Esse curso forçado pelo Estado rege somente dentro das fronteiras de uma comunidade ou
na esfera interna de circulação, mas também somente aqui o dinheiro reduz-se totalmente
à sua função de meio circulante ou de moeda, e pode, portanto, receber na moeda papel
uma modalidade de existência puramente funcional e exteriormente separada de sua
substância metálica. (MARX, 1996 a, p. 248).
Somente com o papel ativo do Estado e do Direito é possível que exista o papel-moeda
como uma forma autônoma diante dos metais preciosos. A questão pode parecer lateral,
mas não é. Justamente com o papel-moeda e com o divórcio entre a base material de
medida de valor (os metais preciosos, em Marx) e a representação deste tem-se a
possibilidade de algo como o sistema de crédito, bem como de imbrincados sistemas de
investimento capitalista, como as sociedades por ações. Viu-se, assim, que o papel ativo
do Estado na autonomização das formas econômicas é de grande relevo; no caso, tem-
se a conformação da autonomia relativa do papel-moeda diante tanto dos metais
preciosos quanto da medida do valor, a saber, o tempo de trabalho socialmente
necessário. A questão tem diversas nuances, que não podem ser trazidas à tona aqui.
(Cf. SARTORI, 2019) No entanto, é necessário deixar clara a importância desta
autonomização diante da conformação do sistema de crédito público. O tema é tratado
no livro I de :
O sistema de crédito público, isto é, das dívidas do Estado, cujas origens encontramos em
Gênova e Veneza já na Idade Média, apoderou-se de toda a Europa durante o período
manufatureiro. O sistema colonial com seu comércio marítimo e suas guerras comerciais
serviu-lhe de estufa. Assim, ele se consolidou primeiramente na Holanda. A dívida do
Estado, isto é, a alienação do Estado — se despótico, constitucional ou republicano —
imprime sua marca sobre a era capitalista. A única parte da assim chamada riqueza nacional
que realmente entra na posse coletiva dos povos modernos é — sua dívida de Estado. Daí
ser totalmente consequente a doutrina moderna de que um povo torna-se tanto mais rico
quanto mais se endivida. O crédito público torna-se o credo do capital. E com o surgimento
do endividamento do Estado, o lugar do pecado contra o Espírito Santo, para o qual não há
perdão, é ocupado pela falta de fé na dívida do Estado. A dívida pública torna-se uma das
mais enérgicas alavancas da acumulação primitiva. Tal como o toque de uma varinha
mágica, ela dota o dinheiro improdutivo de força criadora e o transforma, desse modo, em
capital, sem que tenha necessidade para tanto de se expor ao esforço e perigo inseparáveis
da aplicação industrial e mesmo usurária. Os credores do Estado, na realidade, não dão
nada, pois a soma emprestada é convertida em títulos da dívida, facilmente transferíveis,
que continuam a funcionar em suas mãos como se fossem a mesma quantidade de dinheiro
sonante. (MARX, 1996 b, p. 373).
Se “a dívida pública torna-se uma das mais enérgicas alavancas da acumulação
primitiva” há de se notar como que a atuação estatal mesma se coloca, novamente,
como potência econômica.
No caso, trata-se daquilo que, depois, no livro III, Marx veio a chamar de capital fictício.
Então, o divórcio entre a base metálica e a representação do valor é bastante gritante.
Por mais que, segundo Marx, este elo não possa ser real e efetivamente rompido, tem-
se, no capital fictício, com a mediação de transações jurídicas, uma forma de aparição
do valor que parece ser absolutamente dissociada do processo produtivo. No que, neste
ponto, há de se mostrar que, de acordo com o autor de , tal aparência só é
trazida como tal ao passo que é impossível que não exista uma base real – ancorada na
produção material – para o capital fictício. No caso, isto fica claro já que o próprio
processo de “alavancamento” da acumulação primitiva não prescinde de um papel
central da dívida pública. Deste modo, na “assim chamada acumulação primitiva” - como,
aliás, durante toda a produção capitalista – não se tem tanto o entesouramento mais ou