Trabalho & Educação | v.29 | n.3 | p.19-67 | set-dez | 2020
O principal argumento que Roitman avança contra o uso da ideia de crise, e porque ela é contra
crise, é que crise pode apenas ser observada como um ‘ponto cego’ na análise social e histórica.
Uma crise não possui conteúdo social em si mesma; ao contrário, é constituída por eventos,
fenômenos e tendências sociais que lhe dão substância. Portanto, como tal, deve ser
argumentado, demonstrado por processos de coleta de evidências, análises e, em última
instância, persuasão, envolvendo necessariamente elementos retóricos e políticos em sua
constituição. Assim, quando a crise é provocada por um teórico social, político, economista,
comentarista da mídia e outros interessados, o que importa s “as maneiras pelas quais ela permite
que certas perguntas sejam feitas enquanto outras são excluídas (Roitman, 2014, p. 94).
Para Roitman, o discurso da crise tem implicações conservadoras (como observado
anteriormente), mas ela é ambivalente aqui, pois a crise também pode gerar formulações para
além das situações existentes. Ela argumenta que:
Ao escavar o termo crise no cognato de crítica e crise, ao fazer sua co-constituição, espero chamar
a atenção para os meios pelos quais a crise serve como uma distinção ou espaço transcendental
na ocupação de um mundo imanente ... [e] a crise serve como um espaço transcendental porque
é um meio para significar contingência; é um termo que supostamente permite pensar o "caso
contrário” (Roitman, 2014, p. 9).
Com base nisto, observa Roitman
, a crise é um “superconceito” histórico. (Oberbegriffe)
(ROITMAN, 2014, p. 10). Ela “estabelece as condições de possíveis histórias e indica como ela é
um ponto cego nas construções narrativas das ciências sociais” (Roitman, 2014, p. 11). A ideia
de crise mostra “um abismo supostamente observável entre “real”... e o fictício, errôneo ou ilógico
afastamento do real” (Roitman, 2014, p. 11). Ainda Roitman tem o cuidado de argumentar que
isto não significa que as crises sejam negadas, ou que estas não sejam reais. Ao contrário, ela
argumenta que:
A questão é observar os efeitos da afirmação de crise, em estar atento aos efeitos da nossa
adesão a este julgamento. A crise engendra certas formas de crítica, que politizam grupos de
interesses. Esta é uma política de crise (grifo do autor) (Roitman, 2014, p.12).
A política de crise aponta para a contestabilidade essencial da própria ideia de crise
.
Paradoxalmente, a crise, por si só, não possui abertura para uma contestação e constituição mais
profunda. É constituída por contingências particulares, apesar de contribuir para a produção de
conhecimento. Tais contingências e as diferentes perspectivas sobre elas geram discordâncias,
retóricas combativas, reivindicações e contra reivindicações na busca pela produção de
conhecimento e de seu significado. Desta forma, “a crise é um ponto cego que inviabiliza a
produção de conhecimento” (grifo nosso) (Roitman, 2014, p. 39), neste estrondo adversário.
Consequentemente:
… se considerarmos a crise como um ponto cego, ou uma distinção, que torna algumas coisas
visíveis e outras invisíveis, é apenas a priori. A crise é afirmada, mas permanece latente, nunca é
explicada, pois é necessário reduzi-la a outros elementos como capitalismo, economia,
neoliberalismo, finanças, política, cultura, subjetividade (Roitman, 2014, p. 39).
A crise não pode ser observada, apenas seus elementos constituintes são revelados, mas é esta
observação e análise que “produz sentido” (Roitman, 2014, p. 39). Para Roitman ela tem valor
neste sentido.
De acordo com Koselleck, 2006, p. 392.
Georgakis e Hadjioannou, reconhecendo este ponto, argumentam que: “Precisamos recuperar a crise [da sociedade
Grega em particular, e do capitalismo em geral] como uma questão diacrítica que gera um estado desregulado de
discernimento intelectual” 2012, p. 8 – grifo nosso. Eles defendem a ideia de que todo ‘julgamento afirmado’ em relação à
crise atual deve ser tratado de forma crítica (p. 7). Dessa forma, eles enfraquecem a desconsideração do pensamento
sobre as crises que Roitman revela como uma característica do discurso da crise.