prováveis deficiências de aprendizagem dos estudantes oriundos das escolas
públicas; nivelamento por baixo de processos de ensino e aprendizagem,
resultando na formação de profissionais mal preparados para a atuação
profissional; e aumento da evasão escolar, pois os cotistas não acompanhariam
o ritmo de estudo dos colegas aprovados pelo sistema de ampla concorrência.
Nestas discussões, entraram em pauta o mito da igualdade racial no Brasil
“não existe racismo no país”; a meritocracia “as oportunidades são resultado
do esforço individual”, “só não estuda nem trabalha quem não quer”; e mesmo
argumentos de que as cotas significariam o reconhecimento de uma suposta
inferioridade intelectual dos estudantes negros e, portanto, reforçariam o
preconceito racial, ao invés de combatê-lo.
Vinte anos após a primeira iniciativa e frente às discussões recentes sobre o
racismo estrutural, dados empíricos possibilitam problematizar questões como
estas: Quais são os impactos resultantes desta política? Houve mudança no
4
A Lei 12.711/12, promulgada em 29.08.2012, estabeleceu a reserva de 50% das vagas em todo o sistema
universitário federal (Universidades e Institutos) para estudantes oriundos de escolas públicas.
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perfil dos estudantes universitários? Diminuíram os resultados acadêmicos e
sociais das universidades? Os argumentos contrários à implementação das
cotas mostraram-se fundamentados?
Tais indagações norteiam este artigo de revisão bibliográfica, que se propõe
analisar os impactos da política de cotas raciais nas universidades públicas do
Brasil. Para isso, fundamenta seu caminho em fontes diversas: informações
históricas resgatam o percurso da escravidão no Brasil e suas consequências
para a sociedade brasileira atual; dados estatísticos levantados por
universidades públicas e entidades ligadas ao Ministério da Educação embasam
a discussão sobre a implementação da política de cotas nas instituições de
ensino superior; e produções científicas com recorte temporal entre 2002 e 2020
subsidiam a análise das questões sociais, políticas e educacionais relacionadas
a esta ação afirmativa.
BREVE PERCURSO HISTÓRICO SOBRE A REALIDADE DOS NEGROS NO BRASIL
Luiz Felipe de Alencastro, cientista político e historiador que defendeu, em nome
da Fundação Palmares, a implementação do sistema de cotas raciais em
audiências do Supremo Tribunal Federal, em 2010, afirma que a desigualdade
social é praticamente sinônimo de desigualdade racial no Brasil, uma vez que a
exploração de escravos africanos foi praticada aqui como em nenhum outro país
latino-americano e, por isso, seus descendentes, os negros e pardos de hoje,
são maioria entre as classes sociais mais vulneráveis. Dados históricos
confirmam esta desigualdade: do total de 11 milhões de africanos trazidos como
escravos para o continente americano, 44% (cerca de 5 milhões) vieram para o
território brasileiro ao longo de três séculos (1550-1856). Como parâmetro de
comparação, os Estados Unidos, o outro grande país escravagista do continente
americano, praticou o tráfico negreiro por pouco mais de um século (1675-1808),
recebendo cerca de 560 mil africanos 5,5% do total. Conclui o historiador: “No
final das contas, o Brasil se apresenta como o agregado político americano que
captou o maior número de africanos e que manteve durante mais tempo a
escravidão” (ALENCASTRO, 2010, p. 1).
Ao longo do século XIX, o Império do Brasil aparece como a única nação
independente do continente americano praticando o tráfico negreiro em larga
escala, mesmo diante da pressão diplomática da Inglaterra em prol da
articulação de uma rede de tratados internacionais focados na coibição do
comércio oceânico de africanos como requisito para o estabelecimento de
acordos comerciais entre países. Um tratado firmado entre Inglaterra e Portugal
em 1818 vetava o tráfico de escravos acima da linha do Equador, enquanto
Inglaterra e Brasil firmaram tratado similar em 1826. Cinco anos depois, com
uma lei promulgada em 7 de novembro de 1831, o comércio atlântico de
africanos foi proibido formalmente no Brasil.
Esta lei, além de assegurar plena liberdade aos africanos introduzidos no país
após a proibição do tráfico, impunha aos infratores uma pena pecuniária e o
reembolso dos gastos com o reenvio dos africanos para qualquer porto da África,
punições reiteradas pela Lei Eusébio de Queirós (1850), que assinalou
oficialmente o fim da legalidade do tráfico negreiro no país. Apesar da
determinação das leis, a escravidão não cessou, mas seguiu como uma prática
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ilegal. Relata Alencastro (2010, p. 2): “50.000 africanos oriundos do norte do
Equador são ilegalmente desembarcados entre 1818 e 1831, e 710.000
indivíduos, vindos de todas as partes da África, são trazidos entre 1831 e 1856,
num circuito de tráfico clandestino”. Esta situação se verifica nos dados
demográficos do Rio de Janeiro
5
em 1850: do total de 266 mil habitantes, 110
mil eram escravos; estes, após a abolição da escravatura (1888), ocuparam
gradualmente as periferias dos bairros habitados pelos brancos, dando origem
às favelas, ainda hoje caracterizadas pela ausência estrutural de suporte do
Estado.
Merecem destaque duas outras leis da época. A Lei do Ventre Livre (1871)
declarou livres os filhos de escravas que nascessem no Brasil, mas deixou de
lado a situação das mães. O resultado prático é que estas crianças tinham duas
opções: continuar com as mães até a idade de 21 anos, o que implicava trabalhar
conforme a vontade de seus senhores para garantir teto e comida; ou escapar
dessa situação seguindo caminho por sua conta e risco, o que resultou em um
grande número de crianças e jovens negros vivendo sozinhos ou em grupos
pelas ruas, envolvidos frequentemente em práticas ilegais e, por isso, sempre
visados pelas forças policiais. A abolição oficial da escravatura ocorreu somente
com a Lei Áurea (1888), como parte das medidas necessárias para transformar
o então império em uma república. Assim, em 1889, após três séculos de
exploração, os negros escravos ou filhos de escravas foram repentinamente
promovidos a cidadãos republicanos. Entretanto, sua participação na vida do
país se diluiu com o investimento do governo na vinda de imigrantes europeus
para se encarregarem da agricultura e de outros serviços braçais. O país passou
a contar com um contingente expressivo de ex-escravos, livres por fim, mas sem
acesso a trabalho, bens, qualificação laboral ou suporte do Estado para se
igualarem aos outros cidadãos. Assim se compreende porque os negros, desde
os primeiros anos da República, são maioria entre as classes sociais mais
pobres, em situações de vulnerabilidade social e mesmo em prisões e centros
de atendimento social. Como se vê, o rosto da desigualdade atual tem raízes
históricas.
OS NEGROS E A DESIGUALDADE SOCIAL NO BRASIL CONTEMPORÂNEO
Ainda quanto aos números da desigualdade, outro dado histórico relevante é que
a negritude da população brasileira começou a ser incluída nos dados
demográficos somente nos anos 1970, quase um século após a abolição oficial
da escravatura e a proclamação da República. Conforme Alencastro (2010), o
Censo Populacional de 1976 foi o primeiro a solicitar a informação “cor da pele”,
dado ampliado nos Censos Demográficos e Pesquisas Nacionais por Amostra
de Domicílios (PNAD) posteriores, com a inclusão das opções de
autoidentificação racial. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) indicam que em 2010 101.923.585 brasileiros 50,7% da população
se declararam negros e pardos; pela primeira vez foram oficialmente
reconhecidos como mais da metade dos cidadãos brasileiros. Na PNAD 2019,
5
Rio de Janeiro, Recife e Salvador foram as cidades brasileiras que mais receberam navios negreiros.
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42,7% dos brasileiros se declararam como brancos, 46,8% como pardos, 9,4%
como pretos
6
e 1,1% como amarelos ou indígenas (IBGE, 2019).
Entretanto, os indicadores sociais não acompanharam a evolução destes
números. Dados do IBGE, especialmente os referentes ao Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH)
7
, comprovam a desigualdade entre a população
branca e negra do país. Embora a qualidade de vida das classes sociais C, D e
E tenha melhorado bastante no século XXI, em grande parte graças aos
programas sociais direcionados à população mais pobre implementados durante
os governos Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016),
estes mesmos dados demonstram que a desigualdade entre brancos e negros
tem se mantido em níveis muito similares nas últimas décadas (IBGE, 2020).
O Censo 1980 (IBGE, 1983) identificou que, dos indivíduos acima de cinco anos
de idade “sem instrução ou com menos de 1 ano de instrução”, 47,3% eram
negros, 27,6% pardos e 25,1% brancos o número de analfabetos negros e
pardos era o triplo dos brancos. Na década seguinte, o Censo começou a
perguntar sobre a educação entre os jovens maiores de 15 anos, idade
correspondente à primeira série do ensino médio regular. Assim, em 1992 4%
dos brancos e 6,1% dos negros nesta idade eram analfabetos os números
enganam, pois, se parecem próximos, equivalem a números absolutos bem
distintos, com diferenças ainda na média de anos de estudo: 6,7 entre brancos
e 4,5 entre negros (IBGE, 1994). Em 2001, o Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA) fez um recorte étnico e de escolaridade sobre os adolescentes
com idade entre 11 e 14 anos pertencentes à parcela dos 25% mais pobres do
país: 44,3% dos brancos mais pobres estudavam entre 5 e 8 anos, mas, entre
adolescentes negros do mesmo quartil, somente 27,4% alcançavam o mesmo
tempo de escolarização (IPEA, 2002). Os números explicitam novamente o
tamanho e a cor da desigualdade. que se reconhecer que, ao longo das
últimas décadas, aumentou o investimento estatal na educação escolar, muito
em vista do processo de globalização que ganhou mais força e velocidade a
partir de então; as relações comerciais e diplomáticas com outros países exigia
do Brasil a melhoria dos seus indicadores educacionais, segundo os padrões
estabelecidos por agências internacionais, além de possibilitar a ocupação de
posições de maior destaque no cenário global.
Assim, a primeira década do século XXI testemunhou uma melhoria nos números
da educação formal, mas mantendo a desigualdade: 5,6% dos jovens brancos
com idade acima de 16 anos ingressaram no ensino superior, enquanto apenas
2,8% dos jovens negros conseguiram fazer o mesmo e esta porcentagem,
embora insatisfatória, representou quase o dobro da década passada. Em 2013,
os brancos estudavam em média 8,8 anos e os negros, 7,2 (IPEA, 2020). Ou
seja, houve avanços importantes na escolarização de todas as classes sociais,
especialmente as mais pobres, porém a diferença entre o percentual de brancos
6
A expreso pretos, ao invés de negros, é uma reivindicação recente dos movimentos de luta pela
igualdade racial. Aqui se utilizam ambas as expressões, conforme o contexto e os autores.
7
Índice desenvolvido em 1990 e adotado desde 1993 no relatório anual do Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (PNUD). Avalia, a partir dos indicadores sociais de cada país, a expectativa de vida
ao nascer; o acesso ao conhecimento, traduzido na previo da média de anos de escolarização; e padrão
de vida decente, conforme o Produto Interno Bruto (PIB) per capita.
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e negros frequentando a escola, assim como o tempo de permanência na
educação formal, se mantém constante.
Recortes adicionais de gênero evidenciam outros dados importantes: no ano
2000, 12,9% das mulheres com idade acima de 15 anos não sabiam ler nem
escrever, índice baixado para 9,1% em 2010. Entre as mulheres negras, a queda
foi mais acentuada, de 22% para 14%, e de 17,9% para 12,1% entre as mulheres
pardas. No entanto, a desigualdade se manteve: as mulheres brancas
analfabetas eram 8,6% no ano 2000 e, dez anos depois, 5,8%, número bem
inferior ao das mulheres negras e pardas (IPEA, 2020). Segundo o IBGE, os
avanços na alfabetização de mulheres significaram a inversão de uma
desvantagem histórica: em comparação com a população acima de 60 anos
hoje, declaram-se analfabetos 24,9% dos homens e 27,4% das mulheres;
contudo, compõem este percentual 42,2% de mulheres negras e 39,2% de
homens negros (IBGE, 2020).
Vale assinalar que a diferença entre brancos e negros na educação básica vem
diminuindo desde 1999, como resultado da implementação de políticas
educacionais tais como a divisão da responsabilidade sobre os segmentos da
educação básica entre os governos federal, estadual e municipal; a criação do
Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização
dos Profissionais da Educação (Fundeb); e a vinculação do direito a benefícios
sociais, como Bolsa Família e Bolsa Escola, à permanência das crianças nas
escolas. Estas medidas elevaram a frequência escolar média para 95% em toda
a faixa etária de 6 a 14 anos, o que significa mais crianças e adolescentes
frequentando o Ensino Fundamental e menos evasão escolar. O Ensino Médio,
entretanto, tem mantido uma diferença constante desde a década de 1990: cerca
de 60% dos estudantes secundaristas se declaram brancos e 40%, negros e
pardos conforme dados de 2008 do IBGE. No mesmo ano, cursavam o ensino
superior 20,5% dos jovens brancos e 7,7% dos jovens negros (IBGE, 2014).
Alencastro (2010) considera a dificuldade de acesso às faculdades como um
gargalo histórico para a ascensão social dos negros e um argumento essencial
para a adoção da política de cotas, que o acesso ao ensino superior amplia
as chances de trabalho e, logo, as oportunidades de atuação profissional. O
antropólogo Kabengele Munanga (2019) confirma:
Não se trata somente de revelações estatísticas, bastando observar o cotidiano brasileiro
em todos os seus setores, que exigem formação superior para a ocupação de cargos de
comando e responsabilidade, para perceber a invisibilidade dos afrodescendentes (negros
e mestiços). Somente praticando a política de avestruz e fingindo cegueira para a crua
realidade essa situação deixa de ser visível! (MUNANGA, 2019, p. 21)
Como relatado no início do artigo, a visibilização desta desigualdade envolveu
órgãos públicos, organizações da sociedade civil e lideranças do movimento
negro em um processo de discussão que, ao final, fundamentou a criação da
política de cotas raciais pelo Governo Federal da época. O esforço pela
democratização do ensino superior visou também à inclusão de grupos e
populações representativas da sociedade, mas com acesso limitado ao espaço
acadêmico. Desta forma, ainda que os destinatários iniciais das cotas fossem os
negros, não demorou para que a política os revelasse também como maioria dos
mais pobres e então avançasse na inclusão de estudantes de escolas públicas,
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indígenas, quilombolas e outros sujeitos pertencentes a classes socialmente
mais vulneráveis. Essas mudanças trazem outra chave de leitura para a política
de cotas, como se vê em seguida.
POLÍTICAS AFIRMATIVAS E MITO DA DEMOCRACIA RACIAL
Para o professor Nelson Inocêncio da Silva, coordenador do Núcleo de Estudos
Afro-brasileiros da Universidade de Brasília, o impacto destas políticas públicas
é moroso por causa dos anos de atraso no reconhecimento das diferenças de
oportunidades oferecidas a brancos e negros, como confirma o histórico sobre a
escravidão no Brasil e a distância entre o escopo das leis e sua efetividade. Logo,
seria um equívoco compreender a política de cotas situando-a apenas no
momento presente, sem “voltar ao século XIX, às políticas do Estado brasileiro
de favorecimento das populações europeias para entender por que temos que
desenvolver uma política de inclusão da população negra” (CIEGLINSKI, 2012).
O reconhecimento do legado histórico da escravidão desmonta o mito da
igualdade racial e sua crença subjacente na igualdade de direitos e
oportunidades para todos os indivíduos e classes sociais. Por isso o professor
enfatiza que “as políticas atuais não são fruto de nenhum devaneio, mas de
necessidades que foram esquecidas [ao longo da história]” (idem).
Nesse sentido, a política de cotas evidencia a disputa entre os beneficiários das
ações afirmativas e grupos que mantiveram os negros em situações de pouco
ou nenhum acesso aos bens sociais e excluídos da participação na sociedade.
As diferenças na escolarização talvez sejam o signo mais evidente dessa
disparidade, pois a educação, compreendida como “o processo integral de
formação humana, (...) inclui a aquisição de produtos que fazem parte da
herança civilizatória e que concorreram para que os limites da natureza sejam
transpostos”, como o saber científico, a organização social, os valores e
princípios da convivência e a consciência da capacidade autopoiética do ser
humano (RODRIGUES, 2001, p. 232). Segundo Morin (2007, p. 37), assim como
o todo está presente em cada parte, “a sociedade, como um todo, está presente
em cada indivíduo, em sua linguagem, em seu saber, em suas obrigações e em
suas regras”. Se parte desta consciência tem relação direta com a educação
escolar, menor acesso à escola significa menor participação na sociedade, pois
uma das finalidades da instituição escolar é proporcionar a integração entre o
sujeito e sua comunidade humana e social, por meio dos processos de
socialização e sociabilidade. Logo, o reconhecimento das desigualdades na
escolarização de brancos e negros implica a escola como “espaço de luta
hegemônica entre as classes fundamentais da sociedade capitalista e, portanto,
um espaço cheio de contradições”, nas palavras de Saviani (1983 apud
KRAWCZYK, 2012, p. 6). Nesta perspectiva,
A discuso sobre o direito à educação, por exemplo, chegou a um ponto básico de
consenso: todos têm direito ao acesso à educação escolar. Mas a forma para este acesso
e seus limites (se se trata de acesso físico: vagas, ou, além disso, substantivo: condições de
aprendizagem) são ainda expressões da luta entre muitos grupos (intra e extra governo;
entre classes e frações de classe social, etc.). (SOUZA, 2016, p. 77)
A diferença evidente nos indicadores sociais entre a população preta e parda
(IBGE, 2020) fragiliza os argumentos que associam a discriminação racial ou a
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desigualdade de oportunidades a comportamentos individuais, negando sua
relação com o contexto macrohistórico e suas consequências para o Brasil
contemporâneo. Almeida e Rossi (2020) aprofundam a relação entre racismo e
economia para afirmar exatamente o contrário: utilizando “concepções teóricas
que não se limitam às lentes da economia neoclássica”, definem o racismo
“como um problema sistêmico, ou seja, como uma consequência do
funcionamento ‘normal’ e regular das instituições e das estruturas sociais que
conformam a ação dos indivíduos”. Finalizam os autores: “O racismo é
constitutivo do sistema, está enraizado nas estruturas da sociedade e
normalizado pelo próprio funcionamento das instituições” (idem).
Esta concepção define o racismo estrutural, contrapondo-se veementemente ao
mito da igualdade racial, que tanto nega a existência da discriminação por raça
no Brasil como assinala uma associação entre a desigualdade nos indicadores
sociais e a meritocracia. Munanga (2019) identifica a gênese acadêmica desse
mito no clássico Casa-grande & Senzala, publicado em 1933, após a experiência
de Gilberto Freyre nos Estados Unidos, onde morou da graduação até o
doutorado. Impressionado com a segregação racial estadunidense, que
delimitava explícita e legalmente os espaços destinados a negros e brancos,
Freyre interpretou a realidade do Brasil como antítese ao racismo estrutural,
descrevendo um país marcado pela cordialidade entre brancos e negros e a
suposta ausência de discriminação racial, uma sociedade que transcende a
discriminação ao igualar antigos senhores e escravos. Mesmo reconhecendo
como raiz desta visão equivocada a influência do contexto estadunidense sobre
o sociólogo e sua percepção exterior à realidade do Brasil, Munanga é
contundente em sua crítica:
O mito proclamou no Brasil um paraíso racial, onde as relações entre brancos e negros,
brancos e índios etc. são harmoniosas, isto é, sem preconceito e sem discriminação, a não
ser de ordem socioeconômica, que atinge todos os brasileiros e não se baseia na cor da
pele. Para se consolidar e se tornar cada vez mais forte, o mito manipula alguns fatos
evidenciados na realidade da sociedade brasileira, como a mestiçagem, as personalidades
míticas e os símbolos da resistência cultural negra no país. Ele vai afirmar que somos um
povo mestiço ou seja, nem branco nem negro e nem índio , uma novaraça brasileira,
uma raça mestiça. Quem vai discriminar quem se somos todos mestiços? (MUNANGA,
2019, p. 38)
Djamila Ribeiro (2020), além de referendar esta síntese, identifica duas
características deste mito que perpassam os debates contemporâneos sobre as
questões raciais:
Ao mesmo tempo em que louva a cultura produzida por esses grupos sociais [negros] como
o anúncio da transcendência do conflito de raças, o racismo brasileiro carrega como
forte característica o silêncio, o não dito em face da vigência do marcante mito na sociedade
brasileira: o mito da democracia racial. (RIBEIRO, 2020b, grifos nossos)
Por isso Munanga (2019, p. 38) caracteriza o racismo brasileiro como “difuso,
evasivo, camuflado, silenciado, contudo eficiente em seus objetivos”, uma vez
que, “por causa da ausência de leis segregacionistas, os brasileiros não se
consideram racistas quando se comparam aos norte-americanos, aos sul-
africanos e aos alemães nazistas” (idem). Daí o silêncio sobre a discriminação
por raça: se não existe racismo, por que discutir o tema? Este argumento foi um
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dos mais utilizados para fundamentar posturas contrárias à política de cotas, o
que não surpreende: a negação do racismo barra a discussão sobre o tema e
distorce as intencionalidades das ações afirmativas, acusando-as inclusive de
promoverem a segregação racial que intentam combater. Djamila Ribeiro
(2020a) relembra o contexto em que se deu esta discussão e as reações
antagônicas dos distintos grupos:
A adoção das cotas raciais, sob a grita dos que gozaram da desigualdade em oportunidades,
a criação de centenas de universidades e institutos federais em todo o país, o acesso de
pessoas pobres e negras a universidades particulares pelo Prouni, entre outras medidas,
fizeram borbulhar a demanda sufocada de negros e pobres por educão. (RIBEIRO,
2020a)
NEGROS E POBRES NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS BRASILEIRAS
Quando o governo Dilma Rousseff instituiu como política universitária federal o
acesso ao ensino superior por meio do sistema de cotas, em 2012, 32 das 59
universidades federais da época pouco mais da metade aceitavam
estudantes cotistas, e apenas 25 delas definiam uma reserva de vagas ou
sistema de bonificação para estudantes negros, pardos e indígenas. Desde
então, houve mudanças substantivas nos dados. Segundo o Censo da Educação
Superior, realizado anualmente pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (Inep), o Brasil conta com 2.407 instituições de
ensino superior (IES), das quais 296 são universidades, faculdades e institutos
federais e estaduais (INEP, 2019). Conforme dados do Grupo de Estudos
Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA), núcleo de pesquisa sediado no
Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (IESP-UERJ), mais de 645 mil pretos, pardos e indígenas ingressaram
no ensino superior como cotistas no período entre 2013 e 2018. Este número
significa mais da metade dos 1,1 milhão de universitários graduados em
instituições públicas e privadas em 2016 e a grande maioria se reconhece
como a primeira geração de suas famílias a frequentar uma universidade
(GEMAA, 2020).
Outro aspecto relevante da política de cotas são as mudanças ocorridas durante
seu processo de implementação. Preconiza a Lei 12.711/2012 que um
estudante pode se beneficiar desta política se aprovado em três critérios
sequenciados: 1. Haver estudado em escola pública; 2. Ter renda per capita que
caracteriza a família como socialmente vulnerável, com valores de referência
definidos conforme cada região; e 3. Ter a identidade étnica autodeclarada no
ato da inscrição. Apenas os estudantes aprovados nesta sequência podem
ingressar no ensino superior como cotistas. Além disso, as universidades podem
definir outros critérios para selecioná-los: porcentagem de vagas proporcional à
porcentagem de negros e indígenas da região; cotas para estudantes egressos
de escolas públicas; vagas reservadas para pessoas com deficiência; definição
do número de vagas para cotistas após encerradas as inscrições para o
vestibular tradicional; ou constituir uma comissão responsável pela seleção dos
candidatos, prática adotada algum tempo pela Universidade de Brasília.
Muitas universidades públicas agregaram iniciativas complementares à política
de cotas, tais como atividades de apoio e complementação acadêmica para
estudantes com déficits de aprendizagem; estágios opcionais ou obrigatórios
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para os cotistas; ajuda financeira para material didático e transporte; e parcerias
e convênios com empresas e órgãos públicos para facilitar aos cotistas
oportunidades de emprego e inserção no mercado de trabalho.
Frente ao exposto e retomando as perguntas iniciais, a política de cotas produziu
os resultados esperados? Os argumentos contrários comprovaram sua
fundamentação? Estas questões podem ser respondidas pela análise de dados
dos últimos Exames Nacionais de Desempenho dos Estudantes (ENADE)
8
,
aplicados desde 2004 pelo Inep para mensurar o aproveitamento acadêmico dos
estudantes ao final da graduação, considerando os conteúdos programáticos de
cada curso e as habilidades e competências adquiridas em sua formação.
Segundo Vilela et al (2017), a nota de corte, média exigida para o ingresso nas
universidades públicas, varia cerca de 5% entre alunos cotistas e não cotistas.
Ou seja, o acesso ao ensino superior continua competitivo, e os autores
esmiúçam as variações decimais nas notas de corte de cada curso que
representam a diferença entre ser ou não aprovado no processo seletivo. Quanto
ao receio de que os cotistas não conseguissem acompanhar o ritmo de estudo
dos colegas aprovados pelo sistema de ampla concorrência, as notas dias
variam entre 5% e 10%, um valor estatisticamente próximo. Entre os cursos
avaliados, os cotistas tiveram resultado final até 10% mais baixo que outros
estudantes em áreas como engenharia, matemática, direito e filosofia (idem),
provavelmente por causa de déficits de aprendizagem na educação básica, em
especial no tocante a habilidades de cálculo, leitura, escrita e interpretação de
texto. Por outro lado, Takahashi, Saldaña e Soares (2017) identificam cotistas
com notas 5% superiores aos outros estudantes em cursos como medicina,
administração, pedagogia, ciências biológicas e publicidade. Luiz Cláudio Costa,
ex-reitor da Universidade de Viçosa e ex-secretário executivo do Ministério da
Educação no período 2014-2016, aponta uma explicação plausível para esta
diferença: “Uma vez que o aluno desfavorecido ingressa em uma universidade
pública, vai fazer de tudo para aproveitar esta oportunidade” (idem).
Dados da Associação de Reitores de Instituições Federais (Andife) apontam que
o acesso de negros e pardos ao ensino superior público passou de 34,4% em
2003 para 47,6% em 2014 e 50,3% em 2018 (FONAPRACE, 2018) uma
evolução significativa, tanto considerando-se o período de 15 anos quanto as
décadas anteriores, em que o acesso ao ensino superior se mantinha etilizado.
Segundo a pesquisa Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil, publicada
pelo IBGE em 2019, a melhoria dos índices educacionais entre a população
negra e parda se deve não apenas ao acesso, mas também à permanência dos
cotistas na universidade: o abandono escolar diminuiu de 30,8% em 2016 para
28,8% em 2018, enquanto o percentual de universitários entre os estudantes
pretos ou pardos de 18 a 24 anos aumentou de 50,5% em 2016 para 55,6% em
2018 (MENDONÇA, 2019). Ainda que 78,8% dos estudantes brancos da mesma
faixa etária esteja no ensino superior, estes meros são animadores, pois
confirmam uma transformação significativa em “nossa infame pirâmide
educacional, à qual tantas vezes se referiu em seus escritos o Mestre Anísio
8
O Enade integra o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes), composto também pela
Avaliação de cursos de graduação e pela Avaliação institucional.
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Teixeira
9
durante as décadas de [19]40, 50 e 60” (SGUISSARDI, 2009, p. 172).
Além de ser uma pirâmide ou seja, o cume é para poucos , está invertida em
relação à educação básica: desde os anos 2000, 88% dos estudantes da
educação básica estão nas escolas públicas, enquanto a maioria dos
graduandos das universidades federais, antes da implementação da política de
cotas, provinha de escolas privadas: 62,5% em 2003, 50% em 2009 e 35% em
2015 (FONAPRACE, 2018). Vale lembrar que a Lei nº 12.711/2012 estabeleceu
o ano de 2016 como prazo final para que as instituições de ensino superior
públicas dedicassem 50% de suas vagas a estudantes provenientes de escolas
públicas. Estes dados confirmam a relação entre o aumento da presença de
pretos e pardos nas universidades e a implementação da política de cotas.
E quanto à evasão dos cotistas, outro argumento defendido por grupos contrários
à implementação das cotas? Segundo o Gemaa (2020), a Universidade Estadual
do Rio de Janeiro acolheu, em duas décadas, 21.300 estudantes cotistas, dos
quais 26% desistiram antes do final do curso, número inferior aos 37% de
estudantes não cotistas que deixaram a graduação. A Universidade de Brasília
apresenta índices de evasão similares entre cotistas e não cotistas: 3,4% e 3,1%,
respectivamente. Como ler estes números? Um levantamento realizado pelo
Gemaa (2020) com 124 mil estudantes de 65 instituições federais de ensino
superior no país, abordando o tema “Raça, gênero e saúde mental”, afirma que
37% dos homens pretos e pardos e 36% das mulheres pretas e pardas
abandonaram a universidade devido a problemas financeiros, o que se explica
por outro dado: 58% destes estudantes declararam renda familiar per capita de
até 1,5 salário mínimo, faixa declarada por 36,5% dos estudantes brancos. Além
disso, muitos cotistas afirmaram ter que trabalhar para contribuir na renda
familiar, situação bem menos comum entre estudantes não cotistas (CARDOSO,
2020). Sobre a qualidade profissional dos estudantes e índices de
empregabilidade, os dados foram iguais: 75% para ambos, mas com diferenças
salariais entre cotistas e não cotistas, provavelmente devido à variedade de
territórios, áreas profissionais e empresas em que uns e outros passam a
trabalhar, após a graduação; ao suporte de renda, infraestrutura, bens culturais
e apoio familiar, entre outros, com que os não cotistas contavam; e aos
distintos perfis sociais dos públicos, grupos e ambientes com os quais os
graduados vão interagir em suas áreas profissionais.
Portanto, ainda que facilitar o acesso de pretos e pardos ao ensino superior
contribua para mudar trajetórias individuais, esta política mostra-se insuficiente
para reverter o histórico de desigualdades sociais, exclusão e condições de vida
deste grupo. Apesar desta evidente limitação, são significativos os ganhos
obtidos a partir das políticas de afirmação, cujo objetivo central, segundo Aguiar
Villanueva (apud CHIROLEU, 2012, p. 14-15), “deve ser resolver problemas, isto
é, produzir situações reais diferentes (e, nesse sentido, superadoras) às
qualificadas como ‘problemáticas’”. Logo, tais políticas devem ser reconhecidas
“como um ‘constructo social’ e não como um fato que tem existência material e
objetiva” (idem). Alencastro (2010, p. 4) referenda: as políticas afirmativas, como
a política de cotas, não seguem “uma lógica indenizatória, destinada a garantir
9
Anísio Teixeira (1900-1971), educador e escritor, pioneiro do movimento Escola Nova, conhecido como o
criador da escola pública brasileira e defensor da democratização do ensino no país.
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direitos usurpados de uma comunidade específica”, como negros e indígenas,
pois “se trata, sobretudo, de inscrever a discussão sobre as cotas no
aperfeiçoamento da democracia, no vir a ser da nação”.
Mais que um olhar sobre o passado sem obviamente desconsiderar a história
, as ações afirmativas focam o presente para projetar outras perspectivas de
futuro. Nesse sentido, continua necessária a demanda por ações afirmativas
pautadas em opções políticas que foquem na urgência de transpor o abismo
social e superar as violências e desigualdades dele decorrentes. Além disso, a
experiência da política de cotas pode iluminar as pautas sociais defendidas por
grupos e organizações da sociedade civil e inspirar o desenvolvimento de
iniciativas destinadas a mudar trajetórias de exclusão. Afinal, pretos e pardos
viabilizaram sua presença nas universidades públicas a partir de uma opção
política dos governos petistas e de organizações da sociedade civil que
inverteu a relação de forças até então norteadora das iniciativas governamentais,
e este deve ser o caminho para o atendimento a outras pautas igualmente justas,
relevantes e transformadoras.
No que se refere especificamente à política de cotas, sua implementação
representou um ponto de inflexão na história dos pretos e pardos do Brasil,
apesar dos argumentos contrários ou, talvez, exatamente por causa deles. O
acesso dos cotistas ao ensino superior não tem prejudicado os estudantes que
contaram com educação básica de qualidade nem beneficiado somente os
pobres que finalmente podem fazer parte das universidades públicas. Como
sintetiza Djamila Ribeiro (2020a): “Por mais que tenha críticas e as tenho a esses
governos [petistas], não há como negar que, ao adotar reivindicações históricas
do movimento negro para a educação superior, foram oportunizados avanços e
transformações sociais que estão postas”. Não se entra aqui no debate sobre as
perspectivas futuras para esta e outras ações afirmativas, o que exigiria uma
análise das políticas educacionais dos governos Temer (2016-2018) e Bolsonaro
(2019...), o que extrapola o objetivo deste artigo. Pode-se reconhecer,
entretanto, que esta ação afirmativa problematiza qual projeto de país se
defende e quais processos de inclusão devem ser desenvolvidos em vista do
aperfeiçoamento da democracia brasileira. Ao reconhecer a dívida histórica com
os pretos e pardos, mas apontando perspectivas de transformação social, a
política de cotas se afirma como uma estratégia política de inclusão necessária
à diminuição das desigualdades que sempre caracterizaram a história do Brasil.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A política de cotas raciais não se fundamenta em supostas diferenças na
capacidade intelectual de negros e brancos, mas reconhece a desigualdade de
acesso aos bens sociais relacionada a questões históricas, políticas e raciais;
desta forma, se inscreve no contexto mais amplo das ações afirmativas focadas
em parcelas da população excluídas das políticas de Estado, especialmente no
que se refere à escolarização. Focada inicialmente na população preta e parda,
confirmou-a também como maioria dos pobres no Brasil e, por isso, reconheceu
e adotou mudanças necessárias em seu processo de implementação nas
universidades públicas. Vinte anos após a primeira experiência e estabelecidas
há menos de uma década como política governamental, as cotas promoveram o
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aumento substancial do número de estudantes universitários oriundos das
escolas públicas pretos e pardos em sua maioria e evidenciaram uma
mudança na lógica político-social que sempre privilegiou as elites econômicas
do país. Vistas inicialmente como uma forma de pagamento da dívida histórica
para com os brasileiros pretos e pobres, as cotas representam uma estratégia
de inclusão social fundamental ao aperfeiçoamento da cidadania e da
democracia. É impossível avançar como país sem buscar formas de reduzir a
desigualdade e a injustiça que ainda hoje esgarçam o tecido social do Brasil.
Ao contrário do que se supunha, a presença dos estudantes provenientes de
escolas públicas nas universidades públicas não significou perda da qualidade
do ensino, o que se comprova pela média de notas, por si insuficientes para
auferir a excelência acadêmica, mas ainda adotadas como maior critério de
mensuração de desempenho. certamente desafios postos às universidades
públicas, seja no âmbito de gestão, infraestrutura, parcerias, investimento
governamental ou sustentabilidade financeira, mas a política de cotas o
constitui um problema a mais, pelo contrário: além de contribuir para a
democratização do ensino superior, potencializa a função social da academia,
pois mais diversidade entre os estudantes significa benefícios para um corpus
social mais representativo da população brasileira.
O processo de implementação desta política evidencia ainda a oposição entre
grupos sociais distintos, uns beneficiados desde sempre pelas opções políticas
dos governos e, portanto, interessados na manutenção da desigualdade;
outros, vítimas históricas da exploração e exclusão social, pautando hoje a
necessidade de políticas afirmativas para viabilizar sua inclusão na sociedade; e
outros ainda que reivindicam o direito de maior participação na vida do país
afirmando sua identidade individual e coletiva. Essa disputa questiona o mito da
democracia racial e os discursos que negam a existência do racismo no Brasil:
os maiores beneficiários das cotas têm sido simultaneamente os pobres e
negros, com destaque também para as mulheres. As reações contrárias às cotas
corroboram as raízes históricas e a intencionalidade política da exclusão social;
assim, é inconcebível que se sobreponham ao reconhecimento e defesa dos
direitos destas populações.
Finalmente, a política de cotas apresenta ganhos sociais e acadêmicos tangíveis
e relevantes, mas tem caráter compensatório e afirmativo e, logo, não representa
uma solução permanente nem definitiva, como comprovam as mudanças
adotadas ao longo do processo de implementação. Resultado de uma opção
política bem definida, fundamentada em uma visão prospectiva a médio e longo
prazo, não é suficiente para mudar toda uma história de exclusão e injustiça
social, mas acentua a urgência de ações afirmativas focadas nas necessidades
dos diferentes segmentos da população. Segue prioritário o investimento
governamental em educação pública de qualidade, pois a democratização do
ensino, seja para universitários, crianças, adolescentes ou jovens, é fundamental
para a superação progressiva das desigualdades sociais e a igualdade de
acesso aos bens sociais, econômicos e culturais inerentes à cidadania ativa. A
política de cotas confirma o quanto a educação é um direito fundamental que
abre portas para outros direitos igualmente fundamentais.
REFERÊNCIAS
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